1964, o ano que não terminou… (Parte 1)
Confiram a primeira parte do artigo “1964, o ano que não terminou’, de Paulo Arantes, texto que integrará a coletânea O quê resta da ditadura – a exceção brasileira (de Edson Teles e Vladimir Safatle), a ser lançado nesta quinta-feira (18/03) na USP. Por Paulo Arantes.
Conforme já noticiamos aqui, nesta quinta-feira (18/03) ocorrerá o lançamento do livro O que resta da ditadura: a exceção brasileira [Edson Teles e Vladimir Safatle (orgs), Boitempo Editorial, SP, 2010]. Os debates deste dia estão sendo chamados para o Auditório da Faculdade de História da USP, e se darão em torno de dois temas centrais: às 17hs, “Por que a verdade precisa de uma comissão?”, com o autor Edson Teles, o jurista Fábio Konder Comparato e a cientista política Glenda Mezarobba; e às 19h30, o tema “Políticas da verdade e da memória”, com ministro Paulo Vanucchi, o autor Vladimir Safatle e o professor de história da filosofia Paulo Arantes.
Em nossa opinião, tais debates e a própria publicação será uma importante oportunidade para a esquerda retomar dois temas fundamentais que ela não deveria nunca ter deixado de ter em vista criticamente: a verdadeira profundidade do golpe civil-militar brasileiro de 1964, bem como a possível extensão de um verdadeiro estado de sítio permanente mesmo após a chamada “redemocratização”.
Esta é a temática desenvolvida pelo professor de história da filosofia da USP e da Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF), Paulo Eduardo Arantes, no ensaio intitulado “1964, o ano que não terminou…”. O Passa Palavra publica a partir de hoje a primeira parte deste artigo, que constará na coletânea de Edson Teles e Vladimir Safatle acima referida. Na semana que vem, depois de lançado o livro, poderemos publicar o restante do artigo para dar continuidade à reflexão. Passa Palavra
1964, O ANO QUE NÃO TERMINOU… [*]
Paulo Eduardo Arantes
1.
Tudo somado, o que resta afinal da Ditadura? Na resposta francamente atravessada do psicanalista Tales Ab’Sáber, simplesmente tudo. Tudo menos a Ditadura, é claro. [1] Demasia retórica? Erro crasso de visão histórica? Poderia até ser, tudo isto e muito mais. Porém nem tanto. Pelo menos a julgar pelo último lapso, ou melhor, tropeço deliberado, mal disfarçado recado a quem interessar possa: refiro-me ao editorial da Folha de São Paulo, de 17 de fevereiro de 2009, o tal da “ditabranda”. Não é tão simples assim atinar com as razões daquele escorregão com cara de pronunciamento preventivo, sobretudo por ser mais do que previsível que o incidente despertaria a curiosidade pelo passado colaboracionista do jornal, tão incontroversamente documentado que as pessoas esqueceram, até mesmo da composição civil e militar daquele bloco histórico da crueldade social que se abateu sobre o país em 1964. E como atesta o indigitado editorial, aunque el diabo esté dormido, a lo mejor se despierta. Quanto à descarada alegação de brandura: só nos primeiro meses de comedimento foram 50.000 presos. [2] Em julho de 1964, “os cárceres já gritavam”. [3]
O fato é que ainda não acusamos suficientemente o Golpe. Pelo menos não o acusamos na sua medida certa, a presença continuada de uma ruptura irreversível de época. Acabamos de evocar a brasa dormida de um passo histórico, os vasos comunicantes que se instalam desde a primeira hora entre o mundo dos negócios e os subterrâneos da repressão. Quando o então ministro Delfim Netto organiza um almoço de banqueiros no palacete do Clube São Paulo, antiga residência de Da. Viridiana Prado, durante o qual o dono do Banco Mercantil passou o chapéu, recebendo em média 110 mil dólares per capita para reforçar o caixa da OBAN. Não se trata de uma vaquinha, por assim dizer, lógica, inerente aos trâmites da acumulação em um momento de transe nacional, em que os operadores de turno puxam pela corda patriótica de empresários que por sua vez estão pedindo para se deixar amedrontar. [4] Esperteza ou não — afinal a Ditadura detinha todas as chaves do cofre —, o fato é que se transpôs um limiar ao se trazer assim, pelas mãos de um Ministro de Estado, os donos do dinheiro para o reino clandestino da sala de tortura: este o passo histórico que uma vez dado não admite mais retorno, assim como não se pode desinventar as armas nucleares que tornaram a humanidade potencialmente redundante. Ruptura ou conseqüência? Questão menor, diante da metástase do poder punitivo que principiara a moldar a Exceção Brasileira que então madrugava.
