segunda-feira, 29 de março de 2010

1964, o ano que não terminou (Parte 2)

1964, o ano que não terminou (Parte 2)

Como entender a persistência desse verdadeiro Golpe de Estado Permanente cuja máquina de matar continua a todo vapor mesmo depois da guerrilha ter sido militarmente anulada? Por Paulo Arantes

[A primeira parte deste artigo pode ser lida aqui]

2.

Mas pensando bem, a enormidade de nosso psicanalista é quase uma evidência. Como a bem dizer está na cara, ninguém vê. Basta no entanto olhar para o Estado e a sua Constituição, por ela mesmo definido em 1988 como sendo Democrático e de Direito. O que poderia então restar da Ditadura? Nada, absolutamente nada, respondem em coro, entre tantas outras massas corais de contentamento, nossos cientistas políticos: depois do período épico de remoção do chamado entulho autoritário, passamos com sucesso ainda maior à consolidação de nossas instituições democráticas — entre elas a grande propriedade da terra e dos meios de comunicação de massa: quem jamais se atreveria a sequer tocar no escândalo desta última instituição? —, que de tão fortalecidas estão cada vez mais parecidas f_ditadura21com um bunker. Na intenção dos mais jovens e desmemoriados em geral, um trecho bem raso de crônica: o bloco civil-militar operante desde 1964 arrematou o conjunto da obra inaugurando a Nova República com um golpe de veludo, afastando Ulisses Guimarães da linha sucessória de Tancredo, o qual, por sua vez, havia negociado com os militares sua homologação pelo Colégio Eleitoral, de resto, legitimado pela dramaturgia cívica das Diretas. Neste passo chegamos à próxima anomalia institucional, um Congresso ordinário com poderes constituintes. Assim sendo, poderemos ser mais específicos na pergunta de fundo: O que resta da ditadura na inovadora Constituição dita Cidadã de 1988? Na opinião de um especialista em instituições coercitivas, Jorge Zaverucha, pelo menos no que se refere às cláusulas relacionadas com as Forças Armadas, Polícias Militares e Segurança Pública — convenhamos que não é pouca coisa —, a Carta outorgada pela Ditadura em 1967, bem como sua emenda de 1969, simplesmente continua em vigor. Simples assim. [17]

Porém suas conclusões não são menos dissonantes do que as repertoriadas até agora. A começar pela mais chocante de todas (se é que este efeito político ainda existe), a constitucionalização do golpe de estado, desde que liderado pelas Forças Armadas, que passaram a deter o poder soberano de se colocar legalmente fora da lei. Passado o transe da verdadeira transição para o novo tempo que foi o regime de 64, este saiu de cena, convertendo sua exceção em norma. Tampouco o poder de polícia conferido às Forças Armadas precisou esperar por um decreto sancionador de FHC em 2001. Desde 1988 estava consagrada a militarização da Segurança Pública. A Constituição já foi emendada mais de sessenta vezes. Em suma, trivializou-se. Acresce que este furor legislativo e constituinte emana de um executivo ampliado e de fronteiras nebulosas, governando rotineiramente com medidas provisórias com força de lei. Como além do mais, o artigo 142 entregou às Forças Armadas a garantia da Lei e da Ordem, compreende-se o diagnóstico fechado por nosso autor: sem dúvida, “há no Brasil lei (rule by law), mas não um Estado de Direito (rule of law)”. Num artigo escrito no auge da desconstitucionalização selvagem patrocinada pelo governo FHC, o jurista Dalmo Dallari assegurava que na melhor das hipóteses estaríamos vivendo num Estado de mera Legalidade Formal, na pior, retomando o rumo das Ditaduras constitucionais. [18]

f_ditadura26A esta altura já não será demais recordar que a expressão Ditadura Constitucional — revista do ângulo da longa duração do governo capitalista do mundo — foi empregada pela primeira vez por juristas alemães para assinalar os poderes excepcionais concedidos ao presidente do Reich pelo artigo 48 da Constituição de Weimar [19] . Desde então, a favor ou contra, tornou-se uma senha jurídica abrindo passagem para o que se poderia chamar de Era da Exceção, que se inaugurava na Europa como paradigma de governo diante do desmoronamento das democracias liberais, desidratadas pela virada fascista das burguesias nacionais que lhes sustentavam a fachada. Resta saber se uma tal Era da Exceção se encerrou com a derrota militar do fascismo. Ocorre que três anos depois de 1945, mal deflagrada a Guerra Fria, já se especulava, a propósito da emergência nuclear no horizonte do conflito — para muitos um novo capítulo da Guerra Civil Mundial, iniciada em 1917 — se não seria o caso de administrar, formal e legalmente, como se acabou de dizer, um tal estado de emergência permanente mediante uma Ditadura Constitucional. Na recomendação patética de Clinton Rossiter, um capítulo clássico na matéria: “nenhum sacrifício pela nossa democracia é demasiado grande, menos ainda o sacrifício temporário da própria democracia” [20]. Como a Bomba não veio ao mundo a passeio nem para uma curta temporada, sendo além do mais puro nonsense a idéia de um controle democrático de sua estocagem e emprego, sem falar na metástase da proliferação nuclear, não haverá demasia em sustentar a idéia de que sociedades disciplinadas pelo temor de um tal acidente absoluto passaram a viver literalmente em estado de sítio, não importa qual emergência o poder soberano de turno decida ser o caso.

Voltando à linha evolutiva traçada por Agamben: aquele deslocamento de uma medida provisória e excepcional para uma técnica de governo, baseado na indistinção crescente entre legislativo, judiciário e executivo, transpôs afinal um patamar de indeterminação entre democracia e soberania absoluta — o que acima se queria dizer evocando a terra de ninguém em que ingressamos entre Legalidade Formal e Estado de Direito. Não surpreende então que, à vista do destino das instituições coercitivas descritas há pouco e do histórico de violações que vêm acumulando no período de normalização pós-ditatorial, alguns observadores da cena latino-americana falem abertamente da vigência de um Não-Estado de Direito numa região justamente reconstitucionalizada, notando que a anomalia ainda é mais acintosa por ser esse o regime sob o qual se vira — é bem esse o termo — a massa majoritária dos chamados underprivileged [21] . Não-direito igualmente para o topo oligárquico? No limite, a formulação não faz muito sentido: como Franz Neumann demonstrou em sua análise da economia política do IIIº Reich, o grande capital pode dispensar inteiramente as formalidades da f_ditadura27racionalidade jurídica idealizada por Max Weber [22]. Olhando todavia a um só tempo para a base e o vértice da pirâmide, seria mais apropriado registrar a cristalização de um Estado Oligárquico de Direito [23]. Porém assim especificado: um regime jurídico-político caracterizado pela ampla latitude liberal-constitucional em que se movem as classes confortáveis, por um lado, enquanto sua face voltada para a ralé que o recuo da maré ditatorial deixou na praia da ordem econômica que ela destravou de vez, se distingue pela intensificação de um tratamento paternalista-punitivo [24]. Se fôssemos rastrear esse arranjo social-punitivo não seria muito custoso atinar com sua matriz. Aliás custoso até que é, tal o fascínio que ainda exerce o invólucro desenvolvimentista no qual se embrulhou a Ditadura.

De volta ao foco no bloco civil-militar de 1964 que não se desfez — menos por uma compulsão atávica das corporações militares do que inépcia das elites civis na gestão da fratura nacional, consolidada por uma transição infindável, sem periodicamente entrar em pânico diante de qualquer manifestação mais assertiva de desobediência civil, como uma greve de petroleiros ou de controladores de vôo — a democracia meramente eleitoral em que resvalamos, continua Zaverucha, se perpetua girando em falso, círculo vicioso alimentado pela ansiedade das camadas proprietárias, pois ainda não estão plenamente convencidas, como nunca estarão, de que o tratamento de choque da Ditadura apagou até a memória de que um dia houve inconformismo de verdade no país.

3.

Ao inaugurar seu primeiro mandato anunciando que encerraria de vez a Era Vargas, o professor Fernando Henrique Cardoso deveria saber pelo menos que estava arrombando uma porta aberta. Pois foi exatamente esta a missão histórica que a Ditadura se impôs, inclusive na acepção propriamente militar do termo “missão”. Erraram o alvo em agosto de 1954; reincidiram em novembro de 1955; deram outro bote em 1961, para finalmente embocar em 1964, arrematando o que a ciência social dos colegas do futuro presidente batizaria de “colapso do populismo”.

Aliás foi esse — dar o troco ao getulismo — o mandato tácito e premonitório que a endinheirada oligarquia paulista delegara à Universidade de São Paulo, por ocasião da sua fundação em 1934. No que concerne à Faculdade de Filosofia, entretanto, a encomenda não vingou. Pelo contrário, muito à revelia, nela prosperou uma visão do país decididamente antioligárquica, desviante da Moderação Conservadora, e que Antonio Candido chamaria de “radical”, redefinida como um certo inconformismo de classe média, nascido do flanco esquerdo da Revolução de 30, para se reapresentar encorpado, depois da vitória da aliança anti-fascista na Segunda Grande Guerra, na forma de uma “consciência dramática do subdesenvolvimento” a ser superado com ou sem ruptura, conforme as variações da conjuntura e das convicções predominantes, ora de classe ou mais largamente nacionais, e cujo ímpeto transformador foi precisamente o que se tratou de esmagar e erradicar em 1964. Quiseram no entanto as reviravoltas do destino que aquele antigo voto piedoso fosse enviesadamente atendido, quem diria, pelo que havia de mais avançado na sociologia de corte uspiano, que passou a atribuir o sucesso acachapante do Golpe à inconsistência de uma entidade f_ditadura24fantasmagórica chamada Populismo. Só recentemente este mito começou a ser desmontado, e redescoberto um passado de grande mobilização social das “pessoas comuns”, trabalhadores surpreendentemente sem cabresto à frente [25]. É bom insistir: foi justamente a capacidade política de organização daquelas “pessoas comuns” o alvo primordial do arrastão aterrorizante que recobriu o país a partir de 1964. E o continente. Num estudo notável, Greg Grandin, recuou essa data para 1954, marcando-a com a deposição de Jacobo Arbenz na Guatemala, estendendo a ação dissolvente do Terror Branco, desencadeado desde então, no tempo e espaço latino-americano, até os derradeiros genocídios na América Central insurgente dos anos 80. A seu ver, ao longo de mais de três décadas de Contra-Revolução — é este o nome — no continente, perseguiu-se de fato um só objetivo: extinguir “o poder formativo da política enquanto dimensão primordial do encaminhamento das expectativas humanas”. A Guerra Fria latino-americana (se fizermos questão de manter a nomenclatura consagrada) girou basicamente em torno desse eixo emancipador. [26]

