segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Mauricio Tragtenberg discute a Revolução Russa

4. A REVOLUÇÃO RUSSA E A III INTERNACIONAL

A III Internacional surgiu em conseqüência da bancarrota da II Internacional, cujos partidos antes da Primeira Guerra proclamavam seu internacionalismo e sua oposição à chamada guerra imperialista. Declarada a guerra, cada partido socialista assumiu a defesa de sua pátria, convertendo-se ao nacional-patriotismo e declarando a luta de classes em moratória.
A eclosão da Revolução Russa de 1917, que levou o Partido Bolchevique (Partido Comunista Russo) ao poder, reuniu diferentes facções dos antigos partidos socialistas em Moscou, fundando-se em 1919 a III Internacional.
Pressentindo que a Internacional só poderia sê-lo nominalmente, pois que sua sede em Moscou a tornaria subordinada à política do Partido Comunista Russo, Karl Liebknecht e Rosa Luxemburgo propuseram que a sede da mesma fosse em Berlim ou em outra cidade da Europa central.
É necessário situar que a tomada do poder pelo partido de Lênin (Partido Bolchevique) significou, antes de mais nada, a tentativa de colocar em prática um programa de oposição ao capitalismo privado. Também é importante considerar que a Revolução Russa enfrentou um período de guerra civil que durou anos e a intervenção de exércitos estrangeiros - alemães, ingleses, norte-americanos e tchecos -, auxiliados em algumas regiões por generais czaristas como Koltchak, Denikin, Wrangel, que queriam restabelecer o capitalismo privado.
É nessa conjuntura de guerra civil interna e invasão estrangeira que os dirigentes do PC russo procuram, antes de mais nada, vencer os invasores e ao mesmo tempo reorganizar a economia devastada. É quando Trotsky proclama o regime do “comunismo de guerra”. Os diretores de empresas industriais passariam a ser nomeados pelo Partido que detém o poder de Estado, e as unidades onde houve administração coletiva ou autogestionada deveriam subordinar-se à nova medida.
Paralelamente, Lênin introduz o taylorismo na URSS, significando, portanto, a volta à hierarquia nas fábricas, o planejamento restrito a um corpo de especialistas e a mão-de-obra realizando o que a cúpula técnica define como sendo os objetivos das empresas. Embora considerasse o taylorismo uma forma de organização do trabalho tipicamente capitalista, Lênin argumentava que o poder estava com o Partido e isso garantia a supremacia da classe operária no país. Assim, a técnica taylorista poderia ser colocada a serviço do proletariado.
Isso significou o fim dos comitês de fábrica e da autogestão nas empresas. A nova palavra de ordem de Trotsky era: trabalho, ordem e disciplina. Assim, já em 1920 das 2 051 empresas importantes, 1 783 estavam sob a direção de um administrador nomeado pelo Estado (Fonte: A. Kollontai, L’opposition ouvrière, Paris, Ed. du Seuil, 1944, p. 25).
Logicamente a primeira conquista da Revolução Russa, isto é, o controle dos meios e do ritmo de produção pelos próprios trabalhadores, tinha sido usurpada pelo Estado e pelo Partido que o dirigia.

Vinculado ao novo processo, o novo governo estabeleceu a “militarização do trabalho”, onde o salário passou a cumprir a mesma função que tem na economia capitalista clássica. Conforme Trotsky, “os salários, em dinheiro ou espécie, devem acompanhar o mais possível a produtividade do trabalho individual” (A. Kollontai, op. cit., p. 26). Os sindicatos converteram-se em disciplinadores da mão-de-obra, e Trotsky considerava que o mal da Rússia não era o excesso mas a insuficiência de burocracia.
As milícias operárias são integradas a uma estrutura nova que recebe o nome de Exército Vermelho, no qual ex-oficiais czaristas retomam a direção das tropas, mas sob controle do novo Estado. Restabelece-se a hierarquia - os diversos graus diferenciadores da titulação militar -, porém, na medida em que o Partido detém o poder e, segundo Lênin, representa o proletariado, nada há a temer.
