Universidades: burocratização, mercantilização e mediocridade (1ª Parte)
No Brasil e em todo o mundo, as universidades vão-se adaptando às necessidades do capitalismo que as sustenta. Burocratizaçao e mercantilização condicionam a sua vocação de crítica e de criação de novos conhecimentos. Por Marcelo Lopes de Souza [*]
A finalidade deste artigo é convidar à reflexão em torno do avanço da burocratização e da mediocridade no universo acadêmico. Burocratização e mediocridade essas que, no fundo, constituem realidades complementares e interdependentes, as quais produzem, como resultado, mais burocratização e mais mediocridade, em uma espiral ascendente em cujo contexto a dimensão qualitativa subjacente à ideia normativa da universidade como locus, entre outras coisas, de produção de conhecimento novo, é cada vez mais subjugada e engolida pela realidade da “lógica” burocrática. O resultado é, nos planos formal e informal, cada vez mais uma “caquistocracia” acadêmica, ou seja, um “governo dos piores” no interior das universidades.
Não se está a falar apenas do Brasil. O problema em questão não é exclusividade de nenhum país e de nenhum campo do conhecimento (“disciplinas” ou “campos interdisciplinares”). A burocratização do mundo universitário, atravessada e agravada por processos como a galopante mercantilização do saber acadêmico e as diversas formas e modalidades de “privatização” das universidades (que vão desde a pressão para o financiamento privado das pesquisas até a venda de serviços de consultoria e cursos para o universo empresarial como estratégia de complementação salarial), é algo observável em escala mundial. Entretanto, diferentes países e campos do conhecimento sofrem essa experiência de maneiras e com intensidades distintas.
Parece evidente que diversas características do capitalismo contemporâneo (de)formam o ambiente universitário, cada vez mais, de modo a transformar alunos e orientandos em “clientes”; docentes e pesquisadores em “prestadores de serviços intelectuais”; e o conhecimento gerado e transmitido em “produtos”, cuja medida de valor deve ser estabelecida pelo e por meio do mercado. É o mundo da mercadoria corrompendo e modelando o quotidiano dos ambientes de geração de saber que, por muito tempo, e não inteiramente sem razão, puderam ser considerados, mesmo por intelectuais críticos, como espaços criativos e de inovação, ainda que via de regra elitizados e altamente hierárquicos.
Não se deseja, com isso, parecer simplista, mas somente chamar a atenção para o fato de que juízos puramente morais não fornecem um padrão explicativo inteiramente válido do quadro que temos diante de nós. É seguro que isso não autoriza um enfoque “economicista”, o qual negligencie que um fator poderoso (e que não é simplesmente derivável de determinações econômicas) são as mudanças no plano simbólico-cultural, com o enfraquecimento de determinados valores e “freios morais” – fator esse que, no Brasil, tem sido farta e constantemente alimentado pelos “maus exemplos” dados por tantos e tantos agentes públicos, detentores de postos de mando no aparelho de Estado. Apenas sugere-se, com base na percepção de condicionantes dessa magnitude, que sermões e apelos à moralidade e aos brios constituem terapia insuficiente e, no limite, ingênua e tola (mas, do ângulo sistêmico, uma astuciosa e conveniente manobra diversionista).
