segunda-feira, 13 de abril de 2009

O Capitalismo de Estado da URSS

Nildo Viana

O Capitalismo de Estado da URSS

Publicado originalmente na Revista Ruptura, num. 1, maio de 1993.

Um Lombardo Radice, por exemplo, fala de "Socialismo Despótico"; outros falam de "Socialismo de Estado"; outros, ainda, de "Capitalismo de Estado". Na verdade, tudo depende do ponto de vista. Se considerarmos o ponto de vista do operário, que vende sua força de trabalho, como mercadoria, ao Estado já que é o Estado que gerencia a economia e as empresas -para ele, operário é o mesmo que viver sob o capitalismo. Ingolf Diener

Quando Marx escreveu O Capital afirmou que partia do ponto de vista do proletariado. Este, segundo a teoria marxista, é o sujeito histórico que abole não só a sociedade burguesa mas a sociedade de classes em geral. O mais desenvolvido modo de produção classista da História - o capitalismo - explora, domina e aliena o proletariado. Este resiste, se levanta e coloca em xeque o capitalismo. Por isso, é o seu ponto de vista que pode revelar as contradições da sociedade burguesa e realizar o que Marx chamou "a crítica desapiedada do existente". Hoje, o marxismo foi apropriado por outras classes (burguesia, burocracia, etc.) para expressar um ponto de vista estranho ao do proletariado. Trata-se, então, de nos reapropriarmos do marxismo como "expressão teórica do movimento operário" (Korsch), inclusive na análise da URSS e Leste Europeu.

Existem inúmeras interpretações sobre o caráter da sociedade soviética. Além daquelas que defendem o caráter socialista da sociedade soviética (alguns utilizando adjetivos tais como "Socialismo de Estado", "Socialismo de Acumulação", "Socialismo Burocrático", etc.) existem as que consideram uma "Sociedade de Transição" que deverá caminhar para o socialismo. Aí se enquadra a tese Trotskista do "Estado operário com deformações burocráticas" e a teses ambígua de Rudolf Bahro que qualifica a URSS, de forma indecisa, como um regime "Proto-Socialista".

Há também aquelas que julgam que a URSS não é nem socialista nem capitalista. Trata-se de um modo de produção ou uma sociedade pós-capitalista mas não socialista. Os conceitos são vários: Modo de Produção Tecno-Burocrático, Modo de Produção Corporativista, Modo de Produção Estatal, Economia Estatal Totalitária, Sociedade Militar, etc.

Entretanto, a corrente que conseguiu revelar o verdadeiro caráter da sociedade soviética foi aquela que qualificou como uma nova forma de capitalismo: o Capitalismo de Estado. Já na década de 20 surgem os primeiros teóricos e os grupos que defendem esta tese: Amadeo Bordiga e a esquerda comunista italiana, os comunistas conselhistas e o grupo "Verdade Operária" na URSS.

Para Bordiga, foi a herança do "asiatismo" da Rússia que impossibilitou a formação do capitalismo em sua forma clássica e que gerou o capitalismo de Estado. Este seria uma formação social transitória e especificamente russa. O Modo de Produção Asiático colocou suas intituições à serviço do desenvolvimento capitalista gerando a estatização dos meios de produção. Esta seria uma etapa transitória e temporária que prepararia a implantação do Capitalismo Privado.

Os Comunistas Conselhistas (onde se destacam Korsch, Pannekoek, Gorter, Wagner, Ruhle e Mattick) afirmaram que o desenvolvimento insuficiente das forças produtivas gerou uma Revolução Jacobina (que também pode ser chamada de "Contra-Revolução Burocrática") e esta caracterizou todas as tarefas econômicas necessárias para a formação do Capitalismo de Estado. O bolchevismo realizou uma Revolução Jacobina (que, em última instância, é uma revolução burguesa) e implantou o capitalismo sob uma nova forma. Pannekoek diz que essa forma de capitalismo "é uma produção organizada onde o Estado é o patrão universal, o senhor do aparelho produtivo. Os trabalhadores são lá tão senhores dos meios de produção como no capitalismo universal. Recebem um salário e são explorados pelo Estado, que é o único capitalista (e de que tamanho!)" [1].

