Os náufragos (1ª Parte)
Os náufragos, tentando salvar-se atravessando as fronteiras, odiados pelos fascistas por serem comunistas, odiados pelos nazis por serem judeus, odiados pelas democracias por serem anticapitalistas. Por João Bernardo
Nos primeiros dias de Julho de 1940, ao largo da costa irlandesa, um submarino germânico atacou e afundou um navio que transportava cerca de 1200 passageiros civis. Mais de metade morreu, e aliás o navio nem sequer dispunha de um número suficiente de barcos salva-vidas.
O que fazia aquela gente no alto mar e em tais circunstâncias? No começo de Junho as tropas aliadas haviam sido evacuadas da Noruega, deixando o país entregue aos nazis, e as autoridades francesas tinham assinado o armistício poucos dias depois, a 22 de Junho. A Dinamarca, a Holanda e a Bélgica estavam igualmente ocupadas pelas forças nazis, o que significava o cerco da Grã-Bretanha por um continente hostil, situação tanto mais grave quanto os Estados Unidos não eram ainda um país beligerante e a União Soviética estava ligada ao Terceiro Reich por uma série de acordos que garantiam a sua neutralidade, usualmente denominados Pacto Germano-Soviético, e que incluíam o Tratado Germano-Soviético de Não-Agressão, assinado em 23 de Agosto de 1939, e o Tratado Germano-Soviético de Amizade, Cooperação e Demarcação, assinado em 28 de Setembro do mesmo ano. Não era época para fazer turismo, nem podiam aqueles 1200 passageiros ser fugitivos que procurassem um asilo seguro do outro lado do Atlântico, porque todos os meios de transporte marítimo estavam requisitados pelo esforço de guerra e as autoridades não iam pô-los ao serviço de civis timoratos. Quem eram eles, como se explica que alguém estivesse a viajar numa altura daquelas?
Os mais de mil passageiros do navio afundado pelo submarino germânico eram pessoas de nacionalidade alemã ou austríaca e italiana, que o governo britânico decidira deportar para o Canadá. Alguns residiam desde há muito na Grã-Bretanha, incluindo antinazis e antifascistas que ali haviam procurado refúgio, outros estavam na ilha por motivos profissionais quando a guerra foi declarada, e todos foram colectivamente considerados suspeitos. Soube-se mais tarde que entre eles não se contavam agentes do inimigo, mas é claro que o governo britânico não podia ter então essa certeza e era verosímil que a espionagem germânica se esforçasse por penetrar entre os seus conterrâneos estabelecidos noutros países. Mas como se explica que refugiados antifascistas, tendo dado provas da sua hostilidade aos regimes de Mussolini e de Hitler, fossem deportados também? Como se explica que entre os mais de 600 mortos se contassem vários antifascistas, alguns bastante conhecidos, que as autoridades britânicas sacrificaram àqueles mesmos de quem eles haviam procurado fugir?
Em Outubro de 1939 as autoridades do Reino Unido haviam decretado a detenção imediata dos residentes estrangeiros de origem alemã e austríaca considerados efectivamente perigosos para a segurança do país. O critério foi ampliado, e em Maio de 1940 ordenou-se o internamento em campos de concentração de todos os adultos de sexo masculino originários da Alemanha e da Áustria e residentes no sudeste e no leste da Grã-Bretanha, uma medida que em Junho, com a entrada da Itália na guerra, passou a aplicar-se igualmente aos italianos. Entretanto, o ministro do Interior determinou que as autoridades detivessem em toda a ilha pessoas originárias dos países inimigos, mesmo que sobre elas não pesasse qualquer suspeita especial. Em Julho de 1940 contavam-se já 27.200 detidos, e se alguns eram reconhecidamente partidários de Hitler e de Mussolini, muitos outros haviam emigrado por razões políticas e eram antifascistas de longa data ou judeus fugidos do Reich. Mas a todos se aplicava a mesma bitola, todos eram detidos em conjunto e tratados de igual maneira. Destes, quase 7.500 foram mandados para o Canadá e para a Austrália, enquanto na Grã-Bretanha se multiplicaram os campos de internamento destinados a estrangeiros e a Ilha de Man se converteu num verdadeiro complexo concentracionário.
