quarta-feira, 25 de março de 2009

Entre a desconfiança e o desinteresse: A abstenção eleitoral nas democracias



Com ou sem propaganda abstencionista, não faltam as manifestações de cepticismo na democracia representativa, e o que vemos por todo o mundo é uma colossal perda de legitimidade desses regimes. Por João Bernardo

Os inquéritos sociológicos indicam que a maioria dos participantes em eleições não se ilude quanto à eficácia do sufrágio, por isso vota mais contra um partido ou um candidato do que a favor de outro partido ou de outro candidato. Quer estas pessoas sejam de esquerda ou de direita ou de lugar nenhum, ir pregar-lhes que as eleições são um logro é chover no molhado. Para evocar um exemplo do outro lado do mundo, recordo que nas eleições legislativas realizadas em Madagáscar em 1989 contaram-se cerca de 40% de abstenções, o que a oposição considerou uma vitória, visto que lançara um apelo nesse sentido. Mas como esta taxa de abstenção não parece superior à de outros países onde as oposições apelam à participação no voto, veremos neste artigo que com ou sem propaganda abstencionista não faltam as manifestações de cepticismo na democracia representativa. Com efeito, serão raros aqueles que julgam que podem mudar o mundo através do voto. Uns esforçam-se por conservar o tipo de sociedade em que vivem, sem pretenderem alterá-la, e não há dúvida de que as eleições são adequadas para deixar tudo na mesma fingindo que mudam alguma coisa. Outros, os insatisfeitos, esperam, no máximo, que ao acirrarem as contradições no interior das classes dominantes e ao remodelarem o pessoal governante consigam respirar um pouco melhor. Mas quaisquer que sejam os espaços possíveis de obter através dos resultados eleitorais, o facto decisivo, a meu ver, consiste na enorme taxa de abstenções, e é este aspecto que vou aqui analisar. Deixo de lado os regimes ditatoriais, onde a participação no voto é manipulada e as estatísticas eleitorais são fictícias, e não mencionarei também os países africanos, onde a carência de infra-estruturas de comunicação torna o voto muito aleatório.

Começo pelo grande mestre da democracia representativa, os Estados Unidos, que desde a segunda guerra mundial se têm esforçado por impor o modelo a todo o mundo. Nos Estados Unidos é conveniente distinguir os anos em que ocorrem eleições apenas para a renovação parcial do Congresso e aqueles em que este tipo de votação coincide com a escolha do presidente da República, já que no primeiro caso a abstenção é notavelmente mais elevada. Nas eleições presidenciais a percentagem da população em idade de votar que se apresenta às urnas desceu gradualmente de cerca de 65% em 1960 para cerca de 55% em 1984. Nas eleições presidenciais de 1996 menos de metade do eleitorado votou; nunca a abstenção fora tão elevada neste tipo de eleições. A situação não se modificou substancialmente nas eleições presidenciais seguintes, pois em 2000 a taxa de participação foi apenas de 51%. Todavia, nas eleições presidenciais de 2004 foi já 61% do eleitorado a votar, uma tendência que se tornou mais acentuada em Novembro de 2008, quando votou 63% do eleitorado, a menor taxa de abstenção desde 1960. Isto significa que numa das campanhas presidenciais mais polarizadas, quando o país atravessava uma situação interna e externa particularmente difícil, o facto de um pouco menos de 2/3 dos potenciais eleitores se terem dirigido às urnas foi considerado como um notável acontecimento. Entretanto, o interesse tem sido menor quando as votações não são simultâneas com a eleição presidencial e se destinam apenas à renovação parcial do Congresso. Nestas, entre 1958 e 1970 só participou uma média de 44% do eleitorado, taxa que desceu para 36% entre 1974 e 1986. Nas eleições de 1990 apenas 1/3 do eleitorado se deu ao trabalho de votar, subindo a proporção em 1994, quando votaram 38% dos eleitores potenciais. Esta taxa repetiu-se praticamente em 2002, com uma participação de 39% do eleitorado. Em resumo, a democracia representativa tem mobilizado apenas entre 1/3 e 2/3 dos eleitores norte-americanos.

Note-se que nos Estados Unidos as percentagens de participantes e de abstencionistas são calculadas em função da população em idade de votar, enquanto que na maior parte dos outros países o cálculo é feito em função do número de inscritos nos registos eleitorais. Se contabilizássemos aquelas pessoas que nem sequer se incomodam a levar o nome para os recenseamentos, a abstenção eleitoral dos norte-americanos não ultrapassaria muito a europeia, embora o aumento da abstenção caracterize também as democracias da Europa.

