sexta-feira, 27 de março de 2009

Entre a luta de classes e o ressentimento. A propósito do artigo «Cadilhe, o “coveiro rico”»


As denúncias de escândalos revelam mais o ressentimento do que o espírito de classe, e sempre que isto sucede o risco do fascismo não anda longe. Por João Bernardo



A recente publicação no Passa Palavra de um artigo sobre a actuação de Miguel Cadilhe durante a crise do Banco Português de Negócios deixou-me apreensivo, tanto mais que esse estilo de denúncias se tornou habitual nos meios de esquerda e de extrema-esquerda. Por isso valerá talvez a pena esmiuçar as suas implicações.

Apresentar como promíscua a relação entre o Estado e os negócios é considerar anómalo algo que constitui precisamente uma das componentes estruturais do capitalismo. Pretende-se assim que seja excepção aquilo que na verdade é uma regra, e desta maneira considera-se implicitamente que poderia existir um outro capitalismo, não perverso, em que o Estado seria imune aos negócios. Artigos deste tipo só confundem em vez de esclarecer.

Desde as primeiras décadas do século XIX, quando começaram a formular-se as críticas ao capitalismo na perspectiva da classe trabalhadora, um dos temas em que mais se insistiu foi na ligação dos meios políticos aos meios económicos − mais do que isso, na estreita interdependência de ambos. Depois, e malgrado tudo o que as separava, tanto a vertente marxista como a vertente anarquista, cada uma à sua maneira, insistiram naquela íntima relação. Numa época em que as grandes massas pobres estavam afastadas do voto e, por maioria de razão, dos cargos políticos, os próprios defensores do Estado burguês tinham de admitir que governantes e homens de negócios não andavam muito longe. Tudo o que esses apologistas então pretendiam era que o poder político mantivesse uma certa imparcialidade entre os vários grupos de interesses, para que não fossem só uns os beneficiados, e o rotativismo partidário assegurava que os grupos se revezassem de maneira a que todos se fossem aproveitando da intervenção económica propiciada pelos governos.

Mais tarde, já no século XX, quando a tecnocracia e os grandes administradores passaram a dominar os governos e sobretudo os bastidores da política, começou a difundir-se a ideia não de que os governos seriam imunes às pressões económicas mas exactamente do contrário, de que eles seriam imunes às pressões políticas. Se a burguesia legitima os seus lucros mediante os títulos jurídicos da propriedade privada, os tecnocratas e, em geral, os gestores legitimam-nos mediante o mito da sua competência técnica. A partir de então os governos passaram a ser encarados na mesma óptica gestorial em que se encara a economia. Um bom governo deveria ser gerido como uma boa empresa, e a palavra «político» passou a carregar o sentido pejorativo que ainda hoje conserva.

Quem não gostou nada desta mudança foram os pequenos patrões, os donos das fabriquetas, das oficinas, os merceeiros [donos de sacolões] da esquina, os agricultores suficientemente abastados para assalariar alguma mão-de-obra e produzir para o mercado, mas sem terras bastantes nem capacidade suficiente para aplicarem no cultivo os métodos mais modernos e produtivos. Foi esta gente que começou a denunciar o favoritismo económico dos governantes, não porque se opusessem em princípio à relação da política com a economia, mas porque pretendiam ser eles a beneficiar dessa relação. Nas décadas de 1920 e de 1930, na Europa, em alguns países da Ásia e nas duas Américas, esta insatisfação dos pequenos patrões foi uma das principais componentes do fascismo. Não constituiu o único factor, houve outros igualmente importantes, mas o fascismo nunca se afirmou sem aquela componente. E desde então, onde o rancor dos pequenos patrões existe, o fascismo não anda longe.

Em termos sociológicos, o que estes pequenos patrões pretendiam e pretendem é atacar os governos não numa perspectiva de luta de classes mas numa perspectiva de mobilidade de elites. Trata-se, para eles, de manter a estrutura económica existente, desde que ascendam dentro dessa estrutura e passem a incluir-se entre o escol dominante. Ora, esta situação agravou-se nas últimas décadas.

Um dos aspectos mais marcantes do capitalismo contemporâneo é o facto de a concentração do capital, que se acelerou no plano económico, onde atingiu níveis nunca antes alcançados, ter apresentado no plano jurídico uma fisionomia inversa, levando à fragmentação das antigas grandes companhias da era do fordismo. Vivemos numa época em que a generalização das relações de subcontratação e de terceirização atrelou às grandes empresas uma miríade de pequenos patrões. Por um lado, na medida em que estão inteiramente dependentes do mercado de produtos e de serviços constituído pelas grandes empresas que os subcontratam, os pequenos patrões têm de lhes obedecer e de seguir os seus ditames. Mas, por outro lado, este agravamento da subserviência estimula os rancores. É nestes meios sociais que proliferam as denúncias sobre as benesses que grandes capitalistas e altos gestores obtêm dos governos, e a indignação vem-lhes não do facto de o capitalismo existir, mas do facto de não conseguirem aproveitar-se dele, pelo menos tanto como desejariam.

Não devemos desprezar a capacidade mobilizadora que estes pequenos patrões exercem relativamente à classe trabalhadora. Muitos deles estão unidos por elos familiares tanto aos velhos meios operários como aos novos proletários saídos de cursos superiores e que, apesar disso, não encontram senão empregos precários. Outros desses pequenos patrões são antigos operários que conseguiram juntar um pecúlio e instalar-se como pequenos empresários, e mantêm relações familiares e sociais com o seu meio de origem.

Numa época em que, perante a concentração transnacional do grande capital, os trabalhadores se encontram fragmentados, quando foram em boa medida dissolvidas as suas antigas relações de solidariedade e atenuado ou extinto o seu sentimento de classe, mais fácil se torna que eles encontrem nos pequenos patrões os leaders ou os modelos. No plano ideológico e psicológico, trata-se de substituir o espírito de classe pelo ressentimento, ou seja, o desejo de acabar com o capitalismo pela aspiração de subir dentro do capitalismo. O fascismo, na face que apresentou às massas populares, foi exactamente isto.

Aquele tipo de denúncias de que o artigo sobre Miguel Cadilhe e o Banco Português de Negócios constitui um exemplo reflecte a atitude dos pequenos patrões, que se sentem sistematicamente defraudados pelos grandes capitalistas na distribuição da mais-valia, ou seja, na partilha dos lucros. As remunerações elevadas, em dinheiro ou em benesses, de que beneficiam os altos gestores diz unicamente respeito à distribuição da mais-valia entre os capitalistas, não à exploração da mais-valia, ou seja, trata-se da repartição dos resultados da exploração, dos lucros, e não do processo de exploração. Por isso, é um assunto que diz estritamente respeito aos capitalistas, não aos anticapitalistas. Também não vejo o interesse em arranjar três bodes expiatórios em vez de dois, ou quatro em vez de três, e indagações deste tipo resultam da própria noção de que por detrás dos acidentes do capitalismo estariam culpados individuais, como se fosse uma questão de pessoas e não de um sistema económico. Quanto aos subsídios concedidos pelos governos aos bancos, já me pronunciei a este respeito no artigo Perpectivas do capitalismo na actual crise económica, publicado neste site. Mas é curioso que a esquerda continue a pregar uma política idêntica à que foi aplicada pela direita conservadora norte-americana na sequência da crise de 1929 e que levou a falências bancárias em cadeia e ao agravamento catastrófico da situação económica, até que o New Deal e a segunda guerra mundial conseguissem inverter a situação. Uma vez mais prevalece aqui o ressentimento, ou mesmo a simples inveja, a ideia de que todos aqueles subsídios seriam mais úteis no meu bolso do que no activo dos bancos. Só que eu não desempenho no conjunto do sistema económico a função desempenhada pelos estabelecimentos financeiros.

Lamento muito dizê-lo, e sem querer ser desagradável para com as pessoas que escrevem aquele tipo de artigos e com as que gostam de os ler, recordo que eles eram a especialidade da imprensa de extrema-direita no período entre as duas guerras mundiais. Já antes disso, desde os últimos anos do século XIX, o jornal da Action Française, o partido monárquico de extrema-direita que se situou na génese de todo o fascismo francês, fizera dessas denúncias a sua prerrogativa, inaugurando um modelo que muitos seguiram e tentaram superar. Em França, foi a denunciar a promiscuidade estabelecida entre os governantes e os negócios que os fascistas se reorganizaram após a segunda guerra mundial e o mesmo tema serve hoje à extrema-direita russa para proceder à apologia do fascismo e de Stalin. Na época actual, no entanto, parece-me que é na Grã-Bretanha que mais plenamente vigora o modelo de uma grande imprensa de massas ao mesmo tempo de extrema-direita e dedicada a publicitar os escândalos entre os ricos. Esta imprensa britânica de massas é uma componente indispensável da vida política no país, mais importante no plano ideológico do que o são o governo e os partidos.

Proliferou por todos os países este tipo de imprensa de massas, situada politicamente na direita ou na extrema-direita e sempre pronta a anunciar que um político foi encontrado com a mão no cofre de um banco ou que um empresário foi encontrado com a mão na gaveta de um ministro. Basta olhar para os escaparates [as bancas] de jornais e ver quais são os mais lidos. Em íntima conexão com esta imprensa dos escândalos e do ressentimento, estão as revistas inevitavelmente colocadas ao lado dos chocolatinhos junto às caixas dos supermercados e que se destinam a mostrar ao povo os exemplos positivos, que em princípio todos gostariam de imitar, as vedetas de sucesso, os homens de negócios que casaram pela enésima vez com uma mulher ainda mais plastificada do que as anteriores, os chics e famosos, os habitantes das ilhas artificiais. Se uns são os jornais do ressentimento, as outras são as revistas da inveja, e juntos fazem um par indispensável à contenção dos rancores dentro dos limites da ordem. Desde que a insatisfação não leve ao derrube das instituições mas à vontade de amaranhar por elas acima, tudo corre dentro do previsto. Onde as coisas começam a estragar-se é quando a juventude lança fogo a automóveis em vez de comprar revistas sobre carros de luxo.

