quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Produtivismo no campo acadêmico: o engodo dos números

Produtivismo no campo acadêmico: o engodo dos números

Antonio Ozaí da Silva*

"Há gente demais desesperada em publicar”
(Lindsay Waters, 2006, p.88).

“... a política de “panelas” acadêmicas de corredor universitário e a publicação a qualquer preço de um texto qualquer se constituem no metro para medir o sucesso universitário. Nesse universo não cabe uma simples pergunta: o conhecimento a quem e para que serve?”
Maurício Tragtenberg1


Os números apontam crescimento da produção científica. A reitora da USP, por exemplo, comemora a classificação da instituição no ranking do Higher Education Evaluation & Accreditation Council of Taiwain, segundo ela “um dos mais aceitos no cenário mundial”. Os dados apresentados indicam que a USP subiu 22 posições em relação a 2008, ocupando o 78º lugar no ranking. Assim, está entre as mais prestigiadas instituições universitárias do mundo e é considerada a primeira na América Latina e no Brasil. Para Suely Vilela, isto “reflete a qualidade da pesquisa desenvolvida por docentes e estudantes da universidade e repercute o aumento substantivo (58,1%) da produção científica indexada de 2005 a 2008, registrando-se, nos últimos dois anos, crescimento de 26%”.2
Fico orgulhoso em saber que a instituição que me acolheu para fazer o doutorado foi tão bem classificada por um organismo que parece de suma importância. Fecho o jornal e acesso o site da instituição na qual trabalho. A UEM, afirma o texto, “é novamente a melhor universidade do Paraná pelo segundo ano consecutivo, conforme o ranking do Ministério da Educação (MEC), divulgado, hoje (31), e que é baseado no Índice Geral de Cursos (IGC). O IGC sintetiza em um único indicador a qualidade de todos os cursos de graduação, mestrado e doutorado. Além disso, divide as instituições por valores contínuos que vão de 0 a 500 pontos e em faixas que vão de 1 a 5”. A UEM “saltou para 343 (dois pontos a mais que o obtido no ranking anterior), e o conceito se manteve na faixa 4.”3
Quanto contentamento e orgulho! Quase explodo de emoção. Afinal, os números dizem tudo: somos os primeiros. Imagino que a qualidade de ensino em nossa universidade deve estar otimamente bem. A pesquisa, então, deve superar todas as expectativas. Por curiosidade, acesso a página da Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação e o meu orgulho se expande sem limites. Vejo que estamos entre as 20 melhores instituições em todo o Brasil.4 Não é pouca coisa!

