domingo, 28 de fevereiro de 2010

Não sou contribuinte!

Não sou contribuinte!

Fui à Receita Federal em Maringá. Enquanto aguardava, um aviso em letras garrafais me chamou a atenção: “Srs. Contribuintes”. Eureca! Descobri que sou contribuinte. Claro, nem sempre paramos para refletir sobre o real significado de palavras que se tornam corriqueiras. Contribuinte?! Do verbo contribuir, sugere um ato voluntário; mas também pode ser compulsório.

O alerta do painel indicando a mesa à qual deveria me dirigir interrompeu a reflexão. Adentrei ao recinto de atendimento aos “Srs. Contribuintes”. O cidadão, simpático e educado, me atendeu e logo esclareceu a minha dúvida. Então, comentei sobre o contribuinte. Argumentei que era um contra-senso, pois somos obrigados a contribuir. Por isto é IMPOSTO DE RENDA. Não por acaso, o órgão em que estávamos se chama “Delegacia da Receita Federal”.

Despedi-me e fui ao setor indicado por ele. Lá, uma cidadã, também muito simpática e educada, me atendeu. Fiz a referência ao termo contribuinte e trocamos algumas palavras. Quando retornei para retirar o documento solicitado, conversamos rapidamente. Agradeci e fui embora. Em casa, ao manusear os papéis, vi que havia uma cópia dos verbetes:

CONTRIBUINTE: (u-in) [De contribuir + -nte.] Adjetivo de dois gêneros. Substantivo de dois gêneros. 1. Que ou quem contribui, ou paga contribuição. [V. coletado.].

CONTRIBUIÇÃO: (u-i) [Do lat. contributione.] Substantivo feminino. 1. Ato ou efeito de contribuir. 2. Quinhão, cota, tributo. 3. Parte pertencente a cada um nas despesas do Estado ou em uma despesa comum. 4. Subsídio moral, social, literário ou científico para algum fim.

Contribuição de melhoria. 1. Econ. Tributo baseado no aumento do valor de imóveis beneficiados pela realização de obra pública, e aplicado ao custeio desta. (Dicionário Aurélio)

Admirado e agradecido com a prestatividade da cidadã fiquei a matutar. Tenho o Dicionário Aurélio, mas não pensei em recorrer a ele. Do ponto de vista linguistico, o significado parece claro. A questão é política. É interessante que o Estado faça uso de palavras como esta para cumprir sua função mais proeminente ao longo da história.

Na política a linguagem nunca é inocente; ela mascara os reais objetivos. Democracia, bem-comum, cidadania, e tantas outras palavras de cunho político possuem significados lexicológicos. Do ponto de vista da análise política, porém, isto é insuficiente. A acepção política das palavras é algo muito mais complexo, para além da mera definição do dicionário.

Contudo, mesmo se nos limitarmos ao dicionário, a palavra contribuinte revela-se paradoxal quando vinculada a outra palavra menos simpática: IMPOSTO. Segundo o Aurélio:

Imposto: (ô) [Do lat. med. impositu, subst. do lat. impositu, part. pass. de imponere.] Adjetivo. 1. Feito aceitar ou realizar à força. [Flex.: imposta (ó), impostos (ó), impostas (ó). Cf. imposto, do v. impostar, e emposta, s. f.] Substantivo masculino. 2. Transferência compulsória de dinheiro ao governo (no passado, também de mercadorias e serviços), por parte de indivíduos ou instituições; tributo. 3. Jur. Tributo exigido, independentemente da prestação de serviços específicos, ao contribuinte, pelo governo. [Opõe-se, nesta acepç., a taxa (2).].

Portanto, ainda que o Estado suavize e oculte sua real função ao utilizar recursos linguisticos e midiáticos, não devemos nos iludir. A ocultação é própria da política. Com o risco da redundância, pagamos impostos por imposição. É IMPOSTO! Ainda que concordemos em contribuir, isto não muda o verdadeiro significado da existência e função policial do Estado.

Decididamente, NÃO SOU CONTRIBUINTE!

fonte: http://antoniozai.wordpress.com/2010/02/27/nao-sou-contribuinte/

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

A imparcialidade das chamas, em imagens e palavras

A imparcialidade das chamas, em imagens e palavras

por José de Souza Martins*

Percorri os escombros da favela incendiada, no Jaguaré, no dia seguinte. Num canto, ainda saía fumaça da madeira caída. O fogo comeu os barracos por cima, até chegar ao chão que, molhado pela água dos bombeiros, reteve muita coisa chamuscada ou parcialmente queimada. Roupas coloridas pareciam confete sobre o solo negro. Quase 350 famílias ficaram sem nada.

J.S. Martins (12/10/2009)

A frase interrompida pelo fogo em uma página de fascículo da Secretaria da Educação diz que é texto sobre “os direitos da criança”. Outra página, queimada pelas bordas e retorcida, no que sobrou propõe “questões de compreensão”: “Ao conjunto de pessoas que habitam determinado lugar é dado o nome de população. Existem, por exemplo, a população mundial, a população brasileira, etc. A quais populações você pertence?” A criança dona do caderno não teve tempo de responder que pertencia à população da favela Diogo Pires, São Paulo, Brasil, nem poderá fazê-lo pois a favela não existe mais.

Em diferentes pontos do terreno recoberto de cinza e carvão, talheres, especialmente garfos, estão espalhados ao redor de determinados pontos, ao lado de canecas partidas de porcelana e pratos cheios com uma sopa de carvão. Ali existiram as mesas improvisadas do pão nosso de cada dia. Em vários pontos, o calor estourou saquinhos de plástico com alimentos: aqui, um pacote de arroz Piccinin; ali, um pacote de feijão Prato Bom; acolá, um pacote de arroz Pateko; mais adiante, um pacote de macarrão Renata, “com ovos”, esclarece o invólucro. Num outro ponto, salsichas e cabeças de alho transformadas em carvão estão espalhadas pelo chão.

J.S. Martins (12/10/2009)

Na direção da Rua Diogo Pires, um barraco ficou parcialmente de pé. Num cômodo que era quarto e cozinha, um tabique divide duas imaginárias metades, construído com restos de uma placa de posto de gasolina. Servia como privada e banheiro. Aparentemente, a família havia acabado de jantar. Na cuba e sobre a pia de aço inoxidável pratos recém usados, talheres. Na parede, com um rombo aberto pelo fogo, um bonito armário branco de portas verdes. Sob a pia, um gaveteiro envernizado, uma das gavetas aberta, o conteúdo esvaziado por alguém na pressa de fugir. Encostado ao tabique do banheiro, o estrado de uma cama de casal: para a família ter espaço durante o dia, a cama era desmontada. Penduradas num canto do estrado, coloridas roupas de crianças.

Lá fora, fogões a gás, geladeiras e máquinas de lavar roupa, queimados, cobrem o terreno enegrecido e encharcado. Para que morador de favela, morando em precário barraco de madeira, quer máquina de lavar roupa? O monturo tem uma mensagem: os bens de consumo duráveis como investimentos na casa imaginária, a casa que esperam ter um dia, que corresponda à realidade daquelas coisas. São sinais de esperança, modos de se equiparem para dias melhores como os dos ex-favelados do condomínio ali do lado, que há pouco receberam seus apartamentos do governo do Estado e da Prefeitura.