Que artigos como este que suscitou a minha reflexão se tenham difundido entre a esquerda e a extrema-esquerda revela até que nível lastimável decaiu o que noutra época havia sido o anticapitalismo. Em Portugal a situação é mais grave ainda, por razões próprias à história deste país. Durante o período do antifascismo, o Partido Comunista seguiu a política da «unidade dos portugueses honrados contra o punhado de monopolistas ao serviço do capital estrangeiro», e continua aliás hoje a fazer o mesmo, visto que nunca desistiu da sua ambição histórica de pôr a classe trabalhadora à disposição de sectores capitalistas − tanto donos de empresas como gestores − marginalizados na repartição dos lucros. É natural que neste ambiente prolifere a confusão entre espírito de classe e ressentimento. Mas sempre que o ressentimento prolifera entre os trabalhadores, o risco do fascismo não anda longe.

[Ilustrações - pinturas de Peter Bruegel, o Velho, e uma colagem de Raoul Hausmann.]

fonte:http://passapalavra.info/?p=2063
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quarta-feira, 25 de março de 2009

O Jovem Marx e o Marxismo

Nildo Viana

O Jovem Marx e o Marxismo

Publicado na Revista Possibilidades, Núcleo de Pesquisa Marxista, Ano 1, num. 2, Out./Dez. de 2004.

O presente texto discute a idéia defendida por muitos pesquisadores que se dizem “marxistas”, segundo a qual haveria uma ruptura entre o “jovem Marx” e o “Marx da maturidade”, derivando daí a estranha tese de que o “jovem Marx” não era “marxista”. Althusser é o principal arquiteto desta concepção e por isso iremos abordar alguns elementos de sua tese para discutirmos esta questão. Nossa tese é a de que não houve nenhuma ruptura no pensamento de Marx, pois o que houve foi um desenvolvimento, o que implica alterações, continuação e, fundamentalmente, aprofundamento.

A tese que vê uma oposição inconciliável entre o “jovem Marx” e o “Marx maduro” se baseia em uma análise a-histórica. Na realidade, procura-se analisar o “jovem Marx” à luz do “último Marx”, ou seja, querem ver no “jovem Marx” todas as teorias do “Marx da maturidade” prontas e acabadas. Mas, como elas ainda estão em formação, são taxadas de “não-marxistas”. Entretanto, não é o futuro que explica o passado, mas ao contrário, é o passado que explica o futuro. Um pensamento só pode ser compreendido em sua historicidade.

A análise que afirma a continuidade do pensamento de Marx não é teleológica, como diz Althusser (1979), mas sim histórica. Ela não diz que no “jovem Marx” já estava presente o “Marx maduro” e nem que o primeiro tinha como finalidade se tornar o segundo. O que esta tese afirma é que o “jovem Marx” já tinha elementos e preocupações, que mais tarde seriam desenvolvidas e aprofundadas pelo “Marx da maturidade”, ou seja, era uma tendência que se efetivou e que a análise depois do processo concretizado revela isto. O “Jovem Marx” não tinha a finalidade de se tornar o “Marx maduro” mas isto aconteceu historicamente. Isto não ocorreu arbitrariamente, pois já havia essa tendência e ela se realizou posteriormente. Se Althusser fosse utilizar seu esquema defeituoso de análise para estudar o desenvolvimento do capitalismo teria que dizer: “existe uma ruptura radical entre o ‘capitalismo concorrencial’ e o ‘capitalismo monopolista’ e, por isso, só o último é capitalismo, assim como só o ‘Marx maduro’ é marxista; dizer o contrário é fazer uma análise teleológica”. Eis a miséria da história.

A tese da continuidade do pensamento de Marx deve não só se justificar metodologicamente como, também, se fundamentar e se comprovar nos escritos de Marx. Veremos, então, o desenvolvimento do pensamento de Karl Marx e assim demonstrar a continuidade nele presente. O seu pensamento apresentou três fases: a primeira fase, que vai de 1838 a 1844, expressa preocupações humanistas e filosóficas esboçando sua teoria da história e a análise do capitalismo; a segunda fase, que vai de 1845 a 1848, concretiza a sistematização de sua teoria da história; a terceira fase, que vai de 1849 até 1883 (ano de sua morte), elabora mais completamente sua teoria do capitalismo, que é uma teoria da luta de classes na época moderna e da transformação social, ou, segundo Rossana Rossanda, uma “teoria da revolução” (Rossanda, 1989).

Esta periodização do pensamento de Marx coincide com a de Korsch (1977), que relaciona tal evolução do pensamento de Marx com o desenvolvimento do movimento operário. Concordamos com Korsch no fato de que o marxismo se constitui, efetivamente, a partir da segunda fase, que coincide com uma época de ascensão das lutas operárias, mas no que concerne à terceira fase, temos uma pequena divergência. Sem dúvida, nesta fase há um recuo parcial do movimento operário (mas também uma ascensão no seu final, pois basta lembrar a Comuna de Paris de 1871, acontecimento de fundamental importância para o desenvolvimento da teoria marxista, o que é reconhecido pelo próprio Marx), o que fez com que Marx se dedicasse ao estudo do modo de produção capitalista, mas isto foi realizado no mesmo espírito do que o existente na fase anterior e significou um aprofundamento da teoria do capitalismo. Iremos retomar isto mais adiante.

Ao analisar a primeira fase de seu pensamento vemos uma preocupação com a “emancipação humana”, que leva a crítica do Estado, da sociedade burguesa e da propriedade privada (Marx, 1980). Mas é a partir da Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, que Marx esboça os fundamentos de sua teoria da revolução.

Neste escrito, Marx expõe uma crítica ao humanismo abstrato (como o de Feuerbach), pois o “homem é o mundo dos homens, o Estado, a sociedade” (Marx, 1978, P. 02) [1]. Portanto, a crítica da “forma sacra da auto-alienação humana” deve ser substituída pela crítica de sua “forma profana”. A crítica da religião e da teologia devem ser substituídas pela crítica do direito e da política.

A partir dessa premissa Marx elabora de forma embrionária sua teoria da luta de classes. Na Alemanha, segundo Marx, é preciso surgir uma classe que se contraponha à classe dominante de forma radical. Todas as classes que conquistaram o poder implantaram uma nova forma de dominação. Por isso, todas as classes que pretendem se tornar a nova classe dominante, devem apresentar seus interesses particulares como os interesses gerais da sociedade e, assim, aparecer como a classe emancipadora de toda a sociedade. Mas é o proletariado, devido suas “cadeias radicais”, que representa, ao mesmo tempo, os interesses particulares de classe e o interesse geral da sociedade. O proletariado ao se libertar leva à libertação de toda a sociedade, pois ele é a dissolução da sociedade de classes.

Mas, segundo Marx, toda revolução necessita de um “elemento passivo”, de um “fundamento material”. O elemento ativo da revolução só será eficaz quando expressar o “elemento passivo”. O materialismo histórico-dialético se encontra esboçado neste texto. Quando Marx compara a política alemã com a dos outros países europeus e critica a primeira por apenas “pensar” o que os outros “fizeram”, realiza-se o prelúdio de A Ideologia Alemã. O papel revolucionário do proletariado e a luta de classes já são analisados por Marx. A importância dada ao “fundamento material” (que futuramente será identificado no conceito de modo de produção) e ao elemento ativo (a luta de classes) será retomada nos escritos posteriores formando a base do pensamento marxista [2].

Todo o pensamento posterior de Marx será dedicado a fundamentar as premissas teóricas colocadas acima. O movimento da propriedade privada passa a ser acompanhado e explicado através do conceito de trabalho alienado. Este expressa as relações de produção capitalistas. Segundo Marx:

“Graças ao trabalho alienado, por conseguinte, o homem não só produz sua relação com o objeto e o processo da produção, como homens estranhos e hostis; também produz a relação de outros homens com a produção e o produto dele, e a relação entre ele próprio e os demais homens. Tal como cria sua própria produção como uma perversão, uma punição, e o seu próprio produto como uma perda, como um produto que não lhe pertence, assim também cria a dominação do não-produtor sobre a produção e os produtos desta. Ao alienar sua própria atividade, ele outorga ao estranho uma atividade que não é dele” (Marx, 1983, p. 89).

Aí se encontram as relações de produção como realidade não-conceitualizada, isto é, a idéia de relações de produção já está esboçada mas o conceito ainda não aparece. A percepção de determinadas relações sociais existe mas sua conceituação só será efetivada posteriormente.

Nos Manuscritos de Paris, Marx procura fundamentar sua tese de que o proletariado é a classe revolucionária de nossa época (capitalista) e que sua libertação leva à “emancipação humana em geral”, ou seja, de toda a sociedade. Segundo ele:

“Da relação do trabalho alienado com a propriedade privada também decorre que a emancipação da sociedade da propriedade privada, da servidão, assume a forma política de emancipação dos trabalhadores; não no sentido de só estar em jogo a emancipação destes, mas por essa emancipação abranger a de toda humanidade. Pois toda a servidão está enredada na relação do trabalhador com a produção e todos os tipos de servidão são somente modificações ou conseqüência desta relação” (Marx, 1983, p. 100).

Esta tese já estava presente na Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel e seria retomado no Manifesto Comunista, e se tornou um elemento permanente da teoria marxista.

Em seu último “escrito juvenil”, A Sagrada Família, Marx novamente nega o humanismo abstrato e afirma o humanismo concreto:

“A classe possuidora e a classe proletária representam a mesma alienação humana. Mas a primeira sente-se à vontade nesta alienação; encontra nela uma confirmação, reconhece nesta alienação de si o seu próprio poder e possui nela a aparência de uma existência humana; a segunda sente-se aniquilada nesta alienação, vê nela a sua impotência e a realidade de uma existência inumana”. É, para empregar uma expressão de Hegel, no aviltamento, na revolta contra esse aviltamento, revolta para a qual aquela classe é empurrada pela contradição entre a sua natureza humana e a sua situação de vida, que reside a negação franca, categórica total desta mesma natureza” (Marx, 1979, p. 53).

Assim sendo,

“No seio desta contradição, o proprietário privado é pois a parte conservadora, o proletário é a parte destruidora. Do primeiro emana a ação que mantém a contradição, do segundo a ação que a aniquila” (Marx, 1979, p. 53).

