A actualidade das reflexões de Maurício Tragtenberg em Administração, Poder e Ideologia (São Paulo: UNESP, 2005).
A terceira edição de Administração, Poder e Ideologia, agora publicada – as outras datam de 1980 e 1989 – integra-se numa colecção coordenada por Evaldo Vieira e dedicada à obra de Maurício Tragtenberg. Os ensinamentos e a actividade de Maurício Tragtenberg foram cruciais para a formação na esquerda brasileira de uma corrente anticapitalista, igualmente oposta às empresas privadas e às burocracias estatais, partidárias e sindicais de qualquer cor política. Ficará talvez desanimado quem folhear rapidamente Administração, Poder e Ideologia, procurando inteirar-se do assunto pela leitura de parágrafos dispersos. Se Maurício nunca se preocupou com a forma literária, o descuido é sobretudo visível neste livro, em onde a expressão ficou muitas vezes reduzida a um mero esquema, com passagens abruptas e hiatos no raciocínio. Mas valerá a pena para o leitor superar a escrita apressada de Maurício e concentrar-se na enorme riqueza das ideias.
Evocando os ensinamentos de Adolf Berle, Maurício Tragtenberg chamou a atenção para a capacidade de os administradores das grandes empresas influenciarem directamente o poder político. Tratava-se do prolongamento lógico da separação entre a propriedade detida pelos accionistas e o controlo exercido pelos principais administadores, e apesar de Berle ser geralmente considerado o pioneiro no estudo desta questão, Maurício recordou a precedência de Walther Rathenau na análise da transformação da propriedade privada em propriedade impessoal e na obtenção de um papel político pelas grandes empresas. Aliás, Maurício é autor de um estudo sobre as ideias de Rathenau, que decerto não será esquecido na colecção da Unesp. Os marxistas, especialmente Lenin, interpretaram como uma antecipação do socialismo a organização capitalista da economia promovida pelo estado-maior alemão durante a primeira guerra mundial. Na realidade foi uma antecipação do capitalismo de Estado, tal como a Rússia soviética o começou a aplicar ao longo de 1918 e até ao final, e tal como se desenvolveu em formas mitigadas no resto do mundo. Homem de negócios e ideólogo, além de figura política, Rathenau esteve no centro da experiência inovadora alemã, e a análise das suas concepções permitiu a Maurício Tragtenberg interpretar esta linha de evolução das grandes empresas não como uma antecipação do socialismo mas como um desenvolvimento do capitalismo. «À medida que se desenvolve, a grande corporação tende cada vez mais a ser propriedade de um grupo que age em conformidade com os critérios capitalistas de racionalidade. Como resultado final, temos uma sociedade de grandes corporações, cujo controle está em mãos de uma oligarquia fechada que se autopromove e se auto-reproduz» [pág. 14]. Escritas há vinte e cinco anos, estas linhas retratam profeticamente a situação actual e mostram aos distraídos que a globalização, em vez de ser uma perversidade da história, é uma fase lógica do processo de desenvolvimento inerente ao capitalismo.
Usada por Maurício Tragtenberg também para a análise do socialismo, esta problemática permitiu-lhe proceder à crítica dos regimes de tipo soviético, onde a burocracia assumira o mesmo papel que Berle havia definido para os administradores nas grandes empresas norte-americanas. Vemos, assim, que o socialismo heterodoxo de Maurício tinha raízes muito profundas e ramificadas.
Mas Administração, Poder e Ideologia não se limita a analisar o poder exercido pelas grandes empresas sobre a sociedade em geral, e encontramos no livro estudos abundantemente documentados acerca do modo como no taylorismo e no fordismo níveis salariais relativamente elevados pressupunham condições de trabalho degradantes e ritmos infernais. «Observa-se um fato no capitalismo desenvolvido: a mais valia-relativa não substitui a mais-valia absoluta. Se, de um lado, opera-se a redução da jornada de trabalho, de outro, ela foi intensificada» [pág. 165]. Todavia, a percepção de que o desenvolvimento da mais-valia relativa tem sido sempre acompanhado por novas modalidades de mais-valia absoluta não levou Maurício Tragtenberg a descurar os problemas específicos da mais-valia relativa, e este é um dos aspectos interessantes do livro. Prolongando as análises de Peter Drucker a respeito das relações entre administradores e trabalhadores no interior das empresas e levando até às últimas consequências as pretensões da escola das relações humanas, Maurício pôde insistir já em 1980, antes de estar generalizado o toyotismo, na capacidade de os empresários recuperarem os anseios dos trabalhadores. Foi sem dúvida necessária uma grande argúcia, e para um autor de extrema-esquerda necessária igualmente a capacidade de romper com dogmas ainda poderosos, para detectar naquela época que «empresa é também aparelho ideológico» [pág. 37].
