segunda-feira, 30 de novembro de 2009

A Onda

A Onda


A confusão do político com o afectivo, que ameaça todos os grupos, constitui o grande risco do totalitarismo. A política exercida com a razão é o antídoto do fascismo, que sempre se apresenta como uma política da emoção. Por João Bernardo

onda-7A Onda, Die Welle, é um filme realizado [dirigido] na Alemanha em 2008 por Dennis Gansel. Um professor amante de rock e com simpatia pelo anarquismo − personagem apesar de tudo frequente e revelador dos anseios frustrados de antigos estudantes insubmissos que acabaram por integrar o rebanho − foi encarregado pela directora da escola de dar um curso sobre os regimes autocráticos. Na Alemanha, inevitavelmente, o fascismo iria ser o tema dessas aulas, e como ninguém queria ouvir mais uma vez as banalidades de sempre sobre o Terceiro Reich e a culpabilidade alemã, o professor decidiu romper a barreira do desinteresse procedendo a uma experiência pedagógica. Propô-la aos alunos e eles aceitaram. Durante uns dias, o professor obrigaria os alunos, com o consentimento deles, a cumprirem os rituais físicos da disciplina de massas, esperando que eles aprendessem assim o conteúdo ideológico dessa disciplina.

Ao ver o filme, qualquer português da minha idade encontrará ali as aulas de Educação Física da sua infância. O que nos obrigavam a fazer! Talvez por isso todos nós, os jovens esquerdistas, éramos péssimos em ginástica. Se o taylorismo é a disciplina do corpo para a produção, o fascismo foi a disciplina do corpo para a política. Na experiência pedagógica daquele professor tudo começou com gestos simples, o levantar e o sentar, o estar sentado direito e de pés juntos.

E o professor tinha razão, porque antes de ser uma ideologia ou uma forma de governar, o fascismo fora acima de tudo um ritual colectivo, a encenação diariamente repetida da hierarquia e da submissão, da ordem enquanto anulação do indivíduo na grande colectividade, na pátria ou na raça.

O passo seguinte, não menos decisivo, foi a escolha de um uniforme, porque o uniforme não é apenas um símbolo de identidade do grupo. Muito mais do que isso, no fascismo o uniforme era uma máscara que ocultava as diferenças sociais, aquilo que já não sei que crítico britânico denominou «sartorial socialism», socialismo de alfaiate. E o pior é que foi esta a argumentação empregue por alguns alunos para convencer outros, mais renitentes, a aceitar o uniforme. Ele é democrático, diziam eles, pois reduz todos à mesma condição. E não é a democracia nos dias de hoje o mais insuspeito e incontroverso dos valores? Democrático dentro das paredes da sala de aulas, porque lá fora, apesar de envergarem roupa idêntica, os alunos eram ricos ou pobres ou assim-assim, sem que competisse ao uniforme abolir aquela realidade fundamental. A discussão na turma a propósito da adopção de uniforme foi das mais sugestivas, porque surgiu ainda o argumento de que nas democracias as fardas são comuns e até os executivos das empresas adoptam padrões de vestuário. Precisamente. Será que o fascismo foi democrático? Ou é a democracia que é fascista? E não podia ser mais aterrador o uniforme criado pelo professor e pelos alunos, calças jeans azuis e camisa branca. Na sua inteira banalidade, este uniforme lembrou-me o que John Le Carré descreveu em A Small Town in Germany, onde relatou o desenvolvimento de um fascismo pós-fascista, um movimento cinzento e anónimo de mediania social.

onda-42Adoptado o uniforme, impunha-se naturalmente a escolha de uma saudação, o outro elemento ritual necessário para a identificação do grupo. E como o desporto aquático era a especialidade daquele professor e daquela turma, a saudação acabou por ser um gesto de braço reproduzindo o movimento de uma onda. Aquela tribo adquirira o seu nome e o seu totem. A Onda.

Porém, o que começara como um jogo continuou como um mecanismo inelutável, cujas engrenagens já não puderam ser sustidas e cujos efeitos não puderam ser travados. A sociedade não é um laboratório e as experiências sociais têm efeitos reais. A partir do momento em que se começa a fazer algo como experiência, ela deixa de ser gratuita. Talvez seja esta a maior lição de um filme que tem tantas. Contrariamente ao que imaginam os pós-modernos, a futilidade é uma coisa muito séria.

Uniforme, saudação, rituais, disciplina de massas, este conjunto excluiu tudo o resto. As aulas deixaram de ser − ou de pretender ser − a transmissão ou a partilha de um conhecimento e converteram-se na mera afirmação da identidade do grupo. A vida privada foi eliminada. Não só a vida privada, aliás, mas todos os tipos de existência que ultrapassassem os limites do grupo. A Onda não tinha vias de saída, nem sociais nem mentais. A redução da existência a uma perspectiva única, é isto o totalitarismo, e o apelo aos sentimentos é aqui um dos procedimentos mais eficazes. Lealdade, afecto, devoção, nada disto podia ser gasto com namoradas ou com colegas, mas apenas com o grupo ou com as pessoas enquanto membros do grupo. A confusão do político com o afectivo, que ameaça todos os grupos, constitui o grande risco do totalitarismo, tanto mais perigoso quanto é a sedução da demagogia fácil. A política exercida com a razão é o antídoto do fascismo, que sempre se apresenta como uma política da emoção.

onda-9A Onda deu aos alunos o que lhes faltava, o sentido de uma comunhão colectiva, mas com a condição de eles darem tudo… a quem? Ao grupo? Através da hierarquia instaurada, tudo é dado inevitavelmente ao chefe do grupo, por isso ele pode aparecer como o generoso dispensador de benesses e de conselhos. O autoritarismo não é senão a exploração afectiva dos que se entregam à autoridade. O carisma não emana do chefe, é-lhe dado pelos que acreditam nele e que não têm consciência de que recebem de volta no plano simbólico aquilo que lhe concederam no plano real.

Mas não foi só através da repetição dos gestos da disciplina colectiva que os alunos assimilaram o fascismo, a ponto de o adoptarem. O terreno propício estava criado pelo misto de ignorância e de ressentimento que caracterizava a quase totalidade dos estudantes daquela turma, como caracteriza a sua esmagadora maioria noutras escolas e em outros países. A ignorância não consiste em não se saber mas em não desejar saber. A ignorância é só outro nome que se dá ao desinteresse. O ressentimento é a outra face do mesmo problema. Referindo-se à base popular dos precursores do fascismo francês, Eugen Weber observou que ela se caracterizara por «odiar os ricos e desprezar os pobres», o que constitui a definição do ressentimento. Naquele caso, o ressentimento era antes de mais sentido pelo professor, licenciado com diplomas de segunda ordem, enquanto os colegas tinham vindo de melhores universidades. O ressentimento era sentido também por muitos alunos e alunas, invejosos dos que tinham melhores notas ou melhores carros ou melhores roupas, das que eram mais bonitas e dos que eram mais atléticos. Como ninguém tem tudo, a semeadura do ressentimento encontra campos férteis. E assim os perdedores de sempre, os tímidos, os incapazes sentiram-se fortes em grupo e foram eles quem forneceu à turma a estrutura embrionária das tropas de choque.

Quando o professor fez numa aula um discurso demagógico contra o capitalismo, quem conhecer a história sabe que se tratava de uma colagem de citações fascistas, mas quantos esquerdistas actuais não o aplaudiriam com toda a boa fé? Quantos esquerdistas não descobririam, se lessem os fascistas, que na verdade eles mesmos são fascistas? Há alguns meses este site publicou um artigo meu, Entre a Luta de Classes e o Ressentimento, que foi reproduzido noutros lugares, e num desses blogs um leitor indignado escreveu que «o João Bernardo está à direita de Átila». Com efeito, quando se julga que a extrema-direita é uma esquerda, em que lugar hão-de pôr a extrema-esquerda?

Se bem que tivesse começado a espalhar-se pela cidade, o fascismo de A Onda fora gerado dentro das paredes de uma sala de aula e mantinha na escola a sua base de sustentação. Foi a estrutura escolar que forneceu o quadro daquela experiência. O professor não inventou uma nova relação com os alunos, apenas deu outro rigor e marcou de outro modo a hierarquia subjacente à vida da escola. Normas, submissões e comportamentos que no quotidiano aparecem de maneira dissimulada passaram para o primeiro plano e preencheram toda a cena. Ainda aqui o filme indica um dos mais importantes caminhos para a análise do fascismo, porque entre as duas guerras mundiais o fascismo jamais poderia ter ascendido e imperado sem o quadro prévio que lhe fora fornecido pelo liberalismo burguês. Compreenderemos o mecanismo básico do fascismo se soubermos que ele foi uma revolta no interior da ordem, não contra a ordem − ainda que, nalguns casos, pudesse tê-la derrubado depois. Do mesmo modo, aquele fascismo escolar surgiu no interior da hierarquia docente e contou com a protecção discreta, embora significativa, da directora da escola, numa ocasião em que o barulho dessas estranhas aulas começara a incomodar os professores conservadores que davam aulas ao lado. Mas o que sucederia à directora da escola, conservadora também, se A Onda alastrasse? Não seria ela substituída pelo criador de A Onda, como aconteceu sempre com os aprendizes de feiticeiro que pensaram usar o fascismo para reforçar a sua autoridade e que terminaram vendo a autoridade reforçada, mas não a deles?

E se aquele homem fosse professor na Universidade Bandeirante?

Poderia aquela experiência ocorrer em outro lugar que não numa escola? Ela não poderia ter como quadro uma empresa, pelo menos durante as horas de trabalho, porque o grupo alteraria as relações sociais de produção. Para o fascismo foi intocável o sistema de trabalho, e dentro dos muros das empresas o totalitarismo fascista jamais substituiu o totalitarismo patronal. Quando observamos algumas práticas de controlo da força de trabalho desenvolvidas nas empresas japonesas e a partir daí difundidas por todo o mundo, verificamos uma grande semelhança com os rituais políticos do fascismo. Mas dentro das empresas as manifestações de disciplina colectiva destinam-se a aumentar a produtividade e obedecem às hierarquias internas das empresas, enquanto os rituais fascistas, que vigoram fora das empresas, obedecem à hierarquia política e destinam-se a manter a ordem social global. Estas duas esferas totalitárias justapõem-se sem se interpenetrarem. Tanto assim que o «sartorial socialism», o socialismo de alfaiate que vestia patrões e empregados com os mesmos uniformes nas mesmas milícias, servia para as ruas e para as praças mas era excluído das fábricas ou dos escritórios. Ora, o estudante tem algo em comum com o desempregado. A sua actividade não é considerada, em termos capitalistas, um trabalho, mas apenas uma preparação para o trabalho. É conhecido o papel que os desempregados tiveram na ascensão de algumas formas de fascismo durante a profunda crise económica da década de 1930. Temos no caso daqueles estudantes um fascismo dos tempos livres.