Os números nos deixam otimistas, mas não dizem muito sobre a realidade das estruturas de poder e os aspectos psíquicos, sociais e políticos que envolvem a pressão para publicar. Os dados estatísticos são frios, próprios do pensamento positivista imperante que deseja quantificar tudo. Mas como quantificar a angústia, o sofrimento humano dos que estão submetidos à pressão para publicar? Como quantificar o que sente aquele que não consegue se adequar a esta exigência? Nem todos somos escritores, nem todos temos os mesmos recursos e habilidades. Nem todos querem escrever e publicar. No entanto, não publicar é uma espécie de suicídio acadêmico e a condenação à exclusão. Os números nada dizem sobre a qualidade do que é publicado. É preciso repetir: “Quantidade não é qualidade!”. Não faz muito tempo, o intelectual produzia uma a três obras em toda a vida e era reconhecida a sua importância. Intelectuais como Maurício Tragtenberg seriam pessimamente avaliados pelos critérios produtivistas da atualidade.5
Pelos critérios burocráticos acadêmicos de hoje, um livro cuja tiragem seja apenas 500 exemplares, desde que chancelado pela autoridade “científica”, tem mais valor do que um livro cuja tiragem tenha ultrapassado os dez mil e que tenha conquistado público e uma certa relevância político-social. E isto desconsiderando que muitas tiragens terminam por cumprir a função social de contribuir com os que precisam viver da venda de lixo reciclável. Para o autor, valeu o aprendizado e, principalmente, os pontos que soma na carreira acadêmica.
Agora, querem até mesmo classificar os livros publicados, “qualificá-los” à maneira do “Qualis”.6 O poder burocrático quer determinar o que é e o que não é relevante. Talvez imagine que seus critérios e métodos avaliativos são neutros e imparciais. O resultado será o fortalecimento do professor-burocrata e a imposição de uma hierarquização de obras e autores. Até onde vai esta mania de quantificar e classificar? Recuso-me a ser avaliado por estes experts. Não escrevo para eles, e por mais que quantifiquem não poderão medir adequadamente os efeitos positivos e/ou negativos do que é publicado.
Já chega o que foi feito com os periódicos, sempre em nome da busca da excelência.7 Tomemos este periódico, a Revista Espaço Acadêmico, como exemplo. Sua periodicidade é mensal, está no IX ANO e soma 100 edições. É uma quantidade razoável de artigos publicados. Como medir, porém, sua qualidade? Por acaso os critérios de avaliação dos senhores e senhoras do poder burocrático podem medir o impacto de cada artigo na vida dos seus autores e quanto à utilização do material publicado? Será possível quantificar a exata contribuição dessas 100 edições para os
graduandos, pós-graduandos, mestrandos, doutorandos, etc.? Como escritor é muito mais importante para mim saber que este texto foi lido e que contribuiu de alguma forma com os leitores do que a classificação “Qualis” do mesmo. Como autor, é muito mais recompensador saber que o que escrevo foi adotado por algum colega e discutido com seus alunos. Como autor, me realizo muito mais com o ato de escrever e de, assim, estabelecer “pontes” com os leitores. É-me muito mais importante saber que o meu aluno leu o que escrevo do que a informação de que o veículo em que publico tem “Qualis” “x” ou “y”.
Inverteu-se a ordem das coisas. O imperativo é publicar, ainda que não se saiba bem o que deve ser publicado e nem importa se alguém lerá. Como notou Waters: “O problema é a insistência na produtividade, sem a menor preocupação com a recepção do trabalho. Perdeu-se o equilíbrio entre estes dois elementos – a produção e a recepção. Precisamos restaurar a simetria entre eles. O problema está em fundamentar o acesso ao posto de professor como dependente da quantidade de publicações – publicações que poucos lêem” (WATERS, 2006, p.25).
Segundo o editor da Harvard University Press, “as publicações acadêmicas se tornaram tarefa em série, como as peças que rolam pelas esteiras de uma linha de montagem. A produção é ofuscada, do mesmo modo que a recepção de tais produtos”. Ou seja: “O produto é tudo que conta, não sua recepção, não o uso humano. Isso é produção de um fim em si mesmo e praticamente mais nenhum outro” (Id., p. 42). Estamos num ritmo de produção taylorista-fordista. Os números nada dizem sobre os efeitos perversos da corrida pelo Lattes. Os números nos enganam, nos dão a sensação de que estamos na direção certa, que tivemos “progresso” (outro palavra emblemática da ideologia positivista). Contudo,
“Este progresso é apenas uma aparência enganadora, mascarando a melancolia acadêmica. (...) O estudioso típico se parece cada vez mais com a figura retratada por Charlie Chaplin em seu Tempos modernos, trabalhando louca e insensatamente para produzir. Estaríamos tomados por uma força que ultrapassou nosso controle? Devemos nos render ou lutar? O que se pode fazer? (Id., p.51).
A julgar pelos senhores e senhoras, sábios da “Casa de Salomão” moderna, só nos resta a adaptação e aceitação dos seus critérios de quantificação e classificação. Mas a sabedoria da atualidade diz: “não formule grandes questões; não pergunte por que as coisas são como são” (Id., p.53). Isto é, fique dentro da baleia!8 Como assinala Waters: “A idéia que agora domina a academia é a de evitar as idéias” (Id., p.76). Cada vez mais pessoas reduzem o trabalho intelectual ao objetivo de conquistar postos, promoções, se dar bem em editais, etc. Abandonam “a aprendizagem como um valor em si em nome da busca por credenciais” (Id., p. 81). Aceitam a servidão voluntária. Porém, “enquanto aceitarmos esse sistema, permaneceremos dentro da baleia” (Id., p. 83). Numa sociedade em que tudo é quantificado, na qual o TER é o determinante, em detrimento do SER; na qual a aparência é fundamental e aparecer é o que conta, os resultados expressados pelas estatísticas parecem dizer tudo o que é preciso saber sobre a universidade e o que se faz no campus. Não é por acaso que os políticos, e nisso acompanham com prazer os economistas, adoram apresentar dados estatísticos. E, claro, isto também é objeto de disputa política. Quanto mais os números apresentem umaimagem positiva, maior a possibilidade de ganho político.
