Os náufragos (4ª Parte)
O esgotamento ideológico da esquerda e da extrema-esquerda naquela época não se pode explicar se esquecermos o destino dessas centenas de milhares de náufragos. Por João Bernardo
Por mais extraordinário que pareça, depois de tudo o que evoquei nos artigos anteriores, nos últimos dias da segunda guerra mundial ainda havia quem sonhasse com uma revolução.
O jornalista sueco Stig Dagerman relatou, numa reportagem de 1946, a opinião de um comunista alemão que passara longos anos no campo de concentração de Buchenwald. «Ele pensa que o momento era bom, que as condições favoráveis a uma resolução rápida mas em profundidade dos problemas estavam verdadeiramente reunidas em Abril de 1945. Os soldados que se viam forçados a voltar a passar as fronteiras em marcha atrás nutriam aversão ou ódio pelo regime hitleriano e teriam feito tudo para ajustar contas com ele. A multidão de prisioneiros dos campos de concentração estava pronta a atirar-se contra os seus carrascos, e nas grandes cidades destruídas pelas bombas houve durante toda a Primavera de 1945 fortes grupos de acção que levaram a cabo guerras civis locais contra os nazis. Mas por que não deu isso resultados? Ora, porque as vitoriosas nações capitalistas ocidentais não desejavam uma revolução antinazi. Os grupos revolucionários alemães foram isolados pelos exércitos dos vencedores, quando estes deveriam ter estabelecido com os seus canhões um círculo protector à volta da Alemanha, deixando os alemães ajustar[em] eles próprios contas com um passado odioso. Não tinham enviado para casa as massas revolucionárias dos campos de concentração em conjunto, mas sim em pequenos grupos inofensivos; os soldados tinham sido desmobilizados divididos em unidades muito pequenas e os núcleos de resistentes das cidades que iniciaram a desnazificação, por vezes forte e feio, mesmo antes do fim da guerra haviam já sido desarmados pelos Aliados […]».
Não sei, ninguém pode saber, se as esperanças daquele velho comunista eram realizáveis, mas as suas declarações mostram que elas eram reais. E não há dúvida de que tanto os governos das democracias como o bureau político soviético tomaram as precauções necessárias para aniquilar quaisquer veleidades insurreccionais. «Houve bairros de Berlim que permaneceram indomavelmente comunistas, mesmo sob Hitler», diz um personagem de Simone de Beauvoir num dos romances que mais nos ajuda a compreender as hesitações e hipocrisias do pós-guerra. «Durante a batalha de Berlim os operários de Köpenick e da vermelha Wedding ocuparam as fábricas, hastearam a bandeira vermelha e organizaram comités. Poderia ter sido o começo de uma grande revolução popular; […] os comités estavam prontos a fornecer os quadros do novo regime. […] E em vez disso o que sucedeu? Chegaram os burocratas de Moscovo, correram com os comités, liquidaram a base e instalaram um aparelho de Estado, ou melhor, um aparelho de ocupação».
Um atribuiu a responsabilidade aos Aliados ocidentais, o outro à burocracia soviética, mas não a tinham todos eles? Conseguiremos imaginar, hoje, a desolação e o desespero daqueles amantes da liberdade que se viam presos pelos governos democráticos, daqueles partidários do comunismo que se viam deportados pelo governo comunista? Nenhum chão firme lhes restava para pisar, os decálogos e cartilhas eram invalidados pela prova indesmentível dos factos que se sofrem na carne. Em que acreditar? Para onde ir? Os historiadores que mencionam o fim das ideologias e a crise das convicções, que estudam o cinismo do pós-guerra, o consumismo, a superficialidade dos interesses, por que motivo esquecem esses muitos milhares de refugiados, presos pelas potências inimigas dos regimes a que eles haviam fugido? Quando Arthur Koestler comentou «Estes cento e cinquenta homens que povoavam a chamada Caserna dos Leprosos eram o que restava das Brigadas Internacionais − que constituíram outrora o orgulho do movimento revolucionário europeu, a vanguarda da esquerda», ele definiu o destino de toda uma geração. Foram estas as determinantes profundas do niilismo ideológico. O entorpecimento do intelecto foi a condição da sobrevivência psicológica.
