sábado, 21 de novembro de 2009

Os Gestores como classe dominante: notas de uma pesquisa sobre o marxismo de João Bernardo


Os Gestores como classe dominante:

notas de uma pesquisa sobre o marxismo de João Bernardo

Por JOÃO ALBERTO DA COSTA PINTO

Departamento de História da Universidade Federal de Goiás (UFG)



Aproveito esta oportunidade para dar notícia de uma pesquisa que venho desenvolvendo sobre a obra e a trajetória teórico-política de João Bernardo, pensador marxista português. Pelas limitações circunstanciais utilizarei este espaço para dar nota de um importante aspecto teórico presente na centralidade do conjunto de sua obra: os gestores como classe dominante no capitalismo.

Os gestores como classe dominante que se desenvolveu conjuntamente com a burguesia na consolidação do capitalismo como modo de produção. O capitalismo teria assim, na sua constituição histórica a afirmação de três classes: a burguesia, os gestores e o proletariado. Essa proposição é sugerida pela obra que João Bernardo vem desenvolvendo nas últimas décadas num conjunto de livros que foram editados tanto em Portugal como no Brasil, sendo alguns deles já traduzidos para o inglês, para o francês e para o espanhol (01).[1]

São necessárias algumas definições. A primeira delas, a definição de capitalismo que centraliza a argumentação do autor:

"Capitalismo é o único sistema econômico que assenta na produção de mercadorias, ou seja, onde os bens são produzidos com a finalidade única da sua venda. (...) O capitalismo implica a criação, no processo de produção, do seu próprio mercado. Produz-se um número crescente de bens e só a venda no mercado permite que o capital entre em novo ciclo produtivo. Este regime implica uma concorrência permanente para o escoamento comercial dos produtos. (...) é a própria concorrência entre capitalistas particulares que leva à expansão do mercado em geral. O objectivo dos capitalistas particulares não é o de dividir entre si um mercado estático, mas sobretudo o de expandir o mercado que cada um dispõe. Para isso procuram permanentemente aumentar a produtividade. (...) a concorrência inter-capitalista no mercado assenta na concorrência inter-capitalista no próprio processo de produção; o mecanismo fundamental da concorrência reside na luta pelo aumento da produtividade a qual se processa inteiramente ao nível do fabrico dos produtos. O aumento da produtividade numa dada empresa pressupõe o conhecimento dos processos de fabrico nas restantes, (...) exigindo-se para isso uma relação tecnológica entre as unidades de produção. É a partir de uma base comum de inter-relação tecnológica que as empresas vão entrar em concorrência pelo crescimento da produtividade" (Bernardo, 1979: 20-21).

Antes, porém, que esse processo econômico se realize integralmente é necessário que o Estado tenha desenvolvido, ou esteja a desenvolver, as chamadas Condições Gerais de Produção (CGP), condições, entre outras, como a "organização do sistema geral de ensino", "a extensão da medicina à generalidade da população", "medicina preventiva e a vacinação", "esgotos e novas condições urbanas", etc (Idem, 1979: 23-36). Em suma, condições gerais de produção que "ultrapassam os limites de cada empresa particular e constituem uma vasta teia, sem a qual essas empresas e o próprio capitalismo não poderiam existir" (Idem, 1979: 36).

Com essa definição de capitalismo, cumpre agora perceber como o autor conceitua as classes que o compõem enquanto modo de produção. Para João Bernardo são três as classes sociais no capitalismo. Classes que não se determinam em si como substâncias, mas, nas relações que realizam entre si. Além da classe explorada (o proletariado), o capitalismo apresenta mais duas classes, formadas historicamente diante dos "dois aspectos fundamentais do polo explorador do capitalismo": a burguesia e os gestores.

"(...) a burguesia representando a parcelarização das empresas, a privatização da propriedade do capital; e uma outra classe, que consubstancia a integração tecnológica entre as unidades de produção, as condições gerais de produção; em virtude das funções predominantemente organizacionais que esta classe desempenha, na união entre os vários processos particulares de fabrico e, portanto, na orquestração do capitalismo como um todo, posso chamar-lhe classe dos gestores" (Idem, 1979: 36-37, destaque do autor).