Consideremos o caso da França, um dos países com tradição democrática mais arreigada e onde o voto mais cedo se universalizou. Na primeira volta das eleições presidenciais de 1995 a percentagem de participação desceu a um nível sem precedentes neste tipo de votação, 77%, ao mesmo tempo que a percentagem de votos nulos atingiu também um nível sem precedentes, 3%. A taxa de participação continuou a declinar, baixando para 72% na primeira volta das eleições presidenciais de 2002, enquanto na segunda volta subiu quase para 80%, mas é necessário recordar que nesta ocasião se tratava de uma escolha bastante polarizada, entre o candidato da extrema-direita e um candidato da direita conservadora apoiado por todos os centristas e pela esquerda. Quando os eleitores julgam tratar-se de uma opção significativa o interesse pela votação aumenta, como sucedeu também nas últimas eleições presidenciais, em 2007, quando a taxa de participação em ambas as voltas foi de 84%. Na escolha dos deputados, porém, a tendência tem sido para o aumento da abstenção. Na primeira volta das eleições legislativas de 1993 a taxa de abstenção foi de 31% e de 33% na segunda volta, e nas eleições legislativas de 1997 os números correspondentes foram 32% e 29%. Na primeira volta das eleições legislativas de 2002 a taxa de abstenção quase chegou aos 36%, maior do que em qualquer das voltas de todas as outras onze eleições legislativas da Quinta República. O desinteresse é mais pronunciado ainda nas eleições regionais, já que entre 1986 e 1998 a taxa de abstenção praticamente duplicou, passando para 42%.

Portugal é um país de somenos importância, mas como pode talvez interessar a alguns leitores do Passa Palavra, convém seguir a evolução da taxa de abstenção, que passou de menos de 1/4 para mais de 1/3. Nas eleições legislativas de 1987 a abstenção foi de 22% e subiu para 32% nas de 1991, chegando a 33% nas eleições legislativas de 1995 e a 38% nas de 1999 e de 2002. Nas eleições legislativas de 2005, porém, a taxa de abstenção baixou para 35%.

Mas na Europa o facto político decisivo é a progressiva unificação e a diluição gradual das soberanias nacionais, tornando-se muito significativo o desinteresse com que a população encara a única instituição representativa de âmbito supranacional. Nas eleições para o Parlamento Europeu a taxa média de participação, que foi de 62% em 1979, diminuiu de 1984 para 1989, passando de 61% para 59%, embora estes números disfarcem oscilações acentuadas, como sucedeu na Irlanda, onde a participação naquele período subiu de 48% para 68%, e em Espanha, onde baixou de 70% em 1987 para 55% em 1989. Nas eleições seguintes, efectuadas em 1994, a taxa global de participação desceu para 56%, só aumentando no Luxemburgo, em Espanha, em França e na Dinamarca; e é curioso verificar que na Irlanda, a estrela das eleições anteriores, a participação desceu então para 37%. Em 1999 a participação igualou as abstenções, ambas com 50%, e continuou a descer nas eleições de 2004, quando mal ultrapassou os 45%, embora com grandes variações, desde a Itália, com uma participação de 73%, até à Suécia, com 37%. Entre os novos membros da Europa de Leste o desinteresse foi mais notório ainda. Na Hungria a participação nas eleições de 2004 foi de 39%, na República Checa foi de 28%, na Polónia foi de 20% e na Eslováquia foi a mais baixa de toda a União, com 17%. A participação média nos dez novos países foi de 27%, enquanto os quinze países membros de mais longa data registaram 50% de participação. O secretismo de que se rodeiam as decisões da Comissão Europeia ajuda a compreender, tanto enquanto causa como enquanto resultado, o desinteresse com que uma porção tão significativa de potenciais eleitores encara a escolha dos eurodeputados. Com efeito, e excluindo os países onde o voto é obrigatório, a abstenção nas eleições para o Parlamento Europeu tem sido consideravelmente superior à verificada nas eleições legislativas nacionais.