O grupo clandestino "Verdade Operária" parte da análise do desenvolvimento do capitalismo mundial para explicar a formação do Capitalismo Estatal da URSS. Segundo este grupo, a burguesia privada não é capaz de ultrapassar os interesses de cada ramo da produção e por isso se torna necessária a crescente ação do Estado sobre a economia realizada pela tecnocracia. Na URSS, houve a fusão da tecnocracia com os capitalistas comerciais do período da NEP (Nova Política Econômica) dando origem a Burguesia de Estado, sendo o partido bolchevique sua principal instituição. Essa nova burguesia criou seu próprio regime econômico: o Capitalismo de Estado.

Na década de 30, o historiador Arthur Rosemberg defenderia, com algumas diferenças, as teses dos Comunistas Conselhistas. Segundo ele, "em suas partes essenciais, o bolchevismo revelou o objetivo que se colocara. Com a ajuda do proletariado, derrubou o Tzarismo e fez a revolução burguesa. Superou a vergonhosa inferioridade russa, levando o país ao nível dos Modernos Estados Burgueses Europeus. Graças à força da classe operária, conseguiu ainda substituir a economia e a forma de sociedade capitalismo privada por uma moderna organização baseada no Capitalismo de Estado" [2].

Ainda na década de 30, A. Ciliga defenderia a teoria de que a Rússia vivia sob o Capitalismo de Estado. Para ele, Stálin e Trótski: "...queriam fazer passar o Estado pelo proletariado, a ditadura burocrática sobre o proletariado pela ditadura do proletariado, a vitória do Capitalismo de Estado sobre o Capitalismo Privado e sobre o Socialismo por uma vitória deste último... Já tivemos provas suficientes de que o atual sistema da Rússia preservou todas as características essenciais do Capitalismo: produção de mercadorias, salários, mercados para a troca, dinheiro, lucros, redistribuição parcial dos lucros entre os burocratas, sob a forma de altos salários, privilégios, etc." [3].

Depois destes, vários outros pensadores, militantes e grupos defenderam, de forma diferente, a mesma tese. M. Rubel, baseando-se nos escritos de Marx e Engels sobre a Rússia Czarista, coloca o surgimento do Capitalismo de Estado Russo como provocado pelo atraso econômico do país. As relações de produção dominantes na Rússia impulsionaram o Estado soviético a desenvolver o método capitalista da "acumulação primitiva" e consolidar o Capitalismo de Estado. Outro exemplo é C. Castoriadis, quando ainda se auto-intitulava marxista, que defendia a URSS como um capitalismo burocrático. As relações de produção predominantes na URSS seria uma relação de classe que opunha o proletariado à burocracia, classe que dispõe dos meios de produção e com isso efetua a exploração através do trabalho assalariado. Para ele, o capitalismo burocrático e o capitalismo privado viveriam em um constante conflito que resultaria na vitória de um sobre outro.

O Trotskismo também produziu teóricos e grupos que caracterização a URSS como Capitalismo de Estado: No fim da década de 30, James Burnham e Max Schachtman, da secção americana da IV Internacional; na década de 50, Toni Cliff; na década de 70, o grupo dissidente francês "União Operária". Alguns grupos e teóricos não trotskistas, como o grupo inglês Solidarity, também reconheceram o caráter capitalista da Rússia. Seria impossível aqui uma lista exaustiva daqueles teóricos e grupos que defenderam a teoria do Capitalismo de Estado, tanto por desconhecimento quanto por falta de espaço para realizar tal feito.

Mas, para concluir, devemos expor as teses de três teóricos que, na década de 70, retomaram a concepção do Capitalismo de Estado da URSS. Eles são: o autonomista português João Bernardo, o bordiguista Jean Barrot e o maoísta Charles Bettelheim.