Tudo isso parece muito “normal”, muito “natural”. Parece lógico que devamos nos alegrar pelos índices positivos, os quais geram um certo deslumbramento institucional e manchetes em jornais. Tudo está de acordo com o discurso da competência.9 E se está dando certo – com o perdão do gerundismo! – por que questionar? Quem o fizer, corre o risco de ser classificado como “chato”, “eterno descontente”, “pessimista de plantão” e coisas do tipo.
O papel do intelectual é duvidar, é tentar ver para além dos números, desvelar o que o que se esconde sob a aparência dos fatos, das estatísticas. Podemos passar a vida a desempenhar nossas tarefas práticas, a nos ocuparmos com a “produção científica”, a escrever artigos “científicos” e, não obstante, nos limitarmos a contemplar o mundo, a vivermos o medíocre cotidiano das nossas vidinhas. O intelectual é crítico, autocrítico, incomodado, angustiado e comprometido. Como escreveu Edward Said: “A ameaça específica ao intelectual hoje, seja no Ocidente, seja no âmbito não ocidental, não é a academia, nem os subúrbios, nem o comercialismo estarrecedor do jornalismo e das editoras, mas antes uma atitude que vou chamar de profissionalismo.
Por profissionalismo eu entendo pensar no trabalho do intelectual como alguma coisa que você faz para ganhar a vida, entre nove da manhã e cinco da tarde, com um olho no relógio e outro no que é considerado um comportamento apropriado, profissional – não entornar o caldo, não sai dos paradigmas ou limites aceitos, tornando-se, assim comercilizável e, acima de tudo, apresentável e, portanto, não controverso, apolítico e “objetivo” (SAID, 2005, p. 78).
O ethos predominante no campus caracteriza-se pelo conformismo diante das estruturas políticas e sociais e a busca incessante de mostrar produtividade. Os “improdutivos” são criticados pelos próprios colegas e excluídos de programas de mestrados e atividades afins. E os envolvidos que não conseguem cumprir as metas de “produtividade” exigidas são pressionados e convidados a saírem. A quantidade da produção é o cartão de visitas do profissional que é visto, e ver a si mesmo, como um intelectual. Devemos nos perguntar: por que escrever e publicar? Por que nos submeter à pressão produtivista sem questionar seus fundamentos? Por que aceitar que as estruturas burocráticas determinem o que devemos fazer das nossas vidas? Afinal, para que
servem tantos artigos “científicos”? Em que consiste o caráter “científico”? Na mera obediência aos padrões normativos? Quais as conseqüências da corrida pelos números em nossas vidas, na relação com os nossos alunos e colegas de trabalho? Qual a cultura que contribuímos para fortalecer quando simplesmente nos adaptamos e aceitamos as regras e normas como se fossem inexoráveis? Claro, há recompensas simbólicas e materiais. Eis um fator importante que nos ajuda a compreender a produção taylorista-fordista no campus. Sabemos como essas coisas funcionam. Se questionarmos, nos jogam na cara o argumento de que os que estão nas estruturas que determinam as normas que direcionam a vida acadêmica são nossos pares. Além de não contestar o poder burocrático, ainda querem nos responsabilizar por sua permanência. Não sei dos demais colegas, mas no que me toca, não indiquei nem elegi ninguém para me representar nestes organismos que se consideram superiores e agem como tal. Ao poder burocrático interessa manter a ordem das coisas, sua força advém da aceitação da cultura produtivista. Seus alicerces estão bem fincados no ethos do profissional acadêmico de hoje e na aceitação acrítica das ordens de cima. Infelizmente, esta servidão voluntária predomina até mesmo em setores da universidade dos quais se espera a atitude da reflexão crítica. O poder burocrático não é uma
abstração, mas aparatos materiais com gente de carne e osso. Ele se legitima pelo conformismo e capacidade de adaptabilidade dos pares. Que os que dão vida aos aparatos burocráticos falem em nome dos que os apóiam, mas não em meu nome! A necessidade de critérios para a avaliação das atividades no campus não justifica a camisa-de-força do poder burocrático. A exigência de mais e mais produção científica produz deformações e estimula atitudes anti-éticas e abusivas. No limite, abre as portas para práticas nada condizentes com o que se espera dos intelectuais e favorece a delinqüência acadêmica. É lógico que não podemos fechar os olhos ou nos
considerarmos totalmente isentos dos “pecados” inerentes à cultura produtivista. Como editor de revista, por exemplo, compreendo a angústia dos colegas diante da exigência de publicação. Até entendo a pressa que têm em publicarem. Disto, muitas vezes, depende a carreira a acadêmica, a aprovação em determinados estágios. É o futuro que está em jogo. Por outro lado, é preciso diferenciar entre a atitude motivada pela necessidade imperiosa de publicar, mas que se mantém dentro dos limites do razoável e ético, e aquele que beira as raias da delinqüência acadêmica. Ou seja, nem todos somos delinqüentes acadêmicos.10 Nem todos aceitamos acriticamente os números. Eles dizem tudo e nada; eles expressam parcela da realidade criada por nós, mas também escondem muito.