Como falei em Contra-Revolução é preciso sustentar a nota. Começo por uma evocação. Até onde sei, uma das raras vozes na massa pragmático-progressista na ciência social uspiana a não se conformar com o fato consumado na transição pactuada com os vencedores, mas sobretudo a contrariar a ficção da democracia consolidada, foi a de Florestan Fernandes. Trinta anos depois do golpe, ainda teimava em dizer que a Ditadura, como constelação mais abrangente do bloco civil-militar que a sustentara, definitivamente não se dissolvera no Brasil. O que se pode constatar ainda relendo sua derradeira reflexão a respeito, enviada ao Seminário organizado por Caio Navarro de Toledo [27]. Não estou desenterrando esta opinião dissonante apenas para registrar a dissidência ilustre que nos precedeu na resposta à pergunta O que resta da Ditadura? É que sua visão daquela novíssima figura da exceção — nos termos de nossa problematização de agora — segundo o paradigma da Contra-Revolução Preventiva (aliás, quanto à terminologia mais adequada, é bom lembrar que os próprios generais golpistas nunca se enganaram a respeito) entronca numa respeitável, porém soterrada pelo esquecimento, tradição explicativa da guerra social no século passado, que uma hora próxima interessará ressuscitar, quanto mais não seja por vincular a normalidade de agora à brasa dormida do Terror Branco que varreu a América Latina por 3 décadas, como se acabou de sugerir. Refiro-me — apenas para registrar — ao estudo pioneiro de Arno Mayer, Dinâmica da contra-revolução na Europa (1870-1956) [28]. Relembro a propósito que um ano depois, em 1972, Marcuse publicava um livro com o título Contra-revolução e revolta [29], cujas páginas de abertura, escritas no rescaldo repressivo na virada dos 60 para os anos 70, principiam evocando a nova centralidade da tortura na América Latina (Pinochet e a Junta Argentina ainda não haviam entrado em cena …), as novas leis de exceção na Itália e na Alemanha, para assinalar então o paradoxo de uma contra-revolução se desenrolando a todo vapor na ausência de qualquer revolução recente ou em perspectiva. Enigma logo explicado quando começaram a pipocar as revoluções, em Portugal, no Irã, na Nicarágua etc. Está claro que Marcuse sonhava alto: sendo largamente preventiva, a contra-revolução em curso antecipava a ameaça de uma ruptura histórica cuja precondição dependia da interrupção do continuum repressivo que irmanava, na concorrência, o socialismo real ao progressismo capitalista, já que só assim a esquerda poderia se desvencilhar do fetichismo das forças produtivas.

f_ditadura25Retomando o fio. Arno Mayer estava sobretudo interessado em descartar o conceito encobridor de Totalitarismo, bem como o que chamava de eufemismo da “Guerra Fria”, cuja função era escamotear o verdadeiro conflito em curso no mundo desde que as “Potências” vitoriosas na Primeira Guerra Mundial formaram uma outra Santa Aliança sob liderança americana para esmagar a revolução européia iniciada em 1917 e que nos anos 20 já assumira as proporções de uma Guerra Civil Mundial em que se confrontavam Revolução e Contra-Revolução, para além da mera rivalidade de sistemas em disputa por uma supremacia imaginária [30]. Pois bem: a tese inovadora de Greg Grandin mencionada acima está ancorada nesta visão cujos possíveis limites não são por certo os do estereótipo. Sobretudo o clichê que costuma colocar na vasta conta da Guerra Fria e seu efeito colateral mistificador dito “guerra suja” o complexo social-punitivo que se consolidou com a generalização do estado de exceção contemporâneo na segunda metade do século XX latino-americano [31]. Concedendo o que deve ser concedido a essa fantasia de contenção ou concorrência letal entre capitalismo e comunismo, a Longa Guerra social Latino-americana, como seria mais correto dizer, em lugar de afirmar que a Guerra Fria fez isto ou aquilo neste ou naquele país, foi sim uma fase mais ampla e intensificada daquela Guerra Civil Mundial, devendo portanto ser entendida como Revolução e Contra-Revolução. Sabemos quem venceu e como. A pálida sombra de democracia que hoje passa por tal em nosso continente, segundo Grandin, é o real legado do Terror contra revolucionário e como Greg escrevia no auge do Projeto para um Novo Século Americano, não pode deixar de observar: a definição de democracia que hoje se vende mundo afora como a melhor arma na Guerra contra o Terror é ela mesma um produto do Terror. Estudando os casos do Chile e da Nicarágua, William Robinson chega a uma conclusão análoga quanto à “baixa intensidade” dessas democracias pós-terror contra-revolucionário [32]. No capítulo argentino de seu livro O estado militar na América Latina [33], Alain Rouquié, por sua vez, esbarra na mesma perplexidade a que aludimos várias vezes ao longo do presente inventário de violações e patologias positivadas: a violência sem precedentes históricos — e estamos falando da Argentina —, desencadeada pelo golpe de março de 1976, que o aproxima de uma verdadeira ruptura contra-revolucionária. Mesmo assim, como entender a persistência desse verdadeiro Golpe de Estado Permanente cuja máquina de matar continua a todo vapor mesmo depois da guerrilha ter sido militarmente anulada? Ainda mais espantoso, prossegue Rouquié, é menos a dimensão terrorista contra-revolucionária dessa última metamorfose da violência policial-militar do que a convivência sem maiores états d’âme da classe política tradicional com a demência assassina do aparelho repressivo.

OPERAÇÃO/FAVELA/RIOPortanto tem lá sua graça meio sinistra que os ideólogos do regime dito trivialmente neoliberal acenassem com o espantalho do populismo econômico dos… militares para implantar reformas desenhadas nada mais nada menos do que pela engenharia anti-Vargas do estado de exceção fabricado nos laboratórios do Plano de Ação Econômica do Governo (PAEG), por Roberto Campos e Octávio Gouvêa de Bulhões (1964-1967). Assim, começando pelo fim, ao contrário da opinião corrente tanto à direita quanto à esquerda (esquerda biograficamente falando), a celebrada Lei de Responsabilidade Fiscal — criminalizante para os entes subnacionais, “excepcionando” porém a União no que tange principalmente o serviço da dívida pública —, longe de iniciar uma nova fase das finanças públicas brasileiras, simplesmente arremata um processo iniciado pela ditadura nos anos 70, como se demonstra no breve e fulminante estudo de Gilberto Bercovici sobre a persistência do direito administrativo gerado pela tabula rasa do Golpe [34]. Do Banco Central ao Código Tributário, passando pela Reforma Administrativa de 1967, a Constituição de 1988 incorporou todo o aparelho estatal estruturado sob a Ditadura. É preciso voltar a lembrar também que o discurso da Ditadura era o da ortodoxia econômica, que o mesmo Estado delinqüente, cujos agentes executavam uma política de matança seletiva, se declarava, nas constituições outorgadas, meramente subsidiário da iniciativa privada, e que assim sendo as estatais deveriam operar não só com a eficiência das empresas privadas mas também com total autonomia em relação ao governo “oficial”, mas não em relação ao sorvedouro dos negócios privados. Vem da Ditadura a consagração da lógica empresarial como prática administrativa do setor público. A única inovação da celebrada Reforma Gerencial do Estado foi “trazer como novidade o que já estava previsto na legislação brasileira desde 1967”. Até as agências reguladoras — cuja captura é perseguida por todo tipo de formações econômicas literalmente fora da lei, numa hora de flexibilização jurídico-administrativa totalmente ad hoc, o que vem a ser a lógica mesmo da exceção — podem ser surpreendidas em seu nascedouro, o decreto-lei 200/1967, editado com base nos poderes excepcionais conferido pelo Ato Institucional nº 4.

Restauração “neoliberal” do governo de exceção por decretos administrativos? Seria trocar uma mistificação ideológica — o presumido verdadeiro fim da Era Vargas — por uma equívoco conceitual: como não houve interrupção, da Lei de Anistia ao contragolpe preventivo Collor/Mídia, passando pelo engodo de massas das Diretas, a idéia de uma Restauração não se aplica. “Neoliberal”, além de ser uma denominação oca para a reconfiguração mundial do capitalismo, dá a entender coisa pior, que a Ditadura, tudo somado, teria sido “desenvolvimentista”. Acrescentando assim, à vitória da Contra-Revolução, uma capitulação ainda mais insidiosa: do primeiro golpe, afinal, nos refizemos, à medida em que a carapaça autoritária foi se tornando um estorvo até para o big business; quando nos preparávamos para o reencontro — democrático é claro, apesar de todas as pactuações — com o nosso destino de desenvolvimento e catching up, veio um segundo golpe, se possível mais letal, pois neoliberalismo e “desmanche” são equivalentes, já que em contraste, a Ditadura não deixou de “institucionalizar”… É bom esfregar os olhos, pois a mesma narrativa prossegue: também nos recuperamos do golpe neoliberal, cuja substância terminou de derreter sob o sol da última crise, tudo somado novamente, reatamos com a normalidade dos nossos índices históricos de crescimento etc. O que foi f_ditadura23contrabandeado nesse rodeio todo — percorrido no sentido anti-horário da esquerda, digamos, histórica — é que no fundo a Ditadura foi um ato de violência contornável e cuja brutalidade se devia muito mais ao cenário de histeria da Guerra Fria. Com ou sem golpe, a modernização desenvolvimentista cedo ou tarde entraria em colapso, de sorte que a rigor o regime militar nada mais foi do que o derradeiro espasmo autoritário de um ciclo histórico que se encerraria de qualquer modo mais adiante, e não o tratamento de choque que partiu ao meio o tempo social brasileiro, contaminando pela raiz o que viria depois. Seria o caso de observar que o giro argumentativo evocado acima é ele mesmo um flagrante sintoma da sociedade “bloqueada” que a Grande Violência do século XX brasileiro nos legou: no referido reconto, refeito ora com a mão esquerda ora com a mão direita, o trauma econômico simplesmente desapareceu, ele também [35]. E quando aflora, assume invariavelmente a forma brutal da idiotia política costumeira. Por exemplo, toda vez que um sábio levanta a voz para dizer que o país carece urgentemente de um “choque de capitalismo” — e logo numa ex-colônia que nasceu sob o jugo absoluto de um nexo econômico exclusivo.