Cria-se, então, a Oposição Operária, formada por trabalhadores revolucionários dá primeira hora, participantes das revoluções de 1905 e 1917 e da guerra civil. Ela denuncia a separação entre o Partido e as massas operárias, critica a direção única nas fábricas como produto do espírito burguês que não confia na força coletiva, reivindica a liberdade de crítica e critica a implantação do socialismo por via burocrática, por decretos da cúpula dirigente, e a redução da iniciativa das massas. A grande pergunta da Oposição Operária é: Realizaremos o socialismo pela ação dos trabalhadores ou por intermédio dos funcionários do Estado?
Isso tudo porque a cúpula dirigente “confia mais nos burocratas e nos técnicos do antigo regime do que na sã espontaneidade e criatividade proletária dos operários” (A. Kollontai, op. cit., p. 77).
Já em 1920 o proletariado russo tinha sido expropriado do controle dos meios de produção pelo Estado. A burocracia ocupava seu lugar na direção econômica (via economia de plano) e na direção política, por. mediação do Partido.
A essa expropriação econômica do proletariado alia-se a expropriação política: os sovietes (conselhos formados por unidades de produção ou concentrações urbanas), que desempenharam papel fundamental na tomada do poder pelo partido de Lênin, serão atrelados ao Estado, transformando-se, com os sindicatos, em “correias de transmissão” das ordens vindas de cima para baixo. Em outros termos, ao perderem sua autonomia, os sovietes desaparecem como representativos do Proletariado. Lênin e Trotsky criam algo original: uma república soviética sem sovietes!




5. A REBELIÃO DE KRONSTADT
A reação à expropriação política do poder da classe operária, substituído pelo poder do Partido e do Estado em seu nome, desencadeia, na Rússia, a Rebelião de Kronstadt (1921).
Kronstadt era uma base naval cujos marinheiros haviam participado das revoluções de 1905 e 1917 (o que foi motivo do filme de Eisenstein O encouraçado Potemkin), além de fornecer elementos para a guarda pessoal do palácio Smolni, sede do governo soviético.
Proclamam-se em rebelião contra o novo “Estado soviético”, reivindicando:
Resolução da Assembléia Geral da 1ª e 2ª Brigadas Marítimas (1º de março de 1921)
“Considerando que os sovietes (conselhos) atuais não exprimem mais a vontade dos trabalhadores urbanos e dos camponeses, é indispensável realizar imediatamente uma eleição com voto secreto. A campanha eleitoral deverá transcorrer livremente para que as massas operárias e camponesas sejam honestamente informadas.
1. Liberdade de palavra e de imprensa para os operários e camponeses, anarquistas (socialistas libertários) e socialistas de esquerda (ala esquerda do Partido Socialista Revolucionário, solidamente implantado no campesinato).
2. Convocação antes de 10-3-1921 de uma assembléia geral de operários, soldados vermelhos e marinheiros de Kronstadt e Petrogrado.
3. Libertação de todos os presos políticos socialistas, assim como dos operários e camponeses, soldados vermelhos e marinheiros encarcerados por participação em diversos movimentos populares
4. Eleição de uma comissão encarregada de examinar os casos dos aprisionados e internados em campos de concentração.
5. Supressão de todos os departamentos políticos (instrumentos de controle das instituições pelo Partido). Além do mais, nenhum partido deve ter o privilégio da propaganda ideológica, nem receber por ela nenhuma subvenção governamental. Em substituição a isso, propomos que sejam eleitos, em cada cidade ou vila, Comissões de Cultura e Educação subvencionadas pelo Estado.

6. Supressão imediata de todas as barreiras militares.
7. Distribuição de igual ração alimentar a todos os trabalhadores, exceção àqueles que exerçam trabalhos pesados.
8. Supressão dos destacamentos comunistas de choque em todas as seções militares, da milícia comunista nas usinas e nas minas. Se os destacamentos forem necessários, que sejam designados pelos soldados das seções militares; se guardas forem necessários, que sejam nomeados pelos próprios trabalhadores.” (Izvestia, de 3-3-1921, p. 16. Paris, Belibaste, 1969.)