E na perspectiva dos tempos livres vemos que a escola não foi o único quadro constitutivo do fascismo de A Onda. Os pequenos grupos informais existentes entre os alunos, os minúsculos gangs de esquina que alguns deles formavam nos corredores da escola ou nas ruas da cidade, foram mobilizados para confluir no grupo mais vasto, e ao mesmo tempo que perderam a sua identidade contribuíram para dar à Onda uma identidade única e coesa.

onda-2Numa noite em que um pequeno bando de A Onda, enquadrado pelo embrião de tropas de choque, enfrentou outro pequeno bando de anarco-punks, vemos uniformes em ambos os lados, opostos nas suas características estéticas, mas ambos identificadores de uma demarcação de grupo. O fascismo é uma realidade envolvente, cujos sintomas estão dispersos, por isso é sempre possível articulá-los e conjugá-los, criando uma realidade visível onde antes existiam apenas indícios dissimulados. É esta a operação chave do fascismo, e posso pensar que se algum daqueles anarco-punks que se bateram na rua contra A Onda tivesse decidido seguir o curso sobre a autocracia teria com facilidade sido engolido pelo colectivo fascista, como outros alunos com aspecto igualmente punk haviam sido absorvidos também.

Não foi nesta refrega entre milícias uniformizadas, apesar de rivais, que A Onda foi posta em causa, mas na competição de desporto aquático realizada com os alunos de outra instituição, que curiosamente se chamava Escola Ernst Barlach, em homenagem a um dos grandes escultores do expressionismo, vilipendiado pelos nazis como «artista degenerado». Barlach não fora só um grande escultor e conseguira imprimir a algumas das suas obras um antimilitarismo que não vinha dos bons sentimentos mas do horror intrínseco da guerra. Foi ali, no confronto entre a realidade do fascismo e a memória do antimilitarismo, que a violência e o autoritarismo de A Onda começaram a ultrapassar os limites do que era internamente aceitável pelo próprio grupo, precipitando-o para a implosão final.

Antes do mais, foi porque no resto da sociedade não houve quem necessitasse de um grupo com aquelas características que a violência sistemática de A Onda, em vez de continuar a expandir-se contra o inimigo exterior, se virou contra si mesma. Mas o filme deixa em suspenso a grande questão. O que teria sucedido se alguém, se alguma força política, se a própria polícia, naquele momento, naquela cidade, estivesse interessado num grupo assim? Parece tão fácil chegar ao fascismo, que em vez de explicar o fascismo talvez o que devesse ser explicado fosse o não-fascismo.

A última cena do filme fixa o rosto do professor, já dentro do carro da polícia que o leva preso, transfigurado pela descoberta, tal como o sr. Kurz na novela de Joseph Conrad, quando murmurou, no momento de morrer, «O horror! O horror!». Aquilo que o professor sentiu dentro dele, indizível porque não há palavras que o expressem num instante menor do que um segundo, foi a compreensão dos mecanismos da história. Mas a história é assimétrica, como o tempo que a sustenta, e flui só num sentido. Podemos compreender a prática, mas só depois de a termos praticado, e lançamo-nos na história sem garantias prévias. A Onda é um filme precisamente sobre isto, sobre o fascismo difuso no quotidiano e que só entendemos como fascismo depois de ele já estar instalado.

«O horror! O horror!»

«O horror! O horror!»


fonte: http://passapalavra.info/?p=15523

(c) Copyleft: É livre a reprodução para fins não comerciais, desde que o autor e a fonte sejam citados e esta nota seja incluída.

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Vigília em solidariedade a Cesare Battisti

Vigília em solidariedade a Cesare Battisti

Cesare Battisti declarou que a sua salvação está nas mãos dos movimentos sociais. É um diagnóstico correto, mas é também perante uma grande responsabilidade que ele coloca os movimentos sociais.

No dia 24 de novembro o Comitê de Solidariedade a Cesare Battisti realizou um debate, que foi transmitido ao vivo pelo Passa Palavra.

cesare-1Saímos desse debate animados e perplexos, sem conseguirmos separar estas duas sensações. Um dos representantes do Comitê de Solidariedade disse que nunca, em nenhuma das sessões realizadas até agora, tinha visto reunidos representantes de tantas entidades diferentes. Mas isto é animador ou desolador?

Mesmo tendo em conta o que explicou um membro do Fórum de Ex-Presos Políticos, que a sua presença tinha um caráter meramente individual, é certo que na mesa e na platéia contavam-se representantes de um partido, o Partido Comunista Brasileiro, e de uma corrente, a Esquerda Marxista. Mas, e os outros? Como um dos intervenientes observou, nem sequer fizeram um telefonema! E, no entanto, não foi porque não tentássemos, mas num caso não tivemos resposta e noutro caso disseram-nos que a agenda estava toda preenchida. Infelizmente as lutas sociais não obedecem a um calendário rigoroso, e talvez por isso se perdem tantas oportunidades.

Ouvimos também falar um representante da coordenação da Intersindical, e tudo o que ele disse nos deixou muito animados. Mas não podemos esquecer que a direção de um sindicato comunicou que não poderia estar presente no debate porque nesse dia tinha de fazer trabalho de base.

Isto é trágico. Praticamente todos os intervenientes, na mesa como na platéia, foram unânimes em relacionar a perseguição que é feita a Cesare Battisti com a criminalização de que têm sido sistematicamente vítimas os movimentos sociais, com a perseguição aos sindicalistas, com a política de genocídio que está a ser praticada nas favelas e que atinge o povo mais pobre e em grande medida a população negra.

Esta constatação deixou-nos animados, porque o caso de Cesare Battisti não é apenas o de um combatente estrangeiro que lutou no seu país, num continente do outro lado do mar. É um caso estreitamente ligado às perseguições políticas que ocorrem todo dia no Brasil. Uma figura personifica tanto a perseguição a Cesare Battisti como a criminalização dos movimentos sociais − o ministro Gilmar Mendes. Mas, e aqui ficamos perplexos, onde estavam as vozes dos movimentos sociais que são vítimas deste inimigo comum? Nenhuma se fez ouvir, não estavam presentes nesse debate. E foram vários os intervenientes, na mesa como na platéia, que observaram com estranheza essa ausência. Os grandes ausentes, afinal, eram os grandes atingidos. Será que os movimentos sociais ainda não deliberaram se são contra ou a favor da extradição de Cesare Battisti? Será que os movimentos sociais, bem como os sindicatos, não pensaram que a solidariedade que toda a esquerda lhes tem prestado em todos os momentos lhes impõe que sejam igualmente solidários? A solidariedade não é uma via de sentido único.

Todos os intervenientes estiveram de acordo num ponto, que é o ponto básico. A necessidade de fazer pressão sobre o governo e sobre o presidente Lula para que não extradite Cesare Battisti e o liberte rapidamente. Acharam uns que essas pressões se devem fazer, para empregar uma expressão que foi usada, como se fôssemos assaltar um baluarte inimigo. Defenderam outros que nesta questão o governo e o presidente são aliados a quem nos cumpre oferecer munições. Mas para lá desta clivagem, todos estiveram de acordo sobre a necessidade de pressionar o governo e o presidente.

Ora, como um dos intervenientes observou com lucidez, é impossível fazer pressões se não representarmos pelo menos alguns milhares de pessoas que se manifestem nas ruas por todo o país. «Não viemos aqui discutir o que o governo deve fazer», disse um dos intervenientes, «devemos discutir o que os movimentos sociais têm de fazer».

Mas será que os movimentos sociais e os sindicatos estão dispostos a mobilizar pelo menos uma pequena parte dos seus militantes e dos seus quadros, nesta luta que é também uma luta deles? Será que os partidos de esquerda estão dispostos a usar a influência que possuem? Cesare Battisti declarou − e fê-lo por várias vezes − que a sua salvação está nas mãos dos movimentos sociais. É um diagnóstico correto, mas é também perante uma grande responsabilidade que ele coloca os movimentos sociais.

cesare-21Ainda aqui nossa perplexidade foi indissociável do otimismo, porque nada está perdido se as pessoas de base, se os militantes comuns fizerem pressão junto às entidades a que pertencem para elas se mobilizarem em defesa de Cesare Battisti. Seremos poucos demais, não conseguiremos nada?

Um dos representantes do Comitê de Solidariedade observou que a campanha de defesa de Cesare Battisti e de esclarecimento acerca da sua ação política foi toda ela conduzida pela internet, já que a grande mídia só se fez porta-voz do governo italiano e das forças que querem aqui a extradição de Cesare. A isto nós acrescentamos que mesmo na internet essa campanha foi conduzida sem qualquer colaboração de uma grande parte dos sites da esquerda institucional. Mas quanto a isto, em vez de perplexos, ficamos mais animados, porque vemos que muita coisa podemos fazer com as nossas forças.

O debate encerrou-se com a decisão de fazer um dia de vigília em apoio a Cesare Battisti, com indicativo de data para 10 de dezembro.

Como disse um dos representantes do Comitê de Solidariedade, o acordo é total quanto ao objectivo final, mas cada um ocupando seu espaço político próprio. Só assim podemos construir uma ação eficaz, uma vigília com um único ponto e que reúna o maior espectro social e político possível em torno desse ponto − Liberdade imediata para Cesare Battisti. Passa Palavra

sábado, 21 de novembro de 2009

Os Gestores como classe dominante: notas de uma pesquisa sobre o marxismo de João Bernardo


Os Gestores como classe dominante:

notas de uma pesquisa sobre o marxismo de João Bernardo

Por JOÃO ALBERTO DA COSTA PINTO

Departamento de História da Universidade Federal de Goiás (UFG)



Aproveito esta oportunidade para dar notícia de uma pesquisa que venho desenvolvendo sobre a obra e a trajetória teórico-política de João Bernardo, pensador marxista português. Pelas limitações circunstanciais utilizarei este espaço para dar nota de um importante aspecto teórico presente na centralidade do conjunto de sua obra: os gestores como classe dominante no capitalismo.

Os gestores como classe dominante que se desenvolveu conjuntamente com a burguesia na consolidação do capitalismo como modo de produção. O capitalismo teria assim, na sua constituição histórica a afirmação de três classes: a burguesia, os gestores e o proletariado. Essa proposição é sugerida pela obra que João Bernardo vem desenvolvendo nas últimas décadas num conjunto de livros que foram editados tanto em Portugal como no Brasil, sendo alguns deles já traduzidos para o inglês, para o francês e para o espanhol (01).[1]

São necessárias algumas definições. A primeira delas, a definição de capitalismo que centraliza a argumentação do autor:

"Capitalismo é o único sistema econômico que assenta na produção de mercadorias, ou seja, onde os bens são produzidos com a finalidade única da sua venda. (...) O capitalismo implica a criação, no processo de produção, do seu próprio mercado. Produz-se um número crescente de bens e só a venda no mercado permite que o capital entre em novo ciclo produtivo. Este regime implica uma concorrência permanente para o escoamento comercial dos produtos. (...) é a própria concorrência entre capitalistas particulares que leva à expansão do mercado em geral. O objectivo dos capitalistas particulares não é o de dividir entre si um mercado estático, mas sobretudo o de expandir o mercado que cada um dispõe. Para isso procuram permanentemente aumentar a produtividade. (...) a concorrência inter-capitalista no mercado assenta na concorrência inter-capitalista no próprio processo de produção; o mecanismo fundamental da concorrência reside na luta pelo aumento da produtividade a qual se processa inteiramente ao nível do fabrico dos produtos. O aumento da produtividade numa dada empresa pressupõe o conhecimento dos processos de fabrico nas restantes, (...) exigindo-se para isso uma relação tecnológica entre as unidades de produção. É a partir de uma base comum de inter-relação tecnológica que as empresas vão entrar em concorrência pelo crescimento da produtividade" (Bernardo, 1979: 20-21).