NOTAS DE RODA-PÉ

[17] Ver Jorge Zaverucha, FHC, forças armadas e polícia (Rio de Janeiro: Record, 2005). E mais particularmente, sua contribuição para este volume “Relações civil-militares: o legado autoritário na Constituição brasileira de 1988”. No que segue, acompanho de perto o seu modelo explicativo, extrapolando um pouco na maneira de conceituar os resultados de suas análises.

[18] Cf. Dalmo de Abreu Dallari “O Estado de Direito segundo Fernando Henrique Cardoso”, revista praga nº3 (São Paulo: HUCITEC, 1997)

[19] Sigo em parte a recapitulação de Giorgio Agamben, Estado de exceção (São Paulo: Boitempo, 2004).

[20] Clinton Rossiter, Constitutional Dictatorship: Crisis Government in the Modern Democracies (1948), apud Agamben, op.cit. p.22.

[21] Cf., por exemplo, Juan Méndez, Guillermo O’Donnell e Paulo Sérgio Pinheiro (orgs.), Democracia, violência e injustiça: o Não-Estado de Direito na América Latina (São Paulo: Paz e Terra, 2000). Há um tanto de inocência nesta caracterização. A começar pelo lapso tremendo — quando se pensa na consolidação da impunidade dos torturadores e “desaparecedores” — que consiste em expressar sincera frustração causada pela quebra da expectativa de que “a proteção dos direitos humanos obtidas para os dissidentes políticos no final do regime autoritário seria estendida a todos os cidadãos”. De sorte que sob a democracia ainda prevalece um sistema de práticas autoritárias herdadas, seja por legado histórico de longa duração ou sobrevivência socialmente implantada no período anterior e não elimináveis por mera vontade política. Resta a dúvida: o que vem a ser um processo de consolidação democrática “dualizado” pela enésima vez em dois campos, um “positivo”, outro “negativo”. O autor cuja deixa aproveitamos, diria que a persistência da aliança com as instituições coercitivas asseguram aos integrantes do campo positivo um hedge face aos riscos futuros implicados numa tal assimetria entre os “direitos” dos primeiros e o “destino” desafortunado dos que circulam entre os campos negativos. Dúvida que também acossa os autores da referida obra coletiva: até quando democracias sem cidadania plena para a massa pulverizada das não-elites? O que vem a ser “um Estado de Direito que pune preferencialmente os pobres e os marginalizados”? Na gramática dos Direitos Humanos, como se costuma dizer, só pode ser erro de sintaxe.

[22] Franz Neumann, Béhémoth: structure et pratique du national-socialisme (Paris: Payot, 1987). Ver a respeito o excelente capítulo de William Scheuerman, Between the Norm and the Exception (Cambridge, Mass.: MIT Press, 1994, cap.5). Embora reveladora, não se tratava de uma circunstância trivialmente excepcional, como voltou a sugerir o mesmo William Scheuerman, agora a propósito da dinâmica mundializada da acumulação: a cultuada afinidade eletiva entre o capitalismo moderno e the rule of law, que Weber enunciara como uma cláusula pétrea, talvez tenha sido não mais que um efêmero entrecruzamento histórico. Cf.William Scheuerman, Liberal Democracy and the Social Acceleration of Time (Baltimore: John Hopkins U.P., 2004, pp. 151-158).

[23] Estou empregando abusivamente — et pour cause — uma expressão original, até onde sei, de Jacques Rancière, La haine de la démocratie (Paris: La Fabrique, 2005). Não posso me estender a respeito, mas desconfio que o argumento geral do livro nos incluiria no pelotão dos inconformados com o presumido escândalo libertário da Democracia. E por isso mesmo teimaríamos na absurda convicção de que “o conteúdo real de nossa democracia reside no ‘estado de exceção’” (p.23). Daí a necessária correção de tamanho disparate: não vivemos em campos de concentração submetidos às leis de exceção de um governo biopolítico etc, pelo contrário, num Estado de Direito, só que “oligárquico”. Quer dizer num Estado em que a pressão das oligarquias — de resto, como sabemos desde Robert Mitchels, a oligarquização é uma tendência inerente a toda forma de poder organizado — vem a ser justamente limitada pelo duplo reconhecimento da soberania popular e das liberdades individuais (cf. p.81). Nos dias que correm, impossível discordar de um tal programa garantista. E no entanto, para início de conversa, as derrogações emergenciais do Direito, que vão configurando a exceção jurídica contemporânea, são cada vez mais a regra. A bem dizer, toda norma, mesmo constitucional, contém algo como uma cláusula suspensiva. Numa palavra, mesmo nesse exemplar Estado europeu de Direito, porém oligárquico, o Direito está perdendo o monopólio da regulação (cf.François Ost, Le temps du droit, Paris, Odile Jacob, 1999, cap IV). Como me pareceria um igual e simétrico disparate suspeitar desse jurista, aliás belga, de ódio enrustido e ressentido da democracia, observo que o indigitado Agamben não está dizendo coisa muito diferente desse diagnóstico do “estado de urgência” em que ingressamos com a absorção do direito pelo imperativo gestionário. E o curioso é que Rancière também não, quando reflete sobre as patologias da democracia consensual. Pois então: a “exceção” normalizada de agora se confunde, desde seu renascimento histórico, com a ampliação dos poderes governamentais desencadeada durante a Primeira Guerra Mundial, mesmo entre os não-beligerantes, como a Suíça, com a quebra da “hierarquia entre lei e regulamento, que é a base das constituições democráticas, delegando ao governo um poder legislativo que deveria ser competência exclusiva do Parlamento” (Agamben, op.cit. p.19).

[24] Para esta caracterização do novo Estado “dual”, ver, por exemplo, entre tantos outros, Loïc Wacquant, Punir os pobres (Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2001). Um Estado de Direito tão punitivo quanto o regime que o precedeu, ou engendrou, funciona como uma polícia de fronteira, no caso a fronteira mesma do direito, que deixa de sê-lo quando atravessado por uma divisória apartando amigos e inimigos. Para um estudo recente do funcionamento desse Estado “bifurcado” na periferia da cidade de São Paulo, ver Gabriel de Santis Feltran, “A fronteira do direito: política e violência na periferia de São Paulo”, artigo posteriormente incorporado em sua tese de doutoramento, Fronteiras de Tensão, Unicamp, 2008.

[25] Cf. Jorge Ferreira, (org.), O populismo e sua história (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, em particular, Daniel Aarão Reis Filho, “O colapso do colapso do populismo”. E ainda do mesmo Jorge Ferreira, O imaginário trabalhista (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005).

[26] Cf. Greg Grandin, The Last Colonial Massacre: Latin –America in the Cold War (Chicago: Chicado UP, 2004)

[27] Cf. Caio Navarro de Toledo (org.), 1964: Visões críticas do golpe (Campinas: Edunicamp 1997)

[28] Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977; edição norte-americana de 1971.

[29] Tradução francesa de 1973 pela Editora Seuil.

[30] Para a genealogia da expressão Guerra Civil Européia, e depois, Mundial, ver Luciano Canfora, A democracia: história de uma ideologia (Lisboa: Edições 70, 2007, cap.XII).

[31] O constructo Guerra Fria já foi desmontado, por exemplo, entre outros, por Mary Kaldor The Imaginary War (Cambridge: Blackwell, 1990) e Noam Chomsky, Contendo a democracia (Rio de Janeiro, São Paulo: Record, 2003).

[32] Cf. Willian Robinson, Promoting Poliarchy (Cambridge, UP, 1996).

[33] São Paulo: Alfa Omega, 1984. pp 325-326

[34] Gilberto Bercovici, “ ‘O direito constitucional passa, o direito administrativo permanece’: a persistência da estrutura administrativa de 1967”. Ver ainda Gilberto Bercovici e Luiz Fernando Massonetto, “A constituição dirigente invertida: a blindagem da constituição financeira e a agonia da constituição econômica”, Boletim de Ciências Econômicas, vol.XLIX, Coimbra, Universidade de Coimbra, 2006.

[35] A idéia de uma sociedade assombrada por um grande “bloqueio”, reforçado pelos mais diversos mecanismos de denegação e banalização dos conflitos, pode ser rastreada nos escritos recentes de Maria Rita Kehl e Vladimir Safatle. É deste último a fórmula e argumento de que a monstruosa profecia nazi da violência sem trauma acabou se cumprindo neste quarto de século de normalidade brasileira restaurada. Cf. do autor “A profecia da violência sem traumas”, OESP, 06.07.2008, p.D-6, a propósito do filme Corpo, de Rossana Foglia e Rubens Rewald, que a seu ver desenterraram a “metáfora exata desse bloqueio”.


fonte: http://passapalavra.info/?p=20710

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quarta-feira, 24 de março de 2010

PELA AUTOGESTÃO PEDAGÓGICA!

PELA AUTOGESTÃO PEDAGÓGICA!