A partir daí Marx procura sistematizar sua teoria da história esboçada anteriormente. Em A Ideologia Alemã, Marx e Engels pretendiam acertar contas com sua consciência filosófica anterior. É nesta afirmação que muitos se fundamentam para dizer que houve uma mudança brusca no “jovem Marx” que se transformou no “Marx maduro”. O Marx idealista, humanista e filosófico foi substituído pelo Marx materialista, classista e científico.

Isto, entretanto, não é verdade. O acerto de contas não significou a passagem do idealismo ao materialismo. Marx já havia notado em seus “escritos juvenis” que:

“É certo que a arma da crítica não pode substituir a crítica das armas, que o poder material tem que ser derrocado pelo poder material, mas também a teoria transforma-se em poder material logo que se apodera das massas, a teoria é capaz de apoderar-se das massas quando argumenta e demonstra ad hominem, e argumenta e demonstra ad hominem quando se torna radical; ser radical é tomar as coisas pela raiz. Mas a raiz, para o homem, é o próprio homem” (Marx, 1978, p. 8-9).

Portanto, só quando se forma uma unidade entre teoria e necessidades radicais é que a teoria se transforma em poder material. Para o “jovem Marx”:

“As revoluções precisam, efetivamente, de um elemento passivo, de um fundamento material. Num povo, a teoria realiza-se somente na medida que é a realização de suas necessidades” (Marx, 1978, p. 9).

Marx afirma que não é suficiente o pensamento estimular sua realização; é preciso que a realidade estimule este pensamento. Portanto, a teoria se torna força material quando é expressão real das necessidades radicais e, com isso, torna a necessidade ainda mais necessária.

Marx não aderiu ao “humanismo abstrato” e não abandonou o “humanismo concreto” e já colocava nos escritos de juventude que a emancipação humana seria resultado da luta de classes com vitória do proletariado. A separação entre o Marx “filosófico” e o Marx “científico” apresentada por Althusser é totalmente destituída de sentido, pois, além de ser um produto de uma concepção positivista, que busca transformar o marxismo em uma ciência, ela ignora que o marxismo significa a superação simultânea tanto da filosofia quanto da ciência, que são formas de pensamento constituídas em sociedades de classes e objetivando reproduzi-las, sendo, pois, formas sistematizadas de falsa consciência. Marx apontava para a superação da filosofia (Korsch, 1977; Viana, 2000) e sua obra, embora nem sempre com clareza, significou uma radical crítica da ciência, e unir marxismo e ciências humanas é, tal como colocou Fougeyrollas, igual ao casamento do fogo com a água.

Mas, então, qual é esse acerto de contas? Acontece que nos seus escritos juvenis, Marx, fazia, essencialmente, a “crítica das ideologias”. Isto não significa idealismo, pois qualquer materialista pode criticar as ideologias. O que define o caráter idealista ou materialista desta crítica é o ponto de vista em que ela se baseia. Quando Marx disse, que “em política os alemães pensaram o que os outros povos fizeram”, apenas anunciou a concepção materialista da história exposta nos Manuscritos de Paris e na Ideologia Alemã.

É na quarta tese sobre Feuerbach que compreendemos o “acerto de contas” de Marx:

“Feuerbach parte do fato da auto-alienação religiosa da duplicação do mundo em religioso e terreno. Seu trabalho consiste em dissolver o mundo religioso em seu fundamento terreno, mas o fato de que este fundamento se eleve de si mesmo e se fixe nas nuvens como um reino autônomo, só pode ser explicado pelo auto-dilaceramento e pela contradição desse fundamento terreno. Este deve, pois, em si mesmo, tanto ser compreendido em sua contradição, como revolucionado praticamente. Assim, por exemplo, uma vez descoberto, que a família terrestre é o segredo da sagrada família, é a primeira que deve ser teórica e praticamente aniquilada” (Marx, 1982, p. 12-13).

Portanto, a crítica das ideologias deve ser precedida pela crítica do modo de produção, tal como na Ideologia Alemã. Nos escritos juvenis havia referências à base material, mas superficialmente, com exceção dos Manuscritos. É na Ideologia Alemã que Marx expõe as diversas formas de propriedade em seu desenvolvimento histórico culminando com o capitalismo que abre possibilidade para a realização do comunismo.

Após a Ideologia Alemã, Marx continua a aprofundar sua teoria da história mas agora em relação direta com sua teoria do modo de produção capitalista. Vê-se isto, em A Miséria da Filosofia, na Carta a Annenkov e no Manifesto Comunista. Em O Manifesto Comunista, Marx retoma sua tese de que o proletariado liberta toda a sociedade:

“Todas as classes que no passado conquistaram o poder trataram de consolidar a situação submetendo a sociedade às suas condições de apropriação. Os proletários não podem apoderar-se das forças produtivas sociais sem abolir o modo de apropriação que era próprio a estas e, por conseguinte, todo meio de apropriação em vigor até hoje. Os proletários nada têm de seu a salvaguardar; sua missão é destruir todas as garantias e seguranças da propriedade privada existentes até agora” (Marx e Engels, 1988, p. 86) [3].

Já tendo elaborado sua teoria da história, Marx passa a desenvolver sua teoria do capitalismo, que é um momento de desenvolvimento desta teoria e sua confirmação em um caso concreto. Marx começa seu primeiro escrito desta fase dizendo:

“De vários lados nos criticaram por não termos analisado as relações econômicas que formam a base material da luta de classes e das lutas nacionais nos nossos dias” (Marx, 1987, p. 19).

É justamente isso que Marx começa a realizar em sua nova fase: analisar o modo de produção capitalista e as lutas de classes geradas por ele. No entanto, ele faz isso em um período não-revolucionário, tal como Korsch (1977) coloca, o que significa que sua teoria do capitalismo focaliza as lutas espontâneas e cotidianas que formam a essência do modo de produção capitalista, tal como se vê em O Capital. Somente com a ascensão da luta operária, ocorrida no final da década de 70 do século 19, com a Comuna de Paris, é que as lutas revolucionárias voltam ao foco de análise de Marx, embora ele já dedicasse atenção ao processo revolucionário a partir de 1848, em seus escritos sobre as lutas de classes na França.

Portanto, em Trabalho Assalariado e Capital, em O Capital, em Teorias da Mais-Valia, entre outros, Marx procura revelar a base material da revolução de nossa época: o capitalismo. Em As Lutas de Classes na França, O 18 Brumário, A Guerra Civil na França, entre outros, ele expõe o elemento ativo da revolução: a luta de classes. No primeiro caso, ele analisa as lutas de classes espontâneas, cotidianas; no segundo, as lutas mais radicais e que já apontam para se tornar lutas revolucionárias, o que ocorre no último texto acima citado, que tem uma parte dedicada à análise da Comuna de Paris.

Em Para a Crítica da Economia Política ele resume sua teoria da história e faz alguns apontamentos sobre o capitalismo. Nos Grundrisse (1857-1858) retoma o desenvolvimento das formas de propriedade [4]. Ainda nos Grundrisse analisa o capitalismo e volta a um tema, que, segundo muitos, foi superado pelo “Marx maduro”: a alienação. A Introdução Geral (1857) é, segundo Althusser, a prova de que Marx abandonou seu humanismo da juventude:

“Althusser cita regularmente – e com razão – a Introdução de 1857 como um texto clássico e primoroso do método marxista. Depois tem de enfrentar o caso dos Grundrisse, mas como é possível depreciar um livro que contém uma introdução saudada como magistral? Se Marx abandonou em 1845 toda noção de uma natureza humana alienada, então em 1857 estava irremediavelmente confuso, regredindo a suas preocupações de juventude e escrevendo um manuscrito que é ao mesmo tempo a quintessência da maturidade e um ato de infantilismo teórico” (Harrington, 1977, p. 163) [5].

Nos seus escritos considerados “históricos”, Marx analisa a luta de classes na França e em outros países, mas já como luta de classes em processo de radicalização. No 18 Brumário, Marx coloca novamente que toda revolução precisa de um “elemento passivo” e de um elemento ativo:

“Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado” (Marx, 1986, p. 17).

Os homens fazem sua história em condições determinadas, marcadas por lutas de classes cotidianas, pelo predomínio absoluto da classe dominante, do trabalho morto sobre o trabalho vivo e é sob estas condições que se desenvolvem as lutas de classes. As lutas de classes do presente são realizadas tendo por base as lutas de classes do passado e as cirscunstâncias constituídas por elas.

Entretanto, não se deve pensar que nos escritos “históricos”, Marx analisava apenas o elemento ativo (luta de classes extra-cotidianas) e nas obras “econômicas” apenas o elemento passivo (luta de classes cotidianas). A ênfase era colocada em um ou em outro, dependendo do escrito, mas não é possível separar um do outro a não ser em nível analítico e mesmo assim esses dois elementos se confundem, pois são partes constituintes e inter-relacionados, que formam a totalidade concreta. Basta ler suas “obras históricas” (Marx, 1986a; Marx, 1986b) ou O Capital (1988) para se notar isso. Segundo Engels:

“Se Barth pensa, pois, que nós negamos toda a reação dos reflexos políticos, etc. do movimento econômico sobre este movimento, ele combate simples moinhos de vento. Que estude o 18 Brumário de Marx, em que quase só se trata do papel particular que as lutas e os acontecimentos políticos desempenham naturalmente nos limites que lhes traça a sua dependência geral das condições econômicas, ou ainda, O Capital, o capítulo, por exemplo, sobre a jornada de trabalho, onde a legislação, que é todavia um ato político, tem uma ação tão profunda, ou o capítulo sobre a história da burguesia” (Engels, 1979, p. 47).

Engels, mais à frente, conclui: “o que falta a todos estes senhores é a dialética”. Apesar disso tudo, Louis Althusser afirma que existe um “corte epistemológico” entre o “jovem Marx” e o “Marx da maturidade”. Para ele, a análise do pensamento de Marx não pode se basear na “história ideológica”, pois as idéias estão ligadas à história real. Althusser afirma:

“É preciso que se nasça um dia em alguma parte, e se comece a pensar e a escrever em um mundo dado. Esse mundo, para o pensador, é imediatamente o mundo dos pensamentos vivos do seu tempo, o mundo ideológico onde ele nasce para o pensamento” (Althusser, 1979, p. 62).