Maurício Tragtenberg mostrou que a escola das relações humanas, tal como fora desenvolvida por Elton Mayo, surgira em virtude dos problemas criados pelo taylorismo e pelo fordismo, e nesta medida Maurício pôde antecipar as correntes de gestão actuais. «[...] os executivos europeus utilizam conceitos criados pelos novos eventos: diálogo, participação. Isso, para a mão-de-obra, não passa de mais um recurso para arrancar maior produtividade» [pág. 28]. Se, como Maurício salientou, nas décadas de 1920 e 1930 «“relações humanas” surgiu e se desenvolveu como reacção ao sindicalismo operário norte-americano» [pág. 32], também é pertinente observar que o toyotismo constituiu a resposta patronal às grandes vagas de lutas dos trabalhadores nas décadas de 1960 e de 1970, ocorridas fora dos sindicatos, cuja burocratização fora acelerada, entre outros factores, precisamente pela escola das relações humanas. Maurício Tragtenberg resumiu em poucas palavras a bem conhecida situação nos Estados Unidos, escrevendo que «as grandes empresas e os sindicatos desenvolveram uma divisão de trabalho: as empresas preocupam-se com as máquinas, os sindicatos preocupam-se com a mão-de-obra» [pág. 126]. Esta «divisão de trabalho», que sob uma ou outra forma se reproduzira em todo o mundo, fez com que as lutas mais radicais surgissem ou se expandissem exteriormente aos sindicatos, e Maurício dedicou duas dezenas de páginas ao movimento espontâneo de greves ocorrido no final da década de 1960 e no começo da década seguinte nos Estados Unidos e em vários países europeus. O quadro de análise proposto em Administração, Poder e Ideologia permite interpretar o toyotismo como a resposta patronal aos movimentos de contestação operária que, ao porem em causa a legitimidade dos sindicatos burocratizados, ameaçaram seriamente os fundamentos sociais do fordismo. «[...] as greves selvagens mostraram o que havia de mitológico na tal integração da classe operária no capitalismo» [pág. 228]. Numa lúcida antecipação, depois de concluir que as greves espontâneas das décadas de 1960 e 1970 «são movimentos da base para o “topo”, reacções contra as negociações colectivas conduzidas pela burocracia sindical, reivindicação de participação real e não simbólica», Maurício observou que «pesquisas recentes mostram um grande potencial inexplorado para assumir responsabilidades e planejar o trabalho». Ele comentou em seguida que «isso não parece corroborado pelas direções patronais que, na sua maioria, opõem-se à participação operária» [pág. 148]. Todavia, já então os gestores mais argutos buscavam formas de aproveitar aquele «grande potencial inexplorado para assumir responsabilidades e planejar o trabalho», e esta preocupação ditou o reconhecimento de que o fordismo podia ser substituído por métodos de exploração mais eficazes. Como Luc Boltanski e Ève Chiapello mostraram em Le Nouvel Esprit du Capitalisme, ([Paris]: Gallimard, 1999), num estudo muitíssimo detalhado do caso francês, o toyotismo recuperou e reformulou em termos capitalistas os temas lançados pelas lutas espontâneas e autogestionárias das décadas de 1960 e 1970, da mesma maneira que, várias décadas antes, os discípulos da escola de relações humanas haviam recuperado e reformulado certos temas do antigo sindicalismo radical.
Se o critério por que se deve aferir o mérito de um livro é o de ultrapassar a época em que foi escrito, esta obra de Maurício Tragtenberg satisfaz plenamente tal exigência. Aqueles que leram atentamente Administração, Poder e Ideologia ou que ouviram Maurício glosar em aulas e conversas particulares os temas do livro ficaram preparados para entender desde início as funções do toyotismo enquanto reorganização do processo de exploração.