NOTAS
* Professor do Departamento de Ciências Sociais (UEM); Editor da Revista Espaço Acadêmico, Revista Urutágua e Acta Scientiarum. Human and Social Sciences; e membro do Conselho Editorial da Editora da Universidade Estadual de Maringá (EDUEM).
1 TRAGTENBERG, Maurício. A delinqüência acadêmica. REA, nº 14, julho de 2002.
2 VILELA, Suely. USP e reconhecimento internacional. Folha de S. Paulo, 30 de agosto de 2009, p. A3.
3 UEM. Novamente a UEM é a melhor do Paraná, segundo o MEC, 01.09.09. Acesso em 01.09.09.
4 “Segundo o levantamento, a UEM publicou 272 artigos no ano passado. A Universidade de São Paulo (USP) foi a instituição brasileira que mais publicou: 4.804. Em segundo lugar, ficou a Unicamp, com1.743 artigos, seguida pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com 1.516 publicações”. Os dados são de 2007 e a informação foi publicada 22 de julho de 2008. E tudo indicava melhoria no ranking. No mesmo site, informa-se que no primeiro semestre de 2008, segundo o ISI (Instituto de Informação Científica), a UEM já tinha 209 artigos publicados. No site da PPG, há dados detalhados sobre a produção docente, inclusive com acompanhamento semanal e outros tipos de quantificação.
5 Certa feita, a “produção acadêmica” do Professor Maurício Tragtenberg precisou ser avaliada. É muito instrutivo o parecer e vale a pena lê-lo:“Os que conhecem a atividade docente do Prof. Maurício Tragtenberg, dentro e fora da sala de aula, sua atividade como escritor e conferencista, ficam decepcionados com o relatório – não porque o Prof. Tragtenberg tenha feito pouco, mas porque o muito que fez parece pouco em um formulário padronizado de mais de vinte folhas, em que a maior parte dos itens fica em branco. O problema não é com o Prof. Tragtenberg: é com o relatório que o obrigam a preencher. Fico imaginando o tempo que ele deve ter gasto decidindo se um artigo seu foi publicado em “periódico especializado” ou em “periódico não-especializado”, ou então se deve ser classificado como “publicação de caráter variado”. Que desperdício de tempo! Imagino que, dentre os que vão ler o relatório, muitos considerem um artigo publicado em periódico especializado (em quê?) provavelmente mais importante do que outro publicado em periódico não especializado, e certamente mais importante do que algo classificado apenas como publicação de caráter variado. Mas será essa gradação (supondo que realmente exista) justificável? Receio que não. Conheço muitos artigos de divulgação que são muito mais profundos e valiosos do que muita irrelevância que se publica apenas por ser (ou se supor) especializada.
Karl Popper uma vez disse que a especialização pode ser uma grande tentação para o cientista natural, mas para o pensador crítico (que ele chama de “filosófico”) é um pecado mortal. Desse pecado mortal ninguém pode condenar o Prof. Tragtenberg.” “Parecer sobre o relatório de Atividades do Prof. Maurício Tragtenberg”, de 04 de outubro de 1991, assinado por Eduardo O. Chaves, Fermino Fernandes Sisto e Newton Aquiles Von Zuben.
6 Na 111ª Reunião do CTC, realizada em 24 de agosto de 2009, foi aprovado um roteiro para implementar esta avaliação. Ver http://www.capes.gov.br/images/stories/download/diversos/RoteiroLivros.pdf.
7 Ver “A sua revista tem Qualis?”, REA, nº 56, janeiro de 2006.
8 “As entranhas da baleia”, escreve George Orwell, “são apenas um útero grande o suficiente para conter um adulto. Lá ficamos, no espaço almofadado e escuro em que nos encaixamos perfeitamente, com metros de gordura entre nós e a realidade, capazes de manter uma atitude da mais completa indiferença, não importa o que aconteça” (ORWELL, 2005, p. 135).
9 Ver “Apologia da competência e a defesa da universidade pública”, REA, nº 14, Ano II, julho de 2002.


Referências
ORWELL, G. (2005) Dentro da baleia e outros ensaios. São Paulo: Companhia das Letras.
SAID, Edward W. (2005) Representação do Intelectual: as Conferências Reiht de 1993. São Paulo: Companhia das Letras.
TRAGTENBERG, Maurício. “A delinqüência acadêmica”. REA, nº 14, julho de 2002.
VILELA, Suely. USP e reconhecimento internacional. Folha de S. Paulo, 30 de agosto de 2009, p. A3.
WATERS, Lindsay. (2006). Inimigos da esperança: publicar, perecer e o eclipse da erudição. São Paulo: Editora da UNESP.
10 Sugiro a leitura de “Somos todos delinqüentes acadêmicos?”, REA, nº 88, setembro de 2008.

fonte: http://periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/8148/4571

Nenhum comentário:

Postar um comentário