Marx, o pensador, nasceu em um “mundo dado” e este era o “mundo da ideologia alemã” e por isso ele coloca como sua “problemática” a problemática desse “mundo ideológico”. Althusser cai em contradição ao afirmar que não se deve partir apenas da “história ideológica” e que se deve ligá-la à história real e, no fundo, dissolve a dita “história real” na “história ideológica”. A história real de Althusser é a história ideológica da Alemanha e o que ele entende por “história ideológica” é o pensamento de Marx tomado isoladamente. Assim, ele realiza a subsunção do indivíduo Marx ao mundo ideológico alemão, e apresenta uma concepção de história real reduzida à história coletiva da ideologia em determinado país.

Porque o mundo para o pensador é imediatamente “o mundo dos pensamentos vivos do seu tempo”? Este é um pensador abstrato inventado por Althusser e não um pensador real que não é só um pensador, mas também um determinado indivíduo com todas as implicações derivadas daí. Entre o pensador e o “mundo dos pensamentos vivos” existe a mediação do processo histórico de vida de tal pensador e este não é apenas o mundo das idéias mas um mundo concreto, múltiplo, marcado pelo conjunto das relações sociais. Logo, a ligação entre eles não é imediata e sim mediada.

A “história real” ao qual a “história ideológica” de Marx está ligada é a história da “ideologia alemã”. A proposta analítica de Althusser leva a imaginar uma Alemanha dominada pela ideologia e sem nenhuma contradição: a sociedade alemã é uma “sociedade sem história”. Ao negar em Marx uma “história ideológica”, Althusser cria uma “história ideológica” da sociedade alemã. Os pensadores individuais (independentemente da classe, religião, etc.) estão subsumidos à ideologia dominante. A relação de um pensador com a ideologia dominante, ao contrário do que pensa Althusser, não é uma relação de “submissão automática”. Além disso, Althusser cai em contradição, como já dissemos, pois afirma que a análise do pensamento de Marx não pode se basear apenas na “história ideológica”, pois esta está ligada à “história real”, mas o que faz Althusser é ligar o pensamento de Marx à história ideológica alemã, e, ao mesmo tempo, desligar esta da história real (história da sociedade), isto é, autonomiza a ideologia, como se esta tivesse um desenvolvimento autônomo. A ideologia do indivíduo Marx não é autônoma e nem pode ser desligada da história real, mas a ideologia alemã é autônoma e desligada da história real... [6]

Quando Althusser diz que os jovens hegelianos colocam as idéias européias dentro de sua própria “problemática”, ele revela que estas não se impõem totalmente e automaticamente aos jovens hegelianos. Da mesma forma, a ideologia alemã não se impõe totalmente e automaticamente ao “jovem Marx”, pois ele a coloca, para utilizar expressão de Althusser, dentro de sua própria “problemática”. O que Althusser faz é negar qualquer papel ao processo histórico de vida do “jovem Marx”. Este estaria preso no reino da “ideologia alemã” e só poderia se libertar ao chegar na França. Althusser só não explica porque muitos pensadores alemães foram para a França, mas não se tornaram “marxistas”...

Mas, agora vejamos os fundamentos políticos-ideológicos, que levam a opor o “jovem Marx” ao “Marx maduro” [7]. Os que privilegiam o “jovem Marx” (da primeira fase) evitam a crítica do modo de produção capitalista aderindo a um “humanismo abstrato” e os que privilegiam o “Marx maduro” (da terceira fase) evitam a crítica humanista (portanto, universal, o que revela o caráter simultaneamente particular e universal da luta proletária) ao capitalismo aderindo a uma concepção economicista do homem (homo economicus).

A negação da crítica humanista serve para justificar a concepção de socialismo que Marx denominou nos Manuscritos de “comunismo vulgar”. A crítica humanista nega tanto o pseudo-socialismo pequeno-burguês que se baseia na distribuição de propriedade ou de renda, expressando a “inveja universal”, quanto o pseudo-socialismo estatal que se baseia na transformação de todas as pessoas em assalariados submetidos ao capital incorporado na comunidade como “capitalista abstrato” (Marx, 1983). Em outras palavras, a crítica humanista é dos elementos do marxismo que serve para refutar o pseudo-socialismo, tanto o pequeno burguês, presente, por exemplo, nas correntes reformistas (social-democracia), e em propostas específicas como a da reforma agrária, quanto no estatal, expressão dos interesses de classe da burocracia e que se revela no capitalismo de estado seu modelo exemplar (cuja experiência histórica teve na URSS, Leste Europeu, China, Cuba, etc., enquanto formas de manifestação).

A negação da crítica ao modo de produção capitalista serve para justificar a tese da via pacífica ao socialismo ou que a transição ao socialismo não é realizada através da ação revolucionária do proletariado. A crítica do modo de produção capitalista nega tanto a possibilidade de passagem pacífica ao socialismo quanto a possibilidade da transformação ser realizada pelo conjunto da sociedade.

É claro que em Marx não existe uma diferença entre a crítica humanista e a crítica ao modo de produção capitalista, mas existe em alguns intérpretes de sua obra que se submetem à divisão capitalista do trabalho intelectual e com isso reproduzem a alienação. Ao separar teoria e prática, razão e valores, etc. cria-se o positivismo “marxista”, ou melhor, o positivismo revisitado em linguagem marxista.

Assim, os pseudomarxistas que defendem o falso socialismo do capitalismo de estado russo (a antiga URSS) querem abandonar a crítica humanista e até mesmo o papel revolucionário da luta de classes para defender uma metafísica “luta de sistemas” ou de “modos de produção”, compreendendo este último de forma fetichista. Esta é a posição dos stalinistas e althusserianos. Para eles, o marxismo nada tem a ver com luta de classes e sim com luta de sistemas ou modos de produção – o capitalismo de estado (“socialismo real”), por um lado; e o capitalismo privado, por outro (Santos, 1986). Numa entrevista entre Sartre e Pierre Victor, este último coloca que uma afirmação do primeiro lhe lembrava o que Althusser certa vez lhe disse. Sartre, imediatamente, retrucou: “sou muito pouco parecido com Althusser, deve ser um mal-entendido, sabes” (Sartre; Gavi; Victor, 1975, p. 184). A rapidez com que Sartre busca se desvencilhar da comparação com Althusser é não apenas perspicaz e justificada, como necessária, principalmente depois da afirmação de P. Victor: “tinha-lhe dito, um dia, que se éramos comunistas era por causa da felicidade. Respondeu-me [Althusser] em suma: não se deve dizer isso; é para provocar uma mudança no modo de produção...” (Sartre, Gavi; Victor, 1975, p. 184). Assim, o althusserianismo é, com seu estruturalismo anti-humanista, uma cópia do stalinismo, com sua consciência coisificada de acordo com os interesses da burocracia soviética.

Em resumo, Marx na sua primeira fase se preocupava com a “emancipação humana” e caminhou para a percepção, com o desenvolvimento do seu pensamento, de que isto só seria possível com a revolução proletária. Na segunda fase sistematizou sua teoria da história, sua visão do desenvolvimento histórico da humanidade comandado pela luta de classes e pela tendência histórica da revolução proletária. Na terceira fase, desenvolveu esta teoria e aprofundou sua análise do capitalismo para descobrir a tendência histórica de criação do comunismo através da revolução proletária. O marxismo é uma teoria da alienação (humanismo histórico-concreto), uma teoria da história (materialismo histórico-dialético), uma teoria do capitalismo e da revolução proletária (expressão teórica do movimento operário), sendo estes elementos inseparáveis, constituindo uma totalidade indivisível e que só podem ser analisados e desenvolvidos conjuntamente em sua forma posterior acabada, e a partir daí só é possível enfatizar um aspecto mas sem separá-lo dos demais.


A conclusão final a que chegamos é, portanto, a seguinte: não existe nenhuma “ruptura radical” entre o “jovem Marx” e o “Marx da maturidade”.




Referências Bibliográficas


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fonte: http://www.geocities.com/comunistasdeconselhos/Nildo.htm

Entre a desconfiança e o desinteresse: A abstenção eleitoral nas democracias



Com ou sem propaganda abstencionista, não faltam as manifestações de cepticismo na democracia representativa, e o que vemos por todo o mundo é uma colossal perda de legitimidade desses regimes. Por João Bernardo

Os inquéritos sociológicos indicam que a maioria dos participantes em eleições não se ilude quanto à eficácia do sufrágio, por isso vota mais contra um partido ou um candidato do que a favor de outro partido ou de outro candidato. Quer estas pessoas sejam de esquerda ou de direita ou de lugar nenhum, ir pregar-lhes que as eleições são um logro é chover no molhado. Para evocar um exemplo do outro lado do mundo, recordo que nas eleições legislativas realizadas em Madagáscar em 1989 contaram-se cerca de 40% de abstenções, o que a oposição considerou uma vitória, visto que lançara um apelo nesse sentido. Mas como esta taxa de abstenção não parece superior à de outros países onde as oposições apelam à participação no voto, veremos neste artigo que com ou sem propaganda abstencionista não faltam as manifestações de cepticismo na democracia representativa. Com efeito, serão raros aqueles que julgam que podem mudar o mundo através do voto. Uns esforçam-se por conservar o tipo de sociedade em que vivem, sem pretenderem alterá-la, e não há dúvida de que as eleições são adequadas para deixar tudo na mesma fingindo que mudam alguma coisa. Outros, os insatisfeitos, esperam, no máximo, que ao acirrarem as contradições no interior das classes dominantes e ao remodelarem o pessoal governante consigam respirar um pouco melhor. Mas quaisquer que sejam os espaços possíveis de obter através dos resultados eleitorais, o facto decisivo, a meu ver, consiste na enorme taxa de abstenções, e é este aspecto que vou aqui analisar. Deixo de lado os regimes ditatoriais, onde a participação no voto é manipulada e as estatísticas eleitorais são fictícias, e não mencionarei também os países africanos, onde a carência de infra-estruturas de comunicação torna o voto muito aleatório.