Ressalve-se que esse gestor não é um substituto do burguês, mas, um seu contemporâneo (Idem, 1979: 37). Destaque-se, na citação anterior como o autor caracteriza o processo estrutural que dá existência histórica às classes dominantes no capitalismo. O comando pessoal da empresa privada em si, que dá definição ao burguês como proprietário, e as relações de produção e de mercado que impõem uma lógica de relações entre o conjunto sistêmico das unidades produtivas, atividade que transcende as práticas individuais dos proprietários, atividade que é transferida aos gestores, tanto na organização global do sistema econômico a que estão envolvidas essas unidades produtivas, como na organização global do sistema político que organizará a estruturação no mercado das condições gerais de produção, aqui, o papel é dos gestores do Estado. Ainda uma ressalva. A particularização do burguês à sua unidade produtiva não significa isolamento, significa, como diz João Bernardo, em outro momento da sua obra, "que cada unidade econômica veicula os aumentos de produtividade exclusivamente ao longo da linha de produção em que diretamente se insere" (Bernardo, 1991: 203), e essa organização é que dá a caracterização de classe a burguesia, a unidade produtiva deve estar em relação com as outras unidades produtivas, concorrendo no mercado e na produção por uma ampliação de sua capacidade produtiva. A burguesia, como classe se constituiu pela organização particular de sua produção premida pela concorrência com outras unidades produtivas. A classe dos gestores condiciona sua existência histórica, inicialmente, pela organização integrada dessas unidades particulares, em paralelo à organização dentro do Estado das condições gerais de produção. Entretanto, apesar de se originar também na empresa privada, os gestores enquanto classe têm no Estado o seu "campo privilegiado de existência", pelas funções de organização dos inter-relacionamentos globais exigidos pela sempre ampliada reprodução do capital.

São possíveis algumas conclusões. Diz João Bernardo que uma visão dicotômica dos conflitos sociais no capitalismo, parece-lhe ultrapassada, se restringida à luta entre burguesia e proletariado, para o autor, com o desenvolvimento do capitalismo conferiu-se "uma importância prática cada vez maior à inter-relação das unidades de produção e às condições gerais de produção, condenando ao arcaísmo qualquer concepção centrada no isolamento das empresas" (Bernardo, 1979: 57). Dessa maneira, os gestores partilham com a burguesia do "controle dos aspectos decisivos do capitalismo", ambas, são assim, "classes exploradoras e como tal se opõem ao proletariado" (Idem, 1979: 59); dessa constituição de práticas históricas, com a evolução do capitalismo, a integração tecnológica entre as empresas tende a progredir e com isso, a função sócio-histórica da burguesia enquanto classe tende a se reduzir em detrimento do crescimento do controle do capital por parte dos gestores, daí desenvolver-se dentro das estruturas do Estado, dependendo de cada situação, uma subalternização da burguesia como classe frente aos gestores como classe progressivamente mais organizada. O Estado brasileiro no período 1930 – 1964, possui uma historicidade que demonstra muito bem essa análise sugerida pelo pensador marxista português.

Muitos outros elementos justificam historicamente os gestores como classe, mas, para efeitos de síntese, limito-me a mais uma rápida apresentação do argumento do autor.

A classe gestorial, porque se relaciona com a integração das unidades econômicas no processo global e com a coordenação dessas articulações, desenvolveu formas integradas de propriedade do capital, que não é particularizada individualmente, mas unificada por grupos mais ou menos numerosos de gestores que, assim, detêm enquanto coletivo empresas, conjuntos de empresas ou até a totalidade da economia num país" (Bernardo, 1991: 205).

Em suma, quanto mais se desenvolve a economia capitalista mais se consolidam os gestores como classe, os que se responsabilizam diretamente pela organização e integração desse desenvolvimento. "São a classe capitalista que, contemporânea da gênese deste modo de produção, expande-se e reforça-se com o crescimento econômico, confundindo-se com ele o seu eixo de evolução" (Idem, 1991: 216). No processo de expansão capitalista verifica-se crescentemente a "eliminação física" dos indivíduos burgueses provocada pela falência do seu projeto empresarial na concorrência do mercado. Esses indivíduos assumirão funções de chefia em qualquer âmbito administrativo presente no capitalismo, tornam-se, portanto, gestores do capitalismo, por muitas vezes são colaboradores nas empresas que já foram suas. Constata-se então, o fenômeno histórico no capitalismo do declínio progressivo da burguesia como classe dominante em detrimento de uma expansão progressiva dos gestores como classe dominante (Idem, 1991: 216), a burguesia definha para alimentar a outra classe capitalista em expansão.

Quando a hegemonia nas classes dominantes era da burguesia, fato que se verifica com clareza até o fim da década de 1920, era corriqueiro aos gestores, no processo de sua ascensão como classe, estarem dispersos "por campos e instituições várias" e serem por isso uma classe ainda incapaz de "comportamento unificado", daí "puderam confundir-se com os trabalhadores numa comum oposição à burguesia". Esse momento de efetiva ambigüidade de classe, "permitiu que grandes movimentos da classe dos trabalhadores, inicialmente dirigidos para a destruição do modo de produção capitalista, acabassem afinal reconvertendo-o em formas novas, acelerando assim o seu desenvolvimento e consolidando-o" (Idem, 1991: 217). Esse fenômeno tão característico das lutas anti-capitalistas no século XX acabava por reforçar a apropriação da mais-valia relativa, isto é, reforçar um capitalismo cada vez mais organizado, cada vez mais sistematizado pela classe dos gestores. O corolário sob o ponto de vista dos trabalhadores, é paradoxal, porque viu nascer em definitivo, no seu próprio campo de lutas, um ex-aliado como um inimigo de classe. Dessa maneira, parafraseando o autor, os gestores, como classe, são o efetivo "inimigo oculto" dos trabalhadores.