Para Jean Barrot, foi o movimento do capital que gerou o capitalismo russo. Mas, para ele, o Capitalismo de Estado não é, como era para Bordiga, uma fase necessariamente transitória para o capitalismo privado. Segundo Barrot, "a partir de 1914 a potência do capital escapa à burguesia - visto que esta procura, antes de mais nada, controlar o seu progresso, o capital encontra novos agentes capazes de levar a bom termo o seu crescimento. O fenômeno existia já no século XIX (Mehemet Áli), mas alargou-se aqui a todo um conjunto de países subdesenvolvidos ou relativamente atrasados. O mais notável exemplo é, sem dúvida, o da revolução russa. A Rússia tem um proletariado importante pelo seu número e pela sua concentração, mas que se encontra rodeado -cercado- por uma massa camponesa enorme. A burguesia nacional é ali relativamente débil, já que o desenvolvimento econômico foi sobretudo o produto do capital estrangeiro e do Estado. A revolução expropria o primeiro e destrói o segundo. Depois do refluxo do movimento na Europa, o capital é assumido, não por uma "nova" classe -o que suporia novas relações de produção, já não capitalistas mas outras-, mas por uma burguesia cujo papel social é o mesmo, embora com modos de constituição e funcionamento diferentes dos da burguesia clássica: possui os meios de produção por intermédio do Estado -por conseguinte, digamos, a título coletivo, o que não exclui aliás uma autonomia mais ou menos larga das empresas (...). A burguesia de Estado formou-se a partir de antigos militantes operários, de quadros da indústria ou da administração" [4].

Charles Bettelheim reavalia suas análises sobre a URSS, a qual ele definia como uma sociedade socialista, e passa a defini-la como um Capitalismo de Estado. A principal diferença e os demais teóricos do caráter capitalista da Rússia está na explicação da origem do capitalismo russo. Para Bettelheim esta origem se encontra na solução dada à questão da aliança operário camponesa. As contradições no campo e as limitações da política do partido bolchevista reforçaram a tendência do campesinato, principalmente o médio, a exercer uma prática política pequeno-burguesa e este foi o principal elemento que, aliado a outros, provocou o retrocesso da revolução de outubro através da autonomização crescente do Estado que acabou reproduzindo as relações de produção capitalistas [5].

João Bernardo, por sua vez, afirma que a tecnocracia é uma classe social que pode dar um "novo fôlego" ao capitalismo. O partido bolchevique cumpriu este papel e criou o Capitalismo de Estado russo. Este se diferencia do capitalismo clássico pela forma de realização da lei do valor, lei fundamental do modo de produção capitalismo. No capitalismo privado a lei do valor se realiza nos preços do mercado e no Capitalismo de Estado no jogo dos planos. Daí decorrem diversas outras diferenças como a forma de distribuição da mais-valia e a forma de reprodução dos "Capitalistas de Estado" mas o fundamental do modo de produção capitalistas, a lei do valor, continua existindo e se realizando. J. Bernardo considera que o capitalista monopolista de Estado tende a se transformar em Capitalismo de Estado integral, do tipo soviético. A questão a ser resolvida é: ou o socialismo construído pelo proletariado através da autogestão social ou a barbárie capitalista comandada pela tecnocracia reproduzida como burguesia de Estado [6].

Depois deste breve histórico das teorias de Capitalismo de Estado, passemos para a análise da formação desta teoria. A determinação fundamental que levou ao surgimento do capitalismo de "novo tipo" foi o desenvolvimento insuficiente das forças produtivas. A Rússia era um país pré-capitalista em transição para o capitalismo.

Entretanto, o desenvolvimento insuficiente das forças produtivas não gera, por si só, o Capitalismo de Estado ou, como dizem alguns, a "burocratização". O atraso da Rússia Czarista forma as condições determinadas nas quais se desenvolveram as lutas de classe. Essas condições dadas colocam as possibilidades históricas que poderão ser concretizadas e que serão definidas através das lutas de classes. A Rússia poderia ter caminhado para o Socialismo, o Capitalismo Privado, o Capitalismo de Estado, etc., pois a História é aberta. isto, contudo, não quer dizer que ela seja arbitrária: No presente se revelam as tendências de desenvolvimento futuro e a tendência que irá prevalecer depende da ação humana expressa na luta de classes.

Marx e Engels já haviam observado que a burguesia não lançaria mais as massas em uma luta revolucionária devido ao medo de que estas se voltassem contra ela. A burguesia se tornou contra-revolucionária a partir da segunda metade do século XIX. Na Rússia atrasada, a burguesia nascente não iria assumir um papel revolucionário e não romperia sua aliança com o Czarismo. Lá o mais provável seria a realização de uma "revolução burguesa sem burguesia". Com o regime czarista em crise e com a pouca possibilidade de implantação do capitalismo privado, divido a debilidade da burguesia russa, restava com tendências principais: o Capitalismo de Estado e o Socialismo.