Antes, porém, que esse processo econômico se realize integralmente é necessário que o Estado tenha desenvolvido, ou esteja a desenvolver, as chamadas Condições Gerais de Produção (CGP), condições, entre outras, como a "organização do sistema geral de ensino", "a extensão da medicina à generalidade da população", "medicina preventiva e a vacinação", "esgotos e novas condições urbanas", etc (Idem, 1979: 23-36). Em suma, condições gerais de produção que "ultrapassam os limites de cada empresa particular e constituem uma vasta teia, sem a qual essas empresas e o próprio capitalismo não poderiam existir" (Idem, 1979: 36).

Com essa definição de capitalismo, cumpre agora perceber como o autor conceitua as classes que o compõem enquanto modo de produção. Para João Bernardo são três as classes sociais no capitalismo. Classes que não se determinam em si como substâncias, mas, nas relações que realizam entre si. Além da classe explorada (o proletariado), o capitalismo apresenta mais duas classes, formadas historicamente diante dos "dois aspectos fundamentais do polo explorador do capitalismo": a burguesia e os gestores.

"(...) a burguesia representando a parcelarização das empresas, a privatização da propriedade do capital; e uma outra classe, que consubstancia a integração tecnológica entre as unidades de produção, as condições gerais de produção; em virtude das funções predominantemente organizacionais que esta classe desempenha, na união entre os vários processos particulares de fabrico e, portanto, na orquestração do capitalismo como um todo, posso chamar-lhe classe dos gestores" (Idem, 1979: 36-37, destaque do autor).

Ressalve-se que esse gestor não é um substituto do burguês, mas, um seu contemporâneo (Idem, 1979: 37). Destaque-se, na citação anterior como o autor caracteriza o processo estrutural que dá existência histórica às classes dominantes no capitalismo. O comando pessoal da empresa privada em si, que dá definição ao burguês como proprietário, e as relações de produção e de mercado que impõem uma lógica de relações entre o conjunto sistêmico das unidades produtivas, atividade que transcende as práticas individuais dos proprietários, atividade que é transferida aos gestores, tanto na organização global do sistema econômico a que estão envolvidas essas unidades produtivas, como na organização global do sistema político que organizará a estruturação no mercado das condições gerais de produção, aqui, o papel é dos gestores do Estado. Ainda uma ressalva. A particularização do burguês à sua unidade produtiva não significa isolamento, significa, como diz João Bernardo, em outro momento da sua obra, "que cada unidade econômica veicula os aumentos de produtividade exclusivamente ao longo da linha de produção em que diretamente se insere" (Bernardo, 1991: 203), e essa organização é que dá a caracterização de classe a burguesia, a unidade produtiva deve estar em relação com as outras unidades produtivas, concorrendo no mercado e na produção por uma ampliação de sua capacidade produtiva. A burguesia, como classe se constituiu pela organização particular de sua produção premida pela concorrência com outras unidades produtivas. A classe dos gestores condiciona sua existência histórica, inicialmente, pela organização integrada dessas unidades particulares, em paralelo à organização dentro do Estado das condições gerais de produção. Entretanto, apesar de se originar também na empresa privada, os gestores enquanto classe têm no Estado o seu "campo privilegiado de existência", pelas funções de organização dos inter-relacionamentos globais exigidos pela sempre ampliada reprodução do capital.

São possíveis algumas conclusões. Diz João Bernardo que uma visão dicotômica dos conflitos sociais no capitalismo, parece-lhe ultrapassada, se restringida à luta entre burguesia e proletariado, para o autor, com o desenvolvimento do capitalismo conferiu-se "uma importância prática cada vez maior à inter-relação das unidades de produção e às condições gerais de produção, condenando ao arcaísmo qualquer concepção centrada no isolamento das empresas" (Bernardo, 1979: 57). Dessa maneira, os gestores partilham com a burguesia do "controle dos aspectos decisivos do capitalismo", ambas, são assim, "classes exploradoras e como tal se opõem ao proletariado" (Idem, 1979: 59); dessa constituição de práticas históricas, com a evolução do capitalismo, a integração tecnológica entre as empresas tende a progredir e com isso, a função sócio-histórica da burguesia enquanto classe tende a se reduzir em detrimento do crescimento do controle do capital por parte dos gestores, daí desenvolver-se dentro das estruturas do Estado, dependendo de cada situação, uma subalternização da burguesia como classe frente aos gestores como classe progressivamente mais organizada. O Estado brasileiro no período 1930 – 1964, possui uma historicidade que demonstra muito bem essa análise sugerida pelo pensador marxista português.

Muitos outros elementos justificam historicamente os gestores como classe, mas, para efeitos de síntese, limito-me a mais uma rápida apresentação do argumento do autor.

A classe gestorial, porque se relaciona com a integração das unidades econômicas no processo global e com a coordenação dessas articulações, desenvolveu formas integradas de propriedade do capital, que não é particularizada individualmente, mas unificada por grupos mais ou menos numerosos de gestores que, assim, detêm enquanto coletivo empresas, conjuntos de empresas ou até a totalidade da economia num país" (Bernardo, 1991: 205).

Em suma, quanto mais se desenvolve a economia capitalista mais se consolidam os gestores como classe, os que se responsabilizam diretamente pela organização e integração desse desenvolvimento. "São a classe capitalista que, contemporânea da gênese deste modo de produção, expande-se e reforça-se com o crescimento econômico, confundindo-se com ele o seu eixo de evolução" (Idem, 1991: 216). No processo de expansão capitalista verifica-se crescentemente a "eliminação física" dos indivíduos burgueses provocada pela falência do seu projeto empresarial na concorrência do mercado. Esses indivíduos assumirão funções de chefia em qualquer âmbito administrativo presente no capitalismo, tornam-se, portanto, gestores do capitalismo, por muitas vezes são colaboradores nas empresas que já foram suas. Constata-se então, o fenômeno histórico no capitalismo do declínio progressivo da burguesia como classe dominante em detrimento de uma expansão progressiva dos gestores como classe dominante (Idem, 1991: 216), a burguesia definha para alimentar a outra classe capitalista em expansão.

Quando a hegemonia nas classes dominantes era da burguesia, fato que se verifica com clareza até o fim da década de 1920, era corriqueiro aos gestores, no processo de sua ascensão como classe, estarem dispersos "por campos e instituições várias" e serem por isso uma classe ainda incapaz de "comportamento unificado", daí "puderam confundir-se com os trabalhadores numa comum oposição à burguesia". Esse momento de efetiva ambigüidade de classe, "permitiu que grandes movimentos da classe dos trabalhadores, inicialmente dirigidos para a destruição do modo de produção capitalista, acabassem afinal reconvertendo-o em formas novas, acelerando assim o seu desenvolvimento e consolidando-o" (Idem, 1991: 217). Esse fenômeno tão característico das lutas anti-capitalistas no século XX acabava por reforçar a apropriação da mais-valia relativa, isto é, reforçar um capitalismo cada vez mais organizado, cada vez mais sistematizado pela classe dos gestores. O corolário sob o ponto de vista dos trabalhadores, é paradoxal, porque viu nascer em definitivo, no seu próprio campo de lutas, um ex-aliado como um inimigo de classe. Dessa maneira, parafraseando o autor, os gestores, como classe, são o efetivo "inimigo oculto" dos trabalhadores.

Nas 959 páginas do monumental estudo que desenvolveu sobre a história do fascismo no século XX – Labirintos do Fascismo. Na Encruzilhada da Ordem e da Revolta (2003), entre muitas definições, João Bernardo apresenta uma expressiva síntese historiográfica sobre a questão da relação - gestores e capitalismo, que para efeitos de conclusão deste pequeno artigo a considero integralmente.

Diz o autor que os gestores "surgem como o eixo de articulação de todas as variantes do capitalismo moderno" (Bernardo, 2003: 307). São três as variantes do capitalismo moderno: a variante democrática do New Deal nos EUA – um modelo de capitalismo identificado como keynesiano; a variante soviética, como expressão de capitalismo de Estado e a variante fascista européia. Afirma João Bernardo, que no período entre as duas guerras mundiais, a burguesia "mostrou-se incapaz de se renovar e de remodelar o sistema econômico. Perante esta falência histórica da classe que até então havia sido hegemônica foram os gestores quem assumiu a direção dos acontecimentos, salvando o capitalismo" (Idem, 2003: 306). Salvação essa, demarcada naqueles três exemplos referidos acima e caracterizados sumariamente a seguir.

No modelo do keynesianismo do New Deal, "conservaram-se as instituições burguesas", mas já remodeladas pelos gestores, o imperativo político definiu-se pela manutenção da ordem. No pós-1929, pela própria natureza da crise macroestrutural, os trabalhadores foram crescentemente alijados, apesar de suas lutas, dos centros decisórios – por exemplo, não se constituiu nos EUA, a partir desse momento um forte Partido Comunista de bases nacionais. O autor define a ação dos gestores dentro das instituições burguesas, com os trabalhadores crescentemente marginalizados nas mesmas como uma "modalidade de manutenção da ordem. Num esquema: gestores + burguesia / proletariado" (Idem, 2003: 306).

O inverso aconteceu na União Soviética. Conforme o autor, "enquanto o proletariado procurava a aliança dos gestores para destruir ou transformar as relações sociais de produção, confundindo assim a burguesia com a totalidade do capitalismo" (Idem, 2003: 307), os gestores apropriavam-se do apoio do proletariado para apenas modificar o estatuto jurídico de propriedade, "de maneira a desenvolver formas de apropriação adequadas ao caráter coletivo da classe gestorial e a retirar à burguesia a exclusividade do controlo do capital. Nesta indefinição entre relações de propriedade e relações de produção", afirmaram-se as "grandes derrotas do proletariado" e os "mais macabros paradoxos do socialismo" (Idem, 2003: 307). No esquema sugerido pelo autor, na experiência dos socialismos ortodoxos contemporâneos dos quais a experiência do stalinismo soviético é o grande paradigma, a equação é "gestores + proletariado / burguesia" (Idem, 2003: 307).

A situação do fascismo obedeceria a um esquema híbrido. Como na ortodoxia stalinista, o fascismo também "institucionalizou a mobilização do proletariado sob o comando dos gestores", no entanto, a "afinidade do fascismo com o New Deal e com o keynesianismo resultou da manutenção das instituições burguesas na sua aparência exterior, embora a burguesia ficasse relegada a um lugar secundário" (Idem, 2003: 307). O fascismo impunha à burguesia a ameaça do proletariado para afirmar os gestores como condutores do capitalismo, ou seja, no fascismo, os gestores mantiveram o quadro capitalista de feições burguesas, "respeitou[-se] o quadro da ordem", mas, acrescentou-lhe o medo da "revolta, suscitado pelos ecos da mobilização proletária. Num esquema: gestores + burguesia + proletariado" (Idem, 2003: 307).