A maior prova que a democracia representativa enfrentou nos últimos tempos consistiu no final da guerra fria e na desagregação da esfera soviética. Esperar-se-ia que a população dos países do leste da Europa, cansada de ditaduras e de eleições fictícias, se precipitasse para as urnas, mas em vez disso verificou-se que, quanto mais vigorosa era a tradição de luta contra o sistema soviético, menor era o interesse pelas eleições. Deparo por vezes com o argumento de que a indiferença perante o sufrágio resultaria do facto de aqueles países saírem de regimes ditatoriais e não estarem preparados para a democracia. Mas em Portugal a primeira votação realizada após o derrube de um regime fascista com meio século de existência − a escolha da Assembleia Constituinte em Abril de 1975 − atraiu 91% do eleitorado. O desinteresse pelas eleições na Europa de Leste e na Rússia mostra que, se aquelas populações não desejavam a antiga burocracia, não queriam também a tecnocracia de inspiração norte-americana.

A Polónia foi um dos países onde mais repetidamente e mais generalizadamente se contestou o regime soviético. Ora, em 1989, nas eleições legislativas que consagraram o triunfo do Solidarność, as abstenções chegaram quase a 38%. Nas eleições autárquicas de Maio de 1990 a afluência às urnas limitou-se a 42% dos inscritos e em Novembro desse ano, na primeira volta das eleições presidenciais, só votaram cerca de 65%, uma taxa que na segunda volta, em Dezembro, caiu para 47%. A participação foi inferior ainda nas eleições legislativas de 1991, descendo para 43%. Nas eleições legislativas de 1993 registou-se uma subida, com uma taxa de participação de 52%, mas a anterior tendência foi retomada nas eleições legislativas de 2001, em que a participação foi de 46%, continuando a declinar até que as eleições legislativas de 2005 mobilizaram apenas 2/5 dos inscritos, a menor percentagem desde o final do sistema soviético. O desinteresse dos polacos pela democracia representativa confirma-se ao sabermos que a mais elevada taxa de participação nas eleições legislativas desde 1990 verificou-se em 2007, sem chegar sequer aos 54%.

Também na Hungria, cuja população se havia notabilizado em 1956 numa insurreição contra a hegemonia de Moscovo e contra o sistema soviético, a democracia representativa não foi inicialmente saudada com grande entusiasmo. Na primeira volta das eleições legislativas de Março de 1990 a taxa de participação foi de 65%, e nas eleições autárquicas de Setembro desse ano a participação reduziu-se a 40%, sendo ainda inferior nas cidades, o que obrigou a repetir a votação na maior parte dos municípios. A participação aumentou em seguida, chegando a 69% na primeira volta das eleições legislativas de 1994 e subindo para 71% na primeira volta das de 2002 e para 74% na segunda volta. Malgrado esta baixa da abstenção, tudo o que se pode dizer é que os húngaros passaram a revelar pelo processo eleitoral o mesmo grau de indiferença de alguns países da Europa ocidental.

Igualmente significativo é o facto de na República Democrática Alemã, ou seja, a Alemanha de Leste, até então integrada na órbita soviética, a afluência às urnas nas eleições autárquicas de Maio de 1990 ter registado uma descida de 18% relativamente às eleições legislativas de Março daquele ano, votando apenas 75% do eleitorado. E na Alemanha unificada, incluindo portanto o território da antiga República Democrática, a taxa de participação nas eleições legislativas de 1990 foi de 78%, a menor desde 1949.

Naqueles países onde o sistema soviético encontrara maior aceitação ou, pelo menos, onde a oposição fora menos estridente, as taxas de participação eleitoral começaram por atingir níveis superiores. Mas seguidamente a abstenção progrediu e instalou-se o desinteresse, de modo que em toda a Europa de Leste a população não se mostra hoje muito agradecida pela oportunidade que lhe deram de enfiar livremente papelinhos em urnas. Um caso sintomático é o da Bulgária, onde nas eleições legislativas de 1990 votaram mais de 90% dos inscritos. A taxa de participação, porém, desceu para 86% nas eleições legislativas de 1991, e foi de 73% na primeira volta das eleições presidenciais desse ano e de 76% na segunda volta. Nas eleições legislativas de Abril de 1997 a participação baixou mais ainda, limitando-se a 59%, e nas eleições autárquicas de 2003 pelo menos metade do eleitorado absteve-se, a maior taxa de abstenção desde o fim da era soviética.