É neste país em transição para o capitalismo, que contava com aproximadamente 70% da população formada por camponeses e com uma classe operária em formação, que surge o bolchevismo. Lênin, o principal líder e o mais influente teórico bolcheviche, escrevia, em 1902, que o proletariado jogado a si mesmo chegaria no máximo a uma consciência sindical e isto significa ficar nos limites da ideologia burguesa. A consciência de classe seria introjetada "de fora" pelos intelectuais revolucionários do partido de vanguarda [7]. Esta é, claramente, uma ideologia da tecnocracia, pois reproduz a divisão entre dirigentes e dirigidos, entre trabalho intelectual e trabalho manual. O partido sendo a "vanguarda" da classe, então, a conquista do poder estatal por ele passa a ser equivalente à ditadura do proletariado. Em 1902 já estava justificado o Golpe de Estado de outubro de 1917.

O partido substitui a classe operária como "sujeito revolucionário" e por isso deve ser coerente e eficiente nas suas ações políticas. Para isso ocorrer deve haver centralização, disciplina e unidade de ação. Isso tudo torna o "centralismo democrático" uma necessidade. Neste sentido, ideologia e organização estão unificadas e se complementam.

O proletariado russo, apesar da ideologia da "nulidade operária" criada por Lênin, cria os sovietes (conselhos operários) na revolução de 1905 e novamente na revolução de fevereiro de 1917 [8]. O próprio Lênin reconheceu a espontaneidade revolucionária do proletariado na revolução de fevereiro: "Em fevereiro de 1917 as massas organizaram os sovietes antes mesmo que algum partido tivesse tido tempo de lançar esta palavra de ordem. O grande gênio criador do povo, temperado pela amarga experiência de 1905, que o tornara consciente, eis o artifície desta forma de poder proletário" [9]. Com a revolução de fevereiro se implanta uma dualidade de poderes: de um lado, o poder contra-revolucionário expresso no Estado Czarista, de outro lado, o poder revolucionário expresso nos sovietes.

Os bolcheviques, com o Golpe de Estado de outubro, assumem o poder do Estado e a partir disto a dualidade de poderes começa a se resolver em favor do "Estado burguês mas sem burguesia" de Lênin. Os bolcheviques no poder pregam a "gestão individual das empresas", a implantação do Taylorismo (método tipicamente capitalista de gestão nas fábricas), a militarização dos sindicatos e, além disso, esvaziam os sovietes implantando a ditadura do partido [10].

O bolchevismo realiza, através do exército vermelho, a contra-revolução na Ucrânia destruindo a coletivização camponesa lá realizada [11]. Abole as frações dissidentes internas do partido como os "Comunistas de Esquerda", a "Oposição Operária" e os "Centralistas Democráticos" [12]. A insurreição de Kronstadt declarada pelos marinheiros pretendia reestabeler os sovietes, como demonstra o Izsvestia de Kronstadt de 6 de março de 1921: "Nossa causa é justa. Somos pelo poder do sovietes e não dos partidos. Somos pela eleição livre dos representantes das massas trabalhadoras. Os sovietes falsificados, monopolizados e manipulados pelo partido comunista sempre foram surdos às nossas necessidades e exigências; a única resposta que recebemos foi a bala assassina" [13]. O massacre de Kronstadt demonstrou que dessa vez não seria diferente. Com a dominação bolcheviche nascida da fusão do partido com o Estado surge uma camada burocrática que cresce cada vez mais. A burocracia dominante surge de quadros do partido, do Estado Czarista, das indústrias, da pequena burguesia e em menor grau do campesinato e até mesmo da classe operária. A burocracia (Burguesia do Estado) se fortalece e consolida enquanto classe dominante durante o período do "comunismo de guerra" e durante a NEP (Nova Política Econômica). A ascensão de Stálin demonstra essa consolidação. A classe dominante, expressa perfeitamente no stalinismo, encontra a partir de então, dois obstáculos: a burocracia dissidente liderada por Tróstski e o campesinato. A repressão à "oposição unificada" que vai até os processos de Moscou e a "estatização forçada", que proporcionou a chamada "acumulação socialista primitiva" através da superexploração dos camponeses, removem estes obstáculos [14]. O Capitalismo de Estado passa a predominar na URSS.

Mas resta saber: o que é o Capitalismo de Estado? Desde Marx sabemos que a definição de um modo de produção se encontra nas relações de produção dominantes em uma sociedade.

