A Onda
A confusão do político com o afectivo, que ameaça todos os grupos, constitui o grande risco do totalitarismo. A política exercida com a razão é o antídoto do fascismo, que sempre se apresenta como uma política da emoção. Por João Bernardo
A Onda, Die Welle, é um filme realizado [dirigido] na Alemanha em 2008 por Dennis Gansel. Um professor amante de rock e com simpatia pelo anarquismo − personagem apesar de tudo frequente e revelador dos anseios frustrados de antigos estudantes insubmissos que acabaram por integrar o rebanho − foi encarregado pela directora da escola de dar um curso sobre os regimes autocráticos. Na Alemanha, inevitavelmente, o fascismo iria ser o tema dessas aulas, e como ninguém queria ouvir mais uma vez as banalidades de sempre sobre o Terceiro Reich e a culpabilidade alemã, o professor decidiu romper a barreira do desinteresse procedendo a uma experiência pedagógica. Propô-la aos alunos e eles aceitaram. Durante uns dias, o professor obrigaria os alunos, com o consentimento deles, a cumprirem os rituais físicos da disciplina de massas, esperando que eles aprendessem assim o conteúdo ideológico dessa disciplina.
Ao ver o filme, qualquer português da minha idade encontrará ali as aulas de Educação Física da sua infância. O que nos obrigavam a fazer! Talvez por isso todos nós, os jovens esquerdistas, éramos péssimos em ginástica. Se o taylorismo é a disciplina do corpo para a produção, o fascismo foi a disciplina do corpo para a política. Na experiência pedagógica daquele professor tudo começou com gestos simples, o levantar e o sentar, o estar sentado direito e de pés juntos.
E o professor tinha razão, porque antes de ser uma ideologia ou uma forma de governar, o fascismo fora acima de tudo um ritual colectivo, a encenação diariamente repetida da hierarquia e da submissão, da ordem enquanto anulação do indivíduo na grande colectividade, na pátria ou na raça.
O passo seguinte, não menos decisivo, foi a escolha de um uniforme, porque o uniforme não é apenas um símbolo de identidade do grupo. Muito mais do que isso, no fascismo o uniforme era uma máscara que ocultava as diferenças sociais, aquilo que já não sei que crítico britânico denominou «sartorial socialism», socialismo de alfaiate. E o pior é que foi esta a argumentação empregue por alguns alunos para convencer outros, mais renitentes, a aceitar o uniforme. Ele é democrático, diziam eles, pois reduz todos à mesma condição. E não é a democracia nos dias de hoje o mais insuspeito e incontroverso dos valores? Democrático dentro das paredes da sala de aulas, porque lá fora, apesar de envergarem roupa idêntica, os alunos eram ricos ou pobres ou assim-assim, sem que competisse ao uniforme abolir aquela realidade fundamental. A discussão na turma a propósito da adopção de uniforme foi das mais sugestivas, porque surgiu ainda o argumento de que nas democracias as fardas são comuns e até os executivos das empresas adoptam padrões de vestuário. Precisamente. Será que o fascismo foi democrático? Ou é a democracia que é fascista? E não podia ser mais aterrador o uniforme criado pelo professor e pelos alunos, calças jeans azuis e camisa branca. Na sua inteira banalidade, este uniforme lembrou-me o que John Le Carré descreveu em A Small Town in Germany, onde relatou o desenvolvimento de um fascismo pós-fascista, um movimento cinzento e anónimo de mediania social.
Adoptado o uniforme, impunha-se naturalmente a escolha de uma saudação, o outro elemento ritual necessário para a identificação do grupo. E como o desporto aquático era a especialidade daquele professor e daquela turma, a saudação acabou por ser um gesto de braço reproduzindo o movimento de uma onda. Aquela tribo adquirira o seu nome e o seu totem. A Onda.
Porém, o que começara como um jogo continuou como um mecanismo inelutável, cujas engrenagens já não puderam ser sustidas e cujos efeitos não puderam ser travados. A sociedade não é um laboratório e as experiências sociais têm efeitos reais. A partir do momento em que se começa a fazer algo como experiência, ela deixa de ser gratuita. Talvez seja esta a maior lição de um filme que tem tantas. Contrariamente ao que imaginam os pós-modernos, a futilidade é uma coisa muito séria.