J.S. Martins (12/10/2009)

Nas proximidades, dois homens conversam. “Isso é castigo”, diz um deles. Irrito-me e comento: “Estranho! Só pobre é castigado. Só favela pega fogo, queimando casa de montão.” Um deles responde, surpreso: “É mesmo!” E se retiram. Quatro crianças caminham na minha direção: “Moço! Tira uma foto?” Tiro. “Quando é que a gente vai aparecer na televisão?” Os pobres querem ser vistos. Um senhor muito simples se aproxima, trazendo pela mão o menino Vinicius, limpo e arrumadinho, como sempre acontece com crianças e adultos de favela: compensam na aparência o que lhes falta na vida. Quer que tire uma foto de seu filho pequeno.

Alguns cachorros perambulam. Um deles se deita encostado ao resto de uma parede. “Está esperando o dono, que morava aí; deve estar com fome”, comenta a moradora do barraco vizinho, que não foi queimado. A uma vizinha diz que o incêndio começou quando um homem, na outra ponta da favela, quis pôr fogo na mulher. Ela responde: “Tem que linchar ele! Não lincharam ainda?” As chamas da imaginação vão tomando conta de todos para explicar o inexplicável.

Ali perto, encontro o corpo carbonizado de um gatinho, que não conseguiu escapar. Sinal de fogo rápido. Se os vizinhos não tivessem corrido para retirar crianças pequenas, algumas delas teriam sido consumidas pelo fogo que se espalhou depressa. Duas gêmeas foram retiradas de um barraco por moradores, enquanto outros vizinhos retiravam seus sete irmãos e a mãe carregava uma filha paraplégica. Aqui e ali, alguns moradores desabafam, vários com forte sotaque nordestino: “Saí com a roupa do corpo. Ficou tudo pra trás.”

J.S. Martins (12/10/2009)

Poderia não ter ficado. Bem ao lado, erguem-se os novos e belos edifícios de um programa habitacional do Governo do Estado e da Prefeitura, o terreno ajardinado, um menino andando de bicicleta na calçada. É parte do projeto de urbanização da favela, apartamentos entregues aos moradores há pouco tempo pelo governador. Com a novidade, em relação ao Cingapura: além de apartamentos de dois quartos, há varandas de acesso e também apartamentos de três quartos, para as famílias maiores. Há 6 meses a Prefeitura tenta adquirir do dono o terreno invadido pelos favelados da “Diogo Pires”, abandonado por uma empresa de reparação de vagões ferroviários. Já há um projeto pronto para extensão do condomínio para aquela área e construção de apartamentos para 400 famílias. Propriedade privada, o Governo do Estado nada pode fazer enquanto não se tornar proprietário do terreno. Não fosse esse empecilho, os prédios já estariam adiantados, como vários ao lado e a favela não estaria lá.

Já no fim da tarde, numa das pontas da favela aparece um grupo que vem trazer lanches e café com leite para os desalojados. Na outra ponta, um homem chega discretamente com seu automóvel carregado de pacotes de leite e os distribui. Na igreja do Jaguaré, um jovem casal, vindo de São Caetano, traz roupas para as vítimas. No cenário escuro dos caibros e paredes carbonizados, bate forte o coração luminoso dos que se esquecem do eu e se pensam como nós.


* Professor Emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Dentre outros livros, autor de A Sociabilidade do Homem Simples (Contexto, 2008) e de A Aparição do Demônio na Fábrica (Editora 34, 2008

Publicado em O Estado de S. Paulo [Caderno Aliás, A Semana Revista], domingo, 18 de outubro de 2009, p. J3.


fonte:http://espacoacademico.wordpress.com/2010/02/24/a-imparcialidade-das-chamas-em-imagens-e-palavras/

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Lucien Laurat no país dos espelhos (4ª Parte)

Lucien Laurat no país dos espelhos (4ª Parte)

21 de Fevereiro de 2010
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Destaques

A história é um tecido contraditório e as suas vias são sinuosas, quando não mesmo labirínticas. Por João Bernardo

Manifestação fascista de 6 de Fevereiro de 1934 em Paris

Manifestação fascista de 6 de Fevereiro de 1934 em Paris

Mas quem foi Lucien Laurat?

Esse nome foi um dos muitos usados por Otto Maschl, nascido em 1898, militante do Partido Comunista austríaco e funcionário do Komintern, a Internacional Comunista. Em 1921-1923 foi ele quem se encarregou de facto das relações entre o Partido Comunista francês e o Partido Comunista alemão. De 1924 até 1927 foi professor de Economia em Moscovo, na Universidade Comunista das Minorias Nacionais Ocidentais. Nas polémicas travadas no movimento comunista dessa época ele situou-se na ala considerada de direita e esteve ligado pessoalmente a Brandler e a Thalheimer, dois antigos dirigentes do Partido Comunista alemão que haviam defendido a aproximação à social-democracia e criticado a tentativa de aliança com a extrema-direita radical, que acabaria por levar à catástrofe tanto os comunistas como a totalidade da classe trabalhadora alemã.

Abandonando Moscovo em 1927 e fixando-se no ano seguinte em Paris, Maschl, convertido definitivamente em Lucien Laurat, aderiu ao partido socialista (o nome oficial deste partido era Section Française de l’Internationale Ouvrière, SFIO) no início da década de 1930 e começou a leccionar na escola de quadros da Confédération Générale du Travail, a grande central sindical. No interior destas organizações ele pertencia a uma tendência posicionada à direita, que, embora sem romper com o marxismo, era declaradamente hostil à URSS. Com a aproximação da guerra, Laurat apoiou o secretário-geral da SFIO, Paul Faure, defensor dos acordos assinados com Hitler em Munique, para quem o pacifismo devia prevalecer sobre o antinazismo.

Depois da derrota francesa e da assinatura do armistício, com a maior parte do país ocupada pelas tropas do Terceiro Reich e com um governo fascista sob as ordens dos nazis, Lucien Laurat não aderiu à Resistência nem sequer se afastou da vida pública. Tal como outros membros da mesma corrente política, ele participou durante esse período em alguns jornais colaboracionistas destinados a um público operário, o que mostra que se podia primeiro ser um crítico lúcido do stalinismo e acabar depois sendo subsidiado pelo nacional-socialismo. E se tivesse sido ele o único!

Após a libertação da França Lucien Laurat esteve preso durante algumas semanas e foi excluído da SFIO. Mas eram numerosos os que se tinham comprometido muito mais profundamente na colaboração com o ocupante nazi e naquele meio Laurat contara só entre a arraia-miúda. Alguns anos depois foi reintegrado na SFIO, para abandonar definitivamente o partido quando este começou a procurar a aliança dos comunistas. Lucien Laurat morreu em 1973.

Georges Valois
Georges Valois

O livro de Laurat que aqui me ocupou, L’Économie Soviétique. Sa Dynamique, son Mécanisme, foi editado em Paris, em 1931, pela editora Valois, e também a este respeito há alguma coisa a dizer. Georges Valois, o proprietário da editora, nascera em 1878 com o nome de Alfred-Georges Gressent, mas foi como Georges Valois que se tornou conhecido. Ele encetara no anarquismo a sua vida política e fora secretário de L’Humanité Nouvelle, em cuja sala de redacção conhecera Sorel, nos últimos anos do século XIX.