As relações de produção capitalistas são aquelas em que a produção de mercadorias e a lei do valor se generalizam ao ponto da própria força de trabalho se tornar uma mercadoria. O valor de uma mercadoria é determinado pelo tempo de trabalho socialmente necessário para sua produção. Os trabalhadores devem estar separados dos meios de produção e ter como única mercadoria sua força de trabalho. Por isso, eles são obrigados a vender sua força de trabalho ao capital. Este paga em forma de salário o mínimo necessário para sua reprodução. Entretanto, a força de trabalho produz mais do que o necessário para a sua reprodução e este excedente produzido é apropriado pelo capital. O excedente é a mais valia e esta apropriação expressa o domínio do trabalho morto sobre o trabalho vivo.

Na URSS, os trabalhadores estão separados dos meios de produção e só possuem a sua força de trabalho como mercadoria para vendê-la ao capital. Entretanto, assim como no capitalismo privado, eles só recebem, em forma de salário, o necessário para sua reprodução enquanto força de trabalho e produzem um excedente que é apropriado pelo capital, a mais valia. Como se vê, o fundamental das relações de produção capitalistas estão presentes na URSS.

Contudo, existem algumas diferenças. No capitalismo privado predomina a propriedade privada individual e no Capitalismo de Estado predomina a propriedade privada de uma classe que a gera coletivamente através do Estado. Esta diferença, por sua vez, cria outras diferenças, mas que não colocam em questão o caráter capitalista das relações de produção nas URSS.

Este é o ABC da teoria do Capitalismo de Estado. Os opositores desta teoria colocam dois obstáculos principais, a saber: em primeiro lugar, dizem que a burocracia não é uma classe dominante pois ela não é uma classe proprietária; em segundo lugar, afirmam que não há predomínio da lei do valor na URSS. Aprofundaremos a teoria do Capitalismo de Estado respondendo a estas questões.

Em primeiro lugar, devemos colocar que a burocracia (Burguesia de Estado) é uma classe proprietária. Na URSS a propriedade jurídica é coletiva, mas a propriedade real é privada. Segundo Marx "em cada época histórica, a propriedade desenvolveu-se diferentemente e numa série de relações sociais totalmente distintas. Por isto, definir a propriedade burguesa não é mais do que expor todas as relações sociais da produção burguesa", pois, "pretender dar uma definição da propriedade como uma relação independente, uma categoria à parte, uma idéia abstrata e universal -isto não pode ser mais que uma ilusão de metafísica ou jurisprudência" [15]. As relações de propriedade são uma expressão jurídica (e portanto, ideologia) das relações de produção [16]. Portanto, é no conjunto das relações de produção que se determina a existência e a forma de propriedade. O título de propriedade é apenas uma justificativa ideológica que a classe proprietária utiliza para manter o seu controle sobre os meios de produção e a força de trabalho. Não é através do título jurídico que poderemos definir se existe propriedade ou qual sua forma. A definição só pode ser realizada através do conhecimento de quem controla as forças produtivas. Propriedade real e controle da propriedade são inseparáveis. Somente na ideologia, na propriedade jurídica, pode haver a separação entre propriedade e controle.

No capitalismo privado, os proprietários individuais justificam a exploração através do título de propriedade privada. No Capitalismo de Estado, ao contrário, a burocracia justifica a exploração ao declarar que a propriedade dos meios de produção pertencem ao povo mas é dirigido pelo Estado, ou seja, pela burocracia. A expressão jurídica da propriedade burguesa no capitalismo privado se caracteriza por afirmar a sua existência e compromisso justificar o controle sobre as forças produtivas e no Capitalismo de Estado se caracteriza por afirmar sua "inexistência" e é justamente isso que justifica o controle sobre as forças produtivas realizado pelo "coletivismo burocrático". A propriedade real está presente em ambos os casos mas a propriedade jurídica está presente apenas em um. Pois, na URSS, a propriedade pertence ao povo e se pertence a todo mundo quer dizer, no final das contas, que "não pertence" a ninguém.