Nesta perspectiva, depois de mencionar o predomínio dos livros de auto-ajuda no interior das bibliotecas de empresa e a proliferação dos psicológos de empresa, Maurício escreveu: «Trata-se de uma nova casta que aparece: psicocratas e tecnofrenos. Manipulado, angustiado, inculpado, o indivíduo hoje se caracteriza por uma grande apatia política. [...] toda preocupação do poder é fragmentar as classes sociais em indivíduos. É o triunfo do psicológico sobre o político deliberadamente ocultado. Trata-se da regressão do político ao psíquico». Um quarto de século depois de estas linhas terem sido publicadas pela primeira vez, tal situação não caracteriza já apenas o interior das grandes empresas mas a sociedade em geral. O que entretanto ocorreu foi a expansão de certas técnicas de organização e de controlo da força de trabalho, convertidas em técnicas de governo da própria sociedade. E Maurício Tragtenberg logo em seguida indicou a conclusão, hoje mais actual do que nunca: «O indivíduo só pode recuperar o seu poder social, apreender a dimensão do político e influenciar a sociedade no interior de sua classe social. [...] A regressão do político ao psíquico se dá quando a luta de classes não se pode aprofundar» [págs. 38-39, subs. orig.].
As primeiras cinquenta e cinco páginas de Administração, Poder e Ideologia fundamentam a crítica à co-gestão alemã e às experiências similares na Bélgica e em França, descritas com detalhe nas sessenta e cinco páginas seguintes. Pode lamentar-se que Maurício Tragtenberg tivesse optado por proceder a um longo enunciado de legislação, para só depois o comentar de maneira crítica, e é talvez aqui que mais se notam os inconvenients de uma redacção apressada. Mas o leitor que não desanime com a aridez formal das leis acabará por ser recompensado pela maneira como Maurício aplicou a este estudo prático as lições de carácter geral que formulara a respeito da escola de relações humanas. «[...] comparada à direção patronal de “direito divino”, a participação ou co-gestão aparece como algo renovador. Contudo, a legalização dos conselhos de empresa ou sua seção sindical, o direito de reunir-se regularmente na mesma não são suficientes para garantir uma espécie de “dualidade de poder” na empresa. [...] A co-gestão não altera o poder dos grupos financeiros que dominam as empresas industriais [...] A preocupação da co-gestão é: garantir a paz social, a harmonia social e a mutação da sociedade através da empresa» [págs. 109-110]. E, mais vigorosamente: «A co-gestão na empresa apareceu, em sua clareza, como a integração do sindicalismo no Estado burguês» [pág. 228]. A propósito do participacionismo em França, Maurício indicou que «a “associação capital e trabalho” mascara a exploração do trabalho pelo capital e tem por fim encerrar os assalariados no horizonte da empresa, pondo-os em concorrência uns com outros, para maior proveito da classe capitalista em seu conjunto», e acrescentou que «o assalariado, a pretexto de “participar”, intensifica sua própria exploração» [págs. 106-107]. A leitura de Administração, Poder e Ideologia permite entender claramente o nexo lógico entre o Estado de bem-estar social assente no fordismo e o paternalismo toyotista assente no neoliberalismo. «A impossibilidade de uma gestão real dos meios de produção pela mão-de-obra significa, na prática, um reforço ao modo capitalista de produção» [pág. 110].
Quer no quadro das decisões governamentais e do relacionamento entre os sindicatos e as administrações de empresa quer no quadro de uma organização interna das empresas e através do relacionamento directo entre os departamentos de pessoal e os trabalhadores, a participação de representantes dos trabalhadores em certos níveis da hierarquia administrativa das empresas, afastados das decisões estratégicas importantes, só se pode entender no contexto de uma grande atomização da vida política e de uma profunda burocratização do movimento sindical ou de um forte recuo das lutas dos trabalhadores. Tanto as modalidades de co-gestão analisadas por Maurício Tragtenberg como os círculos de controlo da qualidade e outras inovações difundidas pelo toyotismo implicam um procedimento do mesmo tipo da democracia representativa – por oposição à democracia directa, com revocabilidade permanente e rotatividade nos cargos – e em alguns dos seus outros livros, além de múltiplos artigos e inúmeras intervenções pessoais, Maurício denunciou as armadilhas e os paradoxos da delegação de poder contidos na democracia representativa. Esta relação estreita entre a crítica ao Estado e a crítica à empresa é uma das principais, e mais actuais, lições do conjunto da obra de Maurício Tragtenberg. Ainda neste livro Maurício uniu as duas vertentes, quando sublinhou que «no período do capitalismo monopolista de Estado, tanto na empresa quanto no Estado, a burguesia reforça o carácter autoritário do Estado, de um lado; de outro, intensifica a pressão ideológica mediante “panacéias” administrativas que se constituem em pseudogestão e pseudoparticipação» [pág. 111].