Francisco Campos costumava dizer que governar é mandar prender. Para encurtar, digamos que a partir de 1935, com a intensificação da caça aos comunistas e demais desviantes, essa escola de governo incorporou o alicate do Dr. Filinto Müller e seus derivados. Já a deportação de Olga Benário discrepa do período anterior — no qual predominava a figura do anarquista expatriado — antecipando os seqüestros da Operação Condor. Todavia, um caso ainda muito especial, como se sabe. Até mesmo as cadeias em que se apodrecia até à morte — como a colônia correcional de Ilha Grande, que, a um Graciliano Ramos atônito, foi apresentada como um lugar no qual se ingressa, não para ser corrigido, mas para morrer — tampouco anuncia uma Casa da Morte, como a de Petrópolis e similares espalhadas pelo país e Cone Sul. Basta o enunciado macabro das analogias para se ter a visão histórica direta da abissal diferença de época. [5] O calafrio de Graciliano, ao se deparar com um espaço onde “não há direito, nenhum direito” — como é solenemente informado por seu carcereiro — ainda é o de um preso político ocasional ao se defrontar (em pé de igualdade?) com o limbo jurídico em que vegetam apagados seus colegas “de direito comum”. Como se sabe, aquela situação se reapresentaria menos de 40 anos depois. Como a Ditadura precisava ocultar a existência de presos políticos, os sobreviventes eram formalmente condenados como assaltantes de banco e, como tal, submetidos ao mesmo vácuo jurídico da ralé carcerária, exilada nesses lugares por assim dizer fora da Constituição. Mas já não se tratava mais do mesmo encontro de classe face ao “nenhum direito”, ou desencontro histórico, como sugere o filme de Lúcia Murat Quase dois irmãos.
O corte de 64 mudaria de vez a lógica da exceção, tanto no hemisfério da ordem política quanto dos ilegalismos do povo miúdo e descartável. O Golpe avançara o derradeiro sinal com a entrada em cena de uma nova “fúria” — para nos atermos ao mais espantoso de tudo, embora não se possa graduar a escala do horror: a entrada em cena do “poder desaparecedor”, na fórmula não sei se original de Pilar Calveiro. [6] Depois de mandar prender, mandar desaparecer como política de Estado, e tudo que isso exigia: esquadrões, casas e vôos da morte. Essa nova figura — o desaparecimento forçado de pessoas — desnorteou os primeiros observadores. A rigor, até hoje. Ainda no início dos anos 80, um Paul Virilio perplexo se referia às ditaduras do Cone Sul como o laboratório de um novo tipo de sociedade, a “sociedade do desaparecimento”, onde os corpos agora, além do mais — e sabemos tudo o que este “mais” significa —, precisam desaparecer, quem sabe, o efeito paradoxal do estado de hiper-exposição em que se passava a viver. [7]
Digamos que ao torná-lo permanente, exercendo-o durante 20 anos, nem mesmo os principais operadores do regime se deram conta de que o velho estado de sítio concebido pela ansiedade ditatorial dos liberais, ao fim e ao cabo já não era mais o mesmo. Aliás, desde o início, a exceção se instalara noutra dimensão, verdadeiramente inédita e moderna, a partir do momento em que “o corpo passa a ser algo fundamental para a ação do regime” e a câmara de tortura se configura “como a exceção política originária na qual a vida exposta ao terrorismo de Estado vem a ser incluída no ordenamento social e político”, na redescrição dos vínculos nada triviais entre ditadura e exceção retomada ultimamente por Edson Teles, confrontado com o acintoso recrudescimento do poder punitivo na democracia parida, ou abortada, pela Ditadura. [8] A seu ver, a Ditadura por assim dizer localizou o topos indecidível da exceção, a um tempo dentro e fora do ordenamento jurídico, tanto na sala de tortura quanto no desaparecimento forçado, marcado também, este último, por uma espécie de não-lugar absoluto. Estes os dois pilares de uma sociedade do desaparecimento. A Era da Impunidade que irrompeu desde então pode ser uma evidência de que esta tecnologia de poder e governo também não pode mais ser desinventada. Seja como for, algo se rompeu para sempre quando a brutalidade rotineira da dominação, pontuada pela compulsão da caserna, foi repentinamente substituída pelo Terror de um Estado delinqüente de proporções inauditas. A tal ponto que até Hobsbawm parece não saber direito em qual dos extremos do seu breve século XX incluir este último círculo latino-americano de carnificinas políticas, no qual não hesitou em reconhecer a “era mais sombria de tortura e contra-terror da história do Ocidente”. [9]