Ocorre que, devido a tradições mais solidamente estabelecidas e a exigências e padrões de julgamento qualitativo do conhecimento mais bem assentados, em alguns países (geralmente os países centrais) a burocratização e a mercantilização não chegam a produzir como resultado uma mediocridade acachapante. É bem verdade que também neles, sem dúvida, o “produtivismo”, que é a concretização da máxima publish or perish (= publique ou pereça) levada ao paroxismo, cada vez mais gera uma quantidade de “produtos” (livros, artigos etc.) desproporcionalmente grande em comparação com a qualidade intelectual daí decorrente ou aí embutida. Entretanto, uma vez que o exemplo mais evidente de “produtivismo” científico no mundo de hoje, o ambiente acadêmico anglo-americano, possui a vantagem de uma incrível “economia de escala”, ali, “no atacado” [por grosso], o problema acaba tendo menor gravidade, valendo em parte o princípio de que “a quantidade gera qualidade”. Além disso, uma mescla de tradições e excelência gestorial (em sentido capitalista, precisamente) faz com que, apesar dos muitos (e crescentemente predominantes) “produtos intelectuais descartáveis” gerados nesse ambiente, parcela expressiva do que aí se faz tenha, de fato, ao menos algum mérito em matéria de inovação ou reflexão. Mesmo que essa qualidade engendrada em meio ao gigantesco aparato burocrático-capitalista de produção de “produtos de conhecimento” (publicações, congressos, periódicos, etc.) do mundo anglo-saxônico seja parcialmente ilusória ou muito discutível – e não só pela desproporção em relação à quantidade mas, também, intrinsecamente, enquanto inovação muitas vezes mais aparente que real, mais superficial que profunda –, o fato é que ela não é apenas ou inteiramente ilusória. A proliferação de cursos de MBA ditos de “altíssimo nível” (leia-se, em sentido capitalista: capazes de duplicar ou triplicar os salários dos portadores dos respectivos diplomas) ou a quantidade de ganhadores do Prêmio Nobel de que uma universidade pode gabar-se ter em seus quadros são critérios político-filosoficamente e eticamente muito contestáveis, é certo, quando a perspectiva é a de uma crítica da sociedade existente; no entanto, de um ponto de vista que é, precisamente, o do capitalismo e seus valores (da competição ao “desenvolvimento econômico”), muitas universidades norte-americanas e inglesas são espaços privilegiados de produção de “conhecimento útil”, isto é, com “valor de mercado”.
Em resumo, no contexto da rarefação político-intelectual do mundo contemporâneo (e que se reflete na usual falta de densidade das ciências sociais e da Filosofia), pode-se e deve-se, sem sombra de dúvida, questionar a originalidade e a profundidade da maior parte do que se publica mesmo nos melhores periódicos “internacionais” (que são, na verdade, em primeiríssimo lugar, periódicos em língua inglesa e editados por editoras norte-americanas ou inglesas, com tudo o que isso implica em matéria de vieses etnocêntricos). Todavia, ao mesmo tempo, há de se conceder que existe, no mínimo, uma substancial diferença de grau entre um ambiente universitário que produz predominantemente ideias conformistas ou não-arrojadas e um outro quase completamente estéril, que cada vez menos produz qualquer ideia original que seja. No Brasil, em que as universidades públicas são solapadas a partir de fora (deterioração ou estagnação em patamares baixos da remuneração de docentes e funcionários, obsolescência e degradação de equipamentos e infraestrutura, ausência de planos de carreira consistentes, falta de uma verdadeira autonomia universitária) e a partir de dentro (corporativismos, tradições “oligárquicas” incompatíveis com uma apreciação minimamente adequada de critérios de merecimento intelectual), a presença cada vez maior do conformismo e da falta de verdadeira originalidade chega quase a ser eclipsada pelo problema ainda mais grave que é a acelerada erosão da capacidade de produzir ideias consistentes, sejam elas conservadoras ou anticonservadoras. (Uma ressalva sobre o “a partir de fora” e o “a partir de dentro”: eles se acham, indiscutivelmente, entrelaçados, com aquilo que é exógeno condicionando e reforçando aquilo que é ou parece endógeno – e às vezes também vice-versa. Sem contar o fato de que, no plano individual e do grupo, comportamentos são afetados pelo meio social geral do capitalismo fin-de-siècle – estribado no consumismo desenfreado e na extremada competitividade interindividual e, por conseguinte, crescentemente indutor de alienação, despolitização e atitudes oportunistas.)
Os efeitos conjugados da burocratização e da mercantilização sobre o nível e a densidade intelectuais também variam bastante de acordo com a área do conhecimento a que estejamos nos referindo. Para as ciências naturais e as áreas tecnológicas, adaptar-se a esse quadro parece ser algo bem menos doloroso que para as ciências humanas e sociais. (A despeito dos altos graus de exploração e submissão individuais dos cientistas, em especial dos jovens pesquisadores mormente em uma época de “[hiper]precarização do mundo do trabalho”). Uma razão é o próprio padrão de financiamento: recursos são abundantemente direcionados para os campos capazes de gerar conhecimentos diretamente aplicáveis e úteis do ponto de vista da produção de novos produtos (processos produtivos, armamentos, artigos de consumo, etc.), e é óbvio que não se vai esperar que, mesmo remotamente, a mesma magnitude de suporte flanqueie a produção de conhecimentos referentes, muitas vezes, à crítica do sistema.