Será de estranhar, em tal contexto, que muitos homens e mulheres de esquerda se tornassem conservadores ou centristas ou simplesmente coisa nenhuma? A tese de que nazismo e stalinismo eram duas faces da mesma moeda, sustentada por tantos autores − Hannah Arendt talvez a mais perspicaz de todos − é errada teoricamente, mas quando recordamos os acontecimentos da época é compreensível que essa tese tenha surgido, sido divulgada e aceite. Falta-lhe a outra metade, todavia, que alguns se encarregaram de preencher, anunciando que a democracia é a outra face do totalitarismo e que esse labirinto é na realidade um beco sem saída. Tese teoricamente errada, também, porque havia fissuras nos muros que envolviam os espaços políticos. Mas não se tratava para aquelas pessoas de debater problemas teóricos e sim de sentir as marcas da própria vida.
Não acreditemos na roupagem ilusória com que os académicos se revestem. Por detrás da apreciação fria dos dados e dos documentos havia imagens bem mais poderosas, e mesmo que as não evocassem gritavam-lhes dentro da cabeça, Max Ernst a cobrir uma parede com desenhos no campo de concentração de Le Vernet, os antifascistas polacos e lituanos a ser enviados para os campos de trabalho soviéticos, Walter Benjamin a morder a cápsula de cianeto que Koestler lhe dera, August Creutzburg a ser entregue pelos soviéticos aos nazis, as vidas de dezenas de milhares de judeus que alguns chefes de Estado fascistas e o próprio chefe dos SS estavam dispostos a vender aos Aliados e que estes não se interessaram em comprar. Deste tecido eram feitas as memórias profundas, tanto mais profundas quanto as pretendessem esquecer.
As utopias não morreram no pós-guerra, foram deliberada e sabiamente assassinadas. O esgotamento ideológico da esquerda e da extrema-esquerda naquela época não se pode explicar se esquecermos o destino dessas centenas de milhares de náufragos. Depois, foi necessário reconstruir tudo de novo.
Conta-se que em 1947 Victor Serge, quando se encontrou na Cidade do México com Natalia Sedova, a viúva de Trotsky, lhe disse: «Nós dois somos os últimos sobreviventes». E eram.
Referências
As declarações do antigo prisioneiro de Buchenwald encontram-se em Stig Dagerman, Outono Alemão, Lisboa: Antígona, 1991, págs. 118-119. A passagem de Les Mandarins, de Simone de Beauvoir, está na pág. 251 da edição Paris: Gallimard, 1954. O trecho citado de Arthur Koestler vem na sua obra Scum of the Earth, Londres: Eland, Nova Iorque: Hippocrene, 1991, pág. 114.
Nota sobre as ilustrações
A arte nunca pode ser ilustração nem comentário. A arte é a transposição de um acontecimento ou de uma coisa ou de uma situação para outro plano, e a criatividade estética consiste nessa operação de transposição. Quando, através da arte, nossa ou alheia, passamos a esse outro plano, podemos lançar dali um olhar novo sobre o mundo habitual. Por isso há tanto medo da arte. Quem sabe que panoramas ela irá rasgar? Muitos preferem a ilustração, para terem a garantia de que nunca experimentarão os riscos de uma visão diferente. Os quadros que acompanham esta série de quatro artigos constituem transposições para o plano estético das situações históricas que eu descrevi, e desenvolvem um discurso paralelo ao da minha narrativa.