Também a fragmentação de dois países da antiga esfera soviética não parece ter entusiasmado as respectivas populações. Nas eleições legislativas de Junho de 1990 na Checoslováquia a taxa de participação foi de 96% e as eleições autárquicas de Novembro desse ano mobilizaram cerca de 75% dos eleitores, mas na Eslováquia, à qual se deveu a ruptura do país, a taxa de participação foi só de 64%. Obtida a independência, confirmou-se o desinteresse dos eslovacos pelos sufrágios, pois a participação na segunda volta das eleições presidenciais de 2004 limitou-se a 44%. O mesmo se passou depois da fragmentação da Jugoslávia, sobretudo naqueles novos países que haviam assumido a atitude mais beligerante. Enquanto na Eslovénia, que cindiu pacificamente, a taxa de participação nas eleições legislativas de 1990 ultrapassou 80%, já na Croácia e na Sérvia, os dois principais contendores, o interesse pelo voto foi muito reduzido. Na eleição presidencial de 1997 na Croácia a taxa de participação não chegou a 60%, embora nas eleições legislativas de 2000 houvesse já 75% de participantes. Na Sérvia, porém, a desconfiança pela democracia representativa manteve-se muito profunda, a ponto de na segunda volta das eleições presidenciais efectuada em Outubro de 2002 a participação se ter limitado a 45%, o que invalidou o acto. E em Novembro do ano seguinte foi novamente impossível eleger um presidente, porque votaram só 39% dos inscritos. Também no Montenegro, que cindiu da Sérvia sem guerra mas com bastantes fricções, a eleição presidencial de Dezembro de 2002 foi anulada por ter uma participação inferior a 50%.

A situação não foi diferente na maior parte da antiga União Soviética, e se a insatisfação com o anterior regime era grande, o entusiasmo pelo novo regime parece ser pequeno. Na Rússia a eleição presidencial de 1991 contou com uma participação de 75%, mas nos anos seguintes a abstenção cresceu, atingindo em certos casos 75% ou mais ainda. Na primeira volta da eleição presidencial de 1996 a participação foi de 70%, e de 67% na segunda volta, mas as eleições legislativas de 2003 mobilizaram apenas 56% dos inscritos.

É curioso considerar que ainda na União Soviética, na primeira volta das eleições legislativas e autárquicas efectuada em Março de 1990, enquanto em Moscovo a acorrência às urnas se limitou a 64%, na Ucrânia e na Bielorrúsia votaram cerca de 80% dos eleitores. Ora, a partir do momento em que adquiriu a independência a população destes países parece ter diminuído seriamente o seu interesse pela escolha de representantes. Na Ucrânia, embora nas eleições presidenciais de 1994 a taxa de participação tivesse sido superior a 70%, limitou-se a 66% nas eleições legislativas desse ano, e como além disso o número de votos nulos foi muito grande, mais de cem lugares do parlamento ficaram por preencher. Por seu lado, na Bielorrúsia as eleições legislativas de 1995 foram anuladas porque em mais de metade das circunscrições a taxa de participação foi inferior a 50%; a votação efectuou-se de novo no final do ano, mas só se conseguiram eleger 198 de 260 deputados. E apesar de nas eleições legislativas de 2000 a participação ter sido oficialmente de 60%, os observadores exteriores consideraram que seria inferior, alguns apontando mesmo para 45%.

Se empregarmos o critério da taxa de abstenções chegamos a conclusões bastante diferentes das obtidas mediante critérios ideológicos ou mediante a análise das instituições políticas. A Colômbia, por exemplo, é geralmente apresentada como um país onde se enfrentam um exército de guerrilha, naturalmente autoritário porque pretende impor um regime pela força das armas, e uma sucessão de governos democráticos que emanam do voto popular. Todavia, nas eleições presidenciais de 1990 não participaram cerca de 60% dos eleitores, a maior taxa de abstenção em quarenta anos. Como se isto não fosse suficiente, em Dezembro do mesmo ano, nas eleições para a Assembleia Constituinte, as abstenções subiram para 75%. O interesse pelo voto despertou um pouco nas eleições presidenciais de 1998, com uma participação de 50% na primeira volta e de 59% na segunda volta, mas as eleições legislativas desse ano já só mobilizaram 45% do eleitorado, e 42% as de 2002. Mantendo-se no mesmo nível, a participação foi de 46% nas eleições presidenciais de 2002 e de 45% nas eleições presidenciais de 2006. É difícil, neste contexto, afirmar que a governação da Colômbia assenta em bases democráticas.