Começo pelo grande mestre da democracia representativa, os Estados Unidos, que desde a segunda guerra mundial se têm esforçado por impor o modelo a todo o mundo. Nos Estados Unidos é conveniente distinguir os anos em que ocorrem eleições apenas para a renovação parcial do Congresso e aqueles em que este tipo de votação coincide com a escolha do presidente da República, já que no primeiro caso a abstenção é notavelmente mais elevada. Nas eleições presidenciais a percentagem da população em idade de votar que se apresenta às urnas desceu gradualmente de cerca de 65% em 1960 para cerca de 55% em 1984. Nas eleições presidenciais de 1996 menos de metade do eleitorado votou; nunca a abstenção fora tão elevada neste tipo de eleições. A situação não se modificou substancialmente nas eleições presidenciais seguintes, pois em 2000 a taxa de participação foi apenas de 51%. Todavia, nas eleições presidenciais de 2004 foi já 61% do eleitorado a votar, uma tendência que se tornou mais acentuada em Novembro de 2008, quando votou 63% do eleitorado, a menor taxa de abstenção desde 1960. Isto significa que numa das campanhas presidenciais mais polarizadas, quando o país atravessava uma situação interna e externa particularmente difícil, o facto de um pouco menos de 2/3 dos potenciais eleitores se terem dirigido às urnas foi considerado como um notável acontecimento. Entretanto, o interesse tem sido menor quando as votações não são simultâneas com a eleição presidencial e se destinam apenas à renovação parcial do Congresso. Nestas, entre 1958 e 1970 só participou uma média de 44% do eleitorado, taxa que desceu para 36% entre 1974 e 1986. Nas eleições de 1990 apenas 1/3 do eleitorado se deu ao trabalho de votar, subindo a proporção em 1994, quando votaram 38% dos eleitores potenciais. Esta taxa repetiu-se praticamente em 2002, com uma participação de 39% do eleitorado. Em resumo, a democracia representativa tem mobilizado apenas entre 1/3 e 2/3 dos eleitores norte-americanos.

Note-se que nos Estados Unidos as percentagens de participantes e de abstencionistas são calculadas em função da população em idade de votar, enquanto que na maior parte dos outros países o cálculo é feito em função do número de inscritos nos registos eleitorais. Se contabilizássemos aquelas pessoas que nem sequer se incomodam a levar o nome para os recenseamentos, a abstenção eleitoral dos norte-americanos não ultrapassaria muito a europeia, embora o aumento da abstenção caracterize também as democracias da Europa.

Consideremos o caso da França, um dos países com tradição democrática mais arreigada e onde o voto mais cedo se universalizou. Na primeira volta das eleições presidenciais de 1995 a percentagem de participação desceu a um nível sem precedentes neste tipo de votação, 77%, ao mesmo tempo que a percentagem de votos nulos atingiu também um nível sem precedentes, 3%. A taxa de participação continuou a declinar, baixando para 72% na primeira volta das eleições presidenciais de 2002, enquanto na segunda volta subiu quase para 80%, mas é necessário recordar que nesta ocasião se tratava de uma escolha bastante polarizada, entre o candidato da extrema-direita e um candidato da direita conservadora apoiado por todos os centristas e pela esquerda. Quando os eleitores julgam tratar-se de uma opção significativa o interesse pela votação aumenta, como sucedeu também nas últimas eleições presidenciais, em 2007, quando a taxa de participação em ambas as voltas foi de 84%. Na escolha dos deputados, porém, a tendência tem sido para o aumento da abstenção. Na primeira volta das eleições legislativas de 1993 a taxa de abstenção foi de 31% e de 33% na segunda volta, e nas eleições legislativas de 1997 os números correspondentes foram 32% e 29%. Na primeira volta das eleições legislativas de 2002 a taxa de abstenção quase chegou aos 36%, maior do que em qualquer das voltas de todas as outras onze eleições legislativas da Quinta República. O desinteresse é mais pronunciado ainda nas eleições regionais, já que entre 1986 e 1998 a taxa de abstenção praticamente duplicou, passando para 42%.

Portugal é um país de somenos importância, mas como pode talvez interessar a alguns leitores do Passa Palavra, convém seguir a evolução da taxa de abstenção, que passou de menos de 1/4 para mais de 1/3. Nas eleições legislativas de 1987 a abstenção foi de 22% e subiu para 32% nas de 1991, chegando a 33% nas eleições legislativas de 1995 e a 38% nas de 1999 e de 2002. Nas eleições legislativas de 2005, porém, a taxa de abstenção baixou para 35%.

Mas na Europa o facto político decisivo é a progressiva unificação e a diluição gradual das soberanias nacionais, tornando-se muito significativo o desinteresse com que a população encara a única instituição representativa de âmbito supranacional. Nas eleições para o Parlamento Europeu a taxa média de participação, que foi de 62% em 1979, diminuiu de 1984 para 1989, passando de 61% para 59%, embora estes números disfarcem oscilações acentuadas, como sucedeu na Irlanda, onde a participação naquele período subiu de 48% para 68%, e em Espanha, onde baixou de 70% em 1987 para 55% em 1989. Nas eleições seguintes, efectuadas em 1994, a taxa global de participação desceu para 56%, só aumentando no Luxemburgo, em Espanha, em França e na Dinamarca; e é curioso verificar que na Irlanda, a estrela das eleições anteriores, a participação desceu então para 37%. Em 1999 a participação igualou as abstenções, ambas com 50%, e continuou a descer nas eleições de 2004, quando mal ultrapassou os 45%, embora com grandes variações, desde a Itália, com uma participação de 73%, até à Suécia, com 37%. Entre os novos membros da Europa de Leste o desinteresse foi mais notório ainda. Na Hungria a participação nas eleições de 2004 foi de 39%, na República Checa foi de 28%, na Polónia foi de 20% e na Eslováquia foi a mais baixa de toda a União, com 17%. A participação média nos dez novos países foi de 27%, enquanto os quinze países membros de mais longa data registaram 50% de participação. O secretismo de que se rodeiam as decisões da Comissão Europeia ajuda a compreender, tanto enquanto causa como enquanto resultado, o desinteresse com que uma porção tão significativa de potenciais eleitores encara a escolha dos eurodeputados. Com efeito, e excluindo os países onde o voto é obrigatório, a abstenção nas eleições para o Parlamento Europeu tem sido consideravelmente superior à verificada nas eleições legislativas nacionais.

A maior prova que a democracia representativa enfrentou nos últimos tempos consistiu no final da guerra fria e na desagregação da esfera soviética. Esperar-se-ia que a população dos países do leste da Europa, cansada de ditaduras e de eleições fictícias, se precipitasse para as urnas, mas em vez disso verificou-se que, quanto mais vigorosa era a tradição de luta contra o sistema soviético, menor era o interesse pelas eleições. Deparo por vezes com o argumento de que a indiferença perante o sufrágio resultaria do facto de aqueles países saírem de regimes ditatoriais e não estarem preparados para a democracia. Mas em Portugal a primeira votação realizada após o derrube de um regime fascista com meio século de existência − a escolha da Assembleia Constituinte em Abril de 1975 − atraiu 91% do eleitorado. O desinteresse pelas eleições na Europa de Leste e na Rússia mostra que, se aquelas populações não desejavam a antiga burocracia, não queriam também a tecnocracia de inspiração norte-americana.

A Polónia foi um dos países onde mais repetidamente e mais generalizadamente se contestou o regime soviético. Ora, em 1989, nas eleições legislativas que consagraram o triunfo do Solidarność, as abstenções chegaram quase a 38%. Nas eleições autárquicas de Maio de 1990 a afluência às urnas limitou-se a 42% dos inscritos e em Novembro desse ano, na primeira volta das eleições presidenciais, só votaram cerca de 65%, uma taxa que na segunda volta, em Dezembro, caiu para 47%. A participação foi inferior ainda nas eleições legislativas de 1991, descendo para 43%. Nas eleições legislativas de 1993 registou-se uma subida, com uma taxa de participação de 52%, mas a anterior tendência foi retomada nas eleições legislativas de 2001, em que a participação foi de 46%, continuando a declinar até que as eleições legislativas de 2005 mobilizaram apenas 2/5 dos inscritos, a menor percentagem desde o final do sistema soviético. O desinteresse dos polacos pela democracia representativa confirma-se ao sabermos que a mais elevada taxa de participação nas eleições legislativas desde 1990 verificou-se em 2007, sem chegar sequer aos 54%.

Também na Hungria, cuja população se havia notabilizado em 1956 numa insurreição contra a hegemonia de Moscovo e contra o sistema soviético, a democracia representativa não foi inicialmente saudada com grande entusiasmo. Na primeira volta das eleições legislativas de Março de 1990 a taxa de participação foi de 65%, e nas eleições autárquicas de Setembro desse ano a participação reduziu-se a 40%, sendo ainda inferior nas cidades, o que obrigou a repetir a votação na maior parte dos municípios. A participação aumentou em seguida, chegando a 69% na primeira volta das eleições legislativas de 1994 e subindo para 71% na primeira volta das de 2002 e para 74% na segunda volta. Malgrado esta baixa da abstenção, tudo o que se pode dizer é que os húngaros passaram a revelar pelo processo eleitoral o mesmo grau de indiferença de alguns países da Europa ocidental.

Igualmente significativo é o facto de na República Democrática Alemã, ou seja, a Alemanha de Leste, até então integrada na órbita soviética, a afluência às urnas nas eleições autárquicas de Maio de 1990 ter registado uma descida de 18% relativamente às eleições legislativas de Março daquele ano, votando apenas 75% do eleitorado. E na Alemanha unificada, incluindo portanto o território da antiga República Democrática, a taxa de participação nas eleições legislativas de 1990 foi de 78%, a menor desde 1949.

Naqueles países onde o sistema soviético encontrara maior aceitação ou, pelo menos, onde a oposição fora menos estridente, as taxas de participação eleitoral começaram por atingir níveis superiores. Mas seguidamente a abstenção progrediu e instalou-se o desinteresse, de modo que em toda a Europa de Leste a população não se mostra hoje muito agradecida pela oportunidade que lhe deram de enfiar livremente papelinhos em urnas. Um caso sintomático é o da Bulgária, onde nas eleições legislativas de 1990 votaram mais de 90% dos inscritos. A taxa de participação, porém, desceu para 86% nas eleições legislativas de 1991, e foi de 73% na primeira volta das eleições presidenciais desse ano e de 76% na segunda volta. Nas eleições legislativas de Abril de 1997 a participação baixou mais ainda, limitando-se a 59%, e nas eleições autárquicas de 2003 pelo menos metade do eleitorado absteve-se, a maior taxa de abstenção desde o fim da era soviética.