O primeiro artigo abre com duas obras de Max Beckmann e no último artigo é avassaladora a presença de Francis Bacon, que se encontra também no segundo artigo. A forma estética destes dois pintores é idêntica. Ambos ressuscitaram o espaço cúbico unifocal da primeira Renascença, que entretanto havia sido posto de lado, mas provocaram-lhe uma acentuada distorção. O espaço cúbico unifocal operara uma idealização de tipo neoplatónico das pessoas e dos objectos, convertendo-os de realidades em arquétipos, e instaurara assim uma forma de relacionamento estática e pré-definida. A distorção daquele espaço introduziu-lhe inquietação, ambiguidade e mal-estar, por isso Beckmann e Bacon conseguiram, mais do que quaisquer outros pintores, exprimir a angústia de uma época. No resto eles são diferentes. Em Beckmann a angústia é objectiva, enquanto Bacon a interiorizou e a sua vida não foi mais do que um longo padecimento, mas ambos conseguiram transpor o naufrágio para o plano estético.
Fautrier é na minha opinião − como na de alguns (muito poucos) outros − um dos maiores pintores franceses do século XX. Os reféns e os fuzilados, que constituíram um tema obsessivo da sua obra da maturidade, e de que coloquei exemplos no primeiro artigo e no terceiro, têm um carácter telúrico que nos permite entender o horror da ocupação nazi como a verdadeira substância daquele tempo.
O expressionismo abstracto foi o resultado estético directo das tragédias não militares, mas civis, da segunda guerra mundial, e Pollock celebrizou-se como a maior figura desta corrente artística. Mas escolhi para o primeiro, o segundo e o terceiro artigos algumas obras suas do período anterior, mais tenebrosas do que o gestualismo elegante que se lhe seguiu. Arshile Gorky foi o precursor imediato do expressionismo abstracto, mas não foi só por isso que me lembrei dele no terceiro artigo. Gorky era de origem arménia, e recorri a dois dos seus quadros a propósito do genocídio dos judeus para recordar que outros povos foram vítimas de idênticas abominações. Outra das figuras marcantes do expressionismo abstracto, Motherwell interessou-se ao longo de muitos anos pela tragédia da república espanhola, com uma obsessão igual à que Fautrier demonstrara pelos reféns. Vemos um exemplo no segundo artigo. Ainda dentro da área do expressionismo abstracto incluí Asger Jorn no segundo artigo e no quarto, embora o considere um artista secundário e, aliás, escolhi obras não inteiramente abstractas. Mas Jorn foi um dos fundadores do grupo COBRA, que rompeu à esquerda com o trotskismo e com o surrealismo, a estética trotskista oficial, e mais tarde foi um dos criadores da Internacional Situacionista, o que permite ligar os náufragos aos problemas do nosso tempo.
Baselitz, nos segundo e terceiro artigos, é outro desses elos de ligação. Criado na Alemanha Oriental, este artista teve de passar para o Ocidente para dar largas à sua tremenda força criadora, e afinal deixou-a estiolar na teia dos marchands e das galerias, caindo no formalismo e nos tics. Entre os limites da arte oficial do capitalismo de Estado e os becos sem saída do mercado artístico do capitalismo liberal, Baselitz foi outro náufrago. Mas enquanto esteve capaz de gritar, fê-lo com vigor. Arrependo-me agora de, em vez dele, não ter recorrido a A. R. Penck, com um percurso idêntico, mas com uma força estética muito maior. Paciência. O grafiteiro Basquiat, de que coloquei uma obra no terceiro artigo, foi também um náufrago, precipitado pelos marchands e pela crítica institucionalizada para o mundo das celebridades pop, que depressa o liquidou. Criadores de uma estética exterior ao mercado, ou mesmo crítica do mercado, estes artistas acabaram reduzidos a objectos de consumo.
Falta explicar a presença de Max Ernst no primeiro artigo. De todos os surrealistas, que eu abomino porque reduziram a criatividade a uma técnica mental e, portanto, não foram capazes de produzir senão ilustrações, Max Ernst é o único que me parece merecer a qualificação de artista. Pu-lo ali porque foi um dos detidos no campo de Le Vernet.
fonte: http://passapalavra.info/?p=9966
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