quarta-feira, 17 de março de 2010

Dinâmica sexista do capital

Dinâmica sexista do capital

por Revista Espaço Acadêmico

por RENATA GONÇALVES*

Hobsbawm, em Era dos extremos, é enfático ao afirmar que a maior revolução social ocorrida no “curto” século XX foi a das mulheres. Às voltas com o Dia Internacional da Mulher, nos perguntamos o que isto significa. Sem ignorar os importantes avanços, propomos uma reflexão sobre a turbulenta relação entre classe social e relações de gênero. O ponto de partida para nossa reflexão é a inserção das mulheres na População Economicamente Ativa (PEA).

Diversos autores já observaram que o crescimento da participação feminina é um dos principais aspectos da recomposição do proletariado que se iniciou cerca de três décadas atrás e que ainda se encontra em curso. Afirmar, como fez Souza-Lobo (1991) que a classe operária tem dois sexos faz cada vez mais sentido.

Mas é preciso ir além de um enfoque meramente quantitativo, pois este aumento da participação feminina não se deu igualmente em todos os setores. No Brasil, enquanto a PEA feminina no setor primário diminuiu de 46,8%, em 1940, para 19,3%, em 1983, no setor secundário cresceu ligeiramente, no mesmo período, de 10,6% para 13,6%. O crescimento foi maior no terciário, onde a participação feminina saltou de 24,6% para 67,1% (Moraes Silva, 1990: 21). Também se pode perceber maior concentração em algumas categorias ocupacionais específicas, constituindo-se o que Bruschini & Rosemberg (1982) denominam “sexualização das ocupações”. Ou seja, o setor de serviços não se constitui em uma abstração (Segnini, 1998: 18). Trata-se, sem sombra de dúvidas, do principal gueto ocupacional feminino, mas cuja concentração se dá sobretudo no emprego doméstico. Em 1995, quase 5 milhões de brasileiras tinham como ocupação principal o serviço doméstico remunerado (Melo, 1998: 57).

Quais as implicações deste modo de presença feminina na PEA para a imbricação das relações de classe com relações de gênero?

Bihr e Pfefferkorn, apesar de considerarem importantes as transformações ocorridas com relação ao trabalho feminino, ponderam que se trata de transformações ambíguas, que produziram efeitos perversos, levando a novas formas de discriminação e constrangimentos. Ainda segundo os autores, a pretendida “feminização” reforça a dominação masculina na medida em que as “mulheres se alinham, de algum modo, sob as normas tradicionais dos homens” (1996: 26).

Esta ambigüidade pode ser encontrada em países como a França, onde ocorreu forte ampliação do contingente feminino da PEA. As análises de Maruani (1997) demonstram que a prosperidade do emprego feminino neste país vive sob a ameaça do desemprego e a marca da desigualdade. O subemprego instalou-se desde meados da década de 70, ao lado das diferentes formas de trabalho precário (trabalho interino, contrato a tempo determinado, estágios os mais variados…), as quais atingem predominantemente as mulheres. A autora revela que em 1996, na França, as mulheres representavam 85% das pessoas que trabalhavam num sistema de tempo parcial. O resultado foi um “processo de pauperização invisível” atrelada aos salários também parciais.

Um estudo realizado pelas União Brasileira de Mulheres e Corrente Sindical Classista revela que a precarização das condições de trabalho afeta bastante as mulheres na medida em que é criado “um fosso entre um pequeno número de trabalhadores qualificados e um grande número de não qualificados. Este fosso tem uma clivagem de gênero, já que as mulheres são maioria entre os não qualificados. As categorias de trabalho não qualificadas se feminizam cada vez mais” (1995: 46). Clivagem que fica mais nítida quando se trata do trabalho informal. Segundo Martins e Dombrowski, no município de São Paulo as mulheres representam 52% da população ocupada no setor informal (1996: 26). Dados que demonstram a afirmação de que “o emprego só teve um aumento entre as menos instruídas” (Butto, 1998: 76).

Assistimos, portanto, a uma verdadeira deterioração das condições de trabalho, principalmente o feminino, sem que, ao mesmo tempo, haja uma redefinição de papéis entre homens e mulheres. A jornada parcial, que inclui o trabalho em domicílio, permite a combinação de “atividades domésticas com as do mundo do trabalho” o que significa sobretudo que “contribui também para que sua inserção se dê em condições precárias e inseguras, geralmente levando à intensificação da carga de trabalho, à redução da remuneração e à perda da proteção oferecida pela legislação” (Seade, 1998: 1).

Neste contexto, o trabalho que, segundo Beauvoir (1991), seria sinônimo de emancipação feminina, apresenta crescentemente uma segunda e contraditória determinação: aprisionar duplamente as mulheres.

