Muitos dos temas geralmente associados ao Maio de 68 foram na realidade inaugurados pela revista «Socialisme ou Barbarie», que a partir de agora está a ser disponibilizada virtualmente. Por João Bernardo
No dia 1 de março de 1949 foi publicado o primeiro número da revista Socialisme ou Barbarie, a qual teve publicação regular até seu fim em 1965, na sua quadragésima edição. Agora em 2009, celebrando o aniversário de 60 anos, um coletivo de indíviduos e grupos — “Projet de scannerisation de la revue Socialisme ou Barbarie” — tem o objetivo de scannear [digitalizar] e disponibilizar virtualmente todos os números. A iniciativa já conta com o primeiro número digitalizado. Recentemente, um projeto semelhante foi feito com o jornal português “Combate” (1974).
Socialisme ou Barbarie no contexto da época
A partir do final da década de 1920, quando se implementaram os planos quinquenais na União Soviética, a posição crítica assumida por Trotsky começou a padecer de uma grande ambiguidade. Considerando, à boa maneira clássica, que a propriedade de Estado equivalia ao socialismo, Trotsky defendia que o sistema económico presidido por Stalin continuava a ser socialista. Nestes termos, a burocracia staliniana não poderia constituir uma classe social, limitando-se a ser uma casta degenerada e usurpadora de privilégios. Para os trabalhadores soviéticos, porém, a realidade em que viviam era pura e simplesmente um sistema de exploração idêntico ao que prevalecia nos demais países. Os planos quinquenais ergueram colossais centros fabris que seguiam fielmente o modelo fordista e a administração que os dirigia não se diferençava da que estava à frente das grandes empresas norte-americanas. Entre a oposição de esquerda na União Soviética o grande tema de discussão residia na classificação do regime − capitalista ou não capitalista? O leitor interessado tem um fascinante relato do começo destas discussões no interior das prisões soviéticas num livro de Anton Ciliga, cuja última edição francesa teve o título Au pays du mensonge déconcertant e de que é relativamente fácil encontrar traduções, integrais ou parciais, em português e em espanhol.
Este debate, aliás, apaixonava toda a extrema-esquerda mundial e não só o grupo reduzido dos discípulos de Trotsky. Um excelente resumo da questão − o melhor que eu conheço − encontra-se num artigo de Henri E. Morel, «As Discussões sobre a natureza dos países de leste (até à segunda guerra mundial): Nota bibliográfica», incluído no livro A Natureza da URSS (antologia), organizado por Artur Castro Neves e publicado pelas Edições Afrontamento no Porto, em Portugal, em 1977. Os leitores brasileiros podem encontrar a obra em algumas bibliotecas. Ao longo da década de 1930 numerosos militantes e teóricos foram-se rendendo à evidência de que a União Soviética era um sistema económico assente na exploração de uma classe por outra, e a partir desta constatação debatiam duas questões fundamentais: Tratava-se de um sistema capitalista, um capitalismo de Estado, ou de um sistema diferente, historicamente posterior ao capitalismo? E a partir de que momento da revolução russa é que esse sistema começara a vigorar?
Foi neste ambiente que surgiu o grupo Socialisme ou Barbarie, como dissidência do trotskismo. Na minha opinião, a importância histórica deste grupo foi dupla. Por um lado, levou as discussões acerca do regime de exploração prevalecente na União Soviética a um plano teórico muitíssimo mais elevado, permitindo uma melhor avaliação das semelhanças entre esse regime e os regimes ocidentais. Por outro lado, o Socialisme ou Barbarie contribuiu para lançar um olhar novo sobre a militância política e sobre as formas sociais em que essa militância deveria prosseguir se não quisesse ser vitimada pela burocratização. Muitos dos temas geralmente associados ao Maio de 68 foram na realidade inaugurados pelo Socialisme ou Barbarie.
Em língua portuguesa, a primeira análise das posições do Socialisme ou Barbarie e de Cornelius Castoriadis, que era a figura mais expressiva do grupo, encontram-se num livro notável de Mário Pedrosa chamado A Opção Imperialista (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966), injustamente esquecido porque se trata, na minha opinião, de uma das melhores obras marxistas escritas em todo o mundo na segunda metade do século passado.