No caso da Venezuela chego a conclusões igualmente imprevistas. Apesar da obrigatoriedade de voto, 1/5 dos recenseados não participou na eleição presidencial de 1988, o dobro dos abstencionistas de cinco anos antes. Note-se que, pouco mais tarde, ocorreram enormes e sangrentos motins populares, confirmando que uma parte da população não encontrava possibilidade de expressão nos mecanismos eleitorais. Em 1989, nas primeiras eleições regionais e locais a realizarem-se por sufrágio directo, a abstenção elevou-se a cerca de 80%, e nas eleições autárquicas de 1992 aproximadamente metade do eleitorado absteve-se. As abstenções foram de 40% na eleição presidencial de 1993, o dobro das verificadas na eleição presidencial anterior. É curioso que neste contexto os grandes órgãos de comunicação social acusem o chavismo de antidemocrático, quando o regime precendente assentava numa tão escassa base de legitimidade. Mas é talvez mais curioso ainda considerar que a situação não parece ter-se alterado de maneira estável. É certo que na eleição presidencial de 1998, aquela que colocou Hugo Chávez na chefia do país, a taxa de participação foi de 65%, cinco por cento superior à que se registara na eleição presidencial anterior, mas em 2000 apenas 56% dos recenseados participaram na reeleição do presidente. Entretanto, os dois referendos constitucionais de Abril e de Dezembro de 1999 haviam tido uma participação de 38% e de 45% do eleitorado, respectivamente. O referendo de 2004 mobilizou 70% dos inscritos, mas o interesse pelo voto caiu drasticamente nas eleições legislativas de 2005, quando a participação foi oficialmente de 25%, embora a oposição garanta que os verdadeiros resultados foram inferiores a 20%. Mesmo tendo em conta que nas eleições regionais de 2008 a participação atingiu um nível sem precedentes neste tipo de escrutínio, 65%, e que foi de 70% no referendo constitucional de Fevereiro de 2009, concluímos que o chavismo, apesar de procurar a todo o custo mobilizar as massas e ser plebiscitado nas urnas, não conseguiu ampliar de maneira sistemática e duradoura a base eleitoral da governação.

É certo que em alguns países a participação nos sufrágios é elevada e que por vezes aumenta o interesse pelo voto, mas na maior parte dos casos a abstenção não só é muito grande como ainda tende a elevar-se. No entanto, poderia imaginar-se que os referendos, onde se trata de decidir questões bem definidas e de aplicação prática, atraíssem mais pessoas do que a escolha de representantes, que depois de eleitos esquecem as promessas e fazem o que bem entendem. Mas não é o que se tem passado. Em França a taxa de abstenção situou-se entre 10% e 20% nos referendos de 1958 e 1969, subiu para entre 20% e 30% nos referendos de 1961 e 1962, chegou quase aos 40% em 1972, atingiu 63% no referendo de 1988 e, embora ficasse ligeiramente acima dos 30% no referendo de 1992, no de 2000 chegou quase aos 70%. Na Itália 89% votaram no referendo de 1946 que decidiu a abolição da monarquia, e ainda em 1974 houve 88% do eleitorado a participar no referendo sobre o divórcio. Mas em 1981 já só 79% votaram no referendo sobre o aborto, e a abstenção continuou a aumentar. A taxa de participação no referendo de 1991 foi de 63%, e embora no conjunto de referendos de 1993 se registasse uma participação de 77%, no referendo efectuado em 1999 votaram menos de 50% dos inscritos. No conjunto de sete referendos organizado em 2000 só 32% dos recenseados votaram, o que invalidou o acto, ficando igualmente nulo o referendo de 2005, em que a participação foi de 26%. Aliás, nenhum dos seis referendos realizados na Itália nos dez anos anteriores conseguira atingir a taxa mínima legal de participação. Neste panorama, tem de se considerar como um resultado espectacular a mobilização de 52% do eleitorado num referendo realizado em 2006, a mais elevada em qualquer referendo desde há mais de uma década. Em Portugal, mesmo um tema como o aborto, que polarizou boa parte da opinião pública, interessou menos de metade do eleitorado no referendo de 2007. E na Suíça, um dos modelos da democracia representativa, uma questão tão importante como a da inclusão do país na ONU atraiu só 58% do eleitorado no referendo de 2002.