Maurício Tragtenberg mostrou também que esse processo ocorria independentemente do lado em que os seus promotores se situavam durante a guerra fria e quer invocassem ideologias de direita como de esquerda. «[...] o Estado coordenador, normalizador e planificador central dos desejos sociais não é um simples instrumento neutro [...]; tanto a classe dominante como outra máquina burocrática, o Partido Bolchevique, podem dominá-lo para gerir a sociedade e instaurar sua dominação. Tomar o poder central é fazê-lo perpetuar-se, fazê-lo funcionar, não fazê-lo desaparecer. Integrar-se ao poder capitalista, como o fazem os sindicatos de direita e esquerda, mesmo “operários”, [...] não permite, de forma alguma, modificar ou reorientar o poder num sentido “socialista”. Onde conquistaram o aparelho de Estado, os partidos ditos “comunistas”, longe de abolir a organização salarial e patriarcal do capital, consolidaram-na, racionalizaram-na, reproduziram-na ao infinito, em todas as áreas» [págs. 130-131]. Maurício deixou bem claro que as formas autoritárias de gestão das empresas e de organização da sociedade caracterizavam todo o capitalismo e constituíam o elemento fundamental comum tanto ao capitalismo privado que é hoje hegemónico como ao capitalismo de Estado que prevalecia no antigo bloco soviético. «Em nossa opinião, não se trata de mudar as peças do jogo, mas o próprio jogo» [pág. 140].
Esta nova leitura de Administração, Poder e Ideologia levou-me a recordar a influência exercida por Mário Pedrosa sobre Maurício Tragtenberg. Embora não se encontre evocada no texto nem mencionada na bibliografia, é perceptível que a obra genial de Mário Pedrosa, A Opção Imperialista (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966), inspirou algumas das teses e alguns dos pontos de vista deste livro de Maurício. Quando classifico de genial A Opção Imperialista não me estou a deixar levar por entusiasmos e meço as palavras, pois trata-se de um livro que se deve colocar no mesmo plano que, por exemplo, a obra de Sweezy para o entendimento dos mecanismos do capitalismo na segunda metade do século XX. É indispensável passar da análise isolada de obras ou de autores para o estudo das relações profundas – nem sempre evidentes – entre os marcos culturais mais significativos, que aliás não são forçosamente os mais divulgados. Talvez um dia a historiografia do pensamento no Brasil alcance a altura atingida por alguns dos pensadores brasileiros.
João Bernardo
Evocando os ensinamentos de Adolf Berle, Maurício Tragtenberg chamou a atenção para a capacidade de os administradores das grandes empresas influenciarem directamente o poder político. Tratava-se do prolongamento lógico da separação entre a propriedade detida pelos accionistas e o controlo exercido pelos principais administadores, e apesar de Berle ser geralmente considerado o pioneiro no estudo desta questão, Maurício recordou a precedência de Walther Rathenau na análise da transformação da propriedade privada em propriedade impessoal e na obtenção de um papel político pelas grandes empresas. Aliás, Maurício é autor de um estudo sobre as ideias de Rathenau, que decerto não será esquecido na colecção da Unesp. Os marxistas, especialmente Lenin, interpretaram como uma antecipação do socialismo a organização capitalista da economia promovida pelo estado-maior alemão durante a primeira guerra mundial. Na realidade foi uma antecipação do capitalismo de Estado, tal como a Rússia soviética o começou a aplicar ao longo de 1918 e até ao final, e tal como se desenvolveu em formas mitigadas no resto do mundo. Homem de negócios e ideólogo, além de figura política, Rathenau esteve no centro da experiência inovadora alemã, e a análise das suas concepções permitiu a Maurício Tragtenberg interpretar esta linha de evolução das grandes empresas não como uma antecipação do socialismo mas como um desenvolvimento do capitalismo. «À medida que se desenvolve, a grande corporação tende cada vez mais a ser propriedade de um grupo que age em conformidade com os critérios capitalistas de racionalidade. Como resultado final, temos uma sociedade de grandes corporações, cujo controle está em mãos de uma oligarquia fechada que se autopromove e se auto-reproduz» [pág. 14]. Escritas há vinte e cinco anos, estas linhas retratam profeticamente a situação actual e mostram aos distraídos que a globalização, em vez de ser uma perversidade da história, é uma fase lógica do processo de desenvolvimento inerente ao capitalismo.