Mário Pedrosa acerca de Socialismo ou Barbarie
Numa nota de rodapé inserida na pág. 96, depois de chamar a atenção para a grande vitalidade e elasticidade que o capitalismo revelou após a segunda guerra mundial, diz Mário Pedrosa:
«Em Socialisme et Barbarie, n.º 32, 1961, Paul Cardan [pseudônimo de Cornelius Castoriadis], num magnífico ensaio sobre Le mouvement révolutionnaire sous le capitalisme moderne, assim o descreve: “A luta operária no plano econômico exprimiu-se sobretudo pelas reivindicações de salário, às quais o capitalismo opôs uma resistência encarniçada durante muito tempo. Tendo perdido a batalha nesse plano, êle acabou por adaptar-se a uma economia cujo fato dominante, do ponto de vista da procura, é o acréscimo regular da massa dos salários tornada base de um mercado constantemente ampliado de bens de consumo. Êsse tipo de economia em expansão em que vivemos é, no essencial, produto da pressão incessante exercida pela classe operária sôbre os salários - e seus problemas principais resultam dêsse fato… Assim (e também em função de outros fatôres) depois de ter resistido muito tempo à idéia da intromissão do Estado nos negócios econômicos (considerada como “revolucionária” e “socialista”) o capitalismo chega finalmente a adotá-la, e a desviar em seu proveito a pressão operária contra as conseqüências do funcionamento espontâneo da economia, para instaurar, através do Estado, um contrôle da economia e da sociedade, servindo em fim de contas seus interêsses” (Socialisme et Barbarie, pág. 93.)».
Noutra nota de rodapé, na pág. 519, escreve Pedrosa:
«O professor Simon já nos falou da “fábrica de processamento de dados ao lado da fábrica de processamento físico”. O socialista revolucionário francês fala de “usina do plano”, “cujo trabalho consistirá numa verdadeira fabricação em série dos planos e suas várias partes separadas”. (Socialisme et Barbarie, nº 22, julho-setembro de 1957, P. Chaulieu [outro pseudônimo de Cornelius Castoriadis], Sur le Contenu du Socialisme, pág. 37.) É a chegada do automatismo social».
(Note-se que Mário Pedrosa cometeu sistematicamente um lapso no nome da revista, escrevendo et onde deveria ter escrito ou).
fonte: http://passapalavra.info/?p=1222
(c) Copyleft: É livre a reprodução para fins não comerciais, desde que o autor e a fonte sejam citados e esta nota seja incluída
No dia 1 de março de 1949 foi publicado o primeiro número da revista Socialisme ou Barbarie, a qual teve publicação regular até seu fim em 1965, na sua quadragésima edição. Agora em 2009, celebrando o aniversário de 60 anos, um coletivo de indíviduos e grupos — “Projet de scannerisation de la revue Socialisme ou Barbarie” — tem o objetivo de scannear [digitalizar] e disponibilizar virtualmente todos os números. A iniciativa já conta com o primeiro número digitalizado. Recentemente, um projeto semelhante foi feito com o jornal português “Combate” (1974).
Socialisme ou Barbarie no contexto da época
A partir do final da década de 1920, quando se implementaram os planos quinquenais na União Soviética, a posição crítica assumida por Trotsky começou a padecer de uma grande ambiguidade. Considerando, à boa maneira clássica, que a propriedade de Estado equivalia ao socialismo, Trotsky defendia que o sistema económico presidido por Stalin continuava a ser socialista. Nestes termos, a burocracia staliniana não poderia constituir uma classe social, limitando-se a ser uma casta degenerada e usurpadora de privilégios. Para os trabalhadores soviéticos, porém, a realidade em que viviam era pura e simplesmente um sistema de exploração idêntico ao que prevalecia nos demais países. Os planos quinquenais ergueram colossais centros fabris que seguiam fielmente o modelo fordista e a administração que os dirigia não se diferençava da que estava à frente das grandes empresas norte-americanas. Entre a oposição de esquerda na União Soviética o grande tema de discussão residia na classificação do regime − capitalista ou não capitalista? O leitor interessado tem um fascinante relato do começo destas discussões no interior das prisões soviéticas num livro de Anton Ciliga, cuja última edição francesa teve o título Au pays du mensonge déconcertant e de que é relativamente fácil encontrar traduções, integrais ou parciais, em português e em espanhol.
