A propósito do marxismo de João Bernardo
JOÃO ALBERTO DA COSTA PINTO*
Apresento neste artigo, uma breve nota introdutória sobre alguns aspectos conceituais que considero fundamentais na proposta teórica de João Bernardo, pensador marxista português, autor de uma obra que vem sendo elaborada ao longo das últimas três décadas, e que já reúne, além de inúmeros ensaios e artigos em revistas especializadas, um total de dezesseis livros, publicados em Portugal e no Brasil e alguns com tradução integral e parcial para o francês e o espanhol. Apesar desse significativo conjunto de obra, ainda assim, João Bernardo é quase que um autor desconhecido no Brasil.
João Bernardo nasceu no ano de 1946. Aos 19 anos participou de organizações comunistas clandestinas onde manifestou oposição radical à ditadura civil de Salazar. Por causa de sua militância política foi-lhe negado o acesso às universidades portuguesas. Em 1965 exilou-se na França. Em Paris, encontrou grande movimentação política e aproximou-se de grupos maoístas. Chegou a freqüentar alguns cursos de Louis Althusser. Suas inquietações intelectuais resolviam-se pelo autodidatismo. Explorava as possibilidades do ambiente acadêmico sem, no entanto, dar seqüência a estudos como aluno regular. Até hoje, João Bernardo não tem qualquer título universitário, tem apenas um curso secundário. Num contexto de grande agitação política e intelectual, permaneceu na França até 1974. Com a Revolução dos Cravos, em 25 de abril de 1974, data que marcou em definitivo a derrocada da ditadura salazarista - marcellista, retornou a Portugal e, em Lisboa, ajuda a organizar o grupo que fundou o jornal - O Combate. Nas lutas sociais posteriores ao 25 de abril, este jornal teve um importante papel na organização do movimento autonomista conselhista dos trabalhadores portugueses. No mesmo período, isto é, nos anos de 1974 e 1975, João Bernardo preparou a publicação (que aconteceu em agosto de 1975) do livro - Para Uma Teoria do Modo de Produção Comunista. Este livro foi a referência teórica do comunismo conselhista português. E é um dos grandes documentos do marxismo contemporâneo.
Foi historiando e refletindo conceitualmente sobre as bases societárias das lutas anti-capitalistas no seio das experiências socialistas contemporâneas e na própria experiência portuguesa que João Bernardo definiu seu projeto de marxismo centrado no que chama de marxismo das relações sociais de produção, que como programa teórico - prático antepunha-se ao marxismo das forças produtivas, paradigma dos partidos comunistas.
Ao longo da década de 1970, João Bernardo trouxe a público uma série de obras que acabaram por fundamentar teoricamente não só a experiência do conselhismo português, durante a Revolução dos Cravos, como também uma proposta radicalmente heterodoxa às bases do marxismo que lhe era contemporâneo. Neste artigo, com a pretensão de apenas fazer uma rápida apreciação introdutória a alguns aspectos do marxismo do autor, estarei considerando, principalmente, aquilo que chamo de a epistemologia da revolução conselhista - apresentando alguns dos aspectos dessa obra iniciada na década de 1970 e consumada conceitualmente em 1991 (com algumas modificações conceituais), com a publicação de Economia dos Conflitos Sociais, sua obra síntese, a melhor explicitação do seu modelo teórico marxista, modelo esse que voltou a explanar em outros trabalhos, como o recém publicado no Brasil - Democracia Totalitária: teoria e prática da empresa soberana (2004).
No contexto das lutas consiliares portuguesas no período de 1974 - 1976, o autor afirma sua proposição teórica como circunstância intrínseca de sua trajetória política. O aspecto inovador do marxismo do autor, diante das lutas que lhe eram contemporâneas, era o de oferecer um plano teórico explicativo distanciado de qualquer premissa apriorística. Um modelo calcado na processualidade das lutas dos trabalhadores portugueses pelo autonomismo conselhista. É da sua luta política, junto ao coletivo d’ O Combate, que se pode observar o nascimento do seu projeto marxista. Seu projeto teórico aponta o esforço de conceituação das práticas políticas dos trabalhadores portugueses no processo revolucionário e tal trabalho pode ser sumariado naquilo que define como a Lei do Institucional, o termo teórico do Modo de Produção Comunista. Ou, dizendo de outra maneira, o termo teórico - conceitual antípoda à Lei do Valor, a expressão conceitual do Modo de Produção Capitalista. Nas proposições do autor não há qualquer menção a uma teoria da transição de um modo de produção a outro.