Usada por Maurício Tragtenberg também para a análise do socialismo, esta problemática permitiu-lhe proceder à crítica dos regimes de tipo soviético, onde a burocracia assumira o mesmo papel que Berle havia definido para os administradores nas grandes empresas norte-americanas. Vemos, assim, que o socialismo heterodoxo de Maurício tinha raízes muito profundas e ramificadas.
Mas Administração, Poder e Ideologia não se limita a analisar o poder exercido pelas grandes empresas sobre a sociedade em geral, e encontramos no livro estudos abundantemente documentados acerca do modo como no taylorismo e no fordismo níveis salariais relativamente elevados pressupunham condições de trabalho degradantes e ritmos infernais. «Observa-se um fato no capitalismo desenvolvido: a mais valia-relativa não substitui a mais-valia absoluta. Se, de um lado, opera-se a redução da jornada de trabalho, de outro, ela foi intensificada» [pág. 165]. Todavia, a percepção de que o desenvolvimento da mais-valia relativa tem sido sempre acompanhado por novas modalidades de mais-valia absoluta não levou Maurício Tragtenberg a descurar os problemas específicos da mais-valia relativa, e este é um dos aspectos interessantes do livro. Prolongando as análises de Peter Drucker a respeito das relações entre administradores e trabalhadores no interior das empresas e levando até às últimas consequências as pretensões da escola das relações humanas, Maurício pôde insistir já em 1980, antes de estar generalizado o toyotismo, na capacidade de os empresários recuperarem os anseios dos trabalhadores. Foi sem dúvida necessária uma grande argúcia, e para um autor de extrema-esquerda necessária igualmente a capacidade de romper com dogmas ainda poderosos, para detectar naquela época que «empresa é também aparelho ideológico» [pág. 37].
Maurício Tragtenberg mostrou que a escola das relações humanas, tal como fora desenvolvida por Elton Mayo, surgira em virtude dos problemas criados pelo taylorismo e pelo fordismo, e nesta medida Maurício pôde antecipar as correntes de gestão actuais. «[...] os executivos europeus utilizam conceitos criados pelos novos eventos: diálogo, participação. Isso, para a mão-de-obra, não passa de mais um recurso para arrancar maior produtividade» [pág. 28]. Se, como Maurício salientou, nas décadas de 1920 e 1930 «“relações humanas” surgiu e se desenvolveu como reacção ao sindicalismo operário norte-americano» [pág. 32], também é pertinente observar que o toyotismo constituiu a resposta patronal às grandes vagas de lutas dos trabalhadores nas décadas de 1960 e de 1970, ocorridas fora dos sindicatos, cuja burocratização fora acelerada, entre outros factores, precisamente pela escola das relações humanas. Maurício Tragtenberg resumiu em poucas palavras a bem conhecida situação nos Estados Unidos, escrevendo que «as grandes empresas e os sindicatos desenvolveram uma divisão de trabalho: as empresas preocupam-se com as máquinas, os sindicatos preocupam-se com a mão-de-obra» [pág. 126]. Esta «divisão de trabalho», que sob uma ou outra forma se reproduzira em todo o mundo, fez com que as lutas mais radicais surgissem ou se expandissem exteriormente aos sindicatos, e Maurício dedicou duas dezenas de páginas ao movimento espontâneo de greves ocorrido no final da década de 1960 e no começo da década seguinte nos Estados Unidos e em vários países europeus. O quadro de análise proposto em Administração, Poder e Ideologia permite interpretar o toyotismo como a resposta patronal aos movimentos de contestação operária que, ao porem em causa a legitimidade dos sindicatos burocratizados, ameaçaram seriamente os fundamentos sociais do fordismo. «[...] as greves selvagens mostraram o que havia de mitológico na tal integração da classe operária no capitalismo» [pág. 228]. Numa lúcida antecipação, depois de concluir que as greves espontâneas das décadas de 1960 e 1970 «são movimentos da base para o “topo”, reacções contra as negociações colectivas conduzidas pela burocracia sindical, reivindicação de participação real e não simbólica», Maurício observou que «pesquisas recentes mostram um grande potencial inexplorado para assumir responsabilidades e planejar o trabalho». Ele comentou em seguida que «isso não parece corroborado pelas direções patronais que, na sua maioria, opõem-se à participação operária» [pág. 148]. Todavia, já então os gestores mais argutos buscavam formas de aproveitar aquele «grande potencial inexplorado para assumir responsabilidades e planejar o trabalho», e esta preocupação ditou o reconhecimento de que o fordismo podia ser substituído por métodos de exploração mais eficazes. Como Luc Boltanski e Ève Chiapello mostraram em Le Nouvel Esprit du Capitalisme, ([Paris]: Gallimard, 1999), num estudo muitíssimo detalhado do caso francês, o toyotismo recuperou e reformulou em termos capitalistas os temas lançados pelas lutas espontâneas e autogestionárias das décadas de 1960 e 1970, da mesma maneira que, várias décadas antes, os discípulos da escola de relações humanas haviam recuperado e reformulado certos temas do antigo sindicalismo radical.