Nas 959 páginas do monumental estudo que desenvolveu sobre a história do fascismo no século XX – Labirintos do Fascismo. Na Encruzilhada da Ordem e da Revolta (2003), entre muitas definições, João Bernardo apresenta uma expressiva síntese historiográfica sobre a questão da relação - gestores e capitalismo, que para efeitos de conclusão deste pequeno artigo a considero integralmente.

Diz o autor que os gestores "surgem como o eixo de articulação de todas as variantes do capitalismo moderno" (Bernardo, 2003: 307). São três as variantes do capitalismo moderno: a variante democrática do New Deal nos EUA – um modelo de capitalismo identificado como keynesiano; a variante soviética, como expressão de capitalismo de Estado e a variante fascista européia. Afirma João Bernardo, que no período entre as duas guerras mundiais, a burguesia "mostrou-se incapaz de se renovar e de remodelar o sistema econômico. Perante esta falência histórica da classe que até então havia sido hegemônica foram os gestores quem assumiu a direção dos acontecimentos, salvando o capitalismo" (Idem, 2003: 306). Salvação essa, demarcada naqueles três exemplos referidos acima e caracterizados sumariamente a seguir.

No modelo do keynesianismo do New Deal, "conservaram-se as instituições burguesas", mas já remodeladas pelos gestores, o imperativo político definiu-se pela manutenção da ordem. No pós-1929, pela própria natureza da crise macroestrutural, os trabalhadores foram crescentemente alijados, apesar de suas lutas, dos centros decisórios – por exemplo, não se constituiu nos EUA, a partir desse momento um forte Partido Comunista de bases nacionais. O autor define a ação dos gestores dentro das instituições burguesas, com os trabalhadores crescentemente marginalizados nas mesmas como uma "modalidade de manutenção da ordem. Num esquema: gestores + burguesia / proletariado" (Idem, 2003: 306).

O inverso aconteceu na União Soviética. Conforme o autor, "enquanto o proletariado procurava a aliança dos gestores para destruir ou transformar as relações sociais de produção, confundindo assim a burguesia com a totalidade do capitalismo" (Idem, 2003: 307), os gestores apropriavam-se do apoio do proletariado para apenas modificar o estatuto jurídico de propriedade, "de maneira a desenvolver formas de apropriação adequadas ao caráter coletivo da classe gestorial e a retirar à burguesia a exclusividade do controlo do capital. Nesta indefinição entre relações de propriedade e relações de produção", afirmaram-se as "grandes derrotas do proletariado" e os "mais macabros paradoxos do socialismo" (Idem, 2003: 307). No esquema sugerido pelo autor, na experiência dos socialismos ortodoxos contemporâneos dos quais a experiência do stalinismo soviético é o grande paradigma, a equação é "gestores + proletariado / burguesia" (Idem, 2003: 307).

A situação do fascismo obedeceria a um esquema híbrido. Como na ortodoxia stalinista, o fascismo também "institucionalizou a mobilização do proletariado sob o comando dos gestores", no entanto, a "afinidade do fascismo com o New Deal e com o keynesianismo resultou da manutenção das instituições burguesas na sua aparência exterior, embora a burguesia ficasse relegada a um lugar secundário" (Idem, 2003: 307). O fascismo impunha à burguesia a ameaça do proletariado para afirmar os gestores como condutores do capitalismo, ou seja, no fascismo, os gestores mantiveram o quadro capitalista de feições burguesas, "respeitou[-se] o quadro da ordem", mas, acrescentou-lhe o medo da "revolta, suscitado pelos ecos da mobilização proletária. Num esquema: gestores + burguesia + proletariado" (Idem, 2003: 307).

Restaria aqui, como um possível desdobramento analítico das perspectivas apontada pelo modelo do autor, apresentar uma definição dos gestores na organização do capitalismo brasileiro quando do período da convencionalmente chamada Era Vargas. Mas, por agora, limito-me à descrição parcial desse modelo, deixando essas possibilidades interpretativas para uma outra oportunidade.

[1] João Bernardo, nascido na cidade do Porto, Portugal, em 1946, tem uma obra que atualmente soma doze livros e inúmeros ensaios e artigos publicados em revistas nacionais e internacionais. Desse conjunto de obra, destaco para esta ocasião, os livros: O Inimigo Oculto. Ensaio sobre a Luta de Classes. Manifesto Anti-Ecológico. Porto: Afrontamento, 1979; Economia dos Conflitos Sociais. São Paulo: Cortez, 1991; e, Labirintos do Fascismo. Na Encruzilhada da Ordem e da Revolta. Porto: Afrontamento, 2003.

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