sexta-feira, 27 de março de 2009

Entre a luta de classes e o ressentimento. A propósito do artigo «Cadilhe, o “coveiro rico”»


As denúncias de escândalos revelam mais o ressentimento do que o espírito de classe, e sempre que isto sucede o risco do fascismo não anda longe. Por João Bernardo



A recente publicação no Passa Palavra de um artigo sobre a actuação de Miguel Cadilhe durante a crise do Banco Português de Negócios deixou-me apreensivo, tanto mais que esse estilo de denúncias se tornou habitual nos meios de esquerda e de extrema-esquerda. Por isso valerá talvez a pena esmiuçar as suas implicações.

Apresentar como promíscua a relação entre o Estado e os negócios é considerar anómalo algo que constitui precisamente uma das componentes estruturais do capitalismo. Pretende-se assim que seja excepção aquilo que na verdade é uma regra, e desta maneira considera-se implicitamente que poderia existir um outro capitalismo, não perverso, em que o Estado seria imune aos negócios. Artigos deste tipo só confundem em vez de esclarecer.

Desde as primeiras décadas do século XIX, quando começaram a formular-se as críticas ao capitalismo na perspectiva da classe trabalhadora, um dos temas em que mais se insistiu foi na ligação dos meios políticos aos meios económicos − mais do que isso, na estreita interdependência de ambos. Depois, e malgrado tudo o que as separava, tanto a vertente marxista como a vertente anarquista, cada uma à sua maneira, insistiram naquela íntima relação. Numa época em que as grandes massas pobres estavam afastadas do voto e, por maioria de razão, dos cargos políticos, os próprios defensores do Estado burguês tinham de admitir que governantes e homens de negócios não andavam muito longe. Tudo o que esses apologistas então pretendiam era que o poder político mantivesse uma certa imparcialidade entre os vários grupos de interesses, para que não fossem só uns os beneficiados, e o rotativismo partidário assegurava que os grupos se revezassem de maneira a que todos se fossem aproveitando da intervenção económica propiciada pelos governos.

Mais tarde, já no século XX, quando a tecnocracia e os grandes administradores passaram a dominar os governos e sobretudo os bastidores da política, começou a difundir-se a ideia não de que os governos seriam imunes às pressões económicas mas exactamente do contrário, de que eles seriam imunes às pressões políticas. Se a burguesia legitima os seus lucros mediante os títulos jurídicos da propriedade privada, os tecnocratas e, em geral, os gestores legitimam-nos mediante o mito da sua competência técnica. A partir de então os governos passaram a ser encarados na mesma óptica gestorial em que se encara a economia. Um bom governo deveria ser gerido como uma boa empresa, e a palavra «político» passou a carregar o sentido pejorativo que ainda hoje conserva.

Quem não gostou nada desta mudança foram os pequenos patrões, os donos das fabriquetas, das oficinas, os merceeiros [donos de sacolões] da esquina, os agricultores suficientemente abastados para assalariar alguma mão-de-obra e produzir para o mercado, mas sem terras bastantes nem capacidade suficiente para aplicarem no cultivo os métodos mais modernos e produtivos. Foi esta gente que começou a denunciar o favoritismo económico dos governantes, não porque se opusessem em princípio à relação da política com a economia, mas porque pretendiam ser eles a beneficiar dessa relação. Nas décadas de 1920 e de 1930, na Europa, em alguns países da Ásia e nas duas Américas, esta insatisfação dos pequenos patrões foi uma das principais componentes do fascismo. Não constituiu o único factor, houve outros igualmente importantes, mas o fascismo nunca se afirmou sem aquela componente. E desde então, onde o rancor dos pequenos patrões existe, o fascismo não anda longe.

Em termos sociológicos, o que estes pequenos patrões pretendiam e pretendem é atacar os governos não numa perspectiva de luta de classes mas numa perspectiva de mobilidade de elites. Trata-se, para eles, de manter a estrutura económica existente, desde que ascendam dentro dessa estrutura e passem a incluir-se entre o escol dominante. Ora, esta situação agravou-se nas últimas décadas.

Um dos aspectos mais marcantes do capitalismo contemporâneo é o facto de a concentração do capital, que se acelerou no plano económico, onde atingiu níveis nunca antes alcançados, ter apresentado no plano jurídico uma fisionomia inversa, levando à fragmentação das antigas grandes companhias da era do fordismo. Vivemos numa época em que a generalização das relações de subcontratação e de terceirização atrelou às grandes empresas uma miríade de pequenos patrões. Por um lado, na medida em que estão inteiramente dependentes do mercado de produtos e de serviços constituído pelas grandes empresas que os subcontratam, os pequenos patrões têm de lhes obedecer e de seguir os seus ditames. Mas, por outro lado, este agravamento da subserviência estimula os rancores. É nestes meios sociais que proliferam as denúncias sobre as benesses que grandes capitalistas e altos gestores obtêm dos governos, e a indignação vem-lhes não do facto de o capitalismo existir, mas do facto de não conseguirem aproveitar-se dele, pelo menos tanto como desejariam.

Não devemos desprezar a capacidade mobilizadora que estes pequenos patrões exercem relativamente à classe trabalhadora. Muitos deles estão unidos por elos familiares tanto aos velhos meios operários como aos novos proletários saídos de cursos superiores e que, apesar disso, não encontram senão empregos precários. Outros desses pequenos patrões são antigos operários que conseguiram juntar um pecúlio e instalar-se como pequenos empresários, e mantêm relações familiares e sociais com o seu meio de origem.