Em 1906 Valois aderiu à Action Française, o partido da extrema-direita monárquica que constituiu em França a via obrigatória de passagem para o fascismo propriamente dito. Entre as figuras relevantes da Action Française era ele, pela origem e pelo passado político, quem podia manter relações mais estreitas, ou pelo menos mais sinceras, com o meio operário. Victor Serge descreveu-o cerca de 1910, dando réplica aos jovens anarquistas que lhe perturbavam os comícios e não hesitando em discutir com eles «a sua doutrina sindicalista-monárquica» e em evocar «Nietzsche, Georges Sorel, o “mito social”, as corporações das comunas da Idade Média, o sentimento nacional».

Entretanto Sorel encetara também a sua evolução em direcção ao fascismo, que haveria de arrastar tantos discípulos seus, sobretudo em Itália, onde os sindicalistas-revolucionários constituíram, juntamente com os futuristas e as antigas tropas de elite da guerra mundial, as três componentes originárias do movimento de Mussolini. Na convergência destes percursos, foi fundado em 1911 o Cercle Proudhon, Associação Proudhon, sob a tutela de Sorel e beneficiando do apoio prudente e um pouco distante de Charles Maurras, o chefe inamovível da Action Française. Estas eram as figuras tutelares, mas na prática o Cercle Proudhon era animado por Édouard Berth, um dos principais discípulos franceses de Sorel, e, do lado da Action Française, por Georges Valois. Na exacta ocasião em que Sorel se desiludia das possibilidades do sindicalismo revolucionário em França e em que Maurras receava o descontentamento que os ensaios de demagogia operária prosseguidos por Léon Daudet e por alguns outros membros da Action Française estavam a provocar entre os adeptos mais conservadores da organização, o Cercle Proudhon representou uma tentativa de criar um meio termo onde ambos os lados pudessem colaborar sem se comprometer demasiado. É sugestivo que para isto se tivesse evocado a memória de Proudhon, uma das figuras mais ambíguas do movimento operário, inspirador tanto de um ânimo libertário como de valores reaccionários. «[…] sem os judeus», escreveria trinta anos mais tarde o fascista Lucien Rebatet, um dos hitlerianos de Paris, «teríamos feito entre nós, e com o mínimo de estragos, essa revolução do socialismo autoritário que se tornou a necessidade do nosso século e de que os velhos doutrinadores franceses, como Proudhon, têm a honra de ter sido os precursores». Uma tese semelhante foi defendida por outro notável romancista fascista, Pierre Drieu la Rochelle. Aliás, desde a sua fundação a Action Française considerara Proudhon como um dos seus mestres, e Lukács mencionou o apreço que o conhecido jurista nazi Carl Schmitt tinha por Proudhon. O Cercle Proudhon pretendia-se simultaneamente revolucionário e contra-revolucionário, tal como o fascismo viria a proclamar-se alguns anos mais tarde. Durante algum tempo esta Associação serviu de lugar de encontro e debate para os sindicalistas antiliberais e os nacionalistas preocupados com a questão social, juntando uma ou duas dezenas de pessoas.

Distúrbios fascistas de 6 de Fevereiro de 1934 em Paris
Distúrbios fascistas de 6 de Fevereiro de 1934 em Paris

A experiência do Cercle Proudhon mostra que o quadro da Action Française se estava a tornar demasiado estreito para acolher a ampla digressão de Georges Valois entre o «mito social» e o «sentimento nacional», que Serge evocou a respeito dos seus comícios. Em Outubro de 1925 Valois rompeu com Maurras e, no mês seguinte, foi um dos primeiros a criar fora da Itália um movimento mussoliniano, cujo nome traduzia à letra o do modelo originário – Faisceau. Com a amplitude de espectro característica do fascismo genuíno, o Faisceau começou por atrair descontentes de ambos os lados, tanto gente que se havia afastado da Action Française como alguns dissidentes do Partido Comunista. Mas em breve esta convergência ficou frustrada na prática, e a organização extinguiu-se no início de 1928 devido aos desacordos internos e à falta de sustentação dos financiadores. Entretanto Valois tinha-se já distanciado da orientação proposta pelo Duce. «Ou nos enganamos muito», escrevera ele nos primeiros dias de 1928, «ou sob a pressão das forças financeiras estrangeiras o fascismo italiano está a evoluir no sentido reaccionário».

Depois de ter percorrido todas as etapas que podiam levar de uma certa extrema-esquerda até à direita mais extrema, Valois tornou-se, sobretudo a partir de 1930, um crítico acerbo do regime italiano e dos outros tipos de fascismo. Ele procurou encontrar então um novo lugar na esquerda. Não o conseguiu através de uma sua efémera criação, o Partido Republicano Sindicalista, e também não eram os comunistas quem o acolheria, pois, embora fizesse a apologia dos planos quinquenais, ele criticava ao stalinismo a incapacidade de conjugar a elaboração das directivas económicas com a actividade de base dos trabalhadores. Foi exactamente nesta altura que ele publicou a obra de Lucien Laurat L’Économie Soviétique. Sa Dynamique, son Mécanisme. Também não era a ala moderada do socialismo que podia atrair Valois, pois decerto se afigurava sórdida a alguém que classificara o plano de acção elaborado pela CGT em 1934 como um «plano operário em que a classe operária não desempenha qualquer papel». Patrocinado por Marceau Pivert, a principal figura da tendência esquerdista do socialismo francês, Valois pediu a integração na SFIO em 1935, mas viu-se recusado pela direcção do partido. Na mesma ocasião o Comité de Vigilância Antifascista rejeitou igualmente a sua candidatura.

Georges Valois ficou suspenso no ar, nesta tentativa de perfazer em sentido inverso o seu caminho anterior, e assim o foi encontrar a ocupação alemã da França. Preso pela polícia do governo colaboracionista francês, mais tarde preso pelos nazis, ele morreu num campo de concentração, tal como sucedeu a um bom número de partidários, ou antigos partidários, do fascismo populista.

Espero que esta série de artigos tenha deixado nos leitores uma viva sensação de desconforto. Foi para isso que a escrevi. A história é um tecido contraditório e as suas vias são sinuosas, quando não mesmo labirínticas. É que a nossa prática, a de todos nós, aqui, hoje, é igualmente contraditória e fragmentada. Lançamo-nos nas lutas sem garantia, porque mergulhamos no futuro conhecendo apenas − quando conhecemos! − o passado. Quem pretenda ter uma imagem gloriosa e impoluta dos heróis da sua predilecção, aconselho-o a não ler nada. E quem não queira correr riscos, é melhor não fazer nada. Ou então, o que vem a dar no mesmo, fazer o que se faz em todas as capelas e em todos os grupúsculos, gritar diante do espelho.

Bibliografia e referências

Os dados biográficos de Lucien Laurat encontram-se em J.-L. Panné, «Laurat Lucien», em Jean Maitron e Claude Pennetier (orgs.) Dictionnaire Biographique du Mouvement Ouvrier Français, 4ª Parte: 1914-1939. De la Première à la Seconde Guerre Mondiale, vol. XXXIII, Paris: Les Éditions Ouvrières, 1988, págs. 337-338.

