domingo, 8 de novembro de 2009

Dessacralizar a crítica social

Dessacralizar a crítica social

São as pessoas simples, as pessoas anônimas do cotidiano que compõem o motor da mudança ou a resistência para que as coisas não piorem. Por Ronan.

Quando iniciei conscientemente meu processo de instrução e participação política, aos dezessete anos, embora não percebesse na época, portava um grande paradoxo: ao mesmo tempo em que nutria uma gigantesca crença na mudança social e me dedicava com todo afinco em compensar aqueles anos de ignorância e apatia política pensava que os dias de grande agitação jamais ocorreriam em minha vida, eram coisa do passado ou de um futuro longínquo.

lenin_6

Eu possuía uma concepção romantizada da mudança social e essa concepção em muito se devia à tradição literária difundida, que, ainda hoje, se centra mais nos personagens que nos processos históricos, surgindo a história somente como um roteiro por onde desfilam os astros: Marx, Bakunin, Lênin. Também fruto do profundo elitismo e/ou idealismo da esquerda brasileira que apresenta uma concepção da luta na qual a instrução formal tem lugar chave, havendo papel destacado para intelectuais, obras e iluminados. Pessoas destacadas, moralmente virtuosas e com instrução ímpar surgiam como o substrato ideal dos dias de mudança.

Apesar de toda confusão que os livros podem causar, aprendi a dar aos livros o que é dos livros e à vida o que é vivido. No decorrer desses 10 anos passaram-me face a face a crítica social dos Racionais MCs, associações de moradores, movimento punk, Comitê Zapatista, Sintusp, zines e a imprensa alternativa, o CEFAM de Franco da Rocha de 1997-1999, Movimento Humanista, as lutas estudantis dentro da universidade, a União Municipal dos Estudantes de Franco da Rocha, Educafro, MST, MTST, Ação Educativa, cursinhos populares, Cooperifa, CCS, Resistência Popular, o CELMA, PSTU, Oaxaca, Bolívia dos últimos anos… Apesar da enorme permanência do velho mundo, parece ter havido uma erupção, que esfriando foi dando origem a novos elementos, agora componentes da paisagem.

Diante dessa infinidade de ações e acontecimentos, toda aquela concepção difundida da mudança social passou a cheirar furiosamente a convenção e a mofo (André Gide). Aprendi que, distante dos tronos, são as pessoas simples, as pessoas anônimas do cotidiano que compõem o motor da mudança ou a resistência para que as coisas não piorem. Sem idealismos, elas podem ser também muitos dos problemas, da exploração e dos tiranos que se encontram pelo caminho. Elas podem resistir, mas também podem aceitar, podem compactuar, e pessoas que lutam um dia podem estar do outro lado no outro dia.

Um posicionamento pela mudança social é uma atitude diante da vida que não se adquire em livros nem fazendo cursos. É uma indignação com a própria condição e/ou com a condição de outros. É uma ação, consciente ou não, para que o mundo seja menos desigual, menos injusto, e parece não haver um livro de receitas, um manual de auto-ajuda para tal perspectiva, que impeça, por exemplo, os erros.


021421681-fmm00

Muitas vezes se pensa que os grandes dias e as grandes pessoas são somente coisas do passado ou de um futuro distante. No entanto, a alternativa e as pessoas que a vivificam moram ao lado ou é aquela pessoa que se vê quando se olha no espelho. Não há mais ninguém.

Obviamente, não se trata de fazer uma apologia da ignorância ou um mero anti-intelectualismo, o estudo permanente e o conhecimento é condição para uma luta mais eficaz. A questão é que, contados um a um, vi e vivi um conjunto de eventos que sequer imaginava possíveis. Daí se aprende que a crítica social se absolve e se constrói participando das lutas. E estas são as de hoje, não as que estão inscritas em livros históricos e/ou fórmulas. E as lutas possuem uma dinâmica que pode não corresponder ao que desejamos. Por isso, há momentos em que se deve respirar e olhar ao redor, contar quantos sobraram, o que se conseguiu, e fazer o saldo dos fatos. Nossas vidas não correspondem estritamente aos imaginários que dela fazemos. Muitas vezes sequer correspondemos aos nossos próprios projetos.