Restaria aqui, como um possível desdobramento analítico das perspectivas apontada pelo modelo do autor, apresentar uma definição dos gestores na organização do capitalismo brasileiro quando do período da convencionalmente chamada Era Vargas. Mas, por agora, limito-me à descrição parcial desse modelo, deixando essas possibilidades interpretativas para uma outra oportunidade.

[1] João Bernardo, nascido na cidade do Porto, Portugal, em 1946, tem uma obra que atualmente soma doze livros e inúmeros ensaios e artigos publicados em revistas nacionais e internacionais. Desse conjunto de obra, destaco para esta ocasião, os livros: O Inimigo Oculto. Ensaio sobre a Luta de Classes. Manifesto Anti-Ecológico. Porto: Afrontamento, 1979; Economia dos Conflitos Sociais. São Paulo: Cortez, 1991; e, Labirintos do Fascismo. Na Encruzilhada da Ordem e da Revolta. Porto: Afrontamento, 2003.

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Battisti e o gládio de Berlusconi

Battisti e o gládio de Berlusconi

Algumas considerações da política recente da Itália para a compreensão do caso de Cesare Battisti. Por Douglas Anfra

Muita bobagem temos visto sobre Cesare Battisti, como a “denúncia” assassina (e usual ?) do editorial da Folha de São Paulo de que este guardaria docinhos na cama durante sua greve de fome.

Compreendo também que muitos sejam contrários a ações armadas, mas acho que deveriam entender em primeiro lugar parte do contexto italiano, não apenas como justificação antes de exercerem seus juízos, que tenho visto de pronto, confusos e infelizes em muitas das manifestações que observei. Primeiro tentemos tratar do que foi a ligação entre a Operação Gládio, a Democracia Cristã e a Máfia, a seguir do partido de Berlusconi, descendente da República de Saló dos extertores de Mussolini no norte da Itália e a seguir voltaremos ao caso da guerrilha (ou seria melhor apenas ações armadas ?) na Itália.

1. A Democracia Cristã, a Máfia e a Operação Gládio

A democracia cristã começa sua hegemonia a partir de aristocracias, militantes antifascistas não comunistas e, principalmente, aproximação com a Igreja e, segundo consta, a introdução na Itália, durante a invasão aliada, de lideranças políticas da Máfia siciliana radicada nos EUA, como Lucky Luciano, preso nos EUA e que ganha asilo na Sicília no meio da guerra graças a um acordo secreto com o governo americano. Para quê ? Para estabelecer conexões com a Máfia italiana e siciliana, que era inimiga de Benito Mussolini, mas que contaria, a partir de então, com a ajuda do governo italiano pós-fascista e pró-americano. Na ocasião, o sortudo Luciano considerava-se um “leal americano que era devotado à Sicília, à Máfia e aos Estados Unidos igualmente”. Ao mesmo tempo, no entanto, ambos, o governo italiano e a Máfia, eram inimigos dos comunistas. Deste modo, a Máfia garantia que durante a ação aliada não haveria greves para frear as operações. Albert Anastasia conduzia a Máfia nas docas, conseguindo assim uma influência na resistência que ao mesmo tempo “minasse a resistência dos comunistas”.

Posteriormente Lucky Luciano seria recompensado com diversos cassinos na Cuba de Fulgêncio Batista, conforme narra a Biografia de Lucky Luciano na Wikipédia.

Mas como se minava esta resistência?

Matando lideranças sindicais e partidárias do sul da Itália (o chamado mezzogiorno) e abrindo caminho dentro e para a Democracia-Cristã, que se tornou a grande vencedora política do início do pós-guerra e guarda-chuva da Máfia. Mas trataremos a seguir de outra Máfia ainda mais perigosa, a partir da operação mãos limpas, como pode ser vista no artigo “A cabeça de Cesare Battisti“, de Sebastião Nery.

Isto é, sabem porquê repentinamente se voltou a falar de Cesare Battisti ?

Tudo começa no caso do Banco Ambrosiano, quando o banqueiro italiano Roberto Calvi aparece morto. A partir daí descobre-se que o Banco envolvia os seguintes grupos: Um grupo clandestino de maçonaria chamado P2, As transações bancárias escusas do Vaticano e o caixa da Operação Gládio.

A Operação Gládio é um caso familiar da esquerda da América Latina: “Gladio (em português, “gládio”) é o nome dado a uma organização clandestina do tipo stay-behind (”ficar atrás”), constituída pelos serviços de informação italianos e pela OTAN à época da Guerra Fria, para contrapor-se a uma eventual invasão da Itália pela União Soviética.” (Nota da Wikipédia)

gladio-3A Operação Gládio é o equivalente europeu da Operação Condor, que desta vez, durante sua duração, não matava apenas como nas operações da Máfia, mas perseguia esquerdistas em ascensão, inclusive em carreira normal como judiciário, sindical, etc., efetivando uma direitização dos quadros institucionais do Estado e da mídia e favorecendo a ascensão de quadros de confiança.

Sabem quem começa a carreira nesta época, com favores do Estado, e quem compra o antigo time de futebol cuja torcida era composta por antigos militantes antifascistas e seus descendentes e a editora que é dona dos direitos de publicações de esquerda, e quem promove a carreira da neta de Mussolini como estrela? Berlusconi, ao qual voltaremos.

O importante a saber é que “a existência da Gladio - da qual apenas se suspeitava até às revelações feitas pelo membro da Avanguardia Nazionale, Vincenzo Vinciguerra, durante seu processo, em 1984 - só foi reconhecida pelo presidente do Conselho italiano, Giulio Andreotti, em 24 de outubro de 1990, quando se referiu a uma “estrutura de informações, resposta e salvaguarda”. A Gladio foi acusada de ter tentado influir na política interna italiana, usando a estratégia da tensão.” E o que é a estratégia de tensão ? Criar um medo da esquerda na opinião pública que só a direita resolveria, fazendo ascender seus quadros de direita.

Assim, quando lembramos a bomba de 1980 sobre o juiz Mancuso, esquecemos o que foi na época, não uma luta contra a corrupta Máfia e coisas afim que, neste contexto, são muito menores que a patota em causa, nem a precaução pudente contra o terror, mas uma luta de reestruturação do Estado italiano que tinha de lavar a roupa suja, sem mobilizar a população à esquerda, pois todos os demais grupos estavam sujos. Sobrando mais para a Democracia-Cristão, por ter dado início ao problema. Digamos, porque a bomba estourou na mão deles.

Deste modo, facilitavam-se os atendados direitistas deste período que, estes sim, utilizavam bombas; e vejamos como isto ajudou a direita americana numa operação oculta da OTAN, que era próxima à Operação Condor e utilizava parte do dinheiro dos Contras.

Acompanhem a lista de atentados perpetrada pela patota que continua à solta, inclusive o banqueiro de Sua Santidade, que, salvo engano, deve ser o mesmo.

Complexo, diríamos, não? Mas onde entraria nosso amigo Cesare Battisti neste local de tanta gente nobre e santa ?

Lembram-se que dizia da P-2 italiana (maçonaria), e de Licio Gelli que faleceu trazendo à tona toda esta história? Vamos chamar mais um personagem.

O bonzinho homem que vemos representado nos filmes sobre as Brigadas Vermelhas: Aldo Moro. Pois é, ele era o líder desta operação que acabou somente em 1981 e chefe então do grupo P2, que funcionava como um tipo de Maçonaria paralela. A operação foi desbaratada na onda do Banco Ambrosiano, que mostrou mais claramente estas relações, isto é, que a Máfia e o Banco do Vaticano eram ligadas ao grão-mestre do P2 (sim com este título mesmo) no maior escândalo italiano do século vinte, que era a quebra do Banco Ambrosiano junto com o papa de então, João Paulo II. Eis o núcleo da operação Mãos Limpas.

O sequestro e o assassinato do Primeiro Ministro Aldo Moro em 1978 – o chefe dos serviços secretos de inteligência na ocasião, acusado de negligência, era igualmente “piduista”; Licio Gelli era seu sucessor e continuador de um mar de sangue e corrupção sem fim.

E quem eram outros membros desta organização? Jorge Videla, da sanguinária ditadura argentina, e os líderes da terrível organização fascista argentina Triplo A, como o próprio José López Rega, assim como Raúl Alberto Lastiri e Emilio Massera. Do mesmo modo, o banqueiro de Sua Santidade, através do Banco do Vaticano, também foi acusado de fornecer cobertura através de fundos americanos ao sindicato Solidarnosc, disputando-o internamente e colocando figuras de proa à direita no lugar de outras à esquerda, assim como, igualmente, ajudar a lavar o dinheiro dos Contras da Nicarágua. Veja aqui.

E assim aconteceu a Operação Mãos Limpas e voltemos ao artigo “A cabeça de Cesare Battisti” .

Nos dias seguintes, na Itália e na Inglaterra, apareceram assassinados varios outros ligados a Calvi. No meio da confusão estava Ortolani, um dos quatro “Cavaleiros do Apocalipse”. Quando, a partir de 90, a “Operação Mãos Limpas” chegou perto deles, o conde, olhando Roma lá de cima do Gianiccolo, me dizia :

- Isso não vai acabar bem.

Depende o que é acabar bem. O ministério Público e a Justiça enfrentaram a aliança satânica, que vinha desde 45, no fim da guerra, entre a Democracia Cristã e a Máfia italiana. Houve centenas de prisões, suicídios. Nunca antes a Máfia tinha sido tão encurralada e atingida. Responderam com bombas detonando carros de procuradores e juízes. Mas os grandes partidos políticos aliados (Democrata Cristão, Socialista, Liberal) explodiram. O Partido Comunista, conivente, se desintegrou.

[...]

Recordando o assassinato de Pinelli pelo terrorismo do Estado

Recordando o assassinato de Pinelli pelo terrorismo do Estado

A “Operação Mãos Limpas” não teria havido se um punhado de bravos jovens valentes e alucinados, das Brigadas Vermelhas e dos Proletários Armados pelo Comunismo (PAC) não tivesse enfrentado o Estado mafioso.

O governo, desmoralizado, usava a Máfia para elimina-los. Eles reagiam, houve mortos de lado a lado, e prisões dos líderes intelectuais, como o filósofo De Negri (asilado na França) e o romancista Cesare Battisti (asilado na França). Estava lá, vi, escrevi, acompanhei tudo.

Foram eles, os jovens rebeldes das décadas de 70 a 80, que começaram a salvar a Itália. Se não se levantassem de armas na mão, a aliança Democracia Cristã, Partido Socialista, Liberais e Máfia, estaria lá até hoje. Berlusconi é o feto podre que restou, mas logo será expelido.” (Infelizmente, sic.)

[...]

O corrupto Chirac, a pedido de Berlusconi, retirou o asilo politico de Battisti, que o Brasil agora lhe deu. Tarso Genro e Lula estão certos. O problema foi, era, continua político. O fascista Berlusconi (primeiro-ministro) é apoiado pelo desfrutavel velhinho comunista Giorgio Napolitano (presidente), que se escondeu quando o juiz Falcone (assassinado) e o procurador Pietro (hoje no Parlamento) fizeram a “Operação Mãos Limpas”

Não têm autoridade moral nenhuma. Por que não devolveram Caciolla, o batedor de carteira do Banco Central, quando o Brasil pediu?