Também a fragmentação de dois países da antiga esfera soviética não parece ter entusiasmado as respectivas populações. Nas eleições legislativas de Junho de 1990 na Checoslováquia a taxa de participação foi de 96% e as eleições autárquicas de Novembro desse ano mobilizaram cerca de 75% dos eleitores, mas na Eslováquia, à qual se deveu a ruptura do país, a taxa de participação foi só de 64%. Obtida a independência, confirmou-se o desinteresse dos eslovacos pelos sufrágios, pois a participação na segunda volta das eleições presidenciais de 2004 limitou-se a 44%. O mesmo se passou depois da fragmentação da Jugoslávia, sobretudo naqueles novos países que haviam assumido a atitude mais beligerante. Enquanto na Eslovénia, que cindiu pacificamente, a taxa de participação nas eleições legislativas de 1990 ultrapassou 80%, já na Croácia e na Sérvia, os dois principais contendores, o interesse pelo voto foi muito reduzido. Na eleição presidencial de 1997 na Croácia a taxa de participação não chegou a 60%, embora nas eleições legislativas de 2000 houvesse já 75% de participantes. Na Sérvia, porém, a desconfiança pela democracia representativa manteve-se muito profunda, a ponto de na segunda volta das eleições presidenciais efectuada em Outubro de 2002 a participação se ter limitado a 45%, o que invalidou o acto. E em Novembro do ano seguinte foi novamente impossível eleger um presidente, porque votaram só 39% dos inscritos. Também no Montenegro, que cindiu da Sérvia sem guerra mas com bastantes fricções, a eleição presidencial de Dezembro de 2002 foi anulada por ter uma participação inferior a 50%.

A situação não foi diferente na maior parte da antiga União Soviética, e se a insatisfação com o anterior regime era grande, o entusiasmo pelo novo regime parece ser pequeno. Na Rússia a eleição presidencial de 1991 contou com uma participação de 75%, mas nos anos seguintes a abstenção cresceu, atingindo em certos casos 75% ou mais ainda. Na primeira volta da eleição presidencial de 1996 a participação foi de 70%, e de 67% na segunda volta, mas as eleições legislativas de 2003 mobilizaram apenas 56% dos inscritos.

É curioso considerar que ainda na União Soviética, na primeira volta das eleições legislativas e autárquicas efectuada em Março de 1990, enquanto em Moscovo a acorrência às urnas se limitou a 64%, na Ucrânia e na Bielorrúsia votaram cerca de 80% dos eleitores. Ora, a partir do momento em que adquiriu a independência a população destes países parece ter diminuído seriamente o seu interesse pela escolha de representantes. Na Ucrânia, embora nas eleições presidenciais de 1994 a taxa de participação tivesse sido superior a 70%, limitou-se a 66% nas eleições legislativas desse ano, e como além disso o número de votos nulos foi muito grande, mais de cem lugares do parlamento ficaram por preencher. Por seu lado, na Bielorrúsia as eleições legislativas de 1995 foram anuladas porque em mais de metade das circunscrições a taxa de participação foi inferior a 50%; a votação efectuou-se de novo no final do ano, mas só se conseguiram eleger 198 de 260 deputados. E apesar de nas eleições legislativas de 2000 a participação ter sido oficialmente de 60%, os observadores exteriores consideraram que seria inferior, alguns apontando mesmo para 45%.

Se empregarmos o critério da taxa de abstenções chegamos a conclusões bastante diferentes das obtidas mediante critérios ideológicos ou mediante a análise das instituições políticas. A Colômbia, por exemplo, é geralmente apresentada como um país onde se enfrentam um exército de guerrilha, naturalmente autoritário porque pretende impor um regime pela força das armas, e uma sucessão de governos democráticos que emanam do voto popular. Todavia, nas eleições presidenciais de 1990 não participaram cerca de 60% dos eleitores, a maior taxa de abstenção em quarenta anos. Como se isto não fosse suficiente, em Dezembro do mesmo ano, nas eleições para a Assembleia Constituinte, as abstenções subiram para 75%. O interesse pelo voto despertou um pouco nas eleições presidenciais de 1998, com uma participação de 50% na primeira volta e de 59% na segunda volta, mas as eleições legislativas desse ano já só mobilizaram 45% do eleitorado, e 42% as de 2002. Mantendo-se no mesmo nível, a participação foi de 46% nas eleições presidenciais de 2002 e de 45% nas eleições presidenciais de 2006. É difícil, neste contexto, afirmar que a governação da Colômbia assenta em bases democráticas.

No caso da Venezuela chego a conclusões igualmente imprevistas. Apesar da obrigatoriedade de voto, 1/5 dos recenseados não participou na eleição presidencial de 1988, o dobro dos abstencionistas de cinco anos antes. Note-se que, pouco mais tarde, ocorreram enormes e sangrentos motins populares, confirmando que uma parte da população não encontrava possibilidade de expressão nos mecanismos eleitorais. Em 1989, nas primeiras eleições regionais e locais a realizarem-se por sufrágio directo, a abstenção elevou-se a cerca de 80%, e nas eleições autárquicas de 1992 aproximadamente metade do eleitorado absteve-se. As abstenções foram de 40% na eleição presidencial de 1993, o dobro das verificadas na eleição presidencial anterior. É curioso que neste contexto os grandes órgãos de comunicação social acusem o chavismo de antidemocrático, quando o regime precendente assentava numa tão escassa base de legitimidade. Mas é talvez mais curioso ainda considerar que a situação não parece ter-se alterado de maneira estável. É certo que na eleição presidencial de 1998, aquela que colocou Hugo Chávez na chefia do país, a taxa de participação foi de 65%, cinco por cento superior à que se registara na eleição presidencial anterior, mas em 2000 apenas 56% dos recenseados participaram na reeleição do presidente. Entretanto, os dois referendos constitucionais de Abril e de Dezembro de 1999 haviam tido uma participação de 38% e de 45% do eleitorado, respectivamente. O referendo de 2004 mobilizou 70% dos inscritos, mas o interesse pelo voto caiu drasticamente nas eleições legislativas de 2005, quando a participação foi oficialmente de 25%, embora a oposição garanta que os verdadeiros resultados foram inferiores a 20%. Mesmo tendo em conta que nas eleições regionais de 2008 a participação atingiu um nível sem precedentes neste tipo de escrutínio, 65%, e que foi de 70% no referendo constitucional de Fevereiro de 2009, concluímos que o chavismo, apesar de procurar a todo o custo mobilizar as massas e ser plebiscitado nas urnas, não conseguiu ampliar de maneira sistemática e duradoura a base eleitoral da governação.

É certo que em alguns países a participação nos sufrágios é elevada e que por vezes aumenta o interesse pelo voto, mas na maior parte dos casos a abstenção não só é muito grande como ainda tende a elevar-se. No entanto, poderia imaginar-se que os referendos, onde se trata de decidir questões bem definidas e de aplicação prática, atraíssem mais pessoas do que a escolha de representantes, que depois de eleitos esquecem as promessas e fazem o que bem entendem. Mas não é o que se tem passado. Em França a taxa de abstenção situou-se entre 10% e 20% nos referendos de 1958 e 1969, subiu para entre 20% e 30% nos referendos de 1961 e 1962, chegou quase aos 40% em 1972, atingiu 63% no referendo de 1988 e, embora ficasse ligeiramente acima dos 30% no referendo de 1992, no de 2000 chegou quase aos 70%. Na Itália 89% votaram no referendo de 1946 que decidiu a abolição da monarquia, e ainda em 1974 houve 88% do eleitorado a participar no referendo sobre o divórcio. Mas em 1981 já só 79% votaram no referendo sobre o aborto, e a abstenção continuou a aumentar. A taxa de participação no referendo de 1991 foi de 63%, e embora no conjunto de referendos de 1993 se registasse uma participação de 77%, no referendo efectuado em 1999 votaram menos de 50% dos inscritos. No conjunto de sete referendos organizado em 2000 só 32% dos recenseados votaram, o que invalidou o acto, ficando igualmente nulo o referendo de 2005, em que a participação foi de 26%. Aliás, nenhum dos seis referendos realizados na Itália nos dez anos anteriores conseguira atingir a taxa mínima legal de participação. Neste panorama, tem de se considerar como um resultado espectacular a mobilização de 52% do eleitorado num referendo realizado em 2006, a mais elevada em qualquer referendo desde há mais de uma década. Em Portugal, mesmo um tema como o aborto, que polarizou boa parte da opinião pública, interessou menos de metade do eleitorado no referendo de 2007. E na Suíça, um dos modelos da democracia representativa, uma questão tão importante como a da inclusão do país na ONU atraiu só 58% do eleitorado no referendo de 2002.

Perante este panorama, e conhecendo já o cepticismo com que as populações da antiga esfera soviética encaram o voto, não espanta que também aí a participação nos referendos desça a níveis muito baixos. Na Polónia o referendo de 1997 que aprovou a nova constituição contou mais de 50% de abstenções; e na Hungria, no referendo sobre o sistema de eleição presidencial realizado em 1990, a taxa de participação foi inferior a 15%, levando à anulação do acto. Na Eslováquia o referendo de 1994 sobre a luta contra a corrupção na privatização de empresas estatais teve uma participação de 20%, o que obrigou ao seu cancelamento, pois a lei requeria uma participação mínima de 51%, e num referendo efectuado em 1997 a participação foi inferior a 10%. Em comparação com estes resultados, afigura-se como um êxito para os seus proponentes que na Roménia o referendo de 1991 sobre a nova constituição tivesse uma participação de 2/3 do eleitorado e que na Rússia o referendo de 1993 registasse cerca de 36% de abstenções. Até se pode considerar notável o facto de o referendo russo de 1993 sobre a Constituição ter contado com 54% de participantes e de o referendo sérvio de 2006, também acerca da constituição, ter atraído 55% dos inscritos.