“Quanto mais se desenvolverem os conselhos de fábrica como formas de controle e gestão da produção, tanto mais desaparecem os intermediários nesse controle. Ou seja, quanto mais se desenvolver um dos aspectos dos conselhos de fábrica, mais o outro se extingue. É este o sentido do conceito de ‘Estado em extinção’. O ‘Estado em extinção’ é o comunismo em constituição” (Bernardo, João - 1975, p. 76).
O que o autor afirma é que das contradições que as práticas dos trabalhadores vão “solucionando”, mais distante fica a auto-afirmação hegemônica do capitalismo e mais visível se encontra o novo modo de produção, o modo de produção comunista. Desse modo, no marxismo de João Bernardo inexiste qualquer fase de transição de um modo de produção a outro (neste caso, note-se, do capitalismo ao comunismo). Os conselhos determinam historicamente o controle social sobre a produção. Os conselhos impõem a extinção do poder político com a afirmação de um novo tipo de poder. “O coletivo social apropria-se dos meios de produção e gere o processo de produção mediante o poder político em extinção” (Bernardo, João -1975, p. 91). Logo, “os conselhos de fábrica são pois, a forma institucional das novas relações de produção” (Bernardo, João - 1975, p. 93). Com as práticas dos conselhos impõe-se historicamente a lei básica do novo modo de produção: a Lei do Institucional.
“No regime capitalista o critério de apreciação dos produtos é inerente a esses produtos, uma finalidade que lhes é estabelecida como comum e que a lei do valor regula. No modo de produção comunista, os produtos são produzidos como valores de uso, para empregar o termo que Marx contrapõe à essência dos produtos capitalistas. O critério da produção é, portanto, extrínseco aos produtos, e residirá na lei do institucional” (Bernardo, João - 1975, p. 97).
Com a Lei do Institucional, segundo os termos do autor, a revolução está sempre presente, como negativo imediato do atual modelo produtivo capitalista e essa negatividade é sempre a manifestação concreta da imposição das práticas dos trabalhadores na esfera produtiva. É com a Lei do Institucional que o autor caracteriza o marxismo das relações sociais de produção.
João Bernardo parte do suposto de que há uma contradição fundamental na reflexão de Marx. A contradição está na definição de mercado como a base caracterizadora da totalidade capitalista. No mercado, os produtos - mercadorias aparecem como produtos sociais. O acaso e a livre - concorrência é que estabeleceriam o valor social da mercadoria. O mercado é, portanto, o espaço societário da concorrência intercapitalista. Contudo, no interior da gestão fabril não está presente o acaso e nem o arbitrário da lógica concorrencial do mercado. O interior das unidades produtivas impõe a ordem e o equilíbrio da gestão racionalizada. Ora, se o característico básico do capitalismo é a lógica arbitrária da livre - concorrência, a ultrapassagem revolucionária do capitalismo para o socialismo seria realizada, nesse sentido, com o controle do mercado por um modelo de gestão similar àquele já desenvolvido nas unidades produtivas capitalistas. Assim, o sistema de organização, as técnicas de gestão, a disciplina da força de trabalho, a tecnologia e a maquinaria, nascidas e criadas no interior do capitalismo ao serem reordenadas com outro uso político e outro uso social (mercado controlado e disciplinado), forneceriam as bases, o germe do futuro modo de produção (Bernardo, João - 1991 - p. 310). Com esta argumentação, o autor caracteriza o que chama de marxismo das forças produtivas.
Mas, afirma o autor, o marxismo das forças produtivas é totalmente alheio à questão da mais - valia (Bernardo, João - 1991, p. 311). E a questão da mais - valia é fundamental para a construção da crítica da economia capitalista. Esta questão fundamental, Marx também a desenvolveu n’ O Capital. E, para João Bernardo esse é aspecto contraditório presente teoria marxiana.