As Salomés de lá e cá querem entregar a cabeça de Battisti à Máfia.”

Mas, infelizmente, talvez não estejamos mais falando de Máfia, mas de seus antigos inimigos que, para aplacar antigos adversários, ofereçam novo acordo com sua cabeça a prêmio, simbolizando que nada mais os ameaça e que não serão mais investigados e nem lembrarão do que se passou, numa tendência mais clara e acomodada à direita. Voltando com nova cara, ressurgem dos escombros os herdeiros da República de Saló de Mussolini, como efetivando o que Pasolini satirizava em seu filme Saló, em que associava Sade (Aristocracia) e Mussolini. Mas com resultados semelhantes tal associação veio de um gosto mais popularesco.

A República de Saló não é devidamente tratada nos verbetes digitais italinos e portugueses da enciclopédia livre Wikipédia, que a pintam com bons olhos, mas pode-se olhar o verbete inglês que explica mais sobre o protetorado nazista que resistiu por pouco tempo no norte da Itália e que passos à deportação sumária de judeus para os campos de concentração [Lager] nazistas e que se disfarçava por medidas sociais controladas pelo Estado de Sítio. Como veremos, muitos ainda reinvidicam sua herança.

2. Sobre o Partido de Berlusconi

Me reservo a citar extratos de Anatomia do Fascismo, de Robert Paxton, São Paulo: Ed. Paz e Terra, 2007. Apenas objetando algumas de suas observações que podemos afiançar pelo que temos visto até aqui deste lamaçal.

“O Movimento Sociale Italiano (MSI) teve uma existência mais significativa como o único herdeiro direto de Mussolini. Ele foi fundado em 1946 por Giorgio Almirante, que, depois de 1938, havia sido secretário editorial de uma revista anti-semita, La defesa della razza, e chefe de gabinete do ministro da Propaganda, na República Social Italiana de Mussolini, em Saló, em 1943-1945. Após um fraco desempenho de 1,9% dos votos em 1948, o MSI, a partir de então, alcançou uma média de 4% a 5% nas eleições nacionais, atingindo um máximo de 8,7 % em 1972, que não se beneficiou de uma fusão com os monarquistas e de uma reação ao “verão quente”de 1969. A maior parte do tempo, manteve um distante quarto lugar entre os partidos italianos.

Alessandra Mussolini, lado 1

Alessandra Mussolini, lado 1

O MSI alcançou seus melhores resultados após os “sustos vermelhos”: em 1972 empatou com os socialistas na disputa pelo terceiro lugar entre os partidos de nível nacional, com 2,8 milhões de votos; e em 1983 sua votação total alcançou quase o mesmo patamar, depois de os democrata-cristãos, em 1979, terem aceito votos comunistas, numa “abertura para a esquerda” que, segundo esperavam, iria reforçar suas maiorias. O partido, entretanto, continuou politicamente isolado. Quando o governo fraco de Fernando Tambroni, em 1960, contou com votos do MSI para completar suas maioria, veteranos da resistência antifascista fizeram manifestações até Tambroni renunciar. Nos trinta anos que se seguiram, nenhum político italiano convencional ousou quebrar a quarentena do MSI.

Alessandra Mussolini, lado 2

Alessandra Mussolini, lado 2

O MSI se saiu melhor no Sul, onde as lembranças das obras públicas fascistas eram positivas e onde a população não havia passado pela guerra civil de 1944-1945 entre a Resistência e a República de Saló, que se limitou ao norte do país. Alessandra Mussolini, neta do Duce, formada em Medicina, ocasionalmente artista de cinema e pin-up famosa de revistas pornográficas, representou Nápoles no parlamento eleito em 1992, como deputada pelo MSI. Como candidata à prefeitura de Nápoles, em 1993, conquistou 43% dos votos. Fora do Sul, o MSI teve um bom desempenho entre os jovens de sexo masculino que não encontravam lugar na sociedade e em todas as regiões com a exceção do Norte, onde [prevalecia] um movimento separatista regional, o Lega Nord [1](pp.290-291)

[...]

“Na Itália, os democratas-cristãos (DC) ocupavam o poder de forma ininterrupta desde 1948. Durante quarenta anos nenhuma alternativa séria havia-se apresentado ao eleitorado italiano. A cisão comunismo / socialismo havia enfraquecido a esquerda a tal ponto que todos os partidos não-comunistas de oposição preferiam buscar participação na hegemonia dos DC a se arriscar na impossível tarefa de formar uma minoria alternativa.

Gianfranco Fini

Gianfranco Fini

Quando os democratas-cristãos e alguns de seus parceiros menores foram manchados pelo escândalo, na década de 1990, não havia uma maioria alternativa entre os [variados] partidos de oposição. Novas personalidades vieram a preencher esse vazio, afirmando ser “externas à política e não-partidárias”. A mais bem-sucedida dessas figuras foi o magnata da mídia Silvio Berlusconi, o homem mais rico da Itália, que rapidamente formou um novo partido que recebeu o nome de Forza Italia, o mesmo nome de uma torcida de futebol. [Entre muitas outras propriedades, inclusive a maior parte da mídia italiana, Berlusconi era dono do time de futebol Milan A.C.]. Berlusconi montou uma coalizão com dois outros movimentos externos à política tradicional: a Liga Norte, separatista, de Umberto Bossi e o MSI (que agora se chamava Alleanza Nazionale, proclamando-se pós-fascista). Juntos, esses partidos ganharam a eleição parlamentar de 1994, tendo conseguido preencher o nicho vago de alternativas plausíveis aos desacreditados democratas-cristãos. O ex-MSI, com 13% dos votos, foi premiado com cinco pastas ministeriais. Essa foi a primeira vez, desde 1945, que um partido que descendia diretamente do fascismo participou de um governo europeu. A Forza Italia de Berlusconi ganhou novamente as eleições de 2001 e, dessa vez, o dirigente da Alleanza Nazionale, Gianfranco Fini, foi vice-premier.” (p.300)

Eis parte da barca furada em que os italianos se meteram e para a qual queremos mandar de volta Cesare Battisti.

E, por fim, como se deram as ações armadas na Itália? Mesmo que saibamos que a ação isolada de grupo pouco pode no contexto da luta de classes, que não são apenas grupos sociais específicos, há algumas características que definem um grupo de ação neste contexto conturbado que apresentamos da Itália. Vejamos alguns tópicos que talvez possam ajudar a entender esta situação complicada.

3. O que foi a ação armada na Itália ?

Vejamos alguns elementos retirados do artigo “Por baixo da calçada, a dinamite”: Luta armada em Itália e na Alemanha durante a década de 70”, de José Nuno Ramos. A ação armada na Itália deve ser compreendida em seu contexto, onde:

a) As ações não eram compostas de elementos estritamente estudantis desligados de questões específicas da sociedade, mas, como vimos, ligados à resistência num contexto de repressão política, sindical e estudantil em geral, contra a atuação de máfias que agiam de modo compacto, ligadas ao Estado;

b) 71% dos 1700 atentados na Itália dos anos 60 aos 70 foram realizados por grupos de extrema-direita que, como vimos, eram ligados à Operação Gládio ou grupos claramente neofascistas, que assassinavam principalmente lideranças de esquerda, mas igualmente jornalistas e juízes que tropeçassem em algo que não deviam;

c) Tudo isto se dava em pleno cenário de aumento da repressão social de manifestações políticas públicas:

gladio-1“Em 1975, a publicação da Legge Reale autoriza as forças policiais a disparar sobre manifestantes desarmados em caso de desordem pública, desencadeando um ciclo de confrontos, prisões e mortes. A 1º de Fevereiro de 1977, durante uma manifestação à frente da sede do Movimento Social Italiano (como resposta a um ataque da extrema-direita à universidade de Roma), a polícia dispara sobre os manifestantes, ferindo quatro pessoas. A indignação com os acontecimentos leva à ocupação de várias faculdades. [...]”

A 21 de Abril, uma tentativa de reocupação da universidade de Roma leva a polícia a entrar no campus com tanques. O governo decreta então a proibição de todas as manifestações a ocorrer durante o mês de Maio de 1977. Por quebrar a ordem ministerial, uma manifestação feminista em invocação do terceiro aniversário da derrota do referendo que propunha a proibição do divórcio é desmobilizada por disparos da polícia. Uma manifestante é morta. No dia seguinte, durante uma manifestação de repúdio, um grupo de 20/30 pessoas separa-se da maioria e dispara sob o dispositivo policial, matando um agente.” Eis parte contexto que vimos anteriormente ao tratar da Operação Gládio.

d) As organizações de esquerda não se utilizavam de bombas, evitando vitimização de civis como na Alemanha, nomeavam alvos específicos e não utilizavam de tortura, apesar de seu uso pelo Estado;

e) São válidas até hoje as confissões realizadas sob tortura naquela época e delações de membros que se encontravam no exterior, que podem obviamente, ser falsas, em troca da própria vida;

f) O terror que a justiça e as articulações caçaram foi o de extrema-esquerda, que constituiu a minoria das ações e que não começou este cenário, conforme se sabe graças aos dados que vazaram da Operação Gládio.

Agora pensemos melhor sobre se é justo ou não enviar Cesare Battisti para a Itália para expiar pelo vazamento de dados sobre o acordo entre a política e a Igreja italiana, para fazê-los aceitarem a oferta dos antigos fascistas donos do monopólio da mídia atual.

Nota

[1] Nas eleições parlamentares de 1992 a Lega Nord recebeu quase 19% dos votos do norte (8,6% nacionalmente), aproveitando-se do ressentimento dos pequenos empresários quanto ao peso social representado pelo Sul da Itália, expresso em termos que se aproximavam do racismo. Ver Hans-Georg Betz, “Against Rome: The Lega Nord”, em Hans-Georg Betz e Stefan Immerfall, eds., The New Politics of the Right: Neo-Populist Parties and Movements in Estabilished Democracies, Nova York: St. Martin’s Press, 1998, p. 45-57.

Comentários

2 Comentários on "Battisti e o gládio de Berlusconi"

  • Leo Vinicius em 18 de Novembro de 2009 00:31

    Indico um artigo e uma matéria, entre tantos outros que devem ser lidos no http://www.cesarelivre.org

    Filha de Olga Benário pede a Lula que não entregue Battisti
    http://www.cesarelivre.org/node/194

    Lula pode decidir sobre extradição de Battisti
    http://www.cesarelivre.org/node/193

  • Leo Vinicius em 18 de Novembro de 2009 07:04

    “Cesare nos explicou então que o governo italiano hoje está composto por todos aqueles que ele um dia combateu na Itália. E nos contou o caso de quando teve embate físico com Ignazio La Russa, atual ministro da defesa italiano, quando este era da juventude fascista no Movimento Social Italiano. Ele de um lado da rua, com seu movimento e La Russa do outro, com o dele. Foi esse mesmo ministro que ameaçou se acorrentar em praça pública em protesto caso a decisão do Brasil seja pelo refúgio.”

    http://brasiledesenvolvimento.wordpress.com/2009/11/14/essa-semana-conheci-cesare-battisti/

  • fonte: http://passapalavra.info/?p=15107
    (c) Copyleft: É livre a reprodução para fins não comerciais, desde que o autor e a fonte sejam citados e esta nota seja incluída

    terça-feira, 17 de novembro de 2009

    As origens políticas do marxismo de João Bernardo (Portugal/França: 1965–1974)

    por

    por JOÃO ALBERTO DA COSTA PINTO

    Docente na Universidade Federal de Goiás, Doutor em História (UFF).