A existência do controle estatal sobre as forças produtivas realizado pela burocracia demonstra que essa é uma relação de classe e, conseqüentemente, uma relação de exploração. C. Castoriadis demonstrou isso muito bem, embora não tenha demonstrado como observou J. Barrot, que esta exploração é capitalista. Pois todas as relações de classe e de exploração se baseiam neste pressuposto do controle sobre as forças produtivas. Portanto, é preciso demonstrar o caráter especificamente capitalista desta exploração. O que define isso é a forma como se dá a apropriação do mais-trabalho e está se dá, no capitalismo através da extração da mais-valia. Como demonstramos anteriormente, a burocracia extrai mais-trabalho dos produtores diretos em forma de mais-valia, assim como a burguesia privada, e decide o que será feito com o excedente produzido, dentro dos limites impostos pela dinâmica do modo de produção.

Portanto, o essencial é definir se há ou não o predomínio da lei do valor na URSS. A lei do valor só pode existir havendo um alto grau de desenvolvimento da divisão social do trabalho e com isso provocar a separação entre os ramos de produção e entre produtores e consumidores -ou seja, superação da produção de auto-subsistência, o que significa que o produtor deixa de produzir para o seu próprio consumo e passa a produzir para vender o produto no mercado- e com isso criar a necessidade de troca de mercadorias. Isto significa que, para se implantar o modo de produção capitalista, estas condições precisam ser complementadas com a separação entre produtores e meios de produção. Essa separação provoca a necessidade dos produtores de venderem sua força de trabalho em troca de um salário com o qual garantirá sua reprodução. Como a força de trabalho recebe um salário que é inferior ao que foi produzido se cria um excedente, a mais-valia, que é apropriado pelo capital. Isto quer dizer que a força de trabalho é uma mercadoria sui generis, pois só ela produz mais-valor e este ao ser apropriado pelo capital cria sua reprodução ampliada. Para que essa reprodução ampliada de capital se realize é necessário não só a produção de mais-valia mas também a competição entre capitais individuais, pois esta obriga a burguesia a reinvestir cada vez mais em meios de produção. Estas condições e premissas da produção capitalista estão presentes na URSS, onde o desenvolvimento da divisão social do trabalho criou uma ampla separação entre os ramos de produção, entre produtores e consumidores e, finalmente, entre os trabalhadores e meios de produção. Isto, por sua vez, verá o trabalho assalariado, a produção da mais-valia, e conseqüentemente, a acumulação de capital. O único dos elementos acima citados que se poderia argumentar que não existe na URSS é a competição entre capitais individuais, pois lá a propriedade é monopólio do Estado. Mais isto não é correto e demonstraremos isto a seguir.

A reprodução ampliada do capital é impulsionada pelo mercado mundial e pelas relações comerciais e monetárias internas da URSS. Essas relações nunca deixaram de existir: já existia no período do "comunismo de guerra" e se aprofundou com a NEP (Nova Política Econômica) e esta criou, no seu final, as condições necessárias para sua reprodução na economia estatizada [17]. A "estatização forçada" criou os Kolkhozes (que deveriam ser cooperativas) como um forma de propriedade estatal. O Estado recebe dos Kolkhozes renda da terra em forma de altos impostos. Eles são dirigidos pela burocracia Kolkhoziana que repassa os impostos para o Estado e retira privilégios e rendimentos superiores aos do campesinato. Estes "rendimentos superiores" são justificados pelo "trabalho por rendimento" que calcula as tarefas de acordo com o grupo ao qual se pertence (burocracia, agrônomo, tratorista ou camponês). A burocracias kolkhoziana se inscreve na nomenclatura, ou seja, é nomeada pela burocracia estatal, sendo, portanto, intocável.

Os camponeses possuem, entretanto, suas pequenas parcelas de terrenos individuais atrás de suas casas. Eles se alimentam através do trabalho nestes terrenos e também a maior parte da população urbana apesar de serem apenas 3% das terras cultiváveis. Estes produtos são vendidos pelos camponeses diretamente à população criando uma forma de comércio livre.

As diferenças entre as fazendas estatais (Sovkhozes) e as empresas "ditas" cooperativas (Kolkhozes) são: a) A forma de remuneração nas primeiras é realizada através do salário e nos Kolkhozes através do "trabalho efetuado", embora juridicamente em 1966 a remuneração passasse a ser igual a dos Sovkhozes; b) As parcelas individuais de terra existentes nos Kolkhozes e inexistentes no Sovkhozes; e c) Os Sovkhozes repassam para o Estado o excedente em forma de lucros e os Kolkhozes em forma de impostos.