Talvez comecemos a perceber o motivo por que os antifascistas estrangeiros eram presos juntamente com os demais suspeitos se soubermos que em Outubro de 1939, quando as autoridades do Reino Unido decretaram a detenção imediata dos residentes de origem alemã e austríaca considerados efectivamente perigosos para a segurança do país, os fascistas britânicos, mesmo os mais fanáticos apologistas de Hitler, permaneceram em liberdade e continuaram a beneficiar de amplas possibilidades de organização. Só em Maio de 1940 foi decidida a prisão dos principais dirigentes e responsáveis fascistas, e mesmo assim alguns dias depois de ter sido ordenado o internamento em campos de concentração de todos os adultos de sexo masculino originários da Alemanha e da Áustria e residentes no sudeste e no leste da Grã-Bretanha. O governo de Londres temia, evidentemente, a espionagem nazi, mas receava também qualquer actividade política que, tal como sucedera duas décadas antes, procurasse transformar a guerra numa revolução. A campanha era prosseguida em duas frentes, contra o inimigo exterior e contra os riscos de subversão interna. E talvez as apreensões do governo fossem agravadas pelo facto de uma parte considerável da população se revelar hostil às medidas de encarceramento dos estrangeiros, apesar de vários órgãos de informação, tanto da direita conservadora como da esquerda trabalhista, conduzirem uma campanha alarmista contra os imigrados e os refugiados. Por fim, as autoridades britânicas libertaram gradualmente os estrangeiros detidos, poucos restando no final da guerra. Mas é verdade que então a participação da União Soviética no conflito ao lado dos Aliados, a partir de Junho de 1941, e a dissolução da Internacional Comunista em Maio de 1943 pareciam oferecer garantias suficientes de que o conflito entre imperialismos não seria transformado numa revolução de classe.
A política adoptada pelo governo britânico tinha impecáveis credenciais democráticas, porque fora assim que o governo francês tratara os que haviam lutado de armas na mão em defesa da república espanhola e que, perante o avanço final das tropas de Franco, procuraram refúgio do outro lado dos Pirenéus. Arthur Koestler encontrou-os alguns meses depois, no campo de concentração de Le Vernet, no sul da França, onde estavam confinados, e narrou o seu destino numa obra ímpar. «[…] o Pavilhão 32 era o verdadeiro inferno. A escuridão era completa e o cheiro nauseabundo. Nenhum dos que lá vivia tinha uma muda de roupa ou meias suplementares, e muitos haviam literalmente vendido a última camisa em troca de um maço de cigarros, e andavam nus sob um casaco fino e esfarrapado. O pavilhão estava infestado de parasitas e de doenças. Fora das horas de trabalho, os seus reclusos prestavam pequenos serviços aos demais prisioneiros, lavando-lhes a roupa a troco de algumas fatias de pão, remendando sapatos, limpando botas. Não recebiam cartas, nem as escreviam. Vagueavam pelo campo de concentração, procurando pontas de cigarro na lama e no chão de cimento das latrinas, onde era mais fácil encontrá-las. Mesmo os mais miseráveis dos outros pavilhões os olhavam com um misto de horror e de desalento. Estes cento e cinquenta homens que povoavam a chamada Caserna dos Leprosos eram o que restava das Brigadas Internacionais − que constituíram outrora o orgulho do movimento revolucionário europeu, a vanguarda da esquerda».
Mas o que fazia entre eles o jornalista e escritor Arthur Koestler, nascido na Hungria numa família judaica, antigo membro do Partido Comunista alemão e agente da Internacional Comunista, correspondente de guerra aprisionado pelas tropas franquistas e condenado à morte em Fevereiro de 1937, libertado em Junho graças a uma campanha internacional, que rompera com o comunismo em 1938 mas continuava antifascista? Logo nos primeiros dias de Setembro de 1939, quando declarou guerra ao Reich, o governo francês confinou em estádios − os militares de Pinochet não inventaram nada − e depois em campos de detenção não só os estrangeiros suspeitos, mas igualmente os antifascistas alemães, italianos e da Europa central, mesmo oriundos de países então neutrais, como era o caso do húngaro Koestler, que haviam julgado encontrar na velha democracia uma garantia de liberdade. Ernst von Salomon recordou o caso de um literato judeu alemão que sofreu a mesma sorte, apesar de o seu filho servir no exército francês.
«Polícias de capacete, as armas carregadas, cercam os cafés de estudantes do boulevard Saint-Michel», contou Victor Serge, um revolucionário de sempre. «Os estrangeiros que não tenham os documentos em ordem são metidos em camiões e levados para a sede da polícia. Muitos são refugiados antinazis, porque os outros estrangeiros têm evidentemente os documentos em ordem. […] Os refugiados antinazis e antifascistas vão conhecer novas prisões, as da república que foi o seu último asilo neste continente e que agora agoniza e perde a cabeça. Espanhóis e combatentes das brigadas internacionais que venceram o fascismo junto a Madrid são tratados como se tivessem a peste… Com os documentos em ordem e a carteira bem recheada, os falangistas espanhóis, os fascistas italianos, que eram ainda neutrais, os russos brancos − e quantos nazis autênticos a coberto destas camuflagens fáceis? − passeiam-se livremente por toda a França». Nessa época o órgão oficial do Partido Nacional-Socialista publicou uma lista de escritores antinazis que as autoridades francesas haviam mandado internar em campos de concentração, perguntando no fim, com um pesado sarcasmo, se eles continuariam convencidos das benesses da democracia. A resposta estava dada já, na inscrição que um refugiado espanhol gravara na cruz erguida sobre a sepultura de um camarada seu em Le Vernet. «Adios, Pedro. Os fascistas queriam queimar-te vivo mas os franceses deixaram-te morrer de frio em paz. Pues viva la democracia».