    As origens políticas do marxismo de João Bernardo (Portugal/França: 1965–1974)

    Proponho neste artigo uma breve descrição da trajetória política e ideológica de João Bernardo no período de 1965 a 1974 quando do seu envolvimento nas lutas políticas anti-salazaristas em Portugal, como estudante de História (1965), militante do Partido Comunista Português (PCP) (1965-1966), e como organizador dos Comitês Comunistas Revolucionários (CCR) (1970-1974) a partir de Paris quando ali esteve exilado (1968-1974). Pela amplitude das questões específicas que o tema tem como imanentes, neste artigo limito-me a estabelecer uma descrição que procura conectar os fatos políticos da trajetória do pensador português com o desenvolvimento e afirmação de seu projeto teórico que em percurso já de quatro décadas afirma-se hoje como um dos mais vigorosos projetos teóricos do marxismo contemporâneo. Ressalve-se o caráter provisório da minha argumentação, já que o projeto de pesquisa que desenvolvo sobre a trajetória política e o conjunto da obra do autor encontra-se ainda em estágio inicial de recolha de material e entrevistas que faço com alguns dos muitos personagens que junto com João Bernardo estiveram envolvidos nas lutas anti-salazaristas, principalmente os que se envolveram na organização dos CCR, e os que participaram das práticas autogestionárias em torno da experiência do coletivo COMBATE (1974-1978), desse modo, os aspectos que enfatizarei nesta oportunidade, para o que propõe este dossiê temático, ressalvando-se o seu caráter descritivo, centrar-se-ão no momento inicial de definição do projeto teórico-político de João Bernardo, daí o recorte cronológico circunstanciar-se ao período 1965-1974.

    João Bernardo Maia Viegas Soares nasceu em 1946 na cidade do Porto em Portugal. Em 1965, acusado de agressão ao Professor Paulo Cunha, Reitor da Universidade de Lisboa, foi expulso de todas as universidades portuguesas por um período de oito anos[1]. Era militante do PCP, mas nesse momento (1965-1966) já estava sob influência do programa comunista dissidente desenvolvido pelo “Camarada Campos” (Francisco Martins Rodrigues), programa apresentado na revista REVOLUÇÃO POPULAR (editada por Martins Rodrigues) e que teria como corolário a organização maoísta do CMLP (Comitê Marxista Leninista Português). João Bernardo esteve sob influência do programa de Martins Rodrigues, mas não participava da organização do CMLP, manteve-se vinculado ao PCP (até 1966, quando o abandona) e diante da heterodoxia do programa de Martins Rodrigues, organizou no período de 1967 a 1969 um programa teórico político em defesa de um “maoísmo libertário” que teve como corolário institucional a organização dos CCR, práticas que o levaram ao rompimento político definitivo com o PCP e ao rompimento ideológico com o CMLP[2]. Se pudesse descrever de modo simplificado as principais matrizes teóricas e políticas do comunismo português do período, poderia descrevê-las sob o acento das intervenções de Álvaro Cunhal (PCP), de Martins Rodrigues (CMLP) e de João Bernardo (CCR). Foi no exílio, em Paris, que João Bernardo (sob o pseudônimo de “Tiago”), organizou os CCR e lhes deu uma marca teórica emblemática para o marxismo português, essa marca está exposta numa série de artigos – “‘À esquerda de Cunhal’ todos os gatos são pardos” – que escreveu no VIVA O COMUNISMO, periódico dos CCR[3]. Em paralelo a esse debate programático organizacional, o autor dava os primeiros movimentos ao seu modelo teórico marxista heterodoxo, modelo esse que haveria além de assinalar seu rompimento com as diretrizes do stalinismo pecepista e com o maoísmo do CMLP, também demarcaria já em fins de 1972 os indicativos de ruptura com o maoísmo dissidente dos CCR. De um leninismo radical que defendera como modelo de prática política ideal junto aos CCR, no período de 1973 a 1974, por causa dos resultados teóricos do esforço investigativo que envidou sobre a política comunista portuguesa, a política institucional do comunismo internacional (em especial o do modelo chinês) e fundamentalmente sobre as novas composições das classes dominantes portuguesas no momento do governo de Marcelo Caetano, João Bernardo aponta o seu rompimento com a tradição marxista-leninista ortodoxa, inclusive a sua e desenvolverá então as bases teóricas de um comunismo heterodoxo de práticas institucionais autogestionárias. A primeira versão global desse novo modelo teórico do autor aparece em 1975, quando publica o livro Para Uma Teoria do Modo de Produção Comunista[4], o documento maior do movimento autogestionário português representado nas práticas do coletivo reunido em torno do jornal COMBATE [5].

    Ao longo da década de 1970 em trabalho que desenvolve até o presente momento, o autor deu seqüência às suas pesquisas como investigador autodidata realizando-as em algumas das principais bibliotecas européias, em França, Inglaterra, Itália, Espanha e Portugal. Esse trabalho de pesquisa teve como resultado nos últimos anos um conjunto de obra teórica e obra historiográfica radicalmente coerente na sua integralidade com as práticas teórico-ideológicas desenvolvidas nas lutas políticas das décadas de 1960 e 1970, não que isso signifique que o autor continue a defender o mesmo programa de antes, ao contrário, o que quero afirmar é que o autor mantém ao longo das últimas décadas a mesma atitude intelectual, isto é, revisa e amplia as bases conceituais do modelo teórico anticapitalista que o seu marxismo heterodoxo propõe como interpretação das formas e práticas institucionais do capitalismo na sua experiência contemporânea de capital transnacionalizado. É característica fundamental desse conjunto de obra, a constante revisão – atualização pontual de alguns aspectos programáticos que, no entanto, não lhe altera o estatuto fundamental: manter a atualidade do programa teórico-político do comunismo marxista autogestionário, programa esse, centrado no conceito de exploração e na redefinição (junto a Marx) do estatuto teórico da mais-valia, da lei do valor nas práticas recentes do capitalismo e é nesse sentido que o autor procura desenvolver uma agenda política sempre atual que desvele as contradições sociais imanentes às práticas institucionais da organização da exploração capitalista e essa agenda demarca-se pela defesa intransigente das lutas autonomistas dos trabalhadores oriundas dos laços de sua solidariedade germinados dessas práticas anticapitalistas, principalmente aquelas que se antepõem ao capitalismo dos sindicatos, uma das expressões máximas do capitalismo de gestores. Como resultado dessa operação teórico-política determina-se como central ao conjunto de seu pensamento e obra a caracterização histórica das práticas políticas dos GESTORES como classe dominante na lógica da reprodução capitalista, classe dominante que se define historicamente no capitalismo ao lado e depois se sobrepondo da outra classe dominante: a Burguesia, isto porque, afirma a obra do autor, os Gestores são a expressão institucional do controle e organização da exploração global capitalista sobre a força de trabalho assalariada. Assim, o capitalismo dos gestores e a conseqüente, porque obrigatória, redefinição do estatuto marxista da Lei do Valor, são os emblemas-síntese da originalidade programática do marxismo de João Bernardo e some-se a esses aspectos estruturais de sua obra a sempre permanente busca por uma reflexão epistemológica que se defina como modelo operacional de investigação global para as Ciências Sociais e Ciências Humanas em geral, centrada na explicação de como se estruturam e definem as práticas ideológico-institucionais dos indivíduos e das classes sociais na reprodução societária do capitalismo contemporâneo.

    Numa rápida descrição do conjunto da obra é possível verificar-se a coerência e articulação que lhe é imanente em desenvolvimento já com mais de três décadas de publicações. O autor tem diferentes tipos de publicações, diferentes pelos propósitos políticos e pedagógicos do alcance proposto na conjuntura da edição. Há títulos de resposta conjuntural que colocam em prática analítica o modelo teórico desenvolvido com mais detalhamento e rigor em outros títulos. Exemplos de trabalhos de conjuntura, de resposta política do intelectual em intervenção crítica aos problemas do capitalismo que lhe é contemporâneo, são os livros: 1) O Inimigo Oculto. Ensaio sobre a luta de classes. Manifesto anti-ecológico (Porto: Afrontamento, 1979); 2) Crise da Economia Soviética (Coimbra: Fora do Texto, 1990); 3) Transnacionalização do capital e fragmentação dos trabalhadores. Ainda há lugar para os sindicatos? (São Paulo: Boitempo, 2000); e 4) Democracia Totalitária – teoria e prática da empresa soberana (São Paulo: Cortez, 2004). Outros títulos marcam-se como obras de investigação historiográfica, é o caso da monumental trilogia – Poder e Dinheiro. Do Poder Pessoal ao Estado Impessoal no Regime Senhorial. Séculos V-XV (03 volumes) (Porto: Afrontamento, 1995, 1997 e 2002). Esta trilogia tem tradução prevista para o inglês sob a coordenação do grupo editorial da revista britânica Historical Materialism, editada pela London School of Economics. O outro título historiográfico, sem similar na Historiografia de língua portuguesa pela sua colossal pesquisa bibliográfica e envergadura de propósitos analíticos é – Labirintos do Fascismo. Na Encruzilhada da Ordem e da Revolta (Porto: Afrontamento, 2003). Nestes trabalhos a originalidade do modelo marxista do autor mantém-se com todo o seu vigor. Por exemplo, na última obra citada, o autor apresenta em centenas de páginas a demonstração historiográfica da ação de classe dos gestores ao longo do século XX, se em outras obras a discussão conceitual sobre os gestores como classe dominante no capitalismo aparece como estruturação teórica no embate conceitual interno do marxismo contemporâneo, neste livro, ao longo de suas 959 páginas o que se observa é a prova histórica da materialidade da ação de classe dos gestores. O autor preparou esse livro ao longo de pelo menos duas décadas, seu rascunho, seu desenho inicial já está apontado num ensaio que compõe uma das partes do livro – Capital, Sindicatos, Gestores (São Paulo: Vértice, 1987). Este livro caracteriza um outro tipo de publicações do autor, aquelas obras resultantes de cursos que ministrou no Brasil ao longo dos últimos vinte anos[6]. A esse “tipo” de publicação soma-se o livro: Estado. A silenciosa multiplicação do poder (São Paulo: Escrituras, 1998). A estes três “tipos” de publicações acrescenta-se aquele conjunto de títulos que demarcam o núcleo duro, a centralidade do projeto teórico político do marxismo de João Bernardo, refiro-me aos trabalhos de epistemologia, em obras como: Marx Crítico de Marx. Epistemologia, Classes Sociais e Tecnologia (03 volumes) (Porto: Afrontamento, 1977) e Dialética da Prática e da Ideologia (São Paulo: Cortez; Porto: Afrontamento, 1991)[7]. Nestes trabalhos o modelo teórico do autor está configurado na sua estrutura básica, nos fundamentos epistemológicos de um marxismo radicado em articulada proposição heterodoxa porque asseverado por diálogo de revisão e contestação programática direta com os fundamentos da matriz marxiana e dos clássicos do marxismo contemporâneo. No entanto, é no livro Economia dos Conflitos Sociais (São Paulo: Cortez, 1991) que o modelo teórico-político do autor apresenta-se na sua totalidade, esta é a obra máxima do marxismo de João Bernardo. Os elementos de fundamentação epistemológica, a caracterização da economia política capitalista nos seus fundamentos básicos – Condições Gerais de Produção, Unidades de Produção Particular, a lei do valor e a reprodutibilidade das taxas da mais-valia relativa, as formas tecnológicas de exploração dos tempos produtivos, a função do dinheiro, as classes do capitalismo (burguesia, gestores, proletariado), as formas das lutas anti-capitalistas nos modelos dos marxismos das forças produtivas e no das relações sociais de produção, os movimentos caracterizadores do Estado no Capitalismo (nas teses do Estado Restrito e do Estado Amplo), em suma, nessa obra o sentido macroestrutural da totalidade conceitual do marxismo do autor aparece em toda a sua plenitude [8].