A sociedade capitalista produz uma coisificação da consciência humana e isto é introjetado pelos indivíduos, que passam a se considerar incapazes de produzir o novo. É necessário rompermos com esta ideologia (dominante) e sua tradução nas escolas. O conhecimento passa a ser considerado uma coisa, algo exterior a nós. Ele é uma coisa que devemos procurar fora de nós, talvez nas escolas ou nos meios de comunicação de massas. Para termos o acesso ao “conhecimento” precisamos pedi-lo à algum professor, o saber incorporado em um indivíduo.
Mas a verdade é diferente, pois o saber se desenvolve na práxis, o verdadeiro ponto de partida para uma real apreensão da realidade. As crianças aprendem a falar na sua relação com o mundo, nas suas relações sociais, ou seja, não é na escola que isto ocorre. Nas sociedades pré-capitalistas (pré-históricas, escravista, feudal, etc.) não haviam escolas e as pessoas aprendiam o que era necessário para a sua sobrevivência sem ter que ir à um lugar chamado escola. É na moderna sociedade capitalista que surge a escola e a figura do professor, juntamente com a ideologia de que a “aprendizagem” só pode ocorrer nesta instituição. Por que ocorre isto? Isto ocorre devido ao fato de que mudaram-se as necessidades sociais, pois o modo de produção capitalista precisa de expandir o “conhecimento” e, ao mesmo tempo, controlá-lo para que ele não ultrapasse os limites por ele estabelecido. Assim, torna-se necessário criar uma instituição para desenvolver/controlar o saber. Tais instituições são as escolas, que são controladas pelo estado, direta ou indiretamente (legislação sobre educação, determinação de programas e grades curriculares, burocracia, etc.).
Entretanto, em uma sociedade autogerida, o saber poderá se desenvolver sem entraves e cada indivíduo autonomamente, no interior das relações sociais e através da práxis, poderá desenvolver suas potencialidades, inclusive a produção intelectual. Assim, a pedagogia burocrática será substituída pela autogestão pedagógica. Mas o que fazemos enquanto isso? Nas escolas devemos lutar pela autogestão pedagógica e neste processo de luta, nesta práxis, iremos desenvolver nossa consciência e realizarmos a autogestão pedagógica efetivamente. Assim, quanto mais tivermos interessados, mais iremos compreender a realidade e nos interessarmos em compreendê-la. Este interesse é o ponto de partida para um maior desenvolvimento de nossa consciência e é através dele que iremos nos jogar em leituras, em estudos, daquilo que nos interessa e não daquilo que é imposto pela escola.
O que é a autogestão pedagógica? Podemos concebê-la de duas formas: na escola e fora dela. Na escola, ela é um objetivo, um projeto, que consiste em transformar a relação professor-aluno. O professor adotaria uma pedagogia não-diretiva, ou seja, não seria mais um diretor da aprendizagem dos alunos e sim um orientador. Os alunos realizariam a autogestão pedagógica, ou seja, decidiriam o que e como aprender. Fora da escola, a autogestão pedagógica ocorre na práxis cotidiana, na decisão livre e espontânea do indivíduo de ler, pensar e produzir. Se na escola a autogestão pedagógica pode ser barrada pela burocracia, fora da escola é impossível ser impedida. Por conseguinte, a luta pela autogestão pedagógica na escola é necessária e a autogestão pedagógica fora da escola pode ser uma realidade e isto só depende de nós. Esta última, inclusive, é fundamental para que a primeira se concretize.

* Este texto fez parte da tese estudantil do Núcleo Estudantil do MSL** (atual Movimento Autogestionário) para o Congresso da UNE, União Nacional do Estudantes, em 1995, emb Brasília/DF.
** MSL: Movimento Socialista Libertário

fonte: http://movaut.ning.com/page/pela-autogestao-pedagogica

Reflexões em tempos de gripe permanente (3ª Parte): o regresso dos muros

Reflexões em tempos de gripe permanente (3ª Parte): o regresso dos muros

Aquando da manifestação do 1º de Maio de 2009, deixando exprimir um sentimento de perturbação, o líder da CGT teria confiado a um notável socialista: «Estamos perante um muro!» Por Charles Reeve.

A crise dos partidos e dos sindicatos não encontra as suas raízes nas vicissitudes do jogo institucional, mas nos obstáculos que o sistema capitalista levanta ao seu funcionamento. Assim, a retracção, mesmo o quase desaparecimento, do espaço de reforma no capitalismo contemporâneo enfraquece o papel integrador dos sindicatos, paralisa os burocratas. Na sua corrida para o lucro, o capitalismo deve constantemente ligar salários e produtividade do trabalho. Num período de baixa da rentabilidade do capital, o aumento da produtividade revela-se insuficiente e a manutenção dos salários pesa nos lucros (1). Os «parceiros sociais» devem assim caucionar o aumento da exploração através de um decréscimo dos salários e do incremento da intensidade do trabalho (a produtividade). Neste reformismo ao contrário, o objectivo para os sindicatos é o de ceder o menos possível.

Consciente das consequências desta evolução para a manutenção da paz social em período de crise, o poder político procura compensar a perda de representatividade dos sindicatos através de um aumento da ajuda do Estado. É o sentido da recente lei de 20 de Agosto de 2009, sobre «a representatividade, o desenvolvimento do diálogo social e o financiamento do sindicalismo», assinada pelos sindicatos (entre os quais a CGT) e o patronato e elogiado por este último como uma «revolução silenciosa das relações sociais». Neutralizando ainda mais a função do delegado sindical, a lei acentua a dependência dos sindicatos perante o Estado (2). Ora, o remédio agrava o estado dos doentes, como se pode confirmar pela simpatia de que beneficia o jovem sindicato SUD [Solidaires Unis et Démocratiques] junto dos assalariados combativos, pelos debates no seio da CGT e pela participação de uma parte da sua base nas acções ilegais do Verão de 2009.

Não é porque funcionassem mal ou mesmo porque não se adaptassem à radicalização das lutas que as instituições da esquerda (partidos e sindicatos) estão em crise. Estão-no, pelo contrário, porque elas funcionam de acordo com os princípios do compromisso e da reforma. Tendo modificado as regras do jogo, o capitalismo impõe assim o empobrecimento da grande massa dos assalariados sem contrapartida negociável.

Se nos recusamos a ver o esgotamento do papel reformista das organizações da esquerda, então a radicalização das lutas dos últimos meses em França (sequestros, acções directas e ameaças de destruição das empresas) torna-se inteligível. Que será vista como a expressão de uma raiva espontânea, reflexo de uma situação injusta. «Actos cujo alcance, mais do que simbólico, vos ultrapassam» (3). Alguns, reconhecendo que estas acções directas encontram a oposição das forças políticas e sindicais, espantam-se contudo com o facto de esta radicalização não encontrar uma expressão política (4). Encontramos aqui toda a desconfiança perante qualquer acção espontânea, não canalizada para as instituições. Estas lutas deveriam ter como objectivo influenciar os partidos e os sindicatos ultrapassados? «A ausência de tradução política das aspirações populares suscita um risco: um recurso cada vez mais alargado a uma violência sem perspectivas mais entendida como o único antídoto de um mundo injusto e opressivo» (5).

Esta violência não tem realmente perspectivas? Estas lutas são a expressão de um desespero? E se há desespero, o que significa este último?

Desde há anos, os trabalhadores estão, também eles, perante um muro. Descobrem que o realismo dos sindicatos desemboca em desbaratar as «conquistas sociais», leva as lutas à derrota, desagrega a força colectiva e gera resignação. Sabem que a relação de forças se lhes tornou desfavorável face à arrogância do patronato. A reestruturação recente do capitalismo perturbou as condições de trabalho e os mecanismos de integração, as separações próprias da divisão do trabalho foram reforçadas no sentido de uma maior individualização e atomização. A meritocracia, o culto da competência, a individualização dos salários, o desmantelamento do trabalho de equipa, a precarização dos estatutos, a flexibilidade dos postos de trabalho, o reforço das hierarquias, tudo caminha lado a lado com a destruição das formas de socialização existentes. Estas, tendo outrora representado um papel na integração dos assalariados no sistema, tinham também carregado valores de solidariedade, de cooperação, de entreajuda e de respeito mútuo, em suma o que tornava quase suportável o quotidiano do assalariado. A perda de representatividade do sindicalismo integra-se igualmente nesta evolução, com a substituição do diálogo sindical por formas de coerção individualizada. Assim, no capitalismo sedento de um rápido aumento da taxa de exploração, o antagonismo, a desconfiança, a concorrência entre assalariados, tornaram-se valores essenciais. «Outrora o trabalho era frequentemente um lugar de socialização, agora torna-se frequentemente uma escola de desconfiança» (6).

Face à violência da reestruturação, tendo perdido confiança nos seus «representantes» históricos, a maioria dos trabalhadores fechou-se sobre si mesmo. A quietude da capitulação foi, não obstante, perturbada por dois comportamentos fora da norma. Houve, por um lado, a radicalização de uma minoria, determinada em fazer pagar bem caro a destruição da sua vida, evocando os valores da igualdade e de justiça social contra os privilégios da burguesia. Menos previsível foi a escolha auto-destrutiva de alguns, fechados sobre si mesmos e incapazes de retomar uma sociabilidade de luta. O capitalismo sempre levou os trabalhadores a pôr um termo à miséria das suas vidas. O que hoje em dia é gritante é o elo directo entre o suicídio e a desorganização violenta das condições de trabalho, mesmo entre os quadros e os técnicos. Estes sectores alienados pelas sirenes da modernidade e pela promoção social pensaram durante muito tempo estarem protegidos, enquanto o arbitrário patronal se centrava nos trabalhadores. À raiva colectiva dos que se radicalizam responde o sacrifício individual dos que se suicidam. Mas ameaçar destruir a fábrica e suicidar-se são actos que se opõem ainda que possam ter as mesmas causas, por entre as quais figura, manifestamente, a desagregação da confiança no sistema.