A luta dos marinheiros era pelo restabelecimento do real poder dos sovietes. É o que se depreende do Izvestia de 6 de março de 1921, p. 29: “Ante os partidos, defendemos o poder dos sovietes. Queremos que sejam livremente eleitos os representantes do povo. Os sovietes pervertidos, confiscados pelo Partido Comunista, sempre se mostraram surdos às nossas necessidades e reivindicações”. Antes da tomada do poder, Lênin definia a palavra de ordem: “Todo poder aos sovietes”.
Os marinheiros denunciam que “a revolução de outubro foi feita para libertar os trabalhadores, porém estes estão mais escravizados que antes. A autoridade da monarquia policial foi substituída pelos usurpadores comunistas. Substituem a foice e o martelo pela baioneta. É a esse preço que a nova burocracia dos comissários e funcionários comunistas pretende assegurar-se uma vida tranqüila. Criticam a estatização dos sindicatos. Kronstadt representa uma nova ordem socialista em oposição à ordem comunista burocrática. Essa revolução é uma revolução do trabalho livre” (Izvestia, de 8-3-1926, p. 41-43).
Qual foi a reação dos líderes do “Estado socialista”? Além de denunciar os marinheiros de serem agentes do capitalismo internacional, dirigidos por ex-generais czaristas, Trotsky divulga a seguinte ordem pelo rádio:
“O governo dos operários e camponeses decidiu que Kronstadt e os navios insurretos devem submeter-se imediatamente à autoridade da República dos Sovietes.
Ordeno a todos que levantaram seu punho contra a pátria socialista a depor imediatamente as armas. Os rebeldes serão desarmados e enviados às autoridades soviéticas. Somente com a rendição incondicional poderão contar com a clemência da República Soviética.” (Izvestia, de 7-3-1921, p. 37.)
Sem permitir negociações, as tropas comandadas pelo ex-general czarista Tukhatchevski invadem e massacram os marinheiros de Kronstadt. Assim, o governo soviético, que havia expropriado economicamente o proletariado, submetendo-o ao administrador nomeado pelo Estado, expropriado politicamente ao reprimir Kronstadt: os sovietes e os sindicatos ficarão atrelados ao Estado, tanto sob Lênin quanto sob Stálin.
Revela-se aí uma característica central do bolchevismo: a impossibilidade de coexistir com qualquer movimento de base fundado na ação autônoma da classe operária. A repressão é a resposta bolchevique à autonomia da ação da classe trabalhadora.







6. MAKHNOVISTCHINA: UMA
REVOLUÇÃO NA REVOLUÇÃO
A impossibilidade de coexistência de ação autônoma da classe operária com o Estado bolchevique aparece com meridiana clareza na maneira como o governo bolchevique de “operários e camponeses” trata uma revolução na Ucrânia desenvolvida fora do controle do Partido Bolchevique, numa região predominantemente camponesa, visando abolir o capitalismo e substituí-lo pela autogestão social, com a eliminação do Estado como órgão acima da sociedade e fator de extorsão social.
Essa revolta, chamada Revolução Makhnovista - Nestor Makhno era um de seus líderes -, continuou a luta da Oposição Operária dirigida por Alexandra Kollontai e a dos marinheiros de Kronstadt: coletivização dos meios de produção e autogestão social, econômica e política exercida pelos trabalhadores por mediação de representantes livremente eleitos; negação de hierarquias salariais e sociais e de qualquer tipo de ditadura, mesmo a exercida em nome do proletariado porém sem o proletariado, a ditadura do Partido sacralizado.
Os bolcheviques tomaram o poder em novembro de 1917, porém no sul da Rússia somente o fariam em 1920. É que lá, na Ucrânia, havia sido vitoriosa a Makhnovistchina, movimento armado de camponeses organizados em milícias para garantir a democracia e realizar a autogestão social dos meios de produção e a abolição do salário, das classes e das hierarquias verticais.