Este debate, aliás, apaixonava toda a extrema-esquerda mundial e não só o grupo reduzido dos discípulos de Trotsky. Um excelente resumo da questão − o melhor que eu conheço − encontra-se num artigo de Henri E. Morel, «As Discussões sobre a natureza dos países de leste (até à segunda guerra mundial): Nota bibliográfica», incluído no livro A Natureza da URSS (antologia), organizado por Artur Castro Neves e publicado pelas Edições Afrontamento no Porto, em Portugal, em 1977. Os leitores brasileiros podem encontrar a obra em algumas bibliotecas. Ao longo da década de 1930 numerosos militantes e teóricos foram-se rendendo à evidência de que a União Soviética era um sistema económico assente na exploração de uma classe por outra, e a partir desta constatação debatiam duas questões fundamentais: Tratava-se de um sistema capitalista, um capitalismo de Estado, ou de um sistema diferente, historicamente posterior ao capitalismo? E a partir de que momento da revolução russa é que esse sistema começara a vigorar?
Foi neste ambiente que surgiu o grupo Socialisme ou Barbarie, como dissidência do trotskismo. Na minha opinião, a importância histórica deste grupo foi dupla. Por um lado, levou as discussões acerca do regime de exploração prevalecente na União Soviética a um plano teórico muitíssimo mais elevado, permitindo uma melhor avaliação das semelhanças entre esse regime e os regimes ocidentais. Por outro lado, o Socialisme ou Barbarie contribuiu para lançar um olhar novo sobre a militância política e sobre as formas sociais em que essa militância deveria prosseguir se não quisesse ser vitimada pela burocratização. Muitos dos temas geralmente associados ao Maio de 68 foram na realidade inaugurados pelo Socialisme ou Barbarie.
Em língua portuguesa, a primeira análise das posições do Socialisme ou Barbarie e de Cornelius Castoriadis, que era a figura mais expressiva do grupo, encontram-se num livro notável de Mário Pedrosa chamado A Opção Imperialista (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966), injustamente esquecido porque se trata, na minha opinião, de uma das melhores obras marxistas escritas em todo o mundo na segunda metade do século passado.
Mário Pedrosa acerca de Socialismo ou Barbarie
Numa nota de rodapé inserida na pág. 96, depois de chamar a atenção para a grande vitalidade e elasticidade que o capitalismo revelou após a segunda guerra mundial, diz Mário Pedrosa:
«Em Socialisme et Barbarie, n.º 32, 1961, Paul Cardan [pseudônimo de Cornelius Castoriadis], num magnífico ensaio sobre Le mouvement révolutionnaire sous le capitalisme moderne, assim o descreve: “A luta operária no plano econômico exprimiu-se sobretudo pelas reivindicações de salário, às quais o capitalismo opôs uma resistência encarniçada durante muito tempo. Tendo perdido a batalha nesse plano, êle acabou por adaptar-se a uma economia cujo fato dominante, do ponto de vista da procura, é o acréscimo regular da massa dos salários tornada base de um mercado constantemente ampliado de bens de consumo. Êsse tipo de economia em expansão em que vivemos é, no essencial, produto da pressão incessante exercida pela classe operária sôbre os salários - e seus problemas principais resultam dêsse fato… Assim (e também em função de outros fatôres) depois de ter resistido muito tempo à idéia da intromissão do Estado nos negócios econômicos (considerada como “revolucionária” e “socialista”) o capitalismo chega finalmente a adotá-la, e a desviar em seu proveito a pressão operária contra as conseqüências do funcionamento espontâneo da economia, para instaurar, através do Estado, um contrôle da economia e da sociedade, servindo em fim de contas seus interêsses” (Socialisme et Barbarie, pág. 93.)».
Noutra nota de rodapé, na pág. 519, escreve Pedrosa:
«O professor Simon já nos falou da “fábrica de processamento de dados ao lado da fábrica de processamento físico”. O socialista revolucionário francês fala de “usina do plano”, “cujo trabalho consistirá numa verdadeira fabricação em série dos planos e suas várias partes separadas”. (Socialisme et Barbarie, nº 22, julho-setembro de 1957, P. Chaulieu [outro pseudônimo de Cornelius Castoriadis], Sur le Contenu du Socialisme, pág. 37.) É a chegada do automatismo social».
(Note-se que Mário Pedrosa cometeu sistematicamente um lapso no nome da revista, escrevendo et onde deveria ter escrito ou).
fonte: http://passapalavra.info/?p=1222
(c) Copyleft: É livre a reprodução para fins não comerciais, desde que o autor e a fonte sejam citados e esta nota seja incluída
Nenhum comentário:
Postar um comentário