Não que o sistema não financie seus críticos, eventualmente tirando um razoável e multifacetado proveito disso; contudo, trata-se de uma prioridade concernente a outra ordem de grandeza. Para especialistas em engenharia genética, telemática ou química fina, cujos salários são excelentes, cujos laboratórios são moderníssimos, cujos alunos são comumente motivados (a começar pelas perspectivas de altos salários e “reconhecimento social”…) e para os quais, enfim, os recursos não são escassos (o que, evidentemente, varia bastante de país para país), muitas vezes pouco ou nada importa de onde vem o dinheiro para os projetos e que convênios ou acordos são necessários para obtê-lo. Não apenas por isso, mas também pelo fato de que, em meio à burocratização e à mercantilização ascendentes, são justamente os critérios e padrões de julgamento do valor acadêmico típicos das ciências naturais e das engenharias (mais facilmente amalgamáveis com o critério-base, de um ponto de vista capitalista, que é a perspectiva de um valor de troca significativo para o conhecimento gerado) que são tomados como modelares e impostos às ciências humanas e sociais para fins de avaliação de desempenho (e decidir sobre que projetos, candidatos a bolsistas, periódicos, programas de graduação e pós-graduação, etc., etc. apoiar), que os campos voltados para a geração de conhecimento reflexivo e crítico sobre a própria sociedade tendem a perder cada vez mais prestígio e relevância. E, em parte por isso, tendem, também, no longo prazo, a reproduzir de maneira ampliada a mediocridade e a irrelevância – a despeito da presença de algumas ilhas de excelência e resistência. Pesquisadores deficientemente formados serão mais cedo ou mais tarde responsáveis, enquanto docentes e orientadores de graduação e pós-graduação, pela formação de novos pesquisadores, os quais apresentarão, geralmente, deficiências ainda maiores do que eles, analogamente à perda de definição e qualidade ao comparar-se uma cópia xerox com o original, a cópia da cópia com a cópia, a cópia da cópia da cópia com a cópia da cópia, e por aí vai…
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Diversas “espécies” constituem, em qualquer país e relativamente a qualquer campo do conhecimento, a “fauna acadêmica” que povoa as universidades. Várias dessas “espécies” são, por circunstâncias históricas, úteis, e não somente uma. Mas é justamente uma delas, e aquela que mais diretamente contribui para que as universidades sejam e se mantenham como ambientes produtores de inovação, que se acha, atualmente, muitas vezes acuada ou mesmo em processo de encolhimento, em especial nas ciências humanas e sociais (tendência que, no Brasil de hoje, tem comparecido de maneira superlativa): aquela que denominarei de os “inovadores”, que são os pesquisadores verdadeiramente criativos. Os verdadeiros intelectuais, e muito particularmente os intelectuais críticos (ou seja, que refletem criticamente sobre a sociedade e não se furtam a assumir posições publicamente), são um subconjunto dos “inovadores”.
Quanto às outras “espécies”, não tentarei nomeá-las todas. Buscarei identificar sistematicamente, a seguir, apenas aquelas “espécies” da nossa “fauna acadêmica” que, para os fins da presente exposição, são especialmente relevantes.
Os “disseminadores” são aqueles que, geralmente, não primam por gerar ideias novas, restringindo-se a, com maior ou menor competência, manejar, interpretar e repercutir o pensamento de outrem. Conquanto não sejam pesquisadores destacados, podem ser, eventualmente, excelentes professores, inspirados e inspiradores, prestando importante contribuição para a formação de novos pesquisadores e de novos profissionais em geral. Lamentavelmente, nos dias que correm, a tendência não parece ser a da ampliação do número desses “disseminadores” realmente inspirados e inspiradores, mas sim a hipertrofia do grupo daqueles que muito pobremente (e, cada vez mais, até mesmo plagiariamente) administram e reproduzem ideias alheias. São, em analogia com os corretores de imóveis, “corretores de ideias”. De qualquer forma, em meio às “mudanças ambientais” em curso, a espécie dos “disseminadores” se encontra, enquanto tal, menos ameaçada (e são provavelmente mais adaptáveis) que os “inovadores”.
Os “burocratas” são uma espécie particularmente em ascensão. Sua expertise básica não é a da geração de conhecimento novo, e muito menos de conhecimento socialmente crítico, nem tampouco a da disseminação competente do conhecimento científico disponível. Sua expertise básica refere-