Pondero isso porque, ao menos no Brasil, há uma forte tendência pessimista, às vezes mesmo niilista, entre muitos que lutam e pensam a luta social. Esse niilismo de esquerda possui o paradoxo nostálgico de somente identificar ou dar atenção às lutas do passado, romantizando-as e as livrando das impurezas, num processo de produção de santos laicos, ao passo que ignora intelectual e praticamente os temas e os lutadores do presente. Fosse só isso já seria um problema, mas essa atenção às lutas e pensadores do passado é condição, por exemplo, para que professores universitários que conseguiram criar uma espécie de servidão clientelista na universidade, mediante a qual exploram trabalho não pago de alunos postos a fazer as mais diversas tarefas, permaneçam aplaudidos e não postos em questão. A apologia de um mitificado passado revolucionário serve para explorar servilmente alunos do presente. E serve para muitas outras coisas mais. Os exemplos se estenderiam.

arab_rock

Por fim, olhar para o hoje é condição para que também somemos os avanços e construamos um norte. Não são poucos os movimentos e lutas sociais que foram eficazes em conquistar bandeiras ou, o que é muito importante, fazer frear a exploração e a hierarquização. Do surgimento de um rap de crítica social que é uma primeira forma de instrução para toda uma juventude alheia aos livros, ao trabalho de grupos de direitos humanos que conquistaram a eliminação ou diminuição dos esquadrões da morte em São Paulo, passando pelo esplendoroso movimento de cursinhos populares que é a principal forma de educação popular atual, há muito que se comemorar e apoiar. Em algumas regiões o problema não é tanto de inexistir grupos e lutas mas de que uns saibam que os outros existam e se unam, para que se fortaleçam e, principalmente, não morram.

Há um nítido avanço no debate da questão racial no país, da questão da mulher, da violência sexual contra a infância, da escravidão, da servidão de empregadas domésticas, muitas delas em cárcere privado em condomínios; o Bolsa-Família e sua adesão entre a população abre espaço para se avançar a discussão sobre uma renda básica que garanta um mínimo de dignidade a todas as pessoas que, nos dizeres do Movimento Humanista, possuem o direito de viver os melhores momentos da vida; as lutas com ocupação na USP colocaram às claras a existência de uma favelização do estudantado pobre que adentra a universidade rica de São Paulo; surgem o movimento passe-livre, movimentos culturais populares como o Cooperifa que vão na linha de coisas feitas e não conhecidas anteriormente e os exemplos se somariam à exaustão.

A atenção para esses fatos é muito importante pois do lado de lá se movimentam gestores estatais e empresarias com o objetivo de cooptar e enquadrar muitos movimentos. É assim que a Nike cerca os Racionais MCs e o governo patrocina movimentos que procuram enquadrar a rede de cursinhos populares, surge o “polícia cidadã” e vários outros exemplos, quando não é o caso de o empresariado criar diretamente, e orientados por cima, movimentos sociais, como é o caso do Todos Pela Educação, que tem tido enorme força em dar as diretrizes da reforma educacional em curso no país. Como no caso do movimento de luta estudantil da Unesp de Marília, em que estudantes moraram por 4 anos na faculdade para conquistar a moradia, os gestores pretendem apagar a origem de base de muitas lutas e colocar lá suas placas douradas, diretores, prefeitos, reitores, governadores, etc. Algo similar aos que, do outro lado, tudo atribuem a nomes famosos.

fonte: http://passapalavra.info/?p=14309

(c) Copyleft: É livre a reprodução para fins não comerciais, desde que o autor e a fonte sejam citados e esta nota seja incluída

Nenhum comentário:

Postar um comentário