Uniforme, saudação, rituais, disciplina de massas, este conjunto excluiu tudo o resto. As aulas deixaram de ser − ou de pretender ser − a transmissão ou a partilha de um conhecimento e converteram-se na mera afirmação da identidade do grupo. A vida privada foi eliminada. Não só a vida privada, aliás, mas todos os tipos de existência que ultrapassassem os limites do grupo. A Onda não tinha vias de saída, nem sociais nem mentais. A redução da existência a uma perspectiva única, é isto o totalitarismo, e o apelo aos sentimentos é aqui um dos procedimentos mais eficazes. Lealdade, afecto, devoção, nada disto podia ser gasto com namoradas ou com colegas, mas apenas com o grupo ou com as pessoas enquanto membros do grupo. A confusão do político com o afectivo, que ameaça todos os grupos, constitui o grande risco do totalitarismo, tanto mais perigoso quanto é a sedução da demagogia fácil. A política exercida com a razão é o antídoto do fascismo, que sempre se apresenta como uma política da emoção.
A Onda deu aos alunos o que lhes faltava, o sentido de uma comunhão colectiva, mas com a condição de eles darem tudo… a quem? Ao grupo? Através da hierarquia instaurada, tudo é dado inevitavelmente ao chefe do grupo, por isso ele pode aparecer como o generoso dispensador de benesses e de conselhos. O autoritarismo não é senão a exploração afectiva dos que se entregam à autoridade. O carisma não emana do chefe, é-lhe dado pelos que acreditam nele e que não têm consciência de que recebem de volta no plano simbólico aquilo que lhe concederam no plano real.
Mas não foi só através da repetição dos gestos da disciplina colectiva que os alunos assimilaram o fascismo, a ponto de o adoptarem. O terreno propício estava criado pelo misto de ignorância e de ressentimento que caracterizava a quase totalidade dos estudantes daquela turma, como caracteriza a sua esmagadora maioria noutras escolas e em outros países. A ignorância não consiste em não se saber mas em não desejar saber. A ignorância é só outro nome que se dá ao desinteresse. O ressentimento é a outra face do mesmo problema. Referindo-se à base popular dos precursores do fascismo francês, Eugen Weber observou que ela se caracterizara por «odiar os ricos e desprezar os pobres», o que constitui a definição do ressentimento. Naquele caso, o ressentimento era antes de mais sentido pelo professor, licenciado com diplomas de segunda ordem, enquanto os colegas tinham vindo de melhores universidades. O ressentimento era sentido também por muitos alunos e alunas, invejosos dos que tinham melhores notas ou melhores carros ou melhores roupas, das que eram mais bonitas e dos que eram mais atléticos. Como ninguém tem tudo, a semeadura do ressentimento encontra campos férteis. E assim os perdedores de sempre, os tímidos, os incapazes sentiram-se fortes em grupo e foram eles quem forneceu à turma a estrutura embrionária das tropas de choque.
Quando o professor fez numa aula um discurso demagógico contra o capitalismo, quem conhecer a história sabe que se tratava de uma colagem de citações fascistas, mas quantos esquerdistas actuais não o aplaudiriam com toda a boa fé? Quantos esquerdistas não descobririam, se lessem os fascistas, que na verdade eles mesmos são fascistas? Há alguns meses este site publicou um artigo meu, Entre a Luta de Classes e o Ressentimento, que foi reproduzido noutros lugares, e num desses blogs um leitor indignado escreveu que «o João Bernardo está à direita de Átila». Com efeito, quando se julga que a extrema-direita é uma esquerda, em que lugar hão-de pôr a extrema-esquerda?
Se bem que tivesse começado a espalhar-se pela cidade, o fascismo de A Onda fora gerado dentro das paredes de uma sala de aula e mantinha na escola a sua base de sustentação. Foi a estrutura escolar que forneceu o quadro daquela experiência. O professor não inventou uma nova relação com os alunos, apenas deu outro rigor e marcou de outro modo a hierarquia subjacente à vida da escola. Normas, submissões e comportamentos que no quotidiano aparecem de maneira dissimulada passaram para o primeiro plano e preencheram toda a cena. Ainda aqui o filme indica um dos mais importantes caminhos para a análise do fascismo, porque entre as duas guerras mundiais o fascismo jamais poderia ter ascendido e imperado sem o quadro prévio que lhe fora fornecido pelo liberalismo burguês. Compreenderemos o mecanismo básico do fascismo se soubermos que ele foi uma revolta no interior da ordem, não contra a ordem − ainda que, nalguns casos, pudesse tê-la derrubado depois. Do mesmo modo, aquele fascismo escolar surgiu no interior da hierarquia docente e contou com a protecção discreta, embora significativa, da directora da escola, numa ocasião em que o barulho dessas estranhas aulas começara a incomodar os professores conservadores que davam aulas ao lado. Mas o que sucederia à directora da escola, conservadora também, se A Onda alastrasse? Não seria ela substituída pelo criador de A Onda, como aconteceu sempre com os aprendizes de feiticeiro que pensaram usar o fascismo para reforçar a sua autoridade e que terminaram vendo a autoridade reforçada, mas não a deles?
E se aquele homem fosse professor na Universidade Bandeirante?