Quando a CGT avança o slogan produtivista: «lutar pela reconquista industrial», faz eco aos encantos da «retoma» dos apparatchiks da propaganda económica. Ora, o que menos podemos dizer é que a frase entusiasma pouco a classe trabalhadora das antigas fortalezas do sindicalismo. Assim, a 23 de Outubro de 2009, a direcção do grupo PSA Peugeot-Citroën anuncia que o plano de saídas voluntárias lançado em França pela empresa recolhera 5200 adesões enquanto visava inicialmente um objectivo de 3500 trabalhadores (7). Como, com efeito, «reconquistar» um sistema contra o qual somos incapazes de nos bater? E por que é necessário reconquistar o que se afunda? A urgência, a oportunidade, não seria a de colocar em questão a lógica desumana do modelo industrial?

No teatro de Ibsen, as personagens vêem-se forçadas a renunciar aos valores sobre os quais haviam construído a sua vida, devem inventar um outro caminho, traçar uma saída no impasse da alienação e da mentira social. Os trabalhadores estão hoje colocados num cenário semelhante. Devem abandonar a ideia de compromisso com os capitalistas que guiou a sua sobrevivência durante gerações. Devem interrogar-se sobre o papel da organização que lhes parecia estar mais próximo – o sindicato – ou submeterem-se então a um terrível encadeamento de provas.

O período actual é caracterizado por rupturas irreversíveis que impõem escolhas vitais e novas. Vivemos a mais forte crise do sistema capitalista desde a Segunda Guerra mundial. Depois do desaparecimento do capitalismo de Estado, são os programas reformistas da velha esquerda que se afundam. Numa sociedade rica, milhões de pessoas vêem as suas existências devastadas, a vida social é ameaçada em regiões inteiras. O diálogo entre «parceiros sociais» parece ridículo. Os proletários são assim confrontados com o desafio de conceber uma outra sociedade reapropriando-se da velha fórmula «do passado façamos tábua rasa!». A maioria encontra-se paralisada pela amplitude da tarefa, enquanto uma minoria combativa mas desorganizada procura recriar uma relação de força. Há nas recentes acções ilegais mais do que o único «propósito de se fazer ouvir». «Vocês não querem ouvir-nos, vão temer-nos!», diziam alguns (8). Quando a acção ultrapassa os limites do antigo «realismo», é porque os contornos da consciência se mexeram. E é a esta constatação desencantada da obsolência da antiga acção sindical que se chama «o desespero».

Certamente, as lutas actuais não abrem perspectivas. Isto traduz em parte a dificuldade de nos desembaraçarmos de um passado podre que não acaba de acabar. E ainda assim! Assalariados alienados da cultura sindical sobre o respeito do utensílio de trabalho ameaçam fazer destruir as empresas, eis o que traduz um abanão das consciências. Há, nestas acções, uma forma de se demarcar do interesse «geral» capitalista (que subentendia este respeito), uma chamada de atenção também para as relações sociais de exploração. Ameaçados de serem apagados como mercadoria-força de trabalho, os trabalhadores ameaçam por sua vez destruir os meios de produção, propriedade do capitalista. Deixam de ocupar os lugares de trabalho, não tentam retomar a produção. Seguramente porque existe uma dúvida relativamente ao regresso à situação precedente. É também porque a divisão capitalista do trabalho proíbe aos trabalhadores a possibilidade de encararem a sua sobrevivência fora da economia global. Os projectos «auto-gestionários», se é que podem aparecer como soluções locais de sobrevivência (9), encontram-se claramente abaixo das exigências do período.

A crise do capitalismo não é sinal do seu desabamento. É a sua forma de regulação, o mecanismo que restabelece a rentabilidade do capital ao preço de enorme sofrimento humano. É a condição da retoma do investimento e do relançar dos lucros, o regresso ao mesmo, mas pior! O empobrecimento social chega hoje, após um longo período de «prosperidade» fundado nas despesas públicas e na especulação. Ora, «melhor se vive, mais as privações se tornam intoleráveis, mais se procura salvaguardar o seu modo de vida. É neste sentido que uma diminuição da “abundância” pode ser suficiente para fazer despedaçar o consenso social» (10). E é pondo a olho nu a natureza irracional e desequilibrada do capitalismo que a crise pode fazer ressurgir o desejo de agir.

O ímpeto das lutas radicais do Verão de 2009 em França quebrou-se, enquanto prossegue a desintegração social, e os privilégios de classe, a corrupção e a prepotência se propagam. No entanto, nada permite concluir que tudo está jogado, que a derrota se impõe.

Concessões, compromissos, sacrifícios ou fechamentos egoístas são atitudes que não protegem. Hoje, mais do que nunca, esta escolha da facilidade é insignificante face ao rolo compressor do sistema. Abre a porta à desmoralização social, à emergência da barbárie autoritária. O outro futuro dependerá do relançamento e alargamento da acção colectiva retomando os valores emancipadores, a capacidade de compreender e de assumir de facto o sentido desta radicalização.
Paris, Janeiro de 2010.

Notas

(1) Paul Mattick, Le Jour de l’addition, L’Insomniaque, Maio de 2009.

(2) «Dérives du syndicalisme, ou syndicalisme à la dérive ?…» [«Derivas do sindicalismo, ou sindicalismo à deriva?…»], À contre-courant, Agosto-Setembro de 2009.

(3) L’Humanité, editorial, 31 de Julho de 2009.

(4) Anne-Cécile Robert, «Quand le jeu politique asphyxie le mouvement social» [«Quando o jogo político asfixia o movimento social»], Le Monde Diplomatique, Maio de 2009.

(5) Anne-Cécile Robert, ibid.

(6) Gildas Renou, «Les laboratoires de l’antipathie. A propos des suicides à France Télécom» [«Os laboratórios da antipatia. A propósito dos suicídios na France Telecom»], revista do MAUSS, Setembro de 2009; site da revista Carré Rouge (http://www.carre-rouge.org), Novembro de 2009.

(7) Le Monde, 25-26 Outubro de 2009.

(8) Slogan inscrito, no Verão de 2009, nos muros da sede da EDF [Electricidade de França] aquando de uma ocupação.

(9) Foi o caso na Argentina depois de 2002. Hoje, em Espanha – onde a taxa de desemprego é particularmente elevada –, o número de pequenas empresas em «autogestão» está em grande expansão. («La crisis económica resucita la “toma” de fábricas en España», Público, Madrid, 25 de Outubro de 2009).

(10) Paul Mattick, Marx et Keynes, Gallimard, p.401.


fonte: http://passapalavra.info/?p=20759

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Fórum Social Urbano: a luta por uma cidade popular

Fórum Social Urbano: a luta por uma cidade popular

Em contraposição ao Fórum Urbano Mundial, organizado pela ONU no Rio de Janeiro, um conjunto de movimentos sociais do estado promove um Fórum Social Urbano: como projetar, articulando as lutas, uma cidade com mais justiça social? Por Igor Pantoja

forum-1Em tempos de jargões como planejamento estratégico, marketing urbano e cidades globais, diversos movimentos sociais do Rio de Janeiro criam o I Fórum Social Urbano (22 a 26 de março) [ver mais informação aqui], em conjunto com outros segmentos da sociedade civil, como sindicatos, universidades e ONGs. Trata-de de uma construção, portanto, coletiva, diversa, heterogênea e não referida no mercado. Diferentes atividades, com diversas temáticas, objetivos, questões e experiências unidas em torno dos objetivos de justiça social e do que podemos chamar mais legitimamente de cidadania, da perspectiva daqueles que geralmente não têm voz na cidade. Trata-se de uma conquista, um dos resultados dos processos de resistência nos quais estes movimentos têm se enredado, em constante confronto com os agentes capitalistas, sejam eles do Estado ou da iniciativa privada. O Fórum é um grande espaço construído coletivamente com base no reconhecimento mútuo entre movimentos sociais e organizações da sociedade civil, de contraposição ao Fórum Urbano Mundial, organizado pela ONU no Rio de Janeiro no mesmo período.

As perspectivas de uma crítica contemporânea do planejamento urbano como algo que engessava ou burocratizava a vida na cidade, muito frequente nos últimos 30 anos, vêm sendo apropriadas pelos capitalistas (no mesmo período) no sentido de estimular a fragmentação da vida urbana e o aprofundamento das desigualdades, já que as soluções passam a se dar pelo mercado – muitas vezes via Estado. As soluções participativas (mais valeria dizer participatórias) se tornam um modelo a ser seguido, com cartilhas de como “implementar” a participação (geralmente inventada pelos agentes público-privados, ou ONGs) e se mostram inócuas quando o objetivo é estabelecer maior atuação do cidadão sobre a cidade, por ele praticada.

forum-2As críticas à atuação do Estado passam a servir de salvo-conduto às ações de mercado. Os dilemas dos planos estratégicos e do marketing urbano são como conciliar da melhor maneira os interesses especificamente capitalistas com as aspirações da sociedade civil-empresarial, e é a partir deste pressuposto que o Fórum Urbano Mundial, organizado pela ONU, está sendo construído. O Fórum Social Urbano nasce também como uma resposta a isso, como uma possibilidade de autonomia da organização coletiva, fora dos modelos referidos ou das parcerias público-privadas que têm produzido nossas cidades.

Revitalização de áreas portuárias e centrais, Mega-eventos e globalização das cidades, Justiça ambiental e Criminalização da pobreza são os eixos de estruturação dos debates do Fórum Social Urbano, e não foram escolhidos à toa. São estas as principais referências das consultorias e instituições de financiamento multilaterais para as cidades, os pontos principais da construção de cidades contemporâneas – ao menos daquelas que se pretendem globais, como o Rio de Janeiro ou São Paulo. Por isso creio que a construção de um debate sobre estes temas a partir da perspectiva dos movimentos sociais é um esforço criativo, do qual surge uma voz polifônica contra o “pensamento único” que tem se instalado na gestão urbana contemporânea. Pode significar a valorização da cidade a partir dos usos de seus habitantes, da luta pela cidade-uso em detrimento da cidade-mercadoria. Pela disputa do sentido de cada um destes termos no debate.