O chamado "mercado negro" urbano e a reprodução das pequenas propriedades urbanas são outras formas de expressão das relações comerciais e monetárias na URSS. Quando há qualquer troca entre os Sovkhozes e o Estado ou entre os este e os Kolkhozes se manifesta a lei do valor. Quando as unidades de produção (as empresas estatais) trocam meios de produção entre si também atua a lei do valor. Isto é possível porque cada empresa tem "autonomia financeira". As empresas estatais possuem seus fundos próprios; compra e venda e seus meios de produção, matérias-primas, combustíveis, etc.; possuem autonomia para decidir o número de assalariados e a forma de contrata-los e dispensa-los; e se auto-financiam através de suas receitas e do sistema bancário.

Neste sentido, as empresas estatais funcionam como capitais individuais. As trocas entre as "cooperativas", as fazendas estatais, as unidades de produção aliadas com a produção mercantil da pequena propriedade camponesa e urbana juntamente com o mercado negro demonstram as várias formas de manifestação das relações comerciais e monetárias na URSS.

Essa autonomia das unidades de produção, aliada às demais formas de relações comerciais e monetárias, torna necessário a comparação entre as mercadorias para medir o tempo de trabalho socialmente necessário. A divisão social do trabalho expressa aí cria a necessidade de submissão à lei do valor. Cria-se também, uma competição embora num nível bem inferior em comparação com o capitalismo privado. A dinâmica da acumulação de capital sob o Capitalismo de Estado é impulsionada principalmente pela competição internacional que se realiza no mercado mundial.

A lei do valor e a acumulação de capital "soviéticos" estão submetidos ao mercado mundial. Tanto a produtividade do trabalho, que é necessariamente comparada ao mercado mundial, quanto a decisão na produção nos meios de produção, estão na URSS, devido ao comércio externo, condicionadas pelo mercado mundial. No seu comércio externo, as suas trocas com o COMECON representavam 54% e as trocas com os países imperialistas do Ocidente 31%, enquanto que as efetuadas com os países capitalistas 13%.

O capital internacional também interfere internamente na economia "soviética", pois existem diversas empresas estrangeiras na URSS como a General Motors, Shell, Coca-Cola, Mitsubishi, Krupp, Basf, Control Data, Brown Boveri, Exxon, Union Carbide, etc, etc. Estas empresas atuam na URSS na forma de co-produção industrial. A co-produção industrial se baseia num acordo em que a URSS assume o papel de ceder força de trabalho e instalações enquanto que os países imperialistas do Ocidente fornecem máquinas, técnicas de gestão, licenças, etc. Nestas empresas, a mais-valia é repartida entre a burocracia "soviética" e o capital internacional. Além desse tipo de acordo existem inúmeros outros isto torna necessário a presença de bancos estrangeiros na URSS.

A URSS não só explora os camponeses soviéticos como também avança sobre outros países realizando uma verdadeira expansão imperialista. A fase imperialista do Capitalismo de Estado russo é demonstrada tanto através do "velho imperialismo" (dominação político-militar direta), como ocorreu no Afeganistão, quanto através da exploração dos países do Leste Europeu no comércio internacional. Existe entre a URSS e o Leste Europeu uma "troca desigual" e o exemplo da Hungria deixa isso bem claro: "no caso da Hungria, enquanto esta, de 16 Rublos passou a pagar 36 par tonelada de petróleo importado da URSS, o que significou o aumento de 131% (na verdade, 125% - NSV), os preços das máquinas que ela vendeu à URSS tiveram um aumento de apenas 33%" [18]. A URSS se não bastasse isso, implantou no Leste Europeu "empresas mistas" com 50% de capital soviético e 50% de capital nacional. Isso além das empresas que foram cedidas pela Alemanha Oriental como pagamentos de indenização pelas destruições da II Guerra Mundial e se tornaram propriedades soviéticas [19].