Se o critério por que se deve aferir o mérito de um livro é o de ultrapassar a época em que foi escrito, esta obra de Maurício Tragtenberg satisfaz plenamente tal exigência. Aqueles que leram atentamente Administração, Poder e Ideologia ou que ouviram Maurício glosar em aulas e conversas particulares os temas do livro ficaram preparados para entender desde início as funções do toyotismo enquanto reorganização do processo de exploração.
Nesta perspectiva, depois de mencionar o predomínio dos livros de auto-ajuda no interior das bibliotecas de empresa e a proliferação dos psicológos de empresa, Maurício escreveu: «Trata-se de uma nova casta que aparece: psicocratas e tecnofrenos. Manipulado, angustiado, inculpado, o indivíduo hoje se caracteriza por uma grande apatia política. [...] toda preocupação do poder é fragmentar as classes sociais em indivíduos. É o triunfo do psicológico sobre o político deliberadamente ocultado. Trata-se da regressão do político ao psíquico». Um quarto de século depois de estas linhas terem sido publicadas pela primeira vez, tal situação não caracteriza já apenas o interior das grandes empresas mas a sociedade em geral. O que entretanto ocorreu foi a expansão de certas técnicas de organização e de controlo da força de trabalho, convertidas em técnicas de governo da própria sociedade. E Maurício Tragtenberg logo em seguida indicou a conclusão, hoje mais actual do que nunca: «O indivíduo só pode recuperar o seu poder social, apreender a dimensão do político e influenciar a sociedade no interior de sua classe social. [...] A regressão do político ao psíquico se dá quando a luta de classes não se pode aprofundar» [págs. 38-39, subs. orig.].
As primeiras cinquenta e cinco páginas de Administração, Poder e Ideologia fundamentam a crítica à co-gestão alemã e às experiências similares na Bélgica e em França, descritas com detalhe nas sessenta e cinco páginas seguintes. Pode lamentar-se que Maurício Tragtenberg tivesse optado por proceder a um longo enunciado de legislação, para só depois o comentar de maneira crítica, e é talvez aqui que mais se notam os inconvenients de uma redacção apressada. Mas o leitor que não desanime com a aridez formal das leis acabará por ser recompensado pela maneira como Maurício aplicou a este estudo prático as lições de carácter geral que formulara a respeito da escola de relações humanas. «[...] comparada à direção patronal de “direito divino”, a participação ou co-gestão aparece como algo renovador. Contudo, a legalização dos conselhos de empresa ou sua seção sindical, o direito de reunir-se regularmente na mesma não são suficientes para garantir uma espécie de “dualidade de poder” na empresa. [...] A co-gestão não altera o poder dos grupos financeiros que dominam as empresas industriais [...] A preocupação da co-gestão é: garantir a paz social, a harmonia social e a mutação da sociedade através da empresa» [págs. 109-110]. E, mais vigorosamente: «A co-gestão na empresa apareceu, em sua clareza, como a integração do sindicalismo no Estado burguês» [pág. 228]. A propósito do participacionismo em França, Maurício indicou que «a “associação capital e trabalho” mascara a exploração do trabalho pelo capital e tem por fim encerrar os assalariados no horizonte da empresa, pondo-os em concorrência uns com outros, para maior proveito da classe capitalista em seu conjunto», e acrescentou que «o assalariado, a pretexto de “participar”, intensifica sua própria exploração» [págs. 106-107]. A leitura de Administração, Poder e Ideologia permite entender claramente o nexo lógico entre o Estado de bem-estar social assente no fordismo e o paternalismo toyotista assente no neoliberalismo. «A impossibilidade de uma gestão real dos meios de produção pela mão-de-obra significa, na prática, um reforço ao modo capitalista de produção» [pág. 110].