É, portanto, a partir da experiência urbana, com todos seus dramas e vicissitudes que os movimentos, organizações e indivíduos que constróem este Fórum Social Urbano o fazem: a partir das ocupações sem-teto, das populações moradoras de favelas, dos coletivos pelo direito à comunicação, das populações tradicionais em processo de expulsão de suas áreas (como a zona portuária), dos pobres criminalizados que lutam por uma cidade com maior justiça social. Múltiplas realidades em contato para produzir reflexões e ações conjuntamente, para fortalecer as lutas locais e oferecer uma perspectiva popular para o Rio de Janeiro.

Atenção!

Movimentos sociais e organizações do Rio de Janeiro convidam todos e todas para o I Fórum Social Urbano, que ocorrerá do dia 22 ao dia 26 de março no Espaço da Ação da Cidadania, na Zona Portuária do Rio de Janeiro. O evento ocorrerá em paralelo ao Fórum Urbano Mundial, promovido pela ONU e pelo governo, e é uma contraposição às propostas neoliberais para as cidades. Veja aqui o blog do evento.


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terça-feira, 23 de março de 2010

O que há de autonomia na luta dos professores paulistas?

O que há de autonomia na luta dos professores paulistas?

A Apeoesp possui uma estrutura gigantesca e um orçamento que suplanta os 40 milhões anuais. Nesse quadro as direções sindicais não possuem interesse que o sindicato seja de base, aberto e participativo. Por Ronan

Em termos gerais, a categoria dos professores do Estado de São Paulo é caracterizada pela apatia política. Há uma aceitação do modelo administrativo imposto pelo governo, inclusive com a defesa enfática das hierarquias internas aos prédios escolares. Mesmo nos milhares de casos paradoxais de autoridades educacionais ignorantes – paradoxal porque chefes educacionais deveriam saber mais que seus subordinados - não há uma contestação do papel dos chefes no interior das escolas e no sistema em geral.

ronan-5O governo não tem o que reclamar da categoria na questão do cumprimento do dever disciplinar. Ao contrário! O que existe é uma pressão de setores significativos por mais disciplina. Entretanto, está descontente com o rendimento educacional dos docentes e toda a reforma do ensino paulista vem no sentido de tornar o trabalho mais produtivo. Para isso, apostou na padronização, taylorização, do trabalho e intensificação do mesmo. Os professores, hoje, além de cumprirem as regras disciplinares, estão trabalhando mais dentro do horário formal, porque trabalham mais intensivamente, e trabalhando mais horas fora do período contratado.

Temos um contexto em que o governo está disposto a pagar mais para os professores, mas desde que haja um aumento no rendimento, uma espécie de participação nos lucros escolares. Até bonificações para os alunos estudarem mais já foram cogitadas. A gestão atual se fundamenta em avaliações, índices e outros critérios que mensuram a produtividades das escolas e dos professores em coletivo, além do nível de conhecimento individual. Um grande número de professores - vítimas da precária formação que é comum no país, ou mesmo preguiçosos ou desiludidos ou desinteressados em geral - ficaram seriamente ameaçados de não poderem trabalhar ou não terem aumento, uma vez que seus desempenhos nas avaliações ficaram aquém do esperado. O governo não pretende dar aumento para o professor efetivo que não for aprovado entre os 20% melhores, nem dar trabalho ao não concursado reprovado. A avaliação de professores temporários realizada no final de 2009 revelou 88 mil professores reprovados, isso porque se considerou apto quem acertou um mínimo de 32 questões de uma prova com 80 – 96 mil foram aprovados.

Chegou-se a um ponto dramático para professores que, num passado lembrado com nostalgia, ganhavam 10 salários-mínimos por mês, eram vestais da classe média e desfrutavam de certo status. As reações a esse contexto de aumentos salariais somente aos 20% aprovados, bônus relacionado à produtividade e desemprego para os não efetivos reprovados seguem o padrão implantado pelo sindicato, responsável por gerir a luta dos professores. Trata-se, antes de tudo, de uma reação pelo salário e pelo emprego. Essas lutas são hegemonicamente praticadas de forma coletiva e passiva. Claro que no dia-a-dia há as sabotagens individuais: faltas ao trabalho, enrolações, licenças médicas. Mas as lutas coletivas são praticamente cem por cento controladas pelo sindicato, que as manobra de acordo com seu interesse.

A Apeoesp, sindicato dos professores do ensino oficial do Estado de São Paulo, possui uma estrutura gigantesca e um orçamento que suplanta os 40 milhões anuais. Há largo espaço para dirigentes que pretendam viver corruptamente, forjando notas para embolsar recursos, assim como, há também ampla possibilidade de alavancar uma carreira política. Por isso, o sindicato é disputado de forma férrea por correntes variadas. Nesse quadro, obviamente, as direções sindicais não possuem interesse que o sindicato seja de base, aberto e participativo.

ronan-9Quem olha uma foto da manifestação que correu essa semana e compara com outras de 10 ou 20 anos atrás vai ficar surpreso com a mesmice e previsibilidade do ato. Pode até ensaiar uma acusação de falta de criatividade estética dos professores: sempre as mesmas faixas, o mesmo nariz de palhaço, as mesmas plaquinhas e bandeirinhas, sempre alguém com a bandeira do Brasil e uns caras carregando caixão como se fosse o suprassumo da novidade. Essa mesmice é a expressão estética da mesmice organizacional. Os dirigentes sindicais implantaram um modelo de gestão da luta que não favorece e faz morrer as iniciativas singulares e de base.

1. O primeiro ponto é o silêncio. Há uma prática intencional de não discussão sobre qualquer assunto que seja, de forma que somente os dirigentes tenham já de antemão um raciocínio formulado sobre as coisas e peguem sempre de surpresa os professores quando das campanhas por esta ou aquela paralisação ou ato. Uma greve não é antecipada com discussões e debates. Ao contrário, se convoca os professores a seguirem os dirigentes que possuem por si as linhas de crítica e enquadramento dos fatos. Nesse caso pode ser incluído o fato de o sindicato não transmitir on line as reuniões, atos e assembleias, o que daria maior visibilidade aos fatos e formas de atuação.

2. Evitar contato entre professores, alunos e comunidade. É o modelo de greve usado, com paralisação das aulas e professores em casa. Nesse caso, não há contato cotidiano entre os professores nos períodos de luta coletiva, não há politização do ambiente escolar e politização dos alunos, não se coloca em causa a disciplina interna, o que ocorreria em discussões ou participações de alunos e pais. Ficam todos em casa, sem pensar, sem discutir, esperando as ordens do sindicato.

3. Redução da discussão sobre educação ao salário. O sindicato resume toda a discussão sobre educação ao fator salarial. Não há discussão sobre modelo educacional, outras metodologias, outros projetos. Cria-se no meio do professorado uma passividade intelectual, sem que a categoria seja potencializada para desenvolver um projeto seu que pudesse colocar frente a frente com os projetos do governo. As posições são sempre de segunda mão, limitando-se a criticar o que o governo oferece.

4. Não são estimuladas discussões nas escolas ou em assembleias por regiões. Os debates e encontros, quando os há, embora haja professores no Estado todo, são sempre centralizados na capital, o que dá maior poder aos grupos que controlam o orçamento sindical e podem se deslocar. Ainda, cria-se impecilhos a uma participação mais intensiva.

5. A relação com a imprensa é centralizada, procurando que somente os dirigentes tomem a palavra. Não há incentivos para criação de sites e blogs regionais e/ou locais, assim como, não há espaço no site central para o debate e publicação livre de ideias. Até mesmo os panfletos entregues nas ruas e/ou para os pais e alunos são escritos pela sede central e emitidos às sedes regionais, as sub-sedes.

6. Há uma aposta no emburrecimento do professor. Não se organiza cursos, debates, discussões para que os professores desenvolvam uma linha de pensamento. O site do sindicato é extremamente pobre, carente de textos, de matérias, de vídeos, de análises. Bom exemplo é saber que quando se trata de enfrentar intelectualmente o governo, o sindicato recorre aos professores doutores das universidades, como se esses fossem os únicos compatíveis para tal. O professorado, despojado pelo governo do controle sobre a sua aula, é despojado pelo sindicato da sua possibilidade de crítica. Nisso o sindicato é auxiliado pela imprensa, que só publica textos do mesmo, do governo ou de professores doutores das universidades.

7. Embora as assembleias sejam sempre às 15:00, na Avenida Paulista, os dirigentes sindicais e lideranças das variadas correntes políticas internas se encontram antecipadamente, no turno matutino, para reuniões em que fazem uma prévia do que discutirão em público, quais apontamentos terão para a massa de professores etc. Muitas vezes, no início de uma assembleia se adianta o que irá acontecer sem que sequer tenha havido alguma votação por parte do professorado.

ronan-108. Utiliza-se um enorme carro de som de grande potência que inibe e silencia qualquer ação fora do programado. Diante do volume ensurdecedor do carro controlado pelo sindicato, nenhum grupo de professores em particular possui possibilidade de intervir junto aos demais colegas. É silenciar pelo falar mais alto. O acesso ao caminhão é controlado, sendo que muitos são proibidos de falar, ou é dado tempo exíguo, ou mesmo se corta o som enquanto o sujeito estiver falando, de forma que ninguém o ouça.

9. Centraliza-se todos os atos na capital. Embora os professores tenham problemas com as chefias locais, tanto das diretorias regionais como das escolas, e embora muitas autoridades educacionais e o próprio governador vivam sempre circulando pelo interior, a direção sindical não estimula atos que saiam de seu controle. Para isso, só reconhecem os atos feitos na capital. Manifestações fora desse quadro, mesmo com situações graves de professores espancados por autoridades ou coisas do gênero, não são sequer divulgadas no site do sindicato.

10. Os grupos de professores independentes são tratados com ferocidade, sujeitos a processos dos dirigentes sindicais, sujeitos a agressões, impedidos de falar, boicotados no envio de recursos, além de uma campanha moral de difamação, ridicularização e infantilização. Nesse quesito, os fatos da greve de 2000, em que professores exonerados e processados foram abandonados pelo sindicato, que sequer promove a memória do ocorrido e de haver profissionais seriamente afetados, é exemplo nítido.