O desinteresse com que os potenciais eleitores da União Europeia têm encarado a escolha dos deputados para o Parlamento Europeu manifesta-se igualmente nos referendos relativos às questões europeias. Se na Áustria, o referendo de 1994 sobre a integração na Comunidade Europeia mobilizou 81% dos recenseados, já na Holanda o referendo de 2005 sobre a constituição europeia teve apenas uma participação de 63%, a mesma registada na Lituânia por ocasião do referendo de 2003 acerca da integração do país na União Europeia. Mas na Polónia o referendo de 2003 sobre a integração na União Europeia teve uma taxa de participação de cerca de 59%, enquanto o referendo efectuado sobre o mesmo assunto na República Checa em 2003 atraiu só 55% dos inscritos, 52% no referendo da Eslováquia no mesmo ano e para a mesma finalidade, e 46% no da Hungria. Mesmo o referendo realizado na Irlanda em 2008 para apreciar o tratado de Lisboa, e cujo voto negativo lançou a perplexidade ou até o pânico entre os políticos europeus, contou apenas com uma taxa de participação de 53%.

Tanto quanto conheço, os únicos casos em que os referendos mobilizaram significativamente os votantes foram os relativos à independência dos países das antigas União Soviética e Jugoslávia. Na Lituânia, o referendo realizado em Fevereiro de 1991 pelas autoridades independentistas, contra as ordens de Moscovo, teve uma participação de 85%; e no mês seguinte o referendo organizado na União Soviética sobre a União contou com o voto de 80% dos inscritos, sendo a participação de 75% na República Federativa da Rússia, de 83% na Ucrânia, também de 83% na Bielorrússia e de 75% no Azerbeijão. Na antiga Jugoslávia, o referendo efectuado na Eslovénia acerca da independência em Dezembro de 1990 atraiu 94% do eleitorado, e na Croácia o referendo de Maio de 1991 sobre a independência teve uma participação de 83%.

É interessante considerar que uma percentagem muito significativa de pessoas prefere mostrar a sua descrença pela democracia representativa pura e simplesmente não votando, em vez de eleger os candidatos de extrema-esquerda que se apresentam em plataformas críticas dessa democracia representativa. A desconfiança atinge todos os que participam nos processos eleitorais, quaisquer que sejam as suas ideologias e o teor dos seus discursos. E assim o que vemos por todo o mundo é uma colossal perda de legitimidade das democracias. Basta uma aritmética rudimentar para constatarmos que, com 1/3 de abstencionistas, que é uma percentagem bastante comum, o candidato ou o partido que obtenham metade dos votos conseguirão, afinal, o sufrágio de apenas 1/3 do eleitorado. Mesmo quando o número de abstencionistas se reduz a 1/4, o que pode ser considerado como uma taxa de participação elevada, quem alcance metade dos votos conta apenas com 37,5% de aprovação. Que grandes vitórias! Esta perda de legitimidade das democracias não é certamente alheia ao reforço da fiscalização dos gestos mais comuns do dia-a-dia, através dos meios electrónicos de vigilância. O que tem afinal ocorrido é a transformação gradual das democracias representativas em autoritarismos tecnocráticos, e o crescimento das abstenções é um indício deste processo.

[Ilustrações - três quadros de George Grosz: O Agitador (1928), Eclipse do Sol (1926) e Autómatos da República (1920).]

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Sessenta anos de «Socialisme ou Barbarie»

Muitos dos temas geralmente associados ao Maio de 68 foram na realidade inaugurados pela revista «Socialisme ou Barbarie», que a partir de agora está a ser disponibilizada virtualmente. Por João Bernardo

No dia 1 de março de 1949 foi publicado o primeiro número da revista Socialisme ou Barbarie, a qual teve publicação regular até seu fim em 1965, na sua quadragésima edição. Agora em 2009, celebrando o aniversário de 60 anos, um coletivo de indíviduos e grupos — “Projet de scannerisation de la revue Socialisme ou Barbarie” — tem o objetivo de scannear [digitalizar] e disponibilizar virtualmente todos os números. A iniciativa já conta com o primeiro número digitalizado. Recentemente, um projeto semelhante foi feito com o jornal português “Combate” (1974).

Socialisme ou Barbarie no contexto da época

A partir do final da década de 1920, quando se implementaram os planos quinquenais na União Soviética, a posição crítica assumida por Trotsky começou a padecer de uma grande ambiguidade. Considerando, à boa maneira clássica, que a propriedade de Estado equivalia ao socialismo, Trotsky defendia que o sistema económico presidido por Stalin continuava a ser socialista. Nestes termos, a burocracia staliniana não poderia constituir uma classe social, limitando-se a ser uma casta degenerada e usurpadora de privilégios. Para os trabalhadores soviéticos, porém, a realidade em que viviam era pura e simplesmente um sistema de exploração idêntico ao que prevalecia nos demais países. Os planos quinquenais ergueram colossais centros fabris que seguiam fielmente o modelo fordista e a administração que os dirigia não se diferençava da que estava à frente das grandes empresas norte-americanas. Entre a oposição de esquerda na União Soviética o grande tema de discussão residia na classificação do regime − capitalista ou não capitalista? O leitor interessado tem um fascinante relato do começo destas discussões no interior das prisões soviéticas num livro de Anton Ciliga, cuja última edição francesa teve o título Au pays du mensonge déconcertant e de que é relativamente fácil encontrar traduções, integrais ou parciais, em português e em espanhol.

Este debate, aliás, apaixonava toda a extrema-esquerda mundial e não só o grupo reduzido dos discípulos de Trotsky. Um excelente resumo da questão − o melhor que eu conheço − encontra-se num artigo de Henri E. Morel, «As Discussões sobre a natureza dos países de leste (até à segunda guerra mundial): Nota bibliográfica», incluído no livro A Natureza da URSS (antologia), organizado por Artur Castro Neves e publicado pelas Edições Afrontamento no Porto, em Portugal, em 1977. Os leitores brasileiros podem encontrar a obra em algumas bibliotecas. Ao longo da década de 1930 numerosos militantes e teóricos foram-se rendendo à evidência de que a União Soviética era um sistema económico assente na exploração de uma classe por outra, e a partir desta constatação debatiam duas questões fundamentais: Tratava-se de um sistema capitalista, um capitalismo de Estado, ou de um sistema diferente, historicamente posterior ao capitalismo? E a partir de que momento da revolução russa é que esse sistema começara a vigorar?

Foi neste ambiente que surgiu o grupo Socialisme ou Barbarie, como dissidência do trotskismo. Na minha opinião, a importância histórica deste grupo foi dupla. Por um lado, levou as discussões acerca do regime de exploração prevalecente na União Soviética a um plano teórico muitíssimo mais elevado, permitindo uma melhor avaliação das semelhanças entre esse regime e os regimes ocidentais. Por outro lado, o Socialisme ou Barbarie contribuiu para lançar um olhar novo sobre a militância política e sobre as formas sociais em que essa militância deveria prosseguir se não quisesse ser vitimada pela burocratização. Muitos dos temas geralmente associados ao Maio de 68 foram na realidade inaugurados pelo Socialisme ou Barbarie.

Em língua portuguesa, a primeira análise das posições do Socialisme ou Barbarie e de Cornelius Castoriadis, que era a figura mais expressiva do grupo, encontram-se num livro notável de Mário Pedrosa chamado A Opção Imperialista (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966), injustamente esquecido porque se trata, na minha opinião, de uma das melhores obras marxistas escritas em todo o mundo na segunda metade do século passado.

Mário Pedrosa acerca de Socialismo ou Barbarie

Numa nota de rodapé inserida na pág. 96, depois de chamar a atenção para a grande vitalidade e elasticidade que o capitalismo revelou após a segunda guerra mundial, diz Mário Pedrosa:

«Em Socialisme et Barbarie, n.º 32, 1961, Paul Cardan [pseudônimo de Cornelius Castoriadis], num magnífico ensaio sobre Le mouvement révolutionnaire sous le capitalisme moderne, assim o descreve: “A luta operária no plano econômico exprimiu-se sobretudo pelas reivindicações de salário, às quais o capitalismo opôs uma resistência encarniçada durante muito tempo. Tendo perdido a batalha nesse plano, êle acabou por adaptar-se a uma economia cujo fato dominante, do ponto de vista da procura, é o acréscimo regular da massa dos salários tornada base de um mercado constantemente ampliado de bens de consumo. Êsse tipo de economia em expansão em que vivemos é, no essencial, produto da pressão incessante exercida pela classe operária sôbre os salários - e seus problemas principais resultam dêsse fato… Assim (e também em função de outros fatôres) depois de ter resistido muito tempo à idéia da intromissão do Estado nos negócios econômicos (considerada como “revolucionária” e “socialista”) o capitalismo chega finalmente a adotá-la, e a desviar em seu proveito a pressão operária contra as conseqüências do funcionamento espontâneo da economia, para instaurar, através do Estado, um contrôle da economia e da sociedade, servindo em fim de contas seus interêsses” (Socialisme et Barbarie, pág. 93.)».

Noutra nota de rodapé, na pág. 519, escreve Pedrosa:

«O professor Simon já nos falou da “fábrica de processamento de dados ao lado da fábrica de processamento físico”. O socialista revolucionário francês fala de “usina do plano”, “cujo trabalho consistirá numa verdadeira fabricação em série dos planos e suas várias partes separadas”. (Socialisme et Barbarie, nº 22, julho-setembro de 1957, P. Chaulieu [outro pseudônimo de Cornelius Castoriadis], Sur le Contenu du Socialisme, pág. 37.) É a chegada do automatismo social».

(Note-se que Mário Pedrosa cometeu sistematicamente um lapso no nome da revista, escrevendo et onde deveria ter escrito ou).