Como se isto não bastasse para mostrar que o governo da democracia não estava a encarcerar hipotéticos espiões do inimigo mas potenciais revolucionários, a extrema-direita francesa, apologista de Hitler e de Mussolini e que acima de tudo odiava e desprezava o regime democrático, gozou de uma notável impunidade durante a drôle de guerre, a estranha guerra, como assim foram denominados aqueles oito meses de inactividade militar. A inércia das tropas francesas, evitando penetrar nas fronteiras do Reich e abstendo-se de conduzir uma ofensiva, entende-se melhor se recordarmos que o governo atribuiu responsabilidades aos oficiais que tinham participado na conspiração de extrema-direita durante o Front Populaire, e até antigos dirigentes da conspiração foram incorporados nas forças armadas. Havia quem tivesse mais medo da revolução do que de Hitler e havia quem desejasse a vitória do Reich para acabar com o perigo revolucionário.
Só quando o descalabro era iminente e o exército germânico se aproximava de Paris, o ministro do Interior ordenou a captura de meia dúzia de jornalistas e políticos, apologistas notórios de Hitler. Ao mesmo tempo, porém, os poucos exilados alemães e austríacos que tinham entretanto sido libertados voltaram a ser detidos, incluindo todos os dirigentes e figuras significativas da oposição ao nazismo. Em Junho de 1940, quando os generais franceses assinaram o armistício, os estrangeiros antifascistas detidos nos campos de concentração ou foram entregues às autoridades ocupantes ou permaneceram sob o controlo do governo colaboracionista de Vichy, conseguindo uns poucos escapar e suicidando-se outros, alguns grandes nomes entre eles. Foi assim que se matou Walter Benjamin, com uma cápsula de cianeto que Koestler lhe dera para o caso de não conseguir pôr-se a salvo.
Foram estes os náufragos, que haviam lutado em vários países e tentado salvar-se atravessando as fronteiras, odiados pelos fascistas por serem comunistas, odiados pelos nazis por serem judeus − já que, para eles, judeus e comunistas, comunistas e judeus, era tudo a mesma coisa − odiados pelas democracias por serem anticapitalistas. Foram eles, os refugiados antifascistas, as primeiras vítimas do conflito militar entre as democracias e os fascismos. Mas por que não procuraram abrigar-se na União Soviética? Não seria esse o lugar natural de exílio dos comunistas e dos antifascistas? Teriam os náufragos perecido só por estarem do lado errado da geografia?
Referências
Quanto à política adoptada pelo governo britânico durante a segunda guerra mundial relativamente aos estrangeiros originários dos países do Eixo recorri a Angus Calder, The Myth of the Blitz, Londres: Jonathan Cape, 1991, especialmente as págs. 110 e segs. Mas, tanto quanto sei, o tema deste artigo não tem preocupado os historiadores. Conheço um único livro dedicado à questão, e deve-se não a um historiador mas um jornalista, romancista e ensaísta, Arthur Koestler, Scum of the Earth, que consultei na edição Londres: Eland, Nova Iorque: Hippocrene, 1991. A primeira citação, relativa à Caserna dos Leprosos, encontra-se na pág. 114. O caso narrado por Ernst von Salomon encontra-se no seu livro Le Questionnaire, [Paris]: Gallimard, 1993, pág. 268. A citação de Victor Serge é extraída da sua obra Mémoires d’un Révolutionnaire, 1905-1941, que está incluída em Jean Rière e Jil Silberstein (orgs.) Victor Serge. Mémoires d’un Révolutionnaire et autres Écrits Politiques, 1908-1947, Paris, Robert Laffont, 2001, pág. 800. Os sarcasmos do Völkischer Beobachter, jornal oficial do Partido Nacional-Socialista, estão evocados em Koestler, op. cit., pág. 133. A inscrição gravada numa sepultura em Le Vernet vem mencionada em Arthur Koestler, The Yogi and the Commissar and Other Essays, Nova Iorque: Collier, 1961, págs. 79-80.
fonte:http://passapalavra.info/?p=9956
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