Numa época em que, perante a concentração transnacional do grande capital, os trabalhadores se encontram fragmentados, quando foram em boa medida dissolvidas as suas antigas relações de solidariedade e atenuado ou extinto o seu sentimento de classe, mais fácil se torna que eles encontrem nos pequenos patrões os leaders ou os modelos. No plano ideológico e psicológico, trata-se de substituir o espírito de classe pelo ressentimento, ou seja, o desejo de acabar com o capitalismo pela aspiração de subir dentro do capitalismo. O fascismo, na face que apresentou às massas populares, foi exactamente isto.

Aquele tipo de denúncias de que o artigo sobre Miguel Cadilhe e o Banco Português de Negócios constitui um exemplo reflecte a atitude dos pequenos patrões, que se sentem sistematicamente defraudados pelos grandes capitalistas na distribuição da mais-valia, ou seja, na partilha dos lucros. As remunerações elevadas, em dinheiro ou em benesses, de que beneficiam os altos gestores diz unicamente respeito à distribuição da mais-valia entre os capitalistas, não à exploração da mais-valia, ou seja, trata-se da repartição dos resultados da exploração, dos lucros, e não do processo de exploração. Por isso, é um assunto que diz estritamente respeito aos capitalistas, não aos anticapitalistas. Também não vejo o interesse em arranjar três bodes expiatórios em vez de dois, ou quatro em vez de três, e indagações deste tipo resultam da própria noção de que por detrás dos acidentes do capitalismo estariam culpados individuais, como se fosse uma questão de pessoas e não de um sistema económico. Quanto aos subsídios concedidos pelos governos aos bancos, já me pronunciei a este respeito no artigo Perpectivas do capitalismo na actual crise económica, publicado neste site. Mas é curioso que a esquerda continue a pregar uma política idêntica à que foi aplicada pela direita conservadora norte-americana na sequência da crise de 1929 e que levou a falências bancárias em cadeia e ao agravamento catastrófico da situação económica, até que o New Deal e a segunda guerra mundial conseguissem inverter a situação. Uma vez mais prevalece aqui o ressentimento, ou mesmo a simples inveja, a ideia de que todos aqueles subsídios seriam mais úteis no meu bolso do que no activo dos bancos. Só que eu não desempenho no conjunto do sistema económico a função desempenhada pelos estabelecimentos financeiros.

Lamento muito dizê-lo, e sem querer ser desagradável para com as pessoas que escrevem aquele tipo de artigos e com as que gostam de os ler, recordo que eles eram a especialidade da imprensa de extrema-direita no período entre as duas guerras mundiais. Já antes disso, desde os últimos anos do século XIX, o jornal da Action Française, o partido monárquico de extrema-direita que se situou na génese de todo o fascismo francês, fizera dessas denúncias a sua prerrogativa, inaugurando um modelo que muitos seguiram e tentaram superar. Em França, foi a denunciar a promiscuidade estabelecida entre os governantes e os negócios que os fascistas se reorganizaram após a segunda guerra mundial e o mesmo tema serve hoje à extrema-direita russa para proceder à apologia do fascismo e de Stalin. Na época actual, no entanto, parece-me que é na Grã-Bretanha que mais plenamente vigora o modelo de uma grande imprensa de massas ao mesmo tempo de extrema-direita e dedicada a publicitar os escândalos entre os ricos. Esta imprensa britânica de massas é uma componente indispensável da vida política no país, mais importante no plano ideológico do que o são o governo e os partidos.

Proliferou por todos os países este tipo de imprensa de massas, situada politicamente na direita ou na extrema-direita e sempre pronta a anunciar que um político foi encontrado com a mão no cofre de um banco ou que um empresário foi encontrado com a mão na gaveta de um ministro. Basta olhar para os escaparates [as bancas] de jornais e ver quais são os mais lidos. Em íntima conexão com esta imprensa dos escândalos e do ressentimento, estão as revistas inevitavelmente colocadas ao lado dos chocolatinhos junto às caixas dos supermercados e que se destinam a mostrar ao povo os exemplos positivos, que em princípio todos gostariam de imitar, as vedetas de sucesso, os homens de negócios que casaram pela enésima vez com uma mulher ainda mais plastificada do que as anteriores, os chics e famosos, os habitantes das ilhas artificiais. Se uns são os jornais do ressentimento, as outras são as revistas da inveja, e juntos fazem um par indispensável à contenção dos rancores dentro dos limites da ordem. Desde que a insatisfação não leve ao derrube das instituições mas à vontade de amaranhar por elas acima, tudo corre dentro do previsto. Onde as coisas começam a estragar-se é quando a juventude lança fogo a automóveis em vez de comprar revistas sobre carros de luxo.

Que artigos como este que suscitou a minha reflexão se tenham difundido entre a esquerda e a extrema-esquerda revela até que nível lastimável decaiu o que noutra época havia sido o anticapitalismo. Em Portugal a situação é mais grave ainda, por razões próprias à história deste país. Durante o período do antifascismo, o Partido Comunista seguiu a política da «unidade dos portugueses honrados contra o punhado de monopolistas ao serviço do capital estrangeiro», e continua aliás hoje a fazer o mesmo, visto que nunca desistiu da sua ambição histórica de pôr a classe trabalhadora à disposição de sectores capitalistas − tanto donos de empresas como gestores − marginalizados na repartição dos lucros. É natural que neste ambiente prolifere a confusão entre espírito de classe e ressentimento. Mas sempre que o ressentimento prolifera entre os trabalhadores, o risco do fascismo não anda longe.

[Ilustrações - pinturas de Peter Bruegel, o Velho, e uma colagem de Raoul Hausmann.]

fonte:http://passapalavra.info/?p=2063
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