Outro disparate? Desta vez cometido pela velha esquerda em pessoa? Não seja por isto. À luz dos seus próprios critérios civilizacionais, um padrão evolutivo foi irrecuperavelmente quebrado pelas elites condominiadas em 1964. Mesmo para padrões brasileiros de civilização, pode-se dizer que a Ditadura abriu as portas para uma reversão na qual Norbert Elias poderia quem sabe identificar o que chamou por vezes de verdadeiro processo descivilizador. Segundo o historiador Luiz Felipe de Alencastro, um tal padrão, herdado do despotismo esclarecido pombalino, pressupunha algo como o espraiamento, prudentemente progressivo, dos melhoramentos e franquias da vida moderna, a princípio reservados à burocracia estatal e às oligarquias concernidas, ao conjunto das populações inorgânicas a serem assim “civilizadas” pela sua elite. Pois até este processo civilizador não previsto por Norbert Elias — o monopólio da violência pacificadora são outros quinhentos nessas paragens — deu marcha a ré, ou se preferirmos, engendrou “um monstrengo nunca visto”. [10] Pensando bem, menos reversão do que consumação desse mesmo processo de difusão das Luzes, como vaticina a profecia maligna de Porfírio Diaz, no final de Terra em Transe: “Aprenderão, aprenderão, hei de fazer deste lugar uma Civilização, pela força, pelo amor da força, pela harmonia universal dos infernos”. Segundo o mesmo Luis Felipe, havia paradoxalmente algo de “revolucionário” naquela ultrapassagem bárbara de si mesmo. À vista portanto não só daquele lapso editorial e de uma dúzia de outros pronunciamentos de mesmo quilate, pode-se dizer que os objetivos de guerra da Ditadura foram plenamente alcançados, diante do quê, entrou em recesso. A Abertura foi na verdade uma contenção continuada. Acresce que além de abrandada, a Ditadura começou também a encolher. Pelas novas lentes revisionistas, a dita cuja só teria sido deflagrada para valer em dezembro de 1968, com o AI-5 — retardada, ao que parece, por motivo de “efervescência” cultural tolerada — e encerrada precocemente em agosto de 1979, graças à auto-absolvição dos implicados em toda a cadeia de comando da matança. [11] O que vem por aí? Negacionismo à brasileira? Quem sabe alguma variante local do esquema tortuoso de Ernst Nolte, que desencadeou o debate dos historiadores alemães nos anos 80 acerca dos Campos da Morte. Por essa via, a paranóia exterminista da Ditadura ainda será reinterpretada como o efeito do pânico preventivo disparado pela marcha apavorante de um Gulag vindo em nossa direção. Não é elocubração ociosa: a doutrina argentina dos “dois demônios”, por exemplo, que se consolidou no período Alfonsin, passou por perto. [12]
Nessas condições, pode-se até entender o juízo aparentemente descalibrado de Tales Ab’Sáber como uma espécie de contraveneno premonitório, e que tenha, assim, estendido até onde a vista alcança a fratura histórica na origem do novo tempo brasileiro, cuja unidade de medida viria a ser 1964, o verdadeiro ano que de fato não terminou. Um tempo morto, esse em que a Ditadura não acaba nunca de passar. É assim que Tales interpreta a agonia do poeta, jornalista e conselheiro político Paulo Martins, que emenda o fecho na abertura de Terra em transe: uma “queda infinita do personagem no branco e no vazio final que nunca acaba”. O mundo começou a cair no Brasil em 1964 e continuou “caindo para sempre”, salvo para quem se iludiu enquanto despencava. [13] Será preciso alertar logo de saída? Como nunca se sabe até onde a cegueira chegou, não custa repetir: está claro que tudo já passou, que nossa terra não está mais em “transe”, por mais estranha (quase na acepção freudiana do termo) que pareça a normalidade de hoje. Ainda segundo Tales, tão estranha quanto a fantasia neurotizante que nos governa, a saber: ora é fato que a guerra acabou como assegura a lei celerada da anistia, ora não acabou nem nunca acabará, pois é preciso derrotar de novo e sempre o ressentimento histórico dos vencidos, para não mencionar ainda as demais figurações do inimigo, no limite, a própria nação, que precisa ser protegida contra si mesma. [14] A guerra acabou, a guerra não acabou: tanto faz, como no caso da chaleira de Freud, de qualquer modo devolvida com o enorme buraco que a referida fantasia nem mesmo cuida de encobrir. O que importa é que um pólo remeta ao outro, configurando o que se poderia chamar de limiar permanente, sobre o qual pairam tutela e ameaça intercambiáveis.
