África do Sul: protestos urbanos ao rubro (2ª Parte)
O desenvolvimento geográfico desigual está na base da segregação racial e de classe no que respeita às regiões muito urbanizadas. Apesar de a classe trabalhadora ter um acesso mais fácil aos empréstimos hipotecários e a outras formas de crédito ao consumo durante os anos 2000, o processo generalizado de especulação imobiliária amplificou as desigualdades. Por Patrick Bond [*]
2. Sobre-acumulação, financialização e desigualdade social
No começo de 2009, no Fórum Social Mundial, David Harvey (2009) especificou o modo como estes processos de acumulação financeira especulativa interagem com a luta de classes nas cidades:
«Desde 1970 houve 378 crises financeiras no mundo. Entre 1945 e 1970 houve apenas 56 […] O que me sugere que metade das crises financeiras dos últimos 30 anos decorrem da propriedade urbana […] Desde 1970, cada vez mais dinheiro se deslocou para activos financeiros e, quando a classe capitalista começa a comprar activos, o valor desses activos aumenta. Assim, começam a obter lucros com a subida do valor dos seus activos. E assim os preços das propriedades sobem e não param de subir […] Assim, um número cada vez maior de pessoas de baixos rendimentos foi arrastado para o mundo das dívidas. Mas acontece que, de há cerca de dois anos para cá, os preços das propriedades começaram a baixar. Cresceu demasiado o fosso entre, por um lado, aquilo que as famílias de trabalhadores podem pagar e, por outro, o montante das suas dívidas. E, de repente, ocorreu uma vaga de execuções hipotecárias em muitas cidades estadunidenses. Porém, como geralmente acontece nestas situações, essa vaga propaga-se desigualmente conforme as regiões».
“Sobre-acumulação de capital” a uma escala global, eis o que está por detrás da recente crise, que se seguiu de perto a um período de 35 anos de estagnação do capitalismo mundial, de enorme volatilidade financeira e de concorrência mortífera, que teve impactos desastrosos (Foster e Magdoff 2009). A enorme bolha dos bens primários – petróleo, minérios, cereais, terras – não deixou ver até que ponto muitos países, como a África do Sul, estavam em risco. Com efeito, nos primeiros anos da década de 2000 alimentou-se a esperança de que as crises monetárias dos mercados emergentes ocorridas no final dos anos 1990 podiam ser ultrapassadas no contexto do próprio sistema. Além disso, mesmo antes do boom das matérias-primas, em 2001 a taxa de lucro do grande capital sul-africano recuperou do declínio sofrido nos anos 1970 a 1990, tornando-se a nona mais alta de entre as maiores economias mundiais (muito acima dos EUA e da China), segundo um estudo do governo britânico (Citron e Walton 2002).
O desenvolvimento geográfico desigual está na base da segregação racial e de classe no ambiente muitíssimo urbanizado da África do Sul. Apesar de durante os anos 2000 a classe trabalhadora ter tido um acesso mais fácil aos empréstimos hipotecários e a outras formas de crédito ao consumo, o processo demasiado intenso de especulação imobiliária amplificou as desigualdades. Nos Estados Unidos, dois conceituados economistas das correntes ideologicamente dominantes, George Akerlof e Ribert Shiller (2009) disseram precisamente isso, embora vendo a origem da crise nas deformações psicológicas dos investidores individuais (e não, como faz Harvey, na sobre-acumulação de capital):
«Os casos [de especulação financeira] – em particular a recente crise das hipotecas imobiliárias – são provocados pelo que John Maynard Keynes chamava o instinto animal [animal spirits], um optimismo ingénuo que é um misto de confiança excessiva, corrupção, boataria e ilusão monetária (outro conceito keynesiano, aplicado às noções distorcidas pelo valor nominal do dinheiro em vez do seu poder de compra). Nos fim dos anos 1990 e começo dos anos 2000, por uma ou outra razão, a ideia de que as casas e os apartamentos eram investimentos espectaculares passou a dominar a imaginação pública nos Estados Unidos e em muitos outros países também […] Já anteriormente sucedera que os preços das casas tivessem caído. Por exemplo, entre 1991 e 2006 os preços dos terrenos caíram 68% em termos reais nas principais cidades japonesas. Mas os investidores não queriam prestar atenção a estes casos […] Para constatar o efeito dos empréstimos hipotecários subprime [de elevado risco, não garantidos] no grande crescimento dos negócios imobiliários dos anos 2000, basta verificar que o valor das casas baratas subiu mais depressa do que o das casas caras. E quando, em 2006, os preços caíram, os preços das casas baratas foram os que caíram mais depressa».