    Apresentada assim, em rápidas palavras, a trajetória intelectual de João Bernardo, a seguir, passo a caracterizar os “primeiros passos” do modelo marxista do autor, e o faço resgatando alguns aspectos dos seus escritos políticos apresentados quando da organização dos CCR e o debate imanente que os mesmos carregam diante das premissas do marxismo português que lhe era contemporâneo: as intervenções de Álvaro Cunhal (PCP) e as de Francisco Martins Rodrigues (CMLP).

    A defesa do método marxista, a defesa do materialismo dialético, como arma obrigatória do revolucionário comunista, a ênfase em tal termo justifica-se contra o oportunismo e o dogmatismo que alimentava o programa do PCP, aspecto que segundo o documento de fundação dos CCR[9], seria o principal responsável pelo “atraso ideológico” em que permanecia o proletariado português, situação originada pela “forte presença de ideários pequeno-burgueses”, manifestados por Álvaro Cunhal, em exemplos como o da assertiva dos burgueses “honrados”. A grande meta dos CCR era combater esse atraso ideológico, combater o revisionismo “frentista” republicano do PCP. Junto às perspectivas “republicanas” pequeno-burguesas do PCP, o documento inaugural dos CCR manifesta também a sua discordância com as possibilidades para Portugal de práticas políticas do modelo castrista-guevarista, porque a importação do mesmo implicaria, entre outros problemas, no “foquismo”, que para os CCR significava uma prática política insurrecional distante das concretas práticas políticas revolucionárias do proletariado português, essa seria uma experiência de ação prática igualmente pequeno-burguesa. No mesmo documento manifesta-se, de modo axial, a diferença política dos CCR com o CMLP, os CCR reconhecem o importante papel teórico do CMLP, já que esta agremiação fora a responsável pela “primeira tentativa de análise científica da realidade portuguesa e de interpretação comunista dessa realidade” (DPCCR, p. 03). Essa “interpretação comunista” apareceu na série de artigos escrita por Francisco Martins Rodrigues (“Camarada Campos”) nos seis números da revista Revolução Popular[10]. Enfim, com a ênfase na formação intelectual do militante a principal proposta indagada pelos CCR era a de acabar com o “seguidismo”, a falsa disciplina de caserna, a mentalidade de sargento “comum ao partido de Cunhal e a grupos que se dizem marxistas-leninistas” (DPCCR, p. 05). Para os CCR o militante comunista com o uso do método marxista deveria saber a analisar a realidade histórica e a discuti-la e assim, saber “criticar e autocriticar-se” diante das realidades dos fatos conjunturais a que estivesse envolvido, só assim se poderia consolidar uma organização comunista disciplinada. Esse foi um dos principais propósitos do jornal VIVA O COMUNISMO!, isto é, apresentar-se como um jornal teórico de reflexão marxista sobre os principais problemas do capitalismo, essa prática teórica contrária aos “vícios” dos modelos comunistas então criticados foi levada a seu termo de modo intransigente por João Bernardo “Tiago” e a série de artigos (não assinados) “‘À esquerda de Cunhal’ todos ... afirma-se como um expressivo exemplo desses propósitos, os artigos não apenas recuperam a historicidade dos fatos políticos do comunismo português daquele período, como afirmam ainda o sentido rigoroso da aplicação do materialismo dialético à realidade estrutural do capitalismo português, principalmente no que se refere às mutações de classe acontecidas no campo da exploração em fins da década de 1960. As premissas dos CCR radicavam-se num leninismo “puro”, os CCR enquanto comitês deveriam nas suas zonas de influência afirmar-se como vanguarda operária, a ampliação dos comitês e a crescente mobilização desse trabalho prático de autonomia teórica e rigor com a organização operária é que poderia desencadear o processo de conversão num Partido, só assim “os Comitês Comunistas Revolucionários se poderão converter no Partido Comunista Revolucionário” e “só na fase de partido” é que a organização dos CCR poderia então “desencadear e conduzir acções de massas”[11].

    Em linhas gerais, então, qual poderia ser a marca da prática política de João Bernardo no contexto 1965-1969 e 1970-1974? Antes de se firmar historicamente um autêntico partido marxista-leninista de massas, a necessidade dos comitês – os CCR, e com esses, a reflexão teórica sobre a realidade histórica para assim se conseguirem os instrumentos teórico-práticos da verdadeira luta de classes. Os CCR teriam a função de preparar a vanguarda que organizará o futuro Partido Comunista. Contudo, nesse processo, um fato: dessa análise histórica das práticas gestoriais do comunismo internacional (principalmente o modelo de Capitalismo de Estado Chinês), do capitalismo e da experiência capitalista portuguesa em particular (destacando-se as mutações originadas com o “marcellismo” – hegemonia do capital financeiro e a ascensão da tecnocracia industrial e financeira [aqui se definem para o autor os fundamentos teórico-históricos para a caracterização dos Gestores como classe dominante capitalista] como classe), dessa análise global, o modelo teórico derivado, paradoxalmente, impossibilitava a continuidade do projeto político de bases marxistas-leninistas, porque, constatava o autor, que as mutações, as práticas de organização da exploração capitalista ao asseverarem a tecnocracia como classe dominante, o princípio organizatório da luta operária centrado no partido acabaria por reproduzir na verticalidade de suas hierarquias os mesmos procedimentos gestoriais tecnocráticos, assim, a busca por um leninismo radical, levou o autor e facções dos CCR a romper com o próprio leninismo de origem e afirmar o princípio autogestionário das lutas sociais anticapitalistas[12]. Das posições contrárias à política de Cunhal e do PCP – a política da unidade de todos os portugueses honrados, do levantamento nacional antifascista sob hegemonia da burguesia nacional de onde sairiam os “homens honrados”, da posição contrária aos limites organizacionais do CMLP, ainda que de acordo com o programa do “Camarada Campos”, das premissas de um método marxista-leninista autêntico, na busca do militante revolucionário ideal, João Bernardo descobre na realidade dos fatos por ele analisada, a impossibilidade de uma prática política partidária centralizada num partido comunista, impossibilidade essa afirmada pela percepção da nova realidade de classe que Portugal apresentava com Marcello Caetano, pela configuração das novas formas de organização da exploração da força de trabalho. Com a marca inicial da dissidência maoísta dos CCR no campo da ortodoxia marxista-leninista portuguesa, as práticas institucionais de João Bernardo levam-no à “superação”, à ultrapassagem dos limites históricos do programa inicial dos CCR. O marxismo de João Bernardo sempre teve a marca da atitude heterodoxa, a partir do método marxista enfrentar os cânones da tradição ortodoxa, inclusive as bases matriciais da obra de Marx, e na conjuntura da luta antifascista em Portugal, mesmo quando defendia uma ortodoxia radical sempre esteve com as suas práticas a afirmar a marca da ruptura heterodoxa, com as suas práticas teórico-políticas ultrapassava e “superava” os limites estruturais do “seguidismo” institucional ortodoxo e afirmava – como ainda afirma – a única possibilidade revolucionária concreta para a classe operária: é das práticas solidárias da luta autonomista e do controle cotidiano das bases produtivas globais de sua sociabilidade que se institucionalizarão de modo efetivo as possibilidades do comunismo como modo de produção.

    ______________

    [1] João Bernardo foi impedido judicialmente de estudar em qualquer Universidade portuguesa em condenação imposta pelo Supremo Tribunal de Justiça por causa de uma suposta agressão ao Reitor da Universidade de Lisboa acontecida em 01 de abril de 1965 quando o autor era aluno do primeiro ano do Curso de História na Faculdade de Letras. Desse acontecimento, na verdade uma discussão com o Reitor e não uma agressão – luta corporal houve com dois funcionários que impediram a aproximação de João Bernardo ao Reitor, elaborou-se extenso processo criminal que culminou em 1966 com a sentença da expulsão de todas as universidades pelo período de oito anos. O Advogado Álvaro Soares (pai de João Bernardo) defendeu o acusado sem sucesso, produziu, no entanto, nessa defesa, dois documentos notáveis que desmontam na retórica da acusação os sofismas judiciais de um regime fascista. Mesmo impedido de freqüentar instituições acadêmicas, João Bernardo, na clandestinidade, manteve-se como um dos principais articuladores no meio estudantil das lutas de resistência contra o regime fascista português. Em fins de 1967, pela repressão imposta pela PIDE contra as agremiações políticas dos estudantes, João Bernardo decide-se pelo exílio em Paris. Sobre a expulsão de João Bernardo e a defesa do seu advogado, consultar: SOARES, Álvaro. Recurso do Estudante João Bernardo Maia Viegas Soares da pena disciplinar de oito anos de exclusão de todas as escolas nacionais. Lisboa: Edição do Autor, 1966, 74 p.; e ainda, SOARES, Álvaro. PARA O PLENO. Reclamação do despacho que não admitiu o recurso ao Estudante João Bernardo Maia Viegas Soares do Acórdão que confirmou a pena disciplinar de oito anos de exclusão de todas as escolas nacionais. Lisboa: Edição do Autor, 1968, 59 p.

    [2] Na clandestinidade, depois da sentença pela sua expulsão, e depois de ter sido preso três vezes, João Bernardo atuava no SCIP (Secretariado Coordenador da Informação e Propaganda), órgão federativo estudantil – não reconhecido oficialmente pela legislação estatal que só permitia associações acadêmicas restritas às unidades de ensino. Dessas práticas políticas, João Bernardo organiza várias “células” políticas formalmente próximas do CMLP que, no entanto, acabaram por se constituir como a base futura dos CCR que o autor organizou quando no exílio. Informações obtidas por entrevista com João Bernardo feita por e-mail em 21/01/2006. Outras informações sobre a trajetória de João Bernardo no movimento estudantil clandestino estão em LOURENÇO, Gabriela, COSTA, Jorge e PENA, Paulo. Grandes Planos – Oposição Estudantil à Ditadura: 1956 – 1974. Lisboa: Âncora Editora / Associação 25 de Abril, 2001, pp. 115 – 125 e 166 – 168.