A luta de classes na União Soviética depois da II Guerra Mundial revela, após um breve período de "reconstrução nacional" um processo de acirramento crescente. Os problemas sociais como, por exemplo, a crise da agricultura, a questão da habitação, os desperdícios produzidos pela planificação burocrática, se acumulavam e criavam enormes conflitos sociais. A própria classe dominante, principalmente após a morte de Stálin, sempre estava envolvida em lutas inter-burocráticas visando a ascensão ao cume da pirâmide do poder ou então buscando uma repartição mais favorável da mais-valia. Cabia ao partido "comunista" mediar as lutas inter-burocráticas e através do Estado manter a unidade da classe dominante. A repressão era o meio mais eficiente e utilizado para reproduzir sua dominação, tal como expressa nos campos de concentração (GULAGS) e nos hospitais psiquiátricos, pois, como escreveu um soviético dissidente, a oposição era uma "nova doença mental na URSS" (V. Bukowski). Mas esta repressão contava com o reforço da dominação ideológica realizada pelos aparelhos culturais e educacionais do Estado soviético. Nas instituições educacionais havia o ensino obrigatório do chamado "marxismo"-leninismo, a ideologia oficial do capitalismo estatal russo. Entretanto, estes aparelhos culturais e educacionais também eram garantidos pela repressão, pois não havia liberdade de imprensa e de produção científica, artística e cultura. O monopólio estatal dos meios de produção cultural produziu, conseqüentemente, o "monopólio" da produção cultural.

Toda essa repressão e controle tem como objetivo reproduzir as relações de produção capitalistas na URSS. A resistência operária e camponesa se expressavam, num primeiro momento, como luta de classes na produção. Os camponeses dos kolkhozes, por exemplo, preferiam produzir nas suas parcelas individuais de terras do que nos kolkhozes e isto provocava uma baixa produtividade do trabalho. A resposta da burocracia era a tentativa de submeter a produção individual à exploração realizada através das trocas comerciais, o que, por sua vez, gerava novos conflitos sociais. Nas fábricas, os operários se encontram submetidos aos métodos tipicamente capitalistas de controle da produção, por exemplo, o sistema Taylor, e por isso apresentam também uma baixa produtividade do trabalho. A burocracia tentou resolver a questão com os "incentivos materiais" (idéia importada da Europa Ocidental) mas, como demonstrou a História, fracassou totalmente. A repressão generalizada na sociedade russa acontecia justamente por causa do descontentamento e resistência crescente das classes exploradas. A burocracia utilizava como "arsenal ideológico" as acusações aos dissidentes de "contra-revolucionárias", "loucos", "agentes do imperialismo", etc., para justificar a repressão. As burocracias das repúblicas "soviéticas" utilizavam-se das tradições nacionalistas, acirradas pela opressão russa, para incentivar mobilizações de trabalhadores como o objetivo de pressionar Moscou para conseguir uma repartição mais favorável da mais-valia.

A resistência operária na produção atinge níveis elevados quanto a sua luta contra o aumento da produtividade e da extração de mais-valia chega ao ponto de apelar para as greves e se exige melhores salários; pois isto significaria uma diminuição na extração de mais-valia por quanto isso não fosse acompanhado pelo aumento da produtividade ou da jornada de trabalho, o que efetivamente não ocorria. A resistência operária fora do local de produção se expressa na formação de sindicatos independentes e de organizações clandestinas de esquerda. A burocracia reage, obviamente, com a repressão crescente e generalizada na sociedade russa.

Assim, a luta de classes na União Soviética apresentava uma onda de "mais-repressão" crescente tanto no campo quanto na cidade. A burocracia estatal buscava centralizar ainda mais os Kolkhozes com medo das tendências auto gestionárias dos camponeses e reprimir todas as formas de organizações não-estatais e manifestações políticas nas cidades com medo da auto-organização da classe operária. No entanto, o descontentamento e a luta dos trabalhadores para transformar suas condições de existência e, conseqüentemente, abolir o capitalismo estatal russo e construir a autogestão social, revelam as contradições da sociedade soviética que mais cedo ou mais tarde provocarão o rompimento com esse "mundo concentracionário".

Antes da crise da URSS e do Leste Europeu criticar o chamado "socialismo real" era sinal de "trotskismo" ou "direitismo". Mas, na realidade, como disse F. Claudin, para a direita e o imperialismo "o que lhes interessa conservar é o equívoco colossal de que aquilo é socialismo. Que argumento melhor para comprometer o ideal socialista diante das classes trabalhadoras e dos intelectuais do Ocidente? Na verdade, quem faz o jogo da direita são aqueles que coincidem com ela em conceber o diploma de socialismo às ditaduras totalitárias do leste" [20].

fonte: http://www.geocities.com/comunistasdeconselhos/Nildo.htm#4

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