Quer no quadro das decisões governamentais e do relacionamento entre os sindicatos e as administrações de empresa quer no quadro de uma organização interna das empresas e através do relacionamento directo entre os departamentos de pessoal e os trabalhadores, a participação de representantes dos trabalhadores em certos níveis da hierarquia administrativa das empresas, afastados das decisões estratégicas importantes, só se pode entender no contexto de uma grande atomização da vida política e de uma profunda burocratização do movimento sindical ou de um forte recuo das lutas dos trabalhadores. Tanto as modalidades de co-gestão analisadas por Maurício Tragtenberg como os círculos de controlo da qualidade e outras inovações difundidas pelo toyotismo implicam um procedimento do mesmo tipo da democracia representativa – por oposição à democracia directa, com revocabilidade permanente e rotatividade nos cargos – e em alguns dos seus outros livros, além de múltiplos artigos e inúmeras intervenções pessoais, Maurício denunciou as armadilhas e os paradoxos da delegação de poder contidos na democracia representativa. Esta relação estreita entre a crítica ao Estado e a crítica à empresa é uma das principais, e mais actuais, lições do conjunto da obra de Maurício Tragtenberg. Ainda neste livro Maurício uniu as duas vertentes, quando sublinhou que «no período do capitalismo monopolista de Estado, tanto na empresa quanto no Estado, a burguesia reforça o carácter autoritário do Estado, de um lado; de outro, intensifica a pressão ideológica mediante “panacéias” administrativas que se constituem em pseudogestão e pseudoparticipação» [pág. 111].
Maurício Tragtenberg mostrou também que esse processo ocorria independentemente do lado em que os seus promotores se situavam durante a guerra fria e quer invocassem ideologias de direita como de esquerda. «[...] o Estado coordenador, normalizador e planificador central dos desejos sociais não é um simples instrumento neutro [...]; tanto a classe dominante como outra máquina burocrática, o Partido Bolchevique, podem dominá-lo para gerir a sociedade e instaurar sua dominação. Tomar o poder central é fazê-lo perpetuar-se, fazê-lo funcionar, não fazê-lo desaparecer. Integrar-se ao poder capitalista, como o fazem os sindicatos de direita e esquerda, mesmo “operários”, [...] não permite, de forma alguma, modificar ou reorientar o poder num sentido “socialista”. Onde conquistaram o aparelho de Estado, os partidos ditos “comunistas”, longe de abolir a organização salarial e patriarcal do capital, consolidaram-na, racionalizaram-na, reproduziram-na ao infinito, em todas as áreas» [págs. 130-131]. Maurício deixou bem claro que as formas autoritárias de gestão das empresas e de organização da sociedade caracterizavam todo o capitalismo e constituíam o elemento fundamental comum tanto ao capitalismo privado que é hoje hegemónico como ao capitalismo de Estado que prevalecia no antigo bloco soviético. «Em nossa opinião, não se trata de mudar as peças do jogo, mas o próprio jogo» [pág. 140].
Esta nova leitura de Administração, Poder e Ideologia levou-me a recordar a influência exercida por Mário Pedrosa sobre Maurício Tragtenberg. Embora não se encontre evocada no texto nem mencionada na bibliografia, é perceptível que a obra genial de Mário Pedrosa, A Opção Imperialista (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966), inspirou algumas das teses e alguns dos pontos de vista deste livro de Maurício. Quando classifico de genial A Opção Imperialista não me estou a deixar levar por entusiasmos e meço as palavras, pois trata-se de um livro que se deve colocar no mesmo plano que, por exemplo, a obra de Sweezy para o entendimento dos mecanismos do capitalismo na segunda metade do século XX. É indispensável passar da análise isolada de obras ou de autores para o estudo das relações profundas – nem sempre evidentes – entre os marcos culturais mais significativos, que aliás não são forçosamente os mais divulgados. Talvez um dia a historiografia do pensamento no Brasil alcance a altura atingida por alguns dos pensadores brasileiros.
João Bernardo
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