Minha reconstituição da paradoxal certeza histórica de um psicanalista talvez pareça menos arbitrária recorrendo ao raciocínio do historiador Paulo Cunha acerca do contraponto entre Moderação e Aniquilamento, que percorre a formação da nacionalidade desde os seus primórdios. [15] A guerra acabou, quer dizer (deve entrar de uma vez na cabeça dos recalcitrantes): violações zeradas (na lei ou na marra), reconciliação consolidada (novamente consentida ou extorquida). Mas a guerra não acabou, de novo que se entenda: é preciso anular a vontade do inimigo de continuar na guerra, e anular até o seu colapso. Clausewitz dixit. Pois bem: historicamente, Moderação é a senha de admissão ao círculo do poder real, cujo conservadorismo de nascença — progresso, modernização, etc, são melhoramentos inerentes, porém intermitentes, ao núcleo material do mando proprietário — exige provas irretorquíveis de confiabilidade absoluta dos que batem à sua porta. Assim, sempre que as elites de turno de reconciliam, uma lei não escrita espera dos pactários – na acepção política rosiana do termo [16] — demonstrações inequívocas de convicções moderadas. Para que não haja dúvida do alcance deste pacto fundador, basta um olhar de relance para as patéticas contorções dos dois últimos presidentes do país. Em suma, refratários de qualquer procedência serão recusados. Novamente para que não haja dúvidas: aos eventuais sobreviventes de tendências contrárias à Moderação/Conciliação/Consolidação das Instituições etc, acena-se com o espectro do supracitado Aniquilamento, cuja eventualidade estratégica sempre paira no ar, que o digam a Guerra de Canudos e a Guerrilha do Araguaia. Também por este prisma não se pode dizer sem mais que a fantasia de Tales não seja exata.
O ENSAIO ESTÁ PUBLICADO INTEGRALMENTE NA COLETÂNEA O QUE RESTA DA DITADURA: A EXCEÇÃO BRASILEIRA [Edson Teles e Vladimir Safatle (orgs), Boitempo Editorial, 2010, NO PRELO]. DEPOIS DE SEU LANÇAMENTO OFICIAL, COMPARTILHAREMOS AQUI SUA VERSÃO NA ÍNTEGRA.
NOTAS DE RODA-PÉ
[*] Mesmo correndo o risco de double emploi, achei que viria ao caso lastrear minha resposta à pergunta O que resta da Ditadura? com material colhido na contribuição de autores reunidos no presente volume.
[1] “Brasil, a ausência significante política”, neste volume.
[2] No levantamento de Maria Helena Moreira Alves, Estado e oposição no Brasil (1964-1984) (Petrópolis: Vozes, 1985). Ver ainda Martha Huggins, Polícia e política (São Paulo: Cortez 1998; ed. inglesa, 1988) e Janaina Almeida Teles, Os herdeiros da memória: a luta dos familiares de mortos e desaparecidos políticos no Brasil (USP FFLCH: 2005).
[3] Ver o capítulo de Elio Gaspari, “O mito do fragor da hora”, A ditadura envergonhada (São Paulo: Cia. das Letras, 2002). Segundo o autor, desde o começo do governo Castelo Branco, a tortura já era “o molho dos inquéritos”. Martha Huggins também identifica nos primeiros arrastões puxados pelo Golpe a evidente metamorfose da “polícia política”. Cf. op.cit. cap.7.
[4] Ver Elio Gaspari, A ditadura escancarada (São Paulo: Cia. da Letras, 2002, pp. 62-64). Para um estudo da normalização da patologia empresarial do período, o documentadíssimo filme de Chaim Litewski, Cidadão Boilesen, apresentado em março de 2009 na mostra É tudo verdade.
[5] Episódio das Memórias do Cárcere, recentemente evocado por Fábio Konder Comparato, no Prefácio à segunda edição do Dossiê Ditadura: mortos e desaparecidos políticos no Brasil, 1964-1985 (São Paulo: IEVE/Imprensa Oficial, 2009).
[6] Poder y desaparición: los campos de concentración en Argentina (Buenos Aires: Colihue, 1998). Sua autora, Pilar Calveiro, “ficou desaparecida” – a expressão é essa mesma – durante um ano e meio em vários campos da morte na Argentina. Para um breve comentário, Beatriz Sarlo, Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva (São Paulo: Cia. das Letras, 2007, pp. 80-89).