Em março de 1917, Makhno reuniu em Gulai Pole, aldeia da Ucrânia, os militantes e lutadores pró-socialismo que lá deixara oito anos antes, quando condenado à prisão perpétua por atividade revolucionária. Fundou-se, então, a União dos Camponeses de Gulai Pole, para assegurar maiores contatos entre eles e opor-se resolutamente a Kerenski - que governou transitoriamente entre a queda do czar Nicolau II e a ascensão de Lênin -, firmando o princípio de que a “revolução dos trabalhadores do campo deve ser obra deles”, não admitindo que instituição alguma, seja sindicato, seja partido, fale por eles.
Realizou-se um congresso de trabalhadores do campo em Alexandrovska, perto de Gulai Pole, no qual os congressistas rejeitaram em bloco a legitimidade dos comitês comunais de coalizão sob o governo Kerenski, mantendo sob vigilância o Comitê Comunal de Gulai Pole. Foi o primeiro passo para desprestigiar o poder do Estado, abalando-o e substituindo-o pela auto-organização livre dos trabalhadores do campo. Esse congresso decidiu expropriar a terra dos latifundiários sem indenização, coletivizando-as imediatamente.
Em junho de 1917 deu-se a aliança operário-camponesa mediante a criação de uma união profissional entre os camponeses de Gulai Pole e os operários de Alexandrovska. Os camponeses de Gulai Pole tomaram para si a direção do Departamento Agrário e de Abastecimento, substituindo as autoridades estatais.
Efetuou-se o recenseamento das terras dos pometchiki (latifundiários) e dos kulaks (pequenos proprietários), organizando-se no Soviete de Operários e Camponeses um comitê dos batraki (empregados das fazendas), para estes lutarem organizadamente por seus interesses.
Em junho de 1917, os camponeses de Gulai Pole deixaram de pagar arrendamento de terras aos proprietários, e o soviete local proibiu o Comitê Comunal de tomar qualquer decisão de interesse público. A burguesia foi desarmada, sem oferecer resistência. E os soldados da guarnição de Alexandrovska e os trabalhadores das usinas lá instaladas prometeram apoio à ação dos camponeses de Gulai Pole.
Os camponeses de Gulai Pole também tomaram para si a expropriação das terras da Igreja Ortodoxa Russa, dos mosteiros e dos pometchiki, para cuidarem da semeadura. E, apesar das ameaças do Governo, Gulai Pole enviou delegações de camponeses a outras áreas para realizarem o mesmo.
Leon Schneider, eleito representante do Soviete dos Deputados e Camponeses de Gulai Pole junto ao Comitê Executivo Departamental de Ekaterinoslav, negociou com os metalúrgicos locais para que enviassem matéria-prima às forjas de Gulai Pole. Imediatamente as remessas começaram a chegar a seu destino.
O Congresso Regional de Comitês Agrários definiu quais propriedades dos pometchiki se tornariam comunas camponesas, reunindo famílias em grupos de 150 a 200 pessoas. O congresso cuidaria das semeaduras e dos trabalhos referentes à futura colheita, a primeira em comunas livres.
Enquanto isso, após a tomada do poder na Rússia pelo Partido Comunista a 17 de novembro de 1917, reuniu-se o Congresso Departamental dos Sovietes de Deputados Camponeses, em Ekaterinoslav. Gulai Pole enviou dois delegados: Nestor Makhno e Mironov. Em Gulai Pole havia vários poderes paralelos ao soviete: o de Kerenski, o da Rada (Governo Provisório da Ucrânia) etc., de tendências direitistas.
Formou-se uma frente única entre os marinheiros de Kronstadt o Soviete de Gulai Pole. Makhno, relatando a obra efetuada em Gulai Pole, consegue o apoio de um regimento de Cavaleiros de S. Jorge, que lá havia, contra a Rada, sinônimo de reacionarismo.