Poderia aquela experiência ocorrer em outro lugar que não numa escola? Ela não poderia ter como quadro uma empresa, pelo menos durante as horas de trabalho, porque o grupo alteraria as relações sociais de produção. Para o fascismo foi intocável o sistema de trabalho, e dentro dos muros das empresas o totalitarismo fascista jamais substituiu o totalitarismo patronal. Quando observamos algumas práticas de controlo da força de trabalho desenvolvidas nas empresas japonesas e a partir daí difundidas por todo o mundo, verificamos uma grande semelhança com os rituais políticos do fascismo. Mas dentro das empresas as manifestações de disciplina colectiva destinam-se a aumentar a produtividade e obedecem às hierarquias internas das empresas, enquanto os rituais fascistas, que vigoram fora das empresas, obedecem à hierarquia política e destinam-se a manter a ordem social global. Estas duas esferas totalitárias justapõem-se sem se interpenetrarem. Tanto assim que o «sartorial socialism», o socialismo de alfaiate que vestia patrões e empregados com os mesmos uniformes nas mesmas milícias, servia para as ruas e para as praças mas era excluído das fábricas ou dos escritórios. Ora, o estudante tem algo em comum com o desempregado. A sua actividade não é considerada, em termos capitalistas, um trabalho, mas apenas uma preparação para o trabalho. É conhecido o papel que os desempregados tiveram na ascensão de algumas formas de fascismo durante a profunda crise económica da década de 1930. Temos no caso daqueles estudantes um fascismo dos tempos livres.
E na perspectiva dos tempos livres vemos que a escola não foi o único quadro constitutivo do fascismo de A Onda. Os pequenos grupos informais existentes entre os alunos, os minúsculos gangs de esquina que alguns deles formavam nos corredores da escola ou nas ruas da cidade, foram mobilizados para confluir no grupo mais vasto, e ao mesmo tempo que perderam a sua identidade contribuíram para dar à Onda uma identidade única e coesa.
Numa noite em que um pequeno bando de A Onda, enquadrado pelo embrião de tropas de choque, enfrentou outro pequeno bando de anarco-punks, vemos uniformes em ambos os lados, opostos nas suas características estéticas, mas ambos identificadores de uma demarcação de grupo. O fascismo é uma realidade envolvente, cujos sintomas estão dispersos, por isso é sempre possível articulá-los e conjugá-los, criando uma realidade visível onde antes existiam apenas indícios dissimulados. É esta a operação chave do fascismo, e posso pensar que se algum daqueles anarco-punks que se bateram na rua contra A Onda tivesse decidido seguir o curso sobre a autocracia teria com facilidade sido engolido pelo colectivo fascista, como outros alunos com aspecto igualmente punk haviam sido absorvidos também.
Não foi nesta refrega entre milícias uniformizadas, apesar de rivais, que A Onda foi posta em causa, mas na competição de desporto aquático realizada com os alunos de outra instituição, que curiosamente se chamava Escola Ernst Barlach, em homenagem a um dos grandes escultores do expressionismo, vilipendiado pelos nazis como «artista degenerado». Barlach não fora só um grande escultor e conseguira imprimir a algumas das suas obras um antimilitarismo que não vinha dos bons sentimentos mas do horror intrínseco da guerra. Foi ali, no confronto entre a realidade do fascismo e a memória do antimilitarismo, que a violência e o autoritarismo de A Onda começaram a ultrapassar os limites do que era internamente aceitável pelo próprio grupo, precipitando-o para a implosão final.
Antes do mais, foi porque no resto da sociedade não houve quem necessitasse de um grupo com aquelas características que a violência sistemática de A Onda, em vez de continuar a expandir-se contra o inimigo exterior, se virou contra si mesma. Mas o filme deixa em suspenso a grande questão. O que teria sucedido se alguém, se alguma força política, se a própria polícia, naquele momento, naquela cidade, estivesse interessado num grupo assim? Parece tão fácil chegar ao fascismo, que em vez de explicar o fascismo talvez o que devesse ser explicado fosse o não-fascismo.
A última cena do filme fixa o rosto do professor, já dentro do carro da polícia que o leva preso, transfigurado pela descoberta, tal como o sr. Kurz na novela de Joseph Conrad, quando murmurou, no momento de morrer, «O horror! O horror!». Aquilo que o professor sentiu dentro dele, indizível porque não há palavras que o expressem num instante menor do que um segundo, foi a compreensão dos mecanismos da história. Mas a história é assimétrica, como o tempo que a sustenta, e flui só num sentido. Podemos compreender a prática, mas só depois de a termos praticado, e lançamo-nos na história sem garantias prévias. A Onda é um filme precisamente sobre isto, sobre o fascismo difuso no quotidiano e que só entendemos como fascismo depois de ele já estar instalado.
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