Comanne e Toussaint associam a feminização do trabalho à da pobreza, demonstrando que “a opressão das mulheres é para os capitalistas um instrumento que permite gerir o conjunto da força de trabalho” (1998: 6). Não é por acaso que esta feminização ocorre em escala mundial. Os autores afirmam que “não existe país no mundo, inclusive nos mais avançados neste campo, onde as rendas das mulheres se igualem à dos homens” (1998: 7).

No geral, os movimentos sociais (velhos e/ou novos)[1] que se pretenderam anticapitalistas ignoraram que as relações de gênero estavam profundamente imbricados nas estruturas da dominação capitalista de classe. Ou seja, ignoraram a dinâmica sexista do capital. Este se reproduz produzindo e reforçando preconceitos, inclusive de gênero. Não atentar para isto, ironicamente, implicou reforçar, reproduzir dispositivos fundamentais da dominação que se pretendia combater. E isto foi feito, quase sempre, em nome de um discurso que justificava o adiamento do secundário em nome da prioridade do combate aos aspectos fundamentais da dominação burguesa. Resultado: a luta pela emancipação favoreceu a reprodução de uma espécie de apartheid.

Não somente as derrotas do passado, mas as alterações em curso nas relações de classe, especialmente na composição da classe trabalhadora repõem, de maneira ainda mais crucial, a importância das relações de gênero para as lutas sociais. As condições de existência do proletariado se tornaram, no geral, mais precárias; a presença feminina no interior do proletariado aumentou; e aumentou principalmente nos segmentos mais afetados pela precarização. Esta maior imbricação de relações de gênero e relações de classe implica a exigência de alterações profundas na definição dos objetivos de curto e longo prazo, nas formas de luta e nos tipos de organização. Caso contrário, no próximo “Dia Internacional da Mulher” repetiremos os mesmos dados.

Referências

BEAUVOIR, S. de. (1991). Le deuxième sexe. Paris, Gallimard. 1ª ed. é de 1949.

BIHR, A. & PFEFFERKORN, R. (1996). “Travail domestique et vie privée”. Le Monde Diplomatique. Paris, setembro.

BRUSCHINI, C. & ROSEMBERG, F. (1982). “A mulher e o trabalho” In: BRUSCHINI, C. & ROSEMBERG, F. (orgs.), Trabalhadoras do Brasil. São Paulo, Brasiliense.

BUTTO, A. (1998). “Gênero, família e trabalho”. In: A.BORBA, A.; FARIA, N. & GODINHO, T. (orgs.). Mulher e política: gênero e feminismo no Partido dos Trabalhadores. São Paulo, Perseu Abramo.

COMMANE, D. & TOUSSAINT, E. (1998). “Feminización de la pobreza”. Cuadernos Feministas, nº 5.

GONÇALVES, R. (1999). Lutas sociais e relações de gênero: o processo de constituição do grupo de mulheres do São José. São Paulo, PUC. Dissertação de mestrado, mimeo.

HOBSBAWM, E. (1995). Era dos extremos. São Paulo, Companhia das Letras.

MARTINS, R. & DOMBROWSKI, O. (1998). “Mapa do trabalho informal na cidade de São Paulo”. In: JAKOBSEN, K. et alii. Mapa do trabalho informal. São Paulo, Perseu Abramo.

MARUANI, M. (1997). “Les temps modernes de l’emploi féminin”. Le monde diplomatique, setembro.

MELO, H. “Globalização, políticas neoliberais e relações de gênero no Brasil”. In: A.BORBA, A.; FARIA, N. & GODINHO, T. (orgs.). Mulher e política: gênero e feminismo no Partido dos Trabalhadores. São Paulo, Perseu Abramo.

MORAES SILVA, M. A. (1990). “A nova divisão sexual do trabalho na agricultura”. São Paulo em Perspectiva, 4 (3/4).

SEADE (1998), “Feminização da força de trabalho”. Mulheres em dados, n° 11, jan/mar.

SEGININI, L. (1998). Mulheres no trabalho bancário. São Paulo, Edusp.

SOUZA-LOBO, E. (1991). A classe operária tem dois sexos. São Paulo, Brasiliense.

UNIÃO Brasileira de Mulheres & Corrente Sindical Classista (1995). “Gênero, trabalho e sindicato”. Princípios, n° 37.


* Doutora em Ciências Sociais pela Unicamp e membro do Núcleo de Estudos de Ideologias e Lutas Sociais (NEILS); professora na Universidade Estadual de Londrina (UEL). Publicado na REA, nº 22, março de 2003, disponível em http://www.espacoacademico.com.br/022/22goncalves.htm

[1] Em outro lugar (Gonçalves, 1999), procuramos retrabalhar esta conceituação, por intermédio do exame crítico da literatura sobre o assunto e da referência às determinações sociais concretas – inclusive temporais e espaciais – destes movimentos.

fonte: http://espacoacademico.wordpress.com/2010/03/13/dinamica-sexista-do-capital/

Nenhum comentário:

Postar um comentário