    [3] Essa série tem ao todo quatro artigos escritos por João Bernardo (artigos não assinados) apresentados na seguinte ordem cronológica: 1) “‘À esquerda de Cunhal’ todos os gatos são pardos” – 1ª. Parte: limitações e promessas no despontar de uma nova etapa do movimento revolucionário (de Janeiro de 1964 a Dezembro de 1965). In VIVA O COMUNISMO!, n. 02/03, Paris / Lisboa, julho – agosto de 1970, pp. 02 – 28; 2) “‘À esquerda de Cunhal’ todos os gatos são pardos” (continuação) – 2ª. Parte: a degenerescência dogmática – origem e efeitos (de princípios de 1966 a fins de 1968). In VIVA O COMUNISMO!, n. 04, Paris / Lisboa, maio de 1971, pp. 18 – 42; 3) “‘À esquerda de Cunhal’ todos os gatos são pardos” (continuação) – 3ª. Parte: as cisões (de 1966 a 1969 – 70). In VIVA O COMUNISMO!, n. 05, Paris / Lisboa, maio de 1972, pp. 27 – 51; 4) “‘À esquerda de Cunhal’ todos os gatos são pardos (conclusão) – 4ª”. Parte: a situação actual – grandes tendências e a clarificação de posições”. In VIVA O COMUNISMO!, n. 06, Paris / Lisboa, agosto de 1972, pp. 02 – 34.

    [4] BERNARDO, João. Para Uma Teoria do Modo de Produção Comunista. Porto: Afrontamento, 1975. Este livro tinha sido redigido em Paris em 1972, Rita Delgado confirma a leitura do manuscrito nessa data (entrevista por e-mail em 15 de fevereiro de 2006). O livro foi traduzido na Espanha em 1976. O autor republicou em 1978, em português, o importante prefácio que fez à edição espanhola – consultar: BERNARDO, João. A propósito da teoria do modo de produção comunista. In Revista Trimestral de Histórias e Idéias, n. 02, Porto, Afrontamento, 1978, pp. 99 – 105. Importa destacar, portanto, que o autor em 1972 já “ultrapassava” os conteúdos e o modelo que ele mesmo construíra junto aos CCR. Das contradições do maoísmo, do fracasso da Revolução Cultural Chinesa e da ascensão dos gestores como classe dominante no capitalismo de Estado chinês, João Bernardo caminhará em definitivo para práticas de um marxismo libertário. Com a publicação desse livro em 1975, o autor apresenta-se, tanto teoricamente como politicamente, como uma das mais originais expressões do marxismo português no contexto da Revolução dos Cravos (1974 – 1976).

    [5] Importa ressalvar que vários textos de João Bernardo, textos programáticos e textos de análise conjuntural eram publicados pelas Edições CONTRA-A-CORRENTE que o Coletivo do jornal COMBATE organizara nas cidades do Porto e Lisboa em fins de 1974. Foram publicados trinta e um textos (em forma de brochuras) e vários deles, de autoria de João Bernardo foram depois traduzidos na Inglaterra e na Espanha, caso, por exemplo, destes dois títulos: Um ano, um mês e um dia depois. Para onde vai o 25 de Abril? (Economia e Política da Classe Dominante) – que foi publicado em 26 de maio de 1975 e traduzido para o inglês em 12 de outubro de 1975, como: Portugal – Economy and Policy of the Dominant Class. One year, one month and one day after: where is the 25 th. April going? (28 p.) (a tradução para o inglês foi feita por João Bernardo, com provável distribuição em Londres pelo Grupo SOLIDARITY, digo provável porque o principal articulador do grupo inglês, Maurice Brinton, acompanhava sistematicamente o desenrolar das lutas políticas do COMBATE). A brochura Lutas Sociais na China, publicada em julho de 1976 (40p.), foi publicada na Espanha com alguns acréscimos como livro – Lucha de Clases en China (1949 – 1976). Madrid: Zero – ZYX, 1977. Ressalve-se também que no coletivo COMBATE estavam presentes inúmeros colaboradores originados de outros países, caso, por exemplo, do australiano Phil Mailer e do norte-americano Loren Goldner, sendo o primeiro, autor de um importante estudo sobre os fatos acontecidos em Portugal na Revolução dos Cravos, refiro-me ao livro: Portugal: A Revolução Impossível? Porto: Afrontamento, 1978, livro que foi publicado originalmente na Inglaterra pelo coletivo a que estava envolvido Maurice Brinton – Portugal: the Impossible Revolution?, Londres: Solidarity, 1977. A versão original tem 16 capítulos, a edição portuguesa tem 10 capítulos. O livro também teve edições simultâneas em inglês nos EUA e no Canadá, publicados em 1977, respectivamente, pelas editoras Free Life e Black Rose. João Bernardo publicou recentemente um breve texto onde explica o sentido histórico da experiência política do coletivo que organizou o jornal COMBATE, consultar o artigo em: www.espacoacademico.com.br/060/60div-jb.htm

    [6] Com o fracasso da experiência política radical do conselhismo na revolução capitalista portuguesa (1974 – 1978), João Bernardo depois de muitos anos de estudos em Portugal e em outros países europeus, decidiu-se a vir para o Brasil em 1984. Personagem fundamental para essa tomada de decisão foi o professor Maurício Tragtenberg que naquela ocasião orientava na PUC de São Paulo a dissertação de mestrado da professora Lúcia Bruno sobre a experiência coletiva do jornal COMBATE. Maurício Tragtenberg e Lúcia Bruno foram-lhe fundamentais para a vinda e estabelecimento no Brasil. Ao longo dos anos seguintes, João Bernardo apresentou seus trabalhos em inúmeros cursos que desenvolveu em programas de graduação e pós-graduação de várias universidades brasileiras (PUC/SP, PUC/RJ, USP, FGV/SP, UFMG, UFRS, UNICAMP, UNESP, UFSC, UFG entre outras). Em paralelo a essa atividade docente, o autor também ministrou vários cursos e participou de inúmeras atividades políticas vinculadas a sindicatos de trabalhadores brasileiros. Portanto, é dessas práticas institucionais que o autor definia e apresentava como politicamente necessário o conjunto de sua obra.

    [7] Estes dois títulos remetem-se diretamente a um artigo que o autor escreveu em 1971 quando do seu exílio político e que só publicou em 1978, refiro-me ao texto: Metodologia Geográfica e Crítica da Geografia Ideológica. In Revista Trimestral de Histórias e Idéias, vol. 01, Porto, Afrontamento, 1978, pp. 53 – 89. O artigo publicado na integra, na sua versão de 1971 é precedido por uma importante nota introdutória onde o autor, já sob as perspectivas epistemológicas de 1977, apresentadas em Marx crítico de Marx..., redimensiona o sentido inicial daquele texto e as circunstâncias políticas que lhe motivaram a redação.

    [8] Alguns artigos publicados na década de 1980 antecipam os conteúdos desse livro síntese de 1991. Destaco três trabalhos: 1) O dinheiro: da reificação das relações sociais até o fetichismo do dinheiro. In Revista de Economia Política, vol. 03, n. 01, São Paulo, FGV, janeiro – março de 1983, pp. 53 – 68; 2) O proletariado como produtor e como produto. In Revista de Economia Política, vol. 05, n. 03, São Paulo, FGV, julho – setembro de 1985, pp. 83 – 100; 3) Gestores, Estado e Capitalismo de Estado. In Revista Ensaio, n. 14, São Paulo, Editora Ensaio, 1985, pp. 85 – 104. Os conteúdos destes artigos, publicados sob determinações políticas conjunturais, principalmente no que se refere ao papel dos sindicatos na organização do capitalismo brasileiro seriam amplamente desenvolvidos (com algumas revisões) em capítulos da obra Economia dos Conflitos Sociais.

    [9] Declaração de Princípios dos Comitês Revolucionários Marxistas Leninistas. Paris / Lisboa, Janeiro de 1970 (Arquivo pessoal de Rita Delgado, a quem agradeço a disponibilização de uma cópia deste documento [e de vários outros]. Rita Delgado foi militante dos CCR). Doravante, este documento será citado no corpo do texto como DPCCR, seguido do número da página citada.

    [10] A revista Revolução Popular que teve a edição de seis números circulou entre 1964 e 1965. Os textos de Francisco Martins Rodrigues apresentaram-se como a primeira grande ruptura teórica e ideológica com os modelos pecepistas, afirma Martins Rodrigues que o PCP deveria combater os equívocos da frente classista, aquela que propunha a “unidade de todos os portugueses honrados”, para ele, o PCP deveria “defender a luta pela hegemonia e independência política do proletariado no movimento antifascista”, deveria estruturar-se pela “busca de uma aliança com o campesinato”, realizando assim “a crítica sem reservas ao campo republicano”, enfim, o partido deveria por em prática “a linha clássica do leninismo” (entrevista com Francisco Martins Rodrigues por e-mail - dia 06 de março de 2006, a quem agradeço o envio a mim das cópias da série de artigos que publicou na Revolução Popular, material esse que não poderá no âmbito deste pequeno artigo ser comentado em maior detalhe. Farei esse comentário em outra oportunidade). Por não encontrar essas condições políticas no PCP, Martins Rodrigues conduziu a cisão do CMLP em fins de 1963. Em meados de 1965 os principais dirigentes do CMLP foram presos pela PIDE, e logo a seguir membros intermediários da organização também foram capturados. “(...) o CMLP, que apenas tinha conseguido atingir alguns sectores operários da margem sul e da cintura industrial de Lisboa, desaparece praticamente como organização no interior do país. O que resta dos seus elementos vão-se reagrupar no exterior, onde continua a existir um Comitê do Exterior” (COSTA, Ramiro da. Elementos para a História do Movimento Operário em Portugal (2º. Volume – 1930/1975). Lisboa: Assírio e Alvim, 1979, p. 201. Lembre-se que Francisco Martins Rodrigues esteve preso de 1965 a 1974. Rui Canário que integrava um dos CCR em Lisboa afirma que tanto para si como para João Bernardo, o “Camarada Campos” (Francisco Martins Rodrigues) era a figura máxima do marxismo português e em fins da década de 1960 era visto como “o nosso Lenine” (entrevista com Rui Canário feita por e-mail - dia 26 de janeiro de 2006).

    [11] Ver “‘À esquerda de Cunhal’ todos os gatos são pardos” (Conclusão) – 4ª. Parte... Op. Cit., p. 28.

    [12] O documento que explicita a cisão nos CCR por outras práticas políticas de cariz anti-leninista foi escrito por João Bernardo e José Mariano Gago e apareceu em Janeiro de 1974 com o título: Que Fazer – Hoje? (Mimeo. Paris / Lisboa, 12 p.). (Arquivo pessoal – Rita Delgado).


    fonte: http://www.espacoacademico.com.br/063/63esp_pinto.htm