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A revolução por dentro das palavras

A acção (o que fazemos, como o fazemos) pode transformar a realidade. O pensamento permite-nos compreender a realidade e traçar caminhos para intervir nela. E o discurso (as palavras que usamos para comunicar com os outros) é o resultado dessas duas coisas: acção e pensamento. Por José Mário Branco

Para tentar compreender a realidade concreta, o pensamento é obrigado a deslocar-se para o campo dos conceitos abstractos; de uma soma de factos particulares, tentamos extrair regras e relações gerais. Mas esta relação da abstracção com a realidade não é directa nem automática; não é garantia de rigor e, muito menos, de compreensão por parte dos outros. Neste processo podemos separar-nos facilmente da realidade se não formos aferindo o pensamento pelos factos objectivos que são o seu ponto de partida. Essa aferição tem de ser feita por outros meios, que não o pensamento abstracto - meios práticos (a nossa actuação), meios discursivos (a comunicação que é validada pelos seus dois lados, emissor e receptor) e meios éticos (que aferem o que dizemos pelo que fazemos, num sistema de valores). A importância do segundo destes aspectos, a comunicação, é muito fácil de identificar, pela negativa, na experiência dos grupos revolucionários em Portugal. Com ele se relaciona a tendência para se pensar que toda a realidade corresponde à ideia que dela se faz, e concluir que basta enunciar regras gerais, palavras de ordem, meras construções mentais, para transmitir aos outros a sua pertinência e a sua justeza. É uma tendência de contornos esquizóides, na medida em que favorece a criação de pequenos mundos fechados e sectários. Quantas vezes nos acontece partilhar as mesmas ideias com outras pessoas e, no entanto, não haver entendimento entre nós, porque as palavras que usamos para definir essas ideias se tornam um obstáculo?

Uma vez, em 1975, durante o processo revolucionário a que os brasileiros chamam Revolução dos Cravos, um amigo meu, revolucionário comunista, foi desenvolver e organizar a luta política em Trás-os-Montes (interior nordeste de Portugal) onde, pensava-se, as pessoas estavam muito dominadas pelas ideias reaccionárias dos padres e dos caciques ex-fascistas. Foi para a região e, numa tasca de aldeia, pôs-se à conversa com trabalhadores do campo que ali estavam a beber e a conviver. Foi conversando sobre a vida “em geral” e lentamente, à medida que iam estando de acordo sobre as ideias simples (democracia, liberdade, justiça social para acabar com diferenças entre pobres e ricos), ele ia explicando “os nomes dos bois”: isto é o socialismo, aquilo é o comunismo, aqueloutro é a revolução, etc. No fim da conversa, um velhote virou-se para ele, e disse: “Essas coisas que nos explica são importantes; eu concordo com elas, concordo que a nossa sociedade devia ser assim… Mas há uma coisa que não entendo… Porque é que, a coisas tão bonitas, você dá nomes tão feios?” Para ele, os “nomes feios” eram as palavras “socialismo”, “comunismo”, “revolução”. O que os separava não eram as ideias, as convicções, as aspirações para a sociedade, mas sim os nomes dados a essas coisas.

As palavras acima referidas, que para mim, correspondem ao interesse profundo das classes proletárias, foram (e continuam a ser) muito deturpadas pela propaganda dos senhores do sistema, que não querem que haja essas mudanças na sociedade, e também pelos erros e os crimes cometidos em nome dessas ideias.

A luta contra a propaganda do sistema é inevitável, faz parte da luta de classes. A propaganda do sistema só se pode combater com um contínuo trabalho de esclarecimento e educação política: libertar o espírito crítico das pessoas, encontrando palavras comuns para as ideias comuns. Mas esta contrapropaganda revolucionária de nada valerá se se limitar a uma luta de palavras contra palavras. Ela só ganha sentido na criação de factos objectivos - acção política - que façam a ponte entre a abstracção e a concretude, entre a subjectividade e a objectividade, entre o modelo e a prática.

O episódio do meu amigo em Trás-os-Montes mostra que não basta explicar as coisas verbalmente: os nossos interlocutores estão sempre, quer queiramos quer não, a relacionar qualquer discurso com a realidade factual da vida. Se cada um de nós não o fizer também, em vez de uma abstracção capaz de criar ideias novas mobilizadoras, caímos no enunciado vazio de “cartilhas” ideológicas extraídas e afirmadas a partir de uma aplicação mecânica dos dados da história política e da experiência própria. Isso nada tem a ver com a ferramenta crítica que Marx nos legou para nos ajudar a compreender a sociedade e a intervir na sua transformação.

Temos de ser capazes de provar aos outros, na prática, que os nossos actos e os nossos métodos de actuação estão de acordo com os grandes princípios que defendemos. Temos de mostrar que existe, desde já, nos nossos actos concretos, a capacidade de realizar - agora - algo que enunciamos como projecto. Isso depende dos métodos que utilizamos na acção. Os meus actos políticos não consistem na transformação que proponho (p.ex. a revolução socialista). Os meus actos políticos são a forma de relacionamento e o processo de luta que utilizo: eles é que constituem, no presente e em si mesmos, o modelo social que preconizo no meu projecto revolucionário.

E aqui intervêm, também, o que chamo “meios éticos”, que enquadram a nossa acção num sistema de valores. Os activistas da revolução não conseguirão resultados palpáveis se não forem fazendo, na sua vida pessoal, aquela revolução a que aspiram para todos. Porque as palavras não são mais do que uma representação do mundo, material ou subjectivo. A acção (o que fazemos, como o fazemos) é que pode realmente transformar a realidade. O pensamento permite-nos compreender (tentar compreender) a realidade e traçar caminhos para intervir nela. E o discurso, sendo essencial para comunicar com os outros, é o resultado dessas duas coisas: acção e pensamento.

A luta pela democracia tem de ser uma escola de democracia; a luta pelo socialismo tem de ser uma escola de socialismo; a luta pelo comunismo tem de ser uma escola de comunismo; e a luta pela transformação revolucionária da sociedade tem de ser, em si mesma, uma transformação de cada um dos indivíduos que a desejam, uma espécie de antecipação dessa sociedade nova por que lutamos, até que este processo consiga atingir uma massa crítica de indivíduos capazes de tomarem nas suas mãos essa transformação. Tal não será possível enquanto houver, em nós, contradições entre estes três aspectos – acção, pensamento e discurso – porque as pessoas, com toda a razão, desconfiarão das nossas palavras e não se juntarão a nós.

Mas há ainda outro aspecto curioso suscitado pelo debate que provocam estas e outras temáticas: de que serve debater ideias se as ideias debatidas não forem postas à prova por quem debate? Tanta história, tantos livros, tantos jornais e revistas, tantas discussões - a grande acumulação das ideias sobre a experiência -, de que podem valer se não forem, todas e cada uma delas, confirmadas ou infirmadas numa prática presente? Muitas vezes, o debate de ideias, condição indispensável da mudança, é feito de tal modo que não passa de uma fuga à acção política, o que é conseguido através da falácia de considerar que esse debate é, em si mesmo, acção política. Seja por academismo, seja por que se tiram de vez em quando umas horas para “debater”, este tipo de debate ocorre sem qualquer confronto dialéctico com a prática, com a acção, com a luta de classes.

Um revolucionário devia abster-se de defender ou atacar uma ideia sem produzir argumentos alicerçados na sua acção prática.

Imagem em destaque tirada pelo fotógrafo Luís Pavão.

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segunda-feira, 16 de março de 2009

Cronograma

DIA 31/05/2009 O CAPITAL, LIVRO DOIS, PRIMEIRA PARTE!!!!
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Dia 31/07/2009 SEGUNDA INTERNACIONAL
Rosa de Luxemburgo, Lenin, Trotski e demais bolcheviques....
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31/09/2009 O CAPITAL, LIVRO DOIS, SEGUNDA PARTE
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31/11/2009 Segunda Internacional parte dois: Kautsky e demais teóricos da II Internacional.
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30/01/2010 O CAPITAL, LIVRO DOIS, TERCEIRA PARTE
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30/03/2010 TEMA :Marxismo Heterodoxo - Maurício Tragtemberg
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Está é a relação tirada na última reunião. O que falta é dar conteúdo a esta estrutura, com os textos definidos. Fica em aberto para nós decidirmos. No tema II Internacional parte II entendo que podemos colocar os revisionistas ao lado do Kautsky. É isso.

terça-feira, 3 de março de 2009

Texto : " TRABALHO, “EXCLUSÃO SOCIAL” E “GLOBALIZAÇÃO”: REPENSANDO CONCEITOS" de Felipe Luiz Gomes e Silva

Texto de Felipe Luiz Gomes e Silva Publicado nos Anais do VII Congresso Argentino - Chileno de Estudos Históricos e Integração Cultural Universidade Nacional de Salta, Argentina - 25 a 27 de abril de 2007. - O objetivo deste texto é provocar reflexões sobre novos desafios e antigos dilemas presentes no mundo do trabalho e criticar, em especial, o que hoje se denomina “exclusão social”. Para tanto, serão utilizados dados secundários, pesquisas sobre o tema e matérias publicadas em jornais. Na década de 1970, intelectuais brasileiros entendiam que a “exclusão social” constituía, na realidade, um grande exército de reserva funcional ao processo de acumulação de capital mundial. Francisco de Oliveira (1975) e Lúcio Kowarick (1975), por exemplo, compreendiam a “marginalidade” como uma forma peculiar de inserção da população desempregada na divisão social do trabalho. Mas para Mike Davis (2006), os 57% dos trabalhadores da América Latina, os 40% da Ásia e os 90% da África que estão excluídos, na informalidade, compõem um vasto “proletariado informal”, o qual não pode ser chamado de lumpesinato e muito menos de exército de reserva, pois já não são reservas de nada e não há um sistema econômico capaz de absorver essa grandeza de desempregados. Para Robert Castel (1998), esses seres humanos são “inúteis para o mundo”. No entanto, para os trabalhadores e trabalhadoras que saíram às ruas de Caracas em defesa da Revolução Bolivariana, “globalização” e “exclusão” significam, na verdade, exigências do imperialismo estadunidense e imposições da burguesia local. Esses seres humanos, como afirma Castel (1998), são, de fato, “inúteis para o mundo” e excluídos do processo histórico? .

"Ensaio para uma Universidade Popular" de Daniel Caribé

Importante texto que sinaliza alguns aspectos de uma Universidade realmente popular.

Livro "Marxismo e Filosofia da Linguagem" de Mikail Bakhtin

Livro Marxismo e Filosofia da Linguagem do Linguista Russo Mikail Bakhtin