[7] Paul Virilio, Sylvere Lotringer, Guerra pura: a militarização do cotidiano (São Paulo: Brasiliense, 1984, pp. 85-87).
[8] Edson Luis de Almeida Teles, Brasil e África do Sul: os paradoxos da democracia (São Paulo: USP FFLCH, 2006, cap.2).
[9] Eric Hobsbawm, A era dos extremos (São Paulo: Cia. das Letras, 1995, p.433).
[10] Luis Felipe de Alencastro, “1964: por quem dobram os sinos?”, publicado originalmente na FSP, 20.05.94, incluído no livro organizado por Janaina Teles, Mortos e desaparecidos políticos: reparação ou impunidade? (São Paulo: Humanitas, 2ª ed. 2001). Para o argumento original, do mesmo autor, “O fardo dos bacharéis” (Novos Estudos, CEBRAP, nº19, 1987).
[11] Marco Antonio Villa, “Ditadura à brasileira”, FSP, 05.03.2009, p.A-3. Sem dúvida, a História é o inventário das diferenças, como queria Paul Veyne, porém na mesma medida em que souber reconhecer o Mesmo no Outro. Sem o quê, sequer saberemos quem somos ao despertar. Mas talvez seja este mesmo o Desejo do qual os lacanianos insistem que uma sociedade derrotada como a nossa cedeu. A sintaxe pode ser arrevesada, mas o juízo não. Cf. por exemplo, Maria Rita Kehl, O tempo e o cão: a atualidade das depressões (São Paulo: Boitempo, 2009).
[12] Ver a respeito, Luis Roniger e Mario Sznajder, O legado das violações dos direitos humanos no Cone Sul (São Paulo: Perspectiva, 2004, pp. 278-281).
[13] A verdadeira desordem no tempo brasileiro provocada pelo buraco negro de 1964 me parece constituir o nervo das reflexões de Ismail Xavier acerca da constelação formada por Cinema Novo, Tropicalismo e Cinema Marginal. Cf. por exemplo Alegorias do subdesenvolvimento (São Paulo: Brasiliense, 1993). Com sorte, espero rever essa mesma desordem brasileira do tempo pelo prisma da Exceção. Por enquanto, apenas uma Introdução. Um outro ponto cego decorrente desta mesma matriz, me parece contaminar a expectativa de que a Ditadura terminará enfim de passar quando o último carrasco for julgado. Fica também para um outro passo este pressentimento gêmeo acerca das ciladas do imperativo Nunca Mais que a Ditadura nos impôs. Para um sinal de que não estou inventando um falso problema, veja-se as observações de Jeanne Marie Gagnebin acerca da famosa reformulação adorniana do imperativo categórico – direcionar agir e pensar de tal forma que Auschwitz não se repita. Curioso imperativo moral, nascido da violência histórica e não de uma escolha livre. Cf. “O que significa elaborar o passado”, Lembrar escrever esquecer (São Paulo: ed. 34, 2006, pp.99-100). Pensando numa lista longa que continua se alongando, de Srebrenica a Jenin, arremata Jeanne Marie, fica difícil evitar o sentimento de que o novo imperativo categórico não foi cumprido, enquanto “as ruínas continuam crescendo até o céu”.
[14] Conforme advertência recente do Gal. Luiz Cesário da Silveira Filho, despedindo-se do Comando Militar do Leste com um discurso exaltando o golpe, ao qual se referiu como “memorável acontecimento”. Com efeito. FSP 12.03.2009, p.A-9.
[15] Paulo Ribeiro da Cunha, “Militares e anistia no Brasil: um dueto desarmônico”, neste volume.
[16] Da perspectiva em que Willi Bolle estudou o Grande Sertão: Veredas – as metamorfoses do sistema jagunço como um regime de exceção permanente – as Constituições do país sempre foram antes de tudo um Pacto, não sendo muito difícil adivinhar quem leva a parte do diabo. Cf. Willi Bolle, Grandesertão.br (São Paulo: ed. 34, 2004)
A imagem do destaque pertence ao filme Terra en transe, do diretor brasileiro Glauber Rocha.
fonte: http://passapalavra.info/?p=20293
(c) Copyleft: É livre a reprodução para fins não comerciais, desde que o autor e a fonte sejam citados e esta nota seja incluída.
Nenhum comentário:
Postar um comentário