A versão sul-africana deste processo ainda não terminou, porque, após o o pico que constituiu, no fim de 2004, a subida anual de 30% no índice de referência dos preços do imobiliário (Amalgamated Banks of South Africa 2009), cinco anos depois, ao longo de 2009, continuavam a observar-se descidas do preço médio anual das casas superiores a 10% por mês (os dados disponíveis são insuficientes para avaliar a diversificação social das consequências de uma crise do imobiliário que não pára de se agravar).
Para além disto, embora o declínio da arrecadação de impostos sobre empresas tivesse levado a um défice orçamental quase-recorde de 7,6% do Produto Interno Bruto previsto para 2009 e mais de 7% para 2010, a África do Sul não seguiu uma estratégia keynesiana clássica. O Estado limitou-se a dar seguimento a grandes projectos de construção já firmados anteriormente. O aumento previsto da despesa pública, baseado em promessas do partido no poder – em particular no que toca à criação de empregos (500.000 novos empregos foram prometidos, mas de facto, assistiu-se em 2009 à perda de um milhão de empregos) e à implementação de um Seguro Nacional de Saúde –, foi diferido pelo novo ministro das Finanças, Pravin Gordhan (2009), no seu discurso inaugural de Outubro de 2009 e na sua continuação de Fevereiro de 2010.
A realidade, afinal, era que os elevados lucros das empresas não eram anunciadores de um desenvolvimento económico sustentado da África do Sul, em resultado de contradições persistentes e profundamente enraizadas (Bond 2009, Republic of South Africa Department of Trade and Industry 2009, Legassick 2009, Loewald 2009):
• quanto à estabilidade, o valor do rand de facto caíu (referenciado a um cabaz de divisas comerciais) mais de 15% em termos reais em 1996, 1998, 2001, 2006 e 2008, o pior resultado em todas as economias importantes, o que, por seu lado, mostra o quanto a África do Sul se tornou vulnerável aos mercados financeiros internacionais por ter persistido, a partir de 1995, na liberalização do controlo cambial (houve 26 liberalizações de controlo cambial distintas);
• o Produto Interno Bruto da África do Sul cresceu durante os anos 2000, mas isto não leva em conta o esgotamento de recursos naturais não renováveis – se este factor, acrescido pela poluição, fosse considerado, a África do Sul teria uma taxa líquida de crescimento de riqueza por pessoa inferior a zero (pelo menos US$2 por ano), segundo o próprio Banco Mundial (World Bank 2006, 66);
• a economia da África do Sul tornou-se muito mais orientada para a obtenção de lucros nos mercados financeiros do que para a produção de produtos materiais, em parte devido às altíssimas taxas de juro reais;
• entre os sectores importantes, os que tiveram mais êxito no período 1994-2004 foram as comunicações (12,2% de crescimento anual) e o sector financeiro (7,6%), enquanto sectores de mão-de-obra intensiva como o têxtil, o calçado e as minas de ouro decresceram entre 1% e 5% por ano e, no conjunto, a parte da indústria manufactureira no Produto Interno Bruto também diminuiu;
• o coeficiente Gini, que mede as desigualdades, subiu durante o período pós-apartheid; o Institute for Democracy in South Africa (2009, citando a Statistics South Africa) calculou uma subida de 0,56 em 1995 para 0,73 em 2006, enquanto Bhorat, van der Westhuizen e Jacobs (2009, 80) calcularam uma subida de 0,64 para 0,69, e a SA Presidency (2008, 96) indicou uma subida de 0,67 para 0,70 mais ou menos no mesmo intervalo de tempo;
• as famílias negras perderam 1,8% do seu rendimento entre 1995 e 2005, enquanto as famílias brancas ganharam 40,5% (Bhorat et al. 2009 8);
• o desemprego duplicou, atingindo no seu pico uma taxa próxima dos 40% (se se considerarem os que já desistiram de procurar emprego, de contrário seriam 25%) – mas os números oficiais subestimam o problema, porque a definição oficial de emprego inclui ocupações como “pedinte”, “caçador de animais selvagens para sustento próprio” e “cultivador de alimentos para sustento próprio”;