Enquanto o bolchevique Einstem discursava ante o Soviete de Gulai Pole proclamando a necessidade da formação de um novo “Estado Socialista” que trouxesse a felicidade a quem trabalha, os camponeses exercitavam-se no uso de armas, prevendo que o Partido tentaria impor sua autoridade de armas na mão.





Os camponeses ucranianos, sob a direção de Makhno, organizam uma luta contra a Rada, que ameaçava invadir toda a região e já lutava contra os bolcheviques nas cidades. Cossacos (soldados czaristas) vindos da frente alemã dispuseram-se a unir-se ao general Kaledine, chefe da contra-revolução.
Em Alexandrovska, Makhno se revolta em razão de os bolcheviques não terem libertado os presos políticos detidos por não reconhecerem o governo Kerenski. Os bolcheviques explicam que não o fizeram por temerem igualmente a revolta deles contra o seu poder, pois já haviam designado um presidente da Tcheka (polícia política). Compreendendo isso, Makhno liberta os presos com auxílio de sua coluna.
Escolhido para membro de uma comissão de inquérito, Makhno tomou conhecimento de numerosos processos a serem julgados. E, antes de abri-los, solicitou a presença dos detidos. Eram generais, coronéis, chefes da milícia da Rada, contra-revolucionários; não haviam, porém, sequer tomado armas contra os bolcheviques. Exigiu, então, que cada caso fosse julgado especificamente, rejeitando a idéia de fuzilar a todos indistintamente, para salvar aqueles que futuramente poderiam prestar-lhe serviços.
A esse propósito cumpre registrar as palavras de Makhno:
“Se eu aceitei o papel ingrato de membro da Comissão de Sindicância, foi para informar-me melhor e comunicar aos camponeses as preocupações dominantes entre os adeptos do comunismo de Estado e a maneira pela qual, nesses dias gloriosos de levante revolucionário, esses ‘defensores da igualdade e da liberdade’ abandonam seus princípios pelos privilégios do poder e também para adquirir certa prática da forma de conduzir-me nesse tipo de acontecimento”. (Makhno, La Révolution Russe en Ucranie; 1918-21, Paris, Belfond, 1970, p. 140.)
Enquanto as discussões provocadas pelos bolcheviques se eternizavam, Makhno fica sabendo que a Rada e os monarquistas se armavam e os cossacos estavam marchando rumo a Alexandrovska para unir-se às tropas de Kaledine. Gulai Pole envia uma comissão para negociar com eles, mas sem nenhum resultado.
Os cossacos atacam, mas são repelidos; pedem, então, a paz, abandonam suas armas e retornam a suas casas. Muitos ingressam no exército bolchevique.
O Comitê Revolucionário, constituído de bolcheviques, social-democratas (mencheviques) e libertários, intervém na vida dos trabalhadores de Gulai Pole, governando mediante severas ordens verbais ou escritas; lança um imposto sobre a cidade de 18 milhões de rublos, prende socialistas e pensa em criar o comissário de prisão.
Makhno nota que os bolcheviques e os socialistas revolucionários se apresentam mais burocráticos que revolucionários. Assim raciocina:
“Observando a ação deles (bolcheviques e socialistas revolucionários) em Alexandrovska, anteriormente nos congressos departamentais, onde constituíam a maioria, pressentia que a coesão desses partidos era uma ficção e mais cedo ou mais tarde um desses partidos absorveria ou devoraria brutalmente o outro, pois os dois são partidários do princípio do Estado e de sua autoridade sobre a comunidade livre dos trabalhadores”. (Makhno, op. cit., p. 154.)
Makhno se convence de que não era o povo que usufruía das liberdades mas sim os partidos políticos, e chegaria o dia em que o povo seria esmagado pela bota militar. Em suma, segundo Makhno, o povo ouve as decisões tomadas pelos partidos “nas cozinhas políticas de seus comitês centrais”.