11. Embora se possa participar da votação de algumas bandeiras políticas, a gestão dos vultosos recursos econômicos não é discutida com a categoria. Há uma preocupação em se evitar uma verdadeira prestação de contas e uma verdadeira discussão coletiva sobre o destino das verbas.

ronan-8Nesse contexto, de uma categoria apática esmagada por um sindicato que promove mais passividade, mais apatia e mais controle, e que contribui em termos estruturais com a manutenção das hieraquias, do poder e da exploração, parece mesmo assustador que haja alguma coisa que consiga respirar no meio. Entretanto, nesta greve de 2010, fora dos holofotes centrais, temos acompanhado o pipocar de atos em vários cantos em que minorias de professores protestam ativamente contra a passagem do governador José Serra. Foram atos em Matão, Francisco Morato, Bauru, São Paulo… Eles têm sofrido com policiais e seguranças que os impedem de se aproximar do governador e se manifestar, sofrido agressões dos seguranças, ofensas de oportunistas, ameaças de prisão do policiais presentes. Sofrido o que há em lutas em que se existe realmente. Eles são a centelha de autonomia na luta dos professores paulistas. Continuarão ativos depois dessa fase?

Fotografias (estas e muitas mais) veja aqui.

fonte: http://passapalavra.info/?p=20648

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sábado, 20 de março de 2010

A autogestão como alternativa para os trabalhadores

A autogestão como alternativa para os trabalhadores



As discussões que em tempos estiveram no centro do movimento trabalhista sobre o controlo e a autogestão pelos trabalhadores estão agora novamente a ser retomadas, tanto por ativistas britânicos como a nível internacional. Por Chris Kane

As discussões que em tempos estiveram no centro do movimento trabalhista sobre o controlo e a autogestão pelos trabalhadores estão agora novamente a ser retomadas, tanto por ativistas britânicos como a nível internacional. A rede de comunistas que produz o The Commune é das mais determinadas defensoras da auto-gestão entre a esquerda radical na Inglaterra e no País de Gales, e tem encontrado, na maior parte, uma resposta positiva. No entanto, ainda existe muita confusão acerca da autogestão, inclusive um forte antagonismo de muitos que se consideram socialistas ou marxistas. Parte da explicação para estas atitudes pode ser encontrada em conceitos errados tanto sobre aquilo que é o capitalismo como sobre a alternativa comunista.

O método do marxismo crítico

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Marx, ao contrário de muitos dos seus seguidores, estava preparado para repensar as suas opiniões tendo em conta os acontecimentos históricos, adoptando o ponto alto da última revolução como ponto de partida da seguinte; em contraste com aqueles que advogam o socialismo-vindo-de-cima ele via as massas como as criadoras da história e achava que devíamos aprender com elas. Foram as massas em Paris que criaram a Comuna, não Blanqui ou Marx, da mesma forma que foram os trabalhadores que criaram os sovietes na Rússia, não Lenin ou Trotsky. Por mais de meio século a classe trabalhadora pôs sempre a autogestão na ordem do dia, com especial intensidade nos conflitos no Bloco de Leste, onde vários dissidentes marxistas tentaram conceptualizar um comunismo humanista e emancipatório como alternativa tanto aos regimes de ‘Estado socialista’ como ao capitalismo privado. Desde a “queda do comunismo” tem havido um esforço concertado para arquivar esta experiência no cofre da História, com o capitalismo global a declarar que ‘não existe alternativa’. Se a nossa geração quer ter sucesso em renovar e atualizar o comunismo para o século XXI, então temos que adoptar estes pontos altos anteriores como nossos pontos de partida.

A natureza desumanizante e exploradora da sociedade capitalista não é óbvia para a maioria das pessoas por mais dura que seja na verdade - o capitalismo é, e parece que será sempre, o modo de vida normal. Tal como no filme A Matriz [em Portugal, Matrix] a realidade da sociedade está dissimulada. Marx descreveu o ‘fetichismo das mercadorias’. Chama-se fetiche um objeto ao qual são atribuídos poderes que este não tem, tal como ídolos religiosos criados por humanos que depois permitem ser governados pelas suas próprias criações mitológicas. Vivemos num mundo onde cada vez mais aspectos da nossa vida são mercantilizados; a fabricação das mercadorias com o fim de gerarem lucros é universal. Estas mercadorias assumem características fetichistas ganhando vida própria, separadas dos trabalhadores que as criaram. O mercado passa então a controlar-nos como uma entidade independente cuja liberdade tem de ser garantida.

Estas formas de fetichismo identificadas por Marx não são uma ilusão: no capitalismo as relações entre as pessoas aparentam ser relações entre objetos. Este fetiche até tem levado muitos socialistas a verem o mercado como sendo crucial, prestando relativamente menos atenção às relações sociais de produção. Já experimentámos vários remédios para resolver este problema tais como o planeamento e a regulação mas todos falharam porque acreditámos sempre que o Estado pode controlar o mercado. Ao contrário, em vez de o Estado controlar o capital, é o capital que acaba sempre por dominar o Estado.

O beco sem saída dos conceitos antigos

Lenin na Tribuna de Alexander Mikhailovich Gerasimov

Lenin na Tribuna de Alexander Mikhailovich Gerasimov

O antagonismo em relação à auto-gestão por parte daqueles que se dizem socialistas e comunistas revela uma profunda antipatia pelo próprio conceito de revolução social. Apesar do slogan muitas vezes usado de ‘um outro mundo é possível’, o retrocesso no movimento trabalhista é tão grande que estamos presos às políticas do possível - como melhor lutar dentro do capitalismo. Poucos genuinamente consideram de que modo a sua atividade está ligada à criação de uma nova sociedade, ou sequer se o está. Entre as estratégias que existem, a que domina todas as outras é do caminho parlamentar para o socialismo. Sintomático disto é o programa do Partido Comunista Britânico, que propõe o Caminho Britânico para o Socialismo que consiste na busca da criação de “um novo tipo de governo de esquerda, com fortes bases numa maioria constituída pelo Partido Trabalhista, socialistas e comunistas no parlamento de Westminster, um governo que tem origem nas multifacetadas lutas do movimento de massas fora do parlamento”. Aqui o papel das massas é subsidiário em relação ao aparelho de Estado. Isto é refletido no sistema, “nacionalização democrática de setores estratégicos da economia”, que seria feito “numa nova base que garanta a representação tanto do trabalhador como do consumidor na gestão”. A palavra importante aqui é ‘representação’, significando que não é auto-gestão. Esta mentalidade é reproduzida em várias tendências do socialismo que vêm as hierarquias atuais como sendo imunes à mudança.

A alternativa da esquerda revolucionária tradicional consiste em dois elementos chave: a legitimidade do ‘partido’ para assumir a liderança, e uma oportunidade histórica milenarista. O maior destes partidos é o Socialist Workers Party que até advoga ‘o socialismo vindo de baixo’ e a importância dos concelhos operários. Mas a importância dada a estes princípios é corrompida pelo papel fundamental que é dado ao ‘partido revolucionário’. Estes socialistas de partido acreditam que a conquista do poder pelo partido, soberano sobre todas as outras organizações de trabalhadores, constitui o ‘Estado operário’. EmCaminho Revolucionário para o Socialismo, Alex Callinicos [1] afirma que “todo o futuro do socialismo na Grã-Bretanha depende da criação de um partido revolucionário independente”. Encontramos também incongruências em Chris Harman [2], que vê os primeiros passos para a extinção do capitalismo como sendo a nacionalização de “todo o sistema bancário… Da mesma maneira a resposta para a crise energética global… é a nacionalização das indústrias do petróleo, gás e carvão”. Tal como os especialistas equacionaram a intervenção do Estado como sendo “socialismo e segurança social para os ricos”, também Harman exige “socialismo para os trabalhadores”. Estas estratégias podem parecer antagónicas, mas não são: ambas rejeitam o papel das massas como organizadoras plenamente conscientes da sua própria emancipação, prendendo assim as suas aspirações e iniciativa num enquadramento socialista de Estado.

Um conceito vivo de revolução

Presentemente vários defensores do socialismo de Estado digladiam-se dentro do movimento trabalhista, com a maioria dos socialistas e comunistas ainda partilhando conceitos estadistas. Se no início do século XX a principal linha de separação era entre reforma ou revolução, no início do século XXI os comunistas precisam de tornar a linha de separação entre que sistema é que é pretendido: auto-gestão ou estadismo.

Uma revolução será necessariamente difícil. Desde a derrota do Cartismo [3] a nossa classe tem sido infiltrada por um

pacifismo cumpridor da lei, cretinismo parlamentar e mitos de ‘excepcionalismo britânico’. No entanto também temos numerosos exemplos de organização com base na auto-determinação da classe trabalhadora, como os comitês de greve, os grupos de apoio aos mineiros e a revolta anti Poll Tax [4]. O importante para os comunistas atuais é que a ideia de auto-gestão não seja conceptualizada fora da relação entre o capital e o trabalhador. Um método dialético percebe que dentro desta relação conflituosa os trabalhadores não são só escravos do seu salário mas que também estão envolvidos em lutas constantes e criativas. Eles persistem nestas lutas com ou sem as organizações do movimento trabalhista. Uma expressão concreta desta criatividade é que esta não é apenas uma tendência para tentar procurar reformas que melhorem as condições de vida dentro das relações capitalistas: existe uma tentativa de obter mais controlo sobre a vida no trabalho; isto vindo diretamente da resposta às condições de trabalho alienado. Este conceito de revolução flui organicamente da luta de classes em numerosos casos durante o século XX, mesmo que seja bastante mal visto pelo CBI [5], pelo TUC [6], pelo Trotskismo e pelo Estalinismo. Mas esta negação de uma alternativa é apenas concebida externamente, pela intelligentsia da classe média, os gestores socialistas que se querem impor à classe trabalhadora.

Impulsionando a autogestão

A fábrica Grissinopoli recuperada pelos trabalhadores argentinos. Foto de Darío Doria.
A fábrica Grissinopoli recuperada pelos trabalhadores argentinos. Foto de Darío Doria.