A mais-valia, como se sabe, é resultado da capacidade que a força de trabalho gasta no processo de produção, capacidade essa que resulta num tempo de trabalho superior àquele que em si incorpora como valor - mercadoria, ou, para simplificar a definição - “o tempo de trabalho que os trabalhadores são capazes de despender no processo de produção é maior do que o tempo de trabalho que eles incorporam na sua própria força de trabalho” (Bernardo, João - 1998, pp.7 - 8). A realização social da força de trabalho apresenta uma intrínseca relação contraditória. Para João Bernardo, a organização do processo produtivo é a organização dessa contradição. Logo, as técnicas de gestão, a disciplina do trabalho, a maquinaria e suas sucessivas renovações tecnológicas têm como função aumentar o tempo do sobretrabalho e reduzir o tempo do trabalho necessário para a manutenção da vida do trabalhador. Assim, a tecnologia (e os seus usos de controle produtivo da força de trabalho), não é neutra. A tecnologia não é neutra porque é a expressão social da capacidade de expropriação do valor do tempo do trabalho assalariado, assim como sua “domesticação” estrutural. Definida a expressão da expropriação da mais - valia, apresenta-se a definição base de como se caracteriza o marxismo das relações sociais de produção. Adiante, será observado como esta “corrente” se manifestará historicamente como antípoda à do marxismo das forças produtivas.
Foi dito anteriormente que o marxismo das forças produtivas estabelece como norte revolucionário a apropriação dos trabalhadores da gestão das formas produtivas capitalistas. A tecnologia, por exemplo, para essa corrente, é vista como simples maquinário. Por não considerar o fato de a tecnologia ser antes de tudo relação social de trabalho, antes de ser simples maquinário, esta corrente, no seu propósito revolucionário reafirma a mesma capacidade anterior de expropriação da mais - valia. Assim, a revolução acaba por reproduzir a verticalidade da gestão, já que as relações sociais do trabalho permanecem as mesmas. Como afirma João Bernardo, o marxismo das forças produtivas fundamenta o Capitalismo de Estado, já que o processo revolucionário limitou-se a estender ao mercado do livre arbítrio os fundamentos organizativos da racionalidade administrativa do espaço produtivo. Não se definem aqui relações sociais de novo tipo. Reproduzem-se societariamente as mesmas formas de poder existentes no capitalismo, só que agora, esse poder passa a ser controlado institucionalmente pelas representações políticas formais da classe operária, isto é, os Sindicatos e/ou o poder dos Partidos Comunistas, tal como nas experiências históricas do socialismo contemporâneo. Nesse momento, a classe operária não encontra mais apenas a burguesia como antagonista de classe, encontra agora também, a classe dos gestores (a burocracia dos sindicatos, dos partidos e das empresas estatais).
A corrente do marxismo das relações sociais de produção manifesta-se radicalmente contrária a todas as instituições de poder capitalista, assim, historicamente, não poderia aceitar qualquer forma planificada de gestão da economia como prática de socialismo. Não é à toa, portanto, que apresentou crítica radical aos bolcheviques e à direção do socialismo soviético (como exemplo histórico similar aos argumentos políticos de João Bernardo, temos, com evidentes diferenciações, não só conjunturais, como teórico - programáticas, as históricas intervenções, na década de 1920, de Karl Korsch, Hermann Gorter, Anton Pannekoek, entre outros, contra as diretrizes do socialismo de gestores da Revolução Russa). A única possibilidade de se evitar a extorsão da mais - valia no universo produtivo, seria através da realização de novas formas de sociabilidade do trabalho, e essas passariam pela recusa radical a qualquer hierarquização do controle da produção. O controle da produção seria decidido pela prática autogestionária e tal prática ao se disseminar pelo tecido social, implicaria no desaparecimento das instituições formais de poder, não importando de que tipo sejam, se capitalistas ou socialistas (segundo o modelo soviético).
Para esta corrente, portanto, a revolução está presente como negativo imediato do atual modelo produtivo capitalista; negatividade potencializada pela redefinição das práticas dos trabalhadores na esfera produtiva, isto é, a realização da Lei do Institucional.
Por questões de espaço, os termos apresentados apenas sumariam (quase que de maneira caricata) alguns dos epicentros do projeto teórico - político de João Bernardo e é com base nessa fundamentação acrescida de muitas outras variáveis conceituais (como, p. ex., o debate em torno da definição do Estado) que a sua obra apresenta-se atualmente como uma das balizas fundamentais da crítica à lógica da transnacionalização do capital, assim como à lógica histórica da constituição dos gestores desse capital (jovens administradores de empresas ou velhos ex - presidentes de sindicatos, como o senhor Luiz Inácio Lula da Silva ou, ainda, o senhor Jair Meneguelli) como classe, em frontal oposição às demandas históricas dos trabalhadores nesse capitalismo transnacionalizado.
* Professor no Departamento de História da Universidade Federal de Goiás
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