Chegando a Gulai Pole, Makhno é eleito pelo soviete local presidente do Comitê Revolucionário, e sob sua direção o Conselho desarma o batalhão do Regimento 48 de Berdiansk acantonado em Orakhovo e constituído de partidários do general Kaledine e da

Rada. As armas são entregues ao exército de camponeses livres de Gulai Pole. Makhno vê como necessidade imperiosa armar os camponeses, ante a notícia de um tratado de paz de Lênin com os alemães e a Rada. Com aprovação unânime, o soviete local obtém letras dos diretores do banco em Gulai Pole, sacando 250 mil rublos para armar a população.
Iniciam-se as trocas diretas entre campo e cidade, os trabalhadores urbanos enviam tecidos e os camponeses, trigo e outros gêneros alimentícios. Com isso evidenciam-se a inutilidade dos burocratas do Estado e a vantagem das trocas diretas entre os produtores. É a proposta da sociedade igualitária e socialista que entra em ação sem delongas. Porém o governo bolchevique barra tais trocas, alegando estar sendo criada uma organização do Estado com essa função.
Em fevereiro e março de 1918 completa-se a coletivização das terras. Os ex-proprietários ficam com dois cavalos, duas vacas, uma charrua, uma semeadeira e uma ceifeira para seus serviços. Organizam-se as comunas coletivas. Criam-se armazéns gerais. Cria-se a cozinha comum, havendo liberdade, no entanto, de alguém cozinhar individualmente, se o preferir. Definem-se programas de trabalho. Criam-se escolas, fundadas no método libertário do espanhol Francisco Ferrer: a autodisciplina substituindo a disciplina imposta e educação sem prêmios ou castigos, vinculada ao estudo da natureza no local (ciências naturais) e ao trabalho.
“Enquanto isso, os adeptos do capitalismo de Estado enfrentam o problema: Como manter ante as massas a imagem de pioneiros e líderes da revolução e ao mesmo tempo desviá-la de sua luta autônoma e criativa e colocá-la a serviço do estatismo, decorrente das ordens e diretivas do Comitê Central do Partido e do Governo?” (Makhno, op. cit., p. 191.)
Makhno concluiu que na orientação imprimida à revolução pelo Partido Bolchevique não havia espaço nem para as comunidades agrárias autônomas, organizadas livremente pelos camponeses, nem para a transferência dos meios de produção para a mão dos trabalhadores.
O governo bolchevique, após assinar o tratado de paz de Brest-Litovsk (1918), retirou suas forças da Ucrânia, deixando-a entregue aos reacionários da Rada e ao exército germano-austríaco que ocupava a capital, Kiev, totalizando mais de 600 mil soldados.
Porém o exército camponês vence os ex-generais czaristas como Petliura e Denikin e susta o avanço alemão. Ao mesmo tempo, discutia-se em Moscou a maneira de se aniquilar a Makhnovistchina. A 10 de abril de 1919 reúne-se um congresso camponês para discutir a intervenção de membros da Tcheka em suas organizações. Dybenko, em nome do governo soviético e como comandante de divisão, declara esse congresso contra-revolucionário.
As milícias camponesas derrotam as tropas bolchevistas do general Wrangel, mas, ao voltarem da batalha pelo istmo de Perekop, foram dizimadas pelo Exército Vermelho, “em nome da revolução”.





7. O CAPITALISMO DE ESTADO
NA URSS

A profunda incompatibilidade entre a proposta socialista fundada na autonomia da ação da classe, de sua auto-organização e a proposta bolchevista, que, por meio da hegemonia do Partido, constrói o capitalismo de Estado,
A burocracia estatal soviética cumpriu o mesmo papel industrializante que a burguesia clássica cumprira no Ocidente. A URSS tornou-se uma grande potência e sua política corresponde a isso. Comparativamente, o nível de vida médio soviético é superior ao do período czarista.
Porém a burocracia soviética administra o Estado como uma -propriedade privada. A adoção do taylorismo nas fábricas, o papel disciplinador conferido aos sindicatos - o que levou à formação de uma oposição sindical, dirigida pelo metalúrgico Klebanov - e a manutenção do salariato conferem ao Estado russo o caráter de um capitalismo de Estado integral.