Perante este panorama, e conhecendo já o cepticismo com que as populações da antiga esfera soviética encaram o voto, não espanta que também aí a participação nos referendos desça a níveis muito baixos. Na Polónia o referendo de 1997 que aprovou a nova constituição contou mais de 50% de abstenções; e na Hungria, no referendo sobre o sistema de eleição presidencial realizado em 1990, a taxa de participação foi inferior a 15%, levando à anulação do acto. Na Eslováquia o referendo de 1994 sobre a luta contra a corrupção na privatização de empresas estatais teve uma participação de 20%, o que obrigou ao seu cancelamento, pois a lei requeria uma participação mínima de 51%, e num referendo efectuado em 1997 a participação foi inferior a 10%. Em comparação com estes resultados, afigura-se como um êxito para os seus proponentes que na Roménia o referendo de 1991 sobre a nova constituição tivesse uma participação de 2/3 do eleitorado e que na Rússia o referendo de 1993 registasse cerca de 36% de abstenções. Até se pode considerar notável o facto de o referendo russo de 1993 sobre a Constituição ter contado com 54% de participantes e de o referendo sérvio de 2006, também acerca da constituição, ter atraído 55% dos inscritos.

O desinteresse com que os potenciais eleitores da União Europeia têm encarado a escolha dos deputados para o Parlamento Europeu manifesta-se igualmente nos referendos relativos às questões europeias. Se na Áustria, o referendo de 1994 sobre a integração na Comunidade Europeia mobilizou 81% dos recenseados, já na Holanda o referendo de 2005 sobre a constituição europeia teve apenas uma participação de 63%, a mesma registada na Lituânia por ocasião do referendo de 2003 acerca da integração do país na União Europeia. Mas na Polónia o referendo de 2003 sobre a integração na União Europeia teve uma taxa de participação de cerca de 59%, enquanto o referendo efectuado sobre o mesmo assunto na República Checa em 2003 atraiu só 55% dos inscritos, 52% no referendo da Eslováquia no mesmo ano e para a mesma finalidade, e 46% no da Hungria. Mesmo o referendo realizado na Irlanda em 2008 para apreciar o tratado de Lisboa, e cujo voto negativo lançou a perplexidade ou até o pânico entre os políticos europeus, contou apenas com uma taxa de participação de 53%.

Tanto quanto conheço, os únicos casos em que os referendos mobilizaram significativamente os votantes foram os relativos à independência dos países das antigas União Soviética e Jugoslávia. Na Lituânia, o referendo realizado em Fevereiro de 1991 pelas autoridades independentistas, contra as ordens de Moscovo, teve uma participação de 85%; e no mês seguinte o referendo organizado na União Soviética sobre a União contou com o voto de 80% dos inscritos, sendo a participação de 75% na República Federativa da Rússia, de 83% na Ucrânia, também de 83% na Bielorrússia e de 75% no Azerbeijão. Na antiga Jugoslávia, o referendo efectuado na Eslovénia acerca da independência em Dezembro de 1990 atraiu 94% do eleitorado, e na Croácia o referendo de Maio de 1991 sobre a independência teve uma participação de 83%.

É interessante considerar que uma percentagem muito significativa de pessoas prefere mostrar a sua descrença pela democracia representativa pura e simplesmente não votando, em vez de eleger os candidatos de extrema-esquerda que se apresentam em plataformas críticas dessa democracia representativa. A desconfiança atinge todos os que participam nos processos eleitorais, quaisquer que sejam as suas ideologias e o teor dos seus discursos. E assim o que vemos por todo o mundo é uma colossal perda de legitimidade das democracias. Basta uma aritmética rudimentar para constatarmos que, com 1/3 de abstencionistas, que é uma percentagem bastante comum, o candidato ou o partido que obtenham metade dos votos conseguirão, afinal, o sufrágio de apenas 1/3 do eleitorado. Mesmo quando o número de abstencionistas se reduz a 1/4, o que pode ser considerado como uma taxa de participação elevada, quem alcance metade dos votos conta apenas com 37,5% de aprovação. Que grandes vitórias! Esta perda de legitimidade das democracias não é certamente alheia ao reforço da fiscalização dos gestos mais comuns do dia-a-dia, através dos meios electrónicos de vigilância. O que tem afinal ocorrido é a transformação gradual das democracias representativas em autoritarismos tecnocráticos, e o crescimento das abstenções é um indício deste processo.

[Ilustrações - três quadros de George Grosz: O Agitador (1928), Eclipse do Sol (1926) e Autómatos da República (1920).]

fonte: http://passapalavra.info/?p=1579
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