• acima de tudo, continua a “greve de capitais” – as empresas de grande porte furtam-se a investir –, pois a criação bruta de capital fixo oscilou entre os 15 e os 17% entre 1994 e 2004, o que mal chega para compensar o desgaste dos equipamentos;
• é certo que as empresas investiram os lucros obtidos na África do Sul, mas fizeram-no na maior parte fora do país: a partir da liberalização política e económica, a maior parte das empresas cotadas na Bolsa de Joanesburgo – Anglo American, DeBeers, Old Mutual, Investec, SA Breweries, Liberty Life, Gencor (que agora constitui o núcleo da BHP Billiton), Didata, Mondi e outras – reorientaram os seus fluxos de investimento e mesmo as suas carteiras de títulos primários para mercados bolsistas no estrangeiro, sobretudo em 2000-2001;
• a drenagem de lucros e dividendos provocada por estas empresas é uma das duas razões principais para o actual défice orçamental da África do Sul ter disparado, sendo um dos mais elevados do mundo (em meados de 2008 só era ultrapassado pelo da Nova Zelândia), e por isso representa um grande perigo em caso de instabilidade cambial, como aconteceu na Tailândia (cerca de 5%) em meados de 1997;
• a outra causa do actual défice orçamental sul-africano é uma balança de pagamentos negativa durante a maior parte desse mesmo período, o que pode se assacado ao enorme fluxo de importações que se seguiu à liberalização do comércio, que o crescimento das exportações ficou longe de compensar;
• outra razão da greve de capitais é o problema da persistente sobreprodução da indústria sdul-africana, altamente monopolizada, uma vez que a utilização da capacidade manufactureira caíu substancialmente entre os anos 1970 e o início dos anos 2000; e
• os lucros das empresas evitaram o reinvestimento em instalações, equipamentos e oficinas, preferindo ir à procura de benefícios no mercado imobiliário especulativo e na Bolsa de Joanesburgo: o preço das acções subiu 50% na primeira metade dos anos 2000 e ocorreu um boom imobiliário sem precedentes.
[*] Patrick Bond dirige o Center for Civil Society http://www.ukzn.ac.za/ccs/ na Universidade de KwaZulu-Natal em Durban e é activista de movimentos da comunidade, do ambiente e do trabalho.
Artigo inédito em inglês, tradução do Passa Palavra.
Referências
Akerlof, G. e R. Shiller (2009) How did this happen? How ‘animal spirits’ wrecked the housing market. The Chronicle, 17 Abril, http://chronicle.com/weekly/v55/i32/32b00601.htm
Amalgamated Banks of South Africa (2009) Housing price index. Johannesburg.
Bhorat, C. van der Westhuizen e T. Jacobs (2009), Income and non-income inequality in post-apartheid South Africa.’ Development Policy Research Unit Working Paper 09/138, Agosto.
Bond, P. (2009), In ‘power’ in Pretoria. New Left Review, 58, 77-88.
Citron, L. e R.Walton (2002) International comparisons of company profitability. Bank of England, London, http://www.statistics.gov.uk/articles/economic_trends/ET587_Walton.pdf
Foster, J.B. e F. Magdoff (2009) The great crash. New York: Monthly Review Press.
Harvey, D. (2009) Opening speech at the Urban Reform Tent. World Social Forum, Belem, 29 January.
Institute for Democracy in South Africa (2009) Poverty and inequality in South Africa. Powerpoint presentation, Cape Town.
Legassick, M. (2009) Notes on the South African economic crisis. Cape Town. http://www.amandla.org.za/
Loewald, C. (2009) A view of the South African economy in the global crisis, Pretoria, National Treasury.
Republic of South Africa (2008) Towards a 15-year review. Office of the Presidency, Pretoria.
Republic of South Africa Department of Trade and Industry (2009) 2009-2012 Medium term strategic framework, Pretoria.
World Bank (2006) Where is the wealth of nations? Washington, DC.
A imagem de destaque é de JRMora e foi tirada do seu site.
http://passapalavra.info/?p=22992
(c) Copyleft: É livre a reprodução para fins não comerciais, desde que o autor e a fonte sejam citados e esta nota seja incluída.
Nenhum comentário:
Postar um comentário