Nesse sentido, Stálin foi um perfeito continuador da obra de Lênin, e Trotsky, de início profeta armado, criador do Exército Vermelho e, depois, expulso da URSS (1920), converteu-se em profeta desarmado. Somente. após perder o poder é que Trotsky retoma o tema da democracia operária como reivindicação socialista.
É importante notar que, ao tornar-se a URSS grande potência, a III Internacional, que agrupava os PCs existentes, tornou-se mero instrumento da política externa soviética. Com os acordos da Conferência de Ialta, ao final da Segunda Guerra (1945), a URSS praticamente ocupou a Europa oriental. E, por mecanismos de integração econômica - como o Conselho Econômico de Assistência Mútua (Comecon), criado em 1949 - e de coordenação militar - como o Pacto de Varsóvia (1955) -, constituiu seu bloco de influência autodenominado Bloco Socialista.
Isolado da China e privado da adesão incondicional da Iugoslávia e Albânia, o Bloco Socialista agrupa 340 milhões de pessoas, cerca de 10% da população mundial. Daí a importância do Comecon como fator de agrupamento econômico e do Pacto de Varsóvia como fator de agrupamento político-militar dos países do Leste Europeu.
A hegemonia russa foi expressa claramente por Brejnev na “teoria da soberania limitada”. De um lado, proclama-se imune à crise do capitalismo ocidental; de outro, os países integrantes do Comecon fixarão seus preços anualmente, para “assumir uma melhor correlação com as condições do mercado mundial” (J. Bernardo, O Comecon e a crise mundial, Lisboa, Contra-a-Corrente, s.d., p. 2).
Os países socialistas integrantes do Comecon participam das trocas internacionais. Em 1960, o volume de trocas desses países atingia 20% do comércio externo, e em 1973 passou a 28% (J. Bernardo, op. cit., p. 3). Isso mostra a dependência dos países do Bloco Socialista em relação às flutuações econômicas internacionais.
Nas relações dos países do Bloco Socialista com a URSS ocorre uma troca desigual. Por exemplo, no caso da Hungria, enquanto esta, de 16 rublos passou a pagar 36 por tonelada de petróleo importado da URSS, o que significou um aumento de 131 %, os preços das máquinas que ela vendeu à URSS tiveram um aumento de apenas 33%.
A renda nacional dos países do Comecon cresceu 10% em 1955-60, hoje atinge 4%. Na Polônia, recessões sucessivas - 1956, 1962 e 1970 - levaram a reformas já superadas quando postas em prática e a uma abertura à tecnologia capitalista ocidental.
À inflação junta-se a penúria de bens de consumo, o que levou na Polônia, já em 1974, a grandes filas junto aos armazéns. Entre as causas da inflação estão o desequilíbrio nos investimentos, a incoerência no planejamento, o peso crescente de uma burocracia estatal cada vez maior e o aumento de despesas militares na URSS que atingem 10% do produto interno bruto (PIB).
Iugoslávia e Hungria abrem-se aos investimentos capitalistas.
A crise do capitalismo reflete-se no Leste Europeu. Daí as rebeliões de 1953 em Berlim, de 1956 na Hungria e de 1968 na Tchecoslováquia e os vários movimentos que conduziram à formação do sindicato Solidariedade na Polônia.
É uma reação do proletariado ao capitalismo estatal da URSS e dos dirigentes dos Estados socialistas do Leste Europeu.
Exemplificando mais claramente, enquanto as trocas com os países capitalistas ocidentais representavam 31 % do comércio externo da URSS, as com os países integrantes do Comecon representavam 54% e as com países em vias de desenvolvimento, 13%. “A Alemanha Federal vem à cabeça dos parceiros capitalistas da URSS, seguida do Japão, Finlândia, Itália, França, depois Grã-Bretanha e EUA” (J. Bernardo, op. cit., p. 17).

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