Acerca de Georges Valois ver sobretudo Yves Guchet, Georges Valois. L’Action Française, le Faisceau, la République Syndicale, Paris: L’Harmattan, 2001 e, do mesmo autor, «Georges Valois ou l’Illusion Fasciste», Revue Française de Science Politique, XV, 1965, págs. 1111 e segs. O leitor interessado em mais detalhes acerca da vida e das ideias de Valois pode consultar igualmente: Pascal Ory, Les Collaborateurs, 1940-1945, Paris: Seuil, 1976, pág. 269; Enzo Santarelli, Storia del Fascismo, Roma: Editori Riuniti, 1981, vol. I, pág. 491 n. 1; Zeev Sternhell, La Droite Révolutionnaire, 1885-1914. Les Origines Françaises du Fascisme, Paris: Seuil, 1978, págs. 365, 384, 399; Zeev Sternhell, Mario Sznajder e Maia Asheri, The Birth of Fascist Ideology. From Cultural Rebellion to Political Revolution, Princeton, Nova Jersey: Princeton University Press, 1994, págs. 93-94, 96; Eugen Weber, Varieties of Fascism. Doctrines of Revolution in the Twentieth Century, Princeton: D. van Nostrand, 1964, págs. 132-133.

A passagem de Victor Serge acerca dos comícios de Georges Valois encontra-se nas Mémoires d’un Révolutionnaire, 1905-1941, em Jean Rière e Jil Silberstein (orgs.) Victor Serge. Mémoires d’un Révolutionnaire et autres Écrits Politiques. 1908-1947, Paris: Robert Laffont, 2001, pág. 526.

Acerca do Cercle Proudhon pode ler-se: Yves Guchet, Georges Valois. L’Action Française, le Faisceau, la République Syndicale, op. cit., págs. 99-102; Daniel Guérin, Sur le Fascisme, Paris: François Maspero, 1969, vol. II: Fascisme et Grand Capital, págs. 161-162; Zeev Sternhell, La Droite Révolutionnaire, 1885-1914. Les Origines Françaises du Fascisme, op. cit., págs. 372, 384, 391-392; Zeev Sternhell et al., The Birth of Fascist Ideology. From Cultural Rebellion to Political Revolution, op. cit., págs. 87-88, 124-127; Eugen Weber, Varieties of Fascism. Doctrines of Revolution in the Twentieth Century, op. cit., págs. 131-132.

A passagem de Lucien Rebatet em homenagem a Proudhon encontra-se no seu romance Les Décombres, Paris: Denoël, 1942, pág. 565. A opinião de Drieu la Rochelle acerca de Proudhon lê-se em Paul Sérant, Le Romantisme Fasciste. Étude sur l’Oeuvre Politique de quelques Écrivains Français, Paris: Fasquelle, 1959, pág. 69. São Zeev Sternhell et al. em The Birth of Fascist Ideology. From Cultural Rebellion to Political Revolution, op. cit., pág. 124 quem afirma que Proudhon fora um dos santos patronos da Action Française desde a fundação deste partido de extrema-direita. Acerca de Carl Schmitt e Proudhon ver Georg Lukács, The Destruction of Reason, Londres: The Merlin Press, 1980, pág. 653.

A frase de crítica de Valois ao regime de Mussolini encontra-se citada em Yves Guchet, Georges Valois. L’Action Française, le Faisceau, la République Syndicale, op. cit., pág. 256. A crítica de Valois ao plano de 1934 da CGT lê-se em id., ibid., pág. 9.

domingo, 21 de fevereiro de 2010

Em defesa da Cutrale, polícia aterroriza militantes do MST

Em defesa da Cutrale, polícia aterroriza militantes do MST

por Admin última modificação 19/02/2010 13:40

Ação policial de busca e apreensão de militantes do MST que ocuparam terras griladas da transnacional traumatizou seus familiares

19/02/2010


Eduardo Sales de Lima

enviado a Borebi (SP)


Seu-Gentil-e-esposa_João-Zinclar.gif“Não vai levantar não, vagabundo? O senhor usa droga?”. Eram 5 horas da manhã, quando a porta de lona e madeira de Gentil Alves, um senhor de 78 anos, era arrancada por quatros homens. Sozinho em seu “barraco”, ele viu toda a roupa de sua família ser jogada e revirada no chão.


“Um magrinho falou: 'o véio não deve não, daqui um dia, nós volta'. Fiquei tremendo de medo”, recorda-se Seu Gentil, camponês que possui um lote de 6 alqueires no assentamento Loiva Lourdes, em Borebi, no interior do estado de São Paulo. Ele e sua mulher, dona Nair, de 66 anos, moram com a neta e a bisneta de 6 meses. Ele foi um, entre tantos, que foi surpreendido com a chamada Operação Laranja, da Polícia Federal, investigação que desencadeou as detenções de integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) devido à destruição de pés de laranja da transnacional Cutrale, ocorrida em outubro do ano passado.


Na manhã do dia 26 de janeiro, a operação que envolveu cerca de 150 policiais no cumprimento de mandados de busca e apreensão invadiu vários outros barracos. A procura de militantes resultou em nove presos. Além do assentamento onde vive seu Gentil, também o Zumbi dos Palmares sofreu as investidas da operação, coordenada por Benedito Antônio Valencise, delegado seccional de Bauru. Com 20 mandados de prisão, sete pessoas terminaram detidas por mais de duas semanas; os outros 13 não foram encontrados.


Cadeias diferentes

Dona-Catarina_João-Zinclar.gifPara entidades de defesa de direitos humanos, a gigantesca ação policial foi considerada desnecessária e oportunista, visto que todos detidos tinham residência fixa e trabalhavam. Questionado pelo fato de não ter intimado as pessoas, Valencise argumenta que o sigilo era fundamental e está dentro da lei. “Às vezes, a pessoa não está e a intimação fica com o vizinho. A partir daí, surge uma grande divulgação e a pessoa, com medo, talvez não vá depor. Quando fomos prender o Miguel [Serpa], ele tentou fugir. Quer dizer, se eu o intimasse, será que ele iria comparecer ou iria fugir?”, questiona.


Mas isso não é o que pensa o deputado estadual Simão Pedro (PT). “A polícia não pode ser utilizada como instrumento político-partidário de uma força política”, dispara, referindo-se ao governador José Serra, do PSDB. “Por que prender pessoas que já estavam à disposição da polícia, têm endereço fixo, são réus primários e se dispuseram a colaborar?”, questiona o deputado.


Uma das ações mais criticadas da ação policial foi a separação dos militantes em quatro cadeias diferentes da região. O delegado seccional de Bauru explica que o objetivo era, tão somente, o bem-estar deles. “A nossa unidade prisional aqui é em Duartina. Lá, a cadeia supera a sua capacidade. Então dividimos. Mais para garantir total assistência à visita de advogados e de pessoas ligadas a direitos humanos”, explica Valencise.


Bandeiras e cartilhas

O delegado Valencise assegura que não houve nenhum tipo de violência quando ocorreu o cumprimento dos mandados busca, apreensão e prisão nos assentamentos. “Graças a Deus, não houve qualquer tipo de violência, não houve um tiro sequer e não houve qualquer tipo de agressão. A Rosimeire sequer foi algemada. Foi colocada na viatura, no mesmo compartimento, junto conosco, para que não houvesse nenhum tipo de problema”, detalha o delegado.


Na casa de Rosimeire Serpa, vereadora em Iaras pelo Partido dos Trabalhadores (PT), antes de a terem levado, juntamente com seu marido, Miguel Serpa, os policiais apreenderam celulares, bandeiras do MST, do PT, livros e cartilhas das duas organizações. O que chamou a atenção de Rosimeire foi a irritação de alguns policiais com o fato de existir uma biblioteca na sala de sua casa.


Se o tratamento dado à vereadora do PT em Iaras foi respeitoso, a experiência de outros assentados foi bem diferente. Paulo Rogério Beraldo, 22 anos, reside no assentamento Loiva Lourdes. Quando os policiais invadiram sua casa, às 6h da manhã do dia 26 de janeiro, assustaram toda a sua família.