A experiência da luta de classes indicou o caminho a seguir em termos de uma disputa pelo poder na qual os limites do controlo dos trabalhadores é empurrado para a auto-gestão. O controlo dos trabalhadores significa mais influência sobre o processo de trabalho e a erosão das prerrogativas patronais, mas com a auto-gestão os trabalhadores teriam controlo total: os gestores seriam abolidos, e a gestão seria eliminada como uma função separada do trabalho em si. O comunista italiano Antonio Gramsci viu no controlo dos trabalhadores o caminho para a vitória no futuro, no sentido que ensinaria a classe trabalhadora a dominar a organização da produção: dessa maneira a auto-gestão significaria uma revolução cultural.

Os órgãos de auto-gestão dos trabalhadores rapidamente entrariam em forte conflito com as instituições do capital. O objectivo dos comunistas é de desmantelar todas as instituições sociais que reforçam o capital. Um conceito reduzido da auto-gestão que prenderia os trabalhadores ao seu local de trabalho seria inevitavelmente auto-destrutivo, como foi o caso em Itália em 1920 e na Polónia em 1981 onde os trabalhadores tomaram conta das fábricas mas não desafiaram o Estado. Por ignorarem o Estado, os anarcossindicalistas e os socialistas parlamentares são gémeos; apenas através de um ataque total ao capitalismo em todas as esferas onde este exerce poder é que é possível ter sucesso. O objectivo é desenvolver as organizações da auto-gestão numa força alternativa de governação. Tal visão significa quebrar a dicotomia falsa entre propriedade do Estado e propriedade privada que tanto cegou a esquerda como vemos pelas suas respostas à crise atual do capitalismo.

O que é a propriedade social?

A recapitalização dos bancos pelo Estado tem sido utilizada como uma oportunidade para exigir mais nacionalizações. Estas exigências têm sido embelezadas por todos os tipos de retórica socialista com pedidos contraditórios de ‘nacionalização’ pelo Estado capitalista ’sob controlo dos trabalhadores’. As nacionalizações são agora chamadas de ‘propriedade social’ e é aconselhado aos trabalhadores que resistem à recessão que adotem este objectivo. A desadequação deste método é facilmente visível nas recentes ocupações de fábricas. Os trabalhadores por trás das ocupações fizeram-nas não porque algum grupo lhes disse mas apenas por terem seguido os seus instintos. Na sua atividade autónoma eles puseram em prática as características essenciais da auto-gestão. Os comunistas precisam de compreender o espírito progressivo dessas formas de luta para que possam entender a sua dinâmica e potencial. No Manifesto Comunista, Marx afirmou que aquilo que distingue os comunistas é que “no movimento do presente eles também representam o futuro do movimento.” Mas responder a este movimento vindo de baixo com uma nacionalização disfarçada como propriedade social não é nem um remédio adequado à luta respectiva ou uma perspectiva válida para um futuro para além do capitalismo.

Um exemplo didático é o Partido Comunista dos Trabalhadores da Bósnia e Herzegovínia que, utilizando lições obtidas da sua própria experiência, diz o seguinte: “A nacionalização dos meios de produção não pode trazer liberdade à classe trabalhadora, visto que as empresas na posse do Estado estão sob o controlo do Estado, ou por outras palavras, sob controle do partido no poder. A exploração continua. Apenas a socialização dos meios de produção pode produzir mudanças reais nas condições da classe trabalhadora. A propriedade social está ligada à auto-gestão socialista… por concelhos operários eleitos por todos os trabalhadores.”

Simplificando, o Estado não é a sociedade. A propriedade implica controle e a propriedade social no sentido marxista implica controlo por toda a sociedade. Isto só pode realmente acontecer quando os trabalhadores-produtores gerem de maneira ativa os recursos da sociedade. O próprio Marx foi enfático na sua oposição às cooperativas patrocinadas pelo Estado “que o Estado, não os trabalhadores, criam”; essas iniciativas teriam “apenas valor se fossem criações independentes dos trabalhadores”. (Crítica do Programa de Gotha).

O fim da alienação e as novas relações sociais

Banquete dos trabalhadores de uma Usina ocupada em 1936

Banquete dos trabalhadores de uma usina ocupada na França.

Uma das críticas à auto-gestão tecidas pela esquerda é que não passa da gestão pelos trabalhadores da sua própria alienação. Esta crítica baseia-se na premissa que as organizações de auto-gestão apenas conseguem manter-se estáticas dentro da sociedade capitalista. Isto é outro ponto de vista daqueles que só conseguem imaginar a existência da auto-gestão enquanto inserida no contexto duma futura sociedade comunista, não considerando possível a auto-gestão dos trabalhadores como parte do processo revolucionário. Mas existe uma escola de pensamento que advoga a auto-gestão numa forma que de facto recria a auto-alienação dos trabalhadores e a inevitável dissolução da própria auto-gestão. Essa forma pode ser encontrada no revivalismo presente do socialismo de mercado.

Um exemplo disto é Gerry Gold, que argumenta a favor de “cooperativas de trabalhadores” e de “um mercado genuinamente livre e competitivo”. Isto é em parte uma reação às falhas das economias socialistas de Estado, mas é precisamente a conclusão errada que se pode tirar. O mercado não existe separadamente mas é sim uma manifestação direta das relações de produção. Enquanto se produz para o mercado, competindo e tentando aumentar o rendimento obtido, os trabalhadores inevitavelmente vão entrar em conflito com outras cooperativas de trabalhadores e assumirão o papel de exploradores. Ao invés de propriedade social, teríamos cooperativas capitalistas em competição direta. Tal como locais de trabalho locais e atomizados não conseguem afastar a burocracia, também estas cooperativas desapareceriam numa economia de mercado. Tal foi a experiência na Jugoslávia.

A produção de mercadorias gera relações sociais capitalistas: o trabalho continuaria alienado, uma mercadoria se relacionando com outros humanos através da produção de mercadorias para um mercado. O capital (sobre)vive através da obtenção de cada vez mais valor acrescido do trabalhador que o produz. Por esta razão todos os esforços para controlar o capital sem primeiro destruir a base da produção de valor é derrotista e é inevitavelmente o capital que recupera o seu controlo.

Conclusão

Trabalhadores da fábrica ocupada Zanon na Argentina. Foto por lava.org

Trabalhadores da fábrica recuperada Zanon na Argentina. Foto por lavaca.org

O comunismo deve ser entendido como um sistema com base na disseminação por toda a sociedade da propriedade social e da auto-gestão. Se reconhecermos isto então temos que ter em consideração implicações profundas na organização e estratégia comunista. Uma sociedade destas apenas pode ser criada por organizações que são baseadas em princípios semelhantes. Isto cria uma linha de demarcação na reconstrução do comunismo atual entre os conceitos de auto-gestão e de socialismo de Estado da mesma forma que existia essa demarcação entre os conceitos de reforma e revolução no início do século XX. A maneira em que os comunistas compreendem isto requer bastante mais debate. É interessante notar que tanto na Jugoslávia como na Alemanha Oriental os dissidentes que defendiam a auto-gestão ambos chegaram à conclusão que uma liga de comunistas unida à volta da ideia da emancipação universal era uma alternativa essencial ao Partido Comunista.

É através do movimento de auto-gestão que a consciência amadurece, reunindo conhecimento e força para uma transformação social mais abrangente. Longe de ser um assunto secundário, a auto-gestão é um elemento chave na transformação da economia. Não queremos reorganizar o capital duma maneira diferente. Por outro lado, a auto-gestão também não oferece uma solução integral ao problema de ultrapassar o capitalismo numa nova sociedade comunista. O que oferece, no entanto, é uma estrutura dentro da qual se pode conseguir o fim da alienação do trabalho e a criação de novas relações de produção. É um eixo do processo revolucionário comunista que abole o sistema de classes, transcende o Estado substituindo-o por auto-gestão comunitária, e abole a produção de mercadorias.

Notas

[1] Membro do comitê central do SWP desde os anos 80 e conhecido intelectual trotskista.

[2] Membro do comitê central do SWP desde os anos 60 recentemente falecido.

[3] Movimento social inglês que se iniciou na década de 30 do século XIX tendo como base a carta escrita pelo radical William Lovett, intitulada Carta do Povo, e enviada ao Parlamento Inglês. Naquele documento percebem-se as seguintes exigências:
• Sufrágio universal masculino (o direito de todos os homens ao voto);
• Voto secreto através da cédula;
• Eleição anual;
• Igualdade entre os direitos eleitorais;
• Participação de representantes da classe operária no parlamento;
• Remuneração aos parlamentares.
Inicialmente as exigências não foram aceitas pelo Parlamento e um movimento rebelde teve início. Gradualmente as propostas da carta foram sendo incorporadas e o movimento foi-se enfraquecendo até sua desintegração.

[4] Imposto criado pelo governo de Margaret Thatcher em 1989 na Escócia, e em 1990 no restante Reino Unido, o qual custearia os governos locais (“councils”, semelhantes a prefeituras) por meio de uma taxa única a ser cobrada por habitante. Ele substituiria o sistema anterior, no qual o imposto era calculado de acordo com o valor dos imóveis, de forma semelhante ao IPTU brasileiro.
A população britânica resistiu fortemente à implantação desse imposto, se recusando a fornecer os dados necessários ao governo, se recusando a pagar, e dificultando a punição dos inadimplentes.
A impossibilidade de implantar este imposto, e a derrota do governo frente à população, foi a principal razão da queda de Thatcher como Primeira-Ministra.

[5] Organização sem fins lucrativos onde estão filiadas mais de 200 mil empresas britânicas e que organiza estudos e tenta influenciar o governo britânico além de manter os seus membros bem informados.

[6] Federação de sindicatos do Reino Unido que conta com cerca de 7 milhões de membros e que existe desde 1860.

Traduzido do inglês por Carlos Ferrão. Publicado originalmente por The Commune

Imagem em Destaque: Lenin e o Mapa de M. Kordonsky