Ele e sua mãe, Catarina de Castro, estavam prontos para acender o fogo da lenha quando repararam uma movimentação de pessoas atrás das árvores mais próximas da casa, uma pequena construção de madeira com paredes de lonas e teto de telhado.


Filho-da-puta”

“ Eles perguntaram se havia arma. Quiseram saber onde estavam as notas fiscais do gerador e da motoserra”, conta a mãe de Paulo. Naquele momento de estresse com a prisão de seu filho, dona Catarina, nervosa, não conseguia encontrar a nota do gerador de energia que havia comprado. Alguns assentados do Loiva Lourdes destacaram que os policiais de Valencise apreenderam objetos estranhos às necessidades de investigação de furto: de documentos médicos a papéis que identificam os lotes dos assentados perante o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA).


Questionado pela reportagem sobre o gerador que comprovadamente pertence à família de Catarina, Valencise pondera que, em relação àquilo que se apreende e não se comprova de imediato a procedência, é feita uma verificação. “Se não for comprovado o furto, pode ter certeza que será devolvido ao poder de quem se encontrava”, afirma. Entretanto, desde o dia 26 de janeiro, a casa da mãe de Paulo vive sem energia elétrica.


Algemado, o rapaz de 22 anos foi levado à delegacia de Promissão. Ficou detido na mesma cela que Anselmo Alves Villas Boas, conhecido como Gaúcho. A esposa de Gaúcho, Nair, conta como a polícia “chegou” em sua casa, no assentamento Zumbi dos Palmares. “Eles chegaram gritando, chamando ele de filho-da-puta. Chegaram a jogar gás pimenta no barraco. Então meu marido pediu para que não fizessem esse escândalo”, lembra.


De tanto medo”

As famílias que tiveram suas casas invadidas estão traumatizadas. “Eu quero uma resposta, estou me sentindo muito pressionada. Não consigo mais ficar dentro de casa”, desabafa Nair, já emendando que “não é por isso que a gente vai parar. Eu vou continuar lutando”.

Maria José Bezerra, esposa de outro camponês que ficou preso durante os 16 dias – seu Máximo Albino, de 60 anos –, lembra que seus netos foram acordados com armas apontadas para suas cabeças. Após a investida policial, nenhuma criança sai de casa, “de tanto medo”, lembra a mulher, que vive no assentamento Zumbi dos Palmares. De acordo com ela, enquanto permanecia preso, o marido estava deprimido e sem vontade de se alimentar.


O advogado Jorge Soriano sugere um retrocesso na histórica da democracia brasileira. “Infelizmente, a polícia ainda tem imbuído, em seu atos, resquícios da ditadura militar. Ela ainda se acha superior e no direito de constranger ou retirar direitos dos cidadãos. Não precisava. Bastaria bater na porta da casa”, conclui o advogado dos ex-detidos.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

II Seminario do NEPHC (FH-UFG) e Grupo de Pesquisas: Capitalismo e História (UFG-CNPq)

II Seminário do NEPHC (FH/UFG) e Grupo de Pesquisa: Capitalismo e História (UFG/CNPq)
AS CLASSES SOCIAIS NO CAPITALISMO
(06-08 de Abril de 2010)
Evento com a temática acerca de classes sociais a acontecer em 06-08 de abril de 2010 na Faculdade de História da Universidade Federal de Goiás em Goiânia.

As modalidades do trabalho são: comunicação, mesas-redondas, mesas de comunicação coordenadas, mesas de comunicação livre e também a participação de ouvintes inscritos no evento.

O evento contará ainda com um Caderno de Resumos que será disponibilizado posteriormente contendo os trabalhos completos em www.historia.ufg.br

Para saber mais sobre inscrições, formato de trabalhos, etc, acessar: www.historia.ufg.br/?evento=1264542391&site id=107

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Lucien Laurat no país dos espelhos (3ª Parte)

Lucien Laurat no país dos espelhos (3ª Parte)

14 de Fevereiro de 2010
Categoria:
Destaques

Lucien Laurat indicou a alternativa: ou a URSS regressava à propriedade privada capitalista ou estabelecia um controlo público através da instauração de uma democracia proletária. Por João Bernardo

Em 1931, mal havia começado a época dos planos quinquenais na União Soviética e o sector estatal da economia deparava ainda com um considerável sector privado, já Lucien Laurat, no seu livro L’Économie Soviétique. Sa Dynamique, son Mécanisme, defendia que «a burocracia bolchevista» se tinha convertido numa «nova classe exploradora» (pág. 7; ver tb. a pág. 165). Ambos os adjectivos são fundamentais. Bastava a classificação desta classe como «exploradora» para diferenciar Laurat de Trotsky e dos seus discípulos, que remetiam a existência de desigualdades na URSS para o nível da distribuição dos rendimentos e negavam que tivesse aparecido uma clivagem social nas relações de produção. E bastava classificar essa classe como «nova» para distingui-la da antiga burguesia e dos antigos gestores, considerando portanto que o regime soviético correspondia a um sistema de exploração diferente e não a um capitalismo de Estado, como pretendiam outros críticos de extrema-esquerda.

Pintura de Boris Vladimirski, 1949
Pintura de Boris Vladimirski, 1949

As teses enunciadas por Laurat destacaram-no no panorama da época. Para Trotsky o socialismo caracterizava-se pela estatização das relações de propriedade, o que se compreende se recordarmos as posições que ele adoptara acerca do papel da classe trabalhadora na economia tanto durante a guerra civil como durante a Nova Política Económica. Depois de ter sido expulso da União Soviética, uma das polémicas mais sistemáticas que Trotsky travou, só interrompida pelo seu assassinato, foi contra os teóricos e militantes de extrema-esquerda que defendiam a existência de um sistema de exploração na União Soviética, entendido por uns como capitalista e por outros como pós-capitalista. Trotsky não se cansava de repetir que o stalinismo representava o predomínio de uma elite determinada apenas no nível das relações de distribuição, que repartia em seu próprio benefício produtos escassos, mas sem se tratar de uma classe, pois não era detentora dos meios de produção, cuja propriedade cabia ao Estado. No fundo, o que estava em jogo nesta polémica era a questão de saber se o exercício do controlo económico pode corresponder a uma forma de apropriação e se as relações sociais de produção podem ser definidas a partir das relações de trabalho e independentemente das relações jurídicas de propriedade.

Aliás, num artigo de 1933 Trotsky mostrou até que ponto lhe escapavam as principais implicações da questão do carácter de classe do regime soviético ao afirmar que as teses expostas por Lucien Laurat se assemelhavam àquelas que Makhaisky havia defendido no princípio do século XX. Todavia, Makhaisky jamais sustentara que esta segunda classe dominante tivesse inaugurado um novo modo de produção, considerando-a, pelo contrário, como um agente do desenvolvimento capitalista. Na sua opinião, o socialismo, que constituía o programa político desta classe, não representava mais do que o desejo de emancipar do Estado absolutista a sociedade capitalista e de colocá-la sob a direcção desses novos senhores, e o socialismo de Estado seria uma modalidade da exploração capitalista.

A facção trotskista «tem um atraso cada vez maior perante a realidade», acusou Laurat. «Ela não vê que a oligarquia burocrática está já constituída enquanto classe […]» (pág. 229). «O que caracteriza uma classe […] é a sua função no conjunto do processo económico, a origem do seu rendimento. Uma análise desta questão mostra que a oligarquia burocrática da URSS é realmente uma classe, cujo rendimento provém da exploração da população» (pág. 163, sub. orig.). Por outro lado, criticando aqueles que consideravam a União Soviética como um capitalismo de Estado, Laurat argumentou que, se bem que o sector socialista da economia soviética tivesse conservado formalmente as principais categorias do capitalismo, bastaria a ausência de propriedade privada e de concorrência mercantil no interior deste sector para mostrar que não se tratava de capitalismo (págs. 80-83, 99, 116, 167-168). «Sem mercado não há valor de troca nem preço» (pág. 83). «Na economia soviética, o elemento consciente e regulador ocupa um lugar muito mais importante e dispõe de meios de acção incomparavelmente mais poderosos e mais eficazes, tendentes não a “corrigir” leis consideradas como fundamentalmente intangíveis, mas a suprimi-las por modificações graduais, cada vez mais ousadas, até ao ponto em que a quantidade se transforma em qualidade» (pág. 116).

Assim, concluiu Laurat em polémica com Karl Korsch, a burocracia soviética nem encabeçava um capitalismo de Estado nem executava uma política capitalista ao serviço dos interesses dos proprietários privados (pág. 152-155). «[…] o que distingue a revolução russa das revoluções anteriores e impede qualquer comparação», escreveu ele, «é o aparecimento de uma nova casta dirigente e a formação dos alicerces económicos desta casta durante o próprio decurso do processo revolucionário, desde a conquista do poder» (pág. 155, sub. orig.). A ditadura bolchevista, impedindo a base de exercer qualquer controlo sobre a vanguarda organizada no partido, permitira que esta vanguarda se convertesse em elite e assumisse, enquanto oligarquia burocrática, o lugar de uma nova classe (págs. 155 e segs.).

Pintura de Tatyana Yablonskaya
Pintura de Tatyana Yablonskaya

Não se tratava apenas de uma classe dominante politicamente, mas também exploradora na esfera económica, já que a diferença entre a remuneração recebida pelos burocratas e o salário dos trabalhadores não era só quantitativa mas sobretudo qualitativa. No capitalismo a mais-valia inclui o fundo de acumulação e o fundo de consumo; e a concorrência obriga cada capitalista ou grupo de capitalistas a subordinar o consumo à acumulação, de maneira a ampliar as actividades da sua empresa. Para a oligarquia burocrática, porém, afirmou Laurat, a porção da mais-valia destinada ao consumo individual aparecia sob a forma de vencimentos, enquanto a outra parte, consagrada ao aumento da produção, aparecia sob a forma de lucro no balanço das empresas estatais e cooperativas. E como, na sua opinião, não existiria concorrência na economia soviética, nada levaria o fundo de consumo a submeter-se às necessidades do fundo de acumulação, tanto mais que os trabalhadores não dispunham de quaisquer meios de pressão sobre a oligarquia. Por isso os burocratas podiam despender em proveito próprio o fundo de acumulação e a pletora burocrática podia ultrapassar muito as necessidades decorrentes da mera gestão do aparelho económico (págs. 168 e segs., 216). «Estamos aqui», concluiu Laurat, «perante uma forma nova de exploração do homem pelo homem. A mais-valia da burocracia soviética constitui uma categoria económica sui generis, completamente diferente da mais-valia capitalista. Distingue-se dela pelo facto de englobar apenas o fundo de consumo dos exploradores, pois o fundo de acumulação, se bem que gerido por ela, não é propriedade sua» (pág. 178).

Nesta situação, para restabelecer o fundo de acumulação e prosseguir e ampliar a produção tornava-se cada vez mais necessário empregar formas suplementares de exploração, agravando a carga fiscal, impondo preços espoliadores ou simplesmente recorrendo à violência directa (págs. 179, 216-217, 224-225). Mas provocava-se assim inevitavelmente o marasmo económico e até a regressão das forças produtivas. E se era inegável que a produção fabril se desenvolvia muito na União Soviética, não era menos certo que mesmo os sectores em crescimento não estavam organizados eficazmente (págs. 190, 241-244). De qualquer modo, este crescimento fazia-se à custa da «atrofia das forças produtivas no resto da economia do país» (pág. 243). Nomeadamente, «a agricultura colectivizada», preveniu Laurat, «terá necessidade de subsídios para a sua própria acumulação» (pág. 237). Assim, enquanto o capitalismo se caracteriza pela sobreprodução crónica, a economia soviética distinguir-se-ia pela subprodução crónica (págs. 242-243). «Infelizmente, uma anarquia de outro tipo, o marasmo burocrático, substituiu-se à anarquia capitalista das iniciativas incontroláveis […]» (pág. 179).

Nestes termos, Lucien Laurat concluiu o livro indicando a alternativa: ou a URSS regressava à propriedade privada capitalista ou estabelecia um controlo público através da instauração de uma democracia proletária (págs. 231 e segs.).

Desde há muitos anos e ao longo de muitas páginas eu tenho pertencido ao número daqueles que classificam as antigas economias de tipo soviético como capitalismos de Estado. Era tão fictícia a noção de que não houvesse mercado na relação entre as empresas soviéticas, mesmo no auge do stalinismo, como era fictícia a noção de que a detenção da propriedade dos meios de produção pelo Estado corresponderia aos interesses históricos do proletariado. Se lermos descrições concretas do funcionamento das empresas soviéticas na época dos primeiros planos quinquenais apercebemo-nos de que elas tinham com o mercado uma relação bastante semelhante àquela que Galbraith, por exemplo, analisou para as empresas ocidentais na década de 1960 em The New Industrial State. Se a planificação do mercado suprimisse os mecanismos do mercado, o capitalismo só ocorreria no estado de livre concorrência pura, e este é um sistema que apenas existiu nas páginas de certos economistas. Mas não pretendo aqui alongar-me em questões que tratei abundantemente noutros lugares, e malgrado esta discordância de fundo tenho de admitir que há muito a dizer em abono das teses de Lucien Laurat.

laurat-cartaz-1É deveras notável que precisamente na época em que todo o mundo pasmava perante as elevadíssimas taxas de crescimento económico alcançadas pelo primeiro plano quinquenal, Laurat tivesse descortinado contradições e desequilíbrios cujas consequências só se revelariam plenamente bastantes anos mais tarde. Com efeito, as reformas económicas sucessivamente propostas após a morte de Stalin tiveram como um dos objectivos a resolução dos problemas detectados por Laurat. A alternativa que ele enunciou, ou o regresso à propriedade privada capitalista ou a instauração de formas de controlo do poder público pela classe trabalhadora, é muito interessante no plano teórico, pois estabelece uma equivalência entre mercado e democracia. Se Laurat entendia democracia na acepção de «controlo público» (pág. 184), então não há dúvida de que, em termos capitalistas, o mercado é uma instituição democrática. Samuelson, num manual de economia que educou gerações, identificou um dólar a um voto na sua análise dos mecanismos do mercado. Além disso, a alternativa formulada por Laurat é interessante como previsão, já que, na esfera soviética, os esforços dos economistas reformadores oscilaram entre o reforço dos mecanismos de livre mercado, nos situados à direita, e a criação de mecanismos de controlo popular do poder público, nos situados à esquerda. Nenhuma das duas vias de reforma teve êxito, afinal, porque a burocracia comunista resistiu até ao fim à adopção de medidas económicas ou políticas que atingissem o carácter monolítico do seu poder. A crise final do sistema soviético ocorreu nos termos que Lucien Laurat previra seis décadas antes.

Mas a forma como Laurat descreveu a génese da oligarquia burocrática limitou-a ao contexto soviético. E ao prever que o domínio da burocracia implicaria uma situação de crise permanente e que ela «podia apenas representar um estádio transitório no decurso da revolução russa» (pág. 244), Laurat afastou implicitamente a hipótese de que aquela nova forma de exploração correspondesse à abertura de uma nova fase histórica. Por isso, neste seu livro ele não colocou o problema de saber até que ponto aquela classe exploradora teria surgido também noutros países. Do mesmo modo, numa obra publicada três anos depois, Économie Dirigée et Socialisation, Laurat defendeu que nos países ocidentais a introdução da planificação e a intervenção organizadora do Estado alteraram mas não suprimiram os fundamentos do capitalismo, limitando-se a transferir parcialmente a concorrência do plano económico para o plano político e a modificar o jogo de forças em benefício dos grupos capitalistas mais ligados ao aparelho estatal (págs. 157-160). Apesar dos progressos do capitalismo em direcção à economia dirigida, Laurat continuava a não detectar nas sociedades ocidentais o aparecimento de uma classe correspondente à oligarquia burocrática, que seria um fenómeno especificamente soviético e não mundial. Parece, todavia, que noutra obra, editada em 1939, e que não pude consultar, Lucien Laurat passou a defender a tese de que a mesma classe que tomara o poder na Rússia se desenvolvia igualmente no seio do capitalismo ocidental.

Mas quem foi Lucien Laurat?

Bibliografia e referências

A obra de Lucien Laurat L’Économie Soviétique. Sa Dynamique, son Mécanisme, foi editada em Paris, em 1931, pela editora Valois. A sua obra de 1934, Économie Dirigée et Socialisation, foi editada em Paris e Bruxelas por L’Églantine. Quanto ao livro de Laurat publicado em 1939 ver Eugene Kamenka, Bureaucracy, Oxford e Cambridge, Ma.: Basil Blackwell, 1989, pág. 154.

As polémicas teóricas a respeito do carácter de classe da União Soviética encontram-se elucidadas em Henri E. Morel, «As Discussões sobre a Natureza dos Países de Leste (até à Segunda Guerra Mundial): Nota Bibliográfica», em Artur J. Castro Neves (org.) A Natureza da URSS, Porto: Afrontamento, 1977.

Trotsky procedeu à assimilação entre as teses de Laurat e as de Makhaisky no seu artigo «The Class Nature of the Soviet State», incluído em George Breitman e Bev Scott (orgs.) Writings of Leon Trotsky (1933-34), Nova Iorque: Pathfinder, 1972, págs. 111-112.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Periferia Luta

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segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Lucien Laurat no país dos espelhos (2ª Parte)

Lucien Laurat no país dos espelhos (2ª Parte)

É interessante que Laurat não se limitasse a mostrar que a União Soviética estabelecera uma sociedade de exploração e tivesse mostrado a fragilidade do sistema económico staliniano, que à primeira vista obtinha pleno êxito. Por João Bernardo

Rússia, 1919

Rússia, 1919

Enquanto se pôde organizar e exprimir - quero dizer, até Fevereiro de 1922, quando Lenin autorizou a polícia política a actuar no interior do próprio Partido Comunista - a oposição de esquerda não desistiu de criticar o sistema económico que estava a ser instaurado. Em 1920 e 1921 a Oposição Operária conduziu um ataque ao peso que os antigos gestores haviam voltado a adquirir na economia soviética e ao predomínio que os órgãos políticos exerciam no interior das empresas sobre os órgãos sindicais, mas esta corrente estava mais próxima da burocracia dirigente dos sindicatos do que dos trabalhadores de base. A posição da base encontrou expressão no interior do Partido Comunista sobretudo no grupo Centralismo Democrático, formado em 1919. Ao contrário do que se poderia hoje imaginar, o nome deste grupo em nada se referia à forma leninista de organização interna do partido mas à forma de organização da economia. Os membros desta facção admitiam o centralismo económico e a necessidade de planificação central, mas consideravam que ela devia assentar em bases democráticas, caracterizadas pela gestão das empresas por comités de operários e não, como Lenin e Trotsky haviam instaurado, pela sua gestão por uma tecnocracia de especialistas que incluía os antigos administradores e até os antigos proprietários. Mas é num documento fascinante difundido clandestinamente na Rússia em 1922, o Apelo do grupo Pravda Operária, que encontramos a primeira crítica bem estruturada dos interesses de classe que presidiram ao bolchevismo e que o conduziram a implantar um novo sistema de exploração capitalista.

Aquela foi a crítica teórica, mas houve ainda a crítica prática, neste caso feita com os pés, e o operariado abandonou maciçamente as cidades e refugiou-se nos campos. Este movimento migratório, contrário ao que caracteriza as sociedades modernas, deveu-se em parte ao facto de a revolução, depois a ocupação da Ucrânia e da Bielo-Rússia pelas Potências Centrais e finalmente a guerra civil terem afectado profundamente a produção industrial e de a fome grassar nas cidades. «Na Rússia», indicou Edward Hallett Carr, «onde a esmagadora maioria do operariado industrial era formada por antigos camponeses que geralmente mantinham uma certa ligação ao meio rural e que em alguns casos regressavam regularmente aos campos para participar nas colheitas, uma crise nas cidades ou nas fábricas, […] em vez de suscitar o tipo de desemprego que ocorria nos países ocidentais, provocava o abandono maciço das cidades pelos operários industriais, que retomavam a condição de camponeses. A desarticulação da indústria no primeiro Inverno da revolução dera já início àquele processo, e no 7º Congresso do partido, em Março de 1918, Bukharin mencionara a desintegração do proletariado. Este movimento foi enormemente acelerado quando a guerra civil precipitou nos exércitos de um e outro lado centenas de milhares de elementos de uma população já reduzida e exausta. […] entre 1913 e 1917 o número de assalariados na indústria subira de 2.600.000 para 3.000.000, e a partir de então declinou progressivamente para 2.500.000 em 1918, 1.480.000 em 1920-1921 e 1.240.000 em 1921-1922 […] Desde 1917 até ao Outono de 1920 o número dos habitantes de quarenta capitais de província diminuiu 33% […] e o número de habitantes de cinquenta outras grandes cidades reduziu-se 16% […] Quanto maior era a cidade, mais acentuado era o declínio. Em três anos, Petrogrado perdeu 57,5% da sua população, e Moscovo, 44,5%». Alec Nove mencionou valores um pouco diferentes, 2,6 milhões de operários em 1917 e 1,2 milhões em 1920, e Victor Serge, recordando a situação de Petrogrado em 1919, escreveu que a população da cidade passara num ano de aproximadamente 3 milhões a cerca de 700.000, o que corresponde a uma perda de 76,7% dos habitantes.

Rússia, 1919
Rússia, 1919

Além da crise económica e da fome, outros factores pesavam, já que o controlo exercido pelo poder bolchevista era muitíssimo mais completo nas cidades do que nos campos. A militarização do trabalho decretada em Março de 1920 e as considerações de Trotsky acerca da alegada produtividade do trabalho obrigatório não eram de molde a cativar as simpatias dos proletários. No campo, apesar de tudo, podia-se plantar alguma coisa, o suficiente talvez para não morrer de fome, e podia-se fugir para os bosques sempre que se aproximavam as tropas de um ou outro lado da guerra civil. O esvaziamento das cidades e a formação de bandos semi-rurais semiguerrilheiros, que os bolchevistas apelidavam genérica e apressadamente de bandidos, constituíram um só fenómeno, e para a sua génese contribuiu também a militarização da mão-de-obra.

Foi mais uma vez Carr quem tocou no cerne do problema, ao invocar «o facto paradoxal de a instauração da “ditadura do proletariado” ter sido seguida por uma acentuada diminuição, tanto nos números como no peso específico ocupado na economia, daquela classe em cujo nome a ditadura era exercida». Na verdade, o proletariado fora duplamente esvaziado da revolução: por cima, porque os gestores desalojaram os comités de fábrica dos lugares de chefia; e por baixo, com o despovoamento das cidades e das indústrias.

Terminada a guerra civil era urgente retomar o crescimento económico e restaurar o tecido social. O Partido Comunista − não só Lenin e Trotsky, mas também todas as facções de oposição − esmagou em Março de 1921 a insurreição dos marinheiros de Kronstadt e da numerosa população operária dos estaleiros e oficinas dessa base naval. E logo em seguida adoptou a parte económica do programa dos insurrectos e inaugurou nesse mesmo mês a Nova Política Económica. Tratava-se de um sistema de economia mista, em que as empresas privadas coexistiam com a intervenção do Estado, e vale a pena ver como Trotsky, nas novas circunstâncias, passou a considerar a posição da classe operária. Em 1922, quando detinha ainda uma boa parte do seu antigo poder, Trotsky proclamou: «É preciso que cada fábrica do Estado, assim como o seu director técnico e o seu director comercial, estejam submetidos não só ao controlo de cima, isto é, ao controlo dos órgãos de Estado, mas ao controlo de baixo» − o dos trabalhadores? Não − «isto é, ao do mercado, que durante um período ainda muito longo continuará a ser o regulador da economia estatal». Já não era altura de evocar a produtividade do trabalho forçado, pois a Nova Política Económica assentava exclusivamente no assalariamento, mas os trabalhadores continuavam a ser afastados de qualquer lugar de direcção da economia estatal e nem sequer era o Partido Comunista que os substituía nessa tarefa, mas simplesmente o mercado.

A liberdade de iniciativa concedida aos camponeses pela Nova Política Económica permitiu à produção agrícola ultrapassar a crise e atingir, em 1926, um valor global equivalente ao registado antes do começo da primeira guerra mundial, enquanto alguns ramos da pecuária excederam mesmo aquele nível. Todavia, a estagnação da indústria não foi superada e a oposição comunista de esquerda temia que, se um tal desfasamento continuasse, o baixo nível da produção fabril comprometesse a própria recuperação da agricultura, o que veio com efeito a suceder, e muito rapidamente. A catástrofe era iminente. Foi então que Stalin, numa das reviravoltas em que era mestre, deixou de apoiar a direita do Partido Comunista e adoptou as teses da esquerda, procedendo a uma colossal operação de engenharia social.

União Soviética, 1935
União Soviética, 1935

Os planos quinquenais, instaurados a partir de 1928, resolveram num prazo muito curto a desastrosa situação económica e deram trabalho a toda a gente, a tal ponto que o operariado industrial se revelou insuficiente e teve de se recrutar maciçamente um novo proletariado. Para isso era urgente concentrar a propriedade da terra, convertendo-a em propriedade do Estado, e mecanizar as actividades agrícolas, de maneira a encaminhar para a indústria uma mão-de-obra tornada excedentária nos campos. Num círculo em expansão, as elevadíssimas taxas de crescimento industrial exigiram a colectivização imediata da agricultura, e a colectivização da agricultura libertou a mão-de-obra indispensável ao crescimento da indústria, mas não se tratou de uma operação conduzida apenas a partir de cima. O bureau político staliniano mobilizou os camponeses mais pobres contra os camponeses ricos e até contra os camponeses médios, desencadeando verdadeiramente uma segunda guerra civil. Ao mesmo tempo, mediante cursos universitários acelerados, Stalin promoveu de maneira maciça e muito rápida proletários a engenheiros e técnicos. Isto permitiu-lhe poucos anos depois, nos processos de Moscovo, liquidar a velha tecnocracia que apoiava Zinoviev ou Trotsky. Assim, com três operações sociais conjugadas, o stalinismo criou um novo campesinato, trabalhando nas fazendas do Estado, socialmente mais próximo de operários agrícolas do que da tradicional população rural; criou uma nova classe operária, numa indústria renovada e muitíssimo ampliada; e criou uma nova tecnocracia, promovida a partir do proletariado. O stalinismo criou, em suma, uma base social própria, e foi isto, muito mais do que a repressão, que assegurou durante décadas a solidez daquele regime.

Ao enraizamento interno do stalinismo correspondeu o seu prestígio mundial, já que a economia soviética atingia taxas de crescimento espantosas quando os demais países estavam mergulhados numa crise muito profunda. Para termos uma ideia rápida da situação, basta recordar que nos Estados Unidos se formavam filas de engenheiros e de técnicos qualificados à porta dos consulados soviéticos para obter vistos que lhes permitissem trabalhar no quadro dos planos quinquenais. Só no Outono de 1931 a Amtorg Trading Corporation, a firma exportadora e importadora que serviu de representante oficiosa da União Soviética até o governo norte-americano estabelecer relações diplomáticas com aquele país, recebeu nos seus escritórios de Nova Iorque cem mil pedidos de emprego.

Neste contexto, é especialmente interessante que Lucien Laurat não se tivesse limitado a mostrar que a União Soviética estabelecera uma sociedade de exploração e tivesse mostrado a fragilidade do sistema económico staliniano, que à primeira vista parecia obter um pleno êxito.

Bibliografia e referências

O segundo volume de A Revolução Bolchevique, de Edward Hallett Carr, editado em Portugal pela Afrontamento, contém numerosas informações acerca das várias correntes da oposição de esquerda no plano económico. O Apelo do grupo Pravda Operária pode ser lido aqui.

A passagem de Edward Hallett Carr relativa ao esvaziamento das cidades encontra-se em A History of Soviet Russia. The Bolshevik Revolution, 1917-1923, Harmondsworth: Penguin, 1966, vol. II, págs. 195-198. Os dados fornecidos por Alec Nove acerca do mesmo assunto estão em An Economic History of the U.S.S.R., Harmondsworth: Penguin, 1978, págs. 66-67 e as indicações de Victor Serge vêm em Mémoires d’un Révolutionnaire, 1905-1941, incluídas em Jean Rière e Jil Silberstein (orgs.) Victor Serge. Mémoires d’un Révolutionnaire et autres Écrits Politiques. 1908-1947, Paris: Robert Laffont, 2001, pág. 558. A observação de Carr sobre o facto de a ditadura do proletariado ter sido feita com cada vez menos proletários está em A History of Soviet Russia. The Bolshevik Revolution, 1917-1923, op. cit., vol. II, pág. 198. As declarações de Trotsky em 1922 relativas à Nova Política Económica encontram-se em Léon Trotsky, La Nouvelle Politique Économique des Soviets et la Révolution Mondiale, Paris: Librairie de «L’Humanité», 1923, pág. 23. A informação relativa aos pedidos de emprego na Amtorg é fornecida por William E. Leuchtenburg, Franklin D. Roosevelt and the New Deal. 1932-1940, Nova Iorque: Harper & Row, 1963, pág. 28.



fonte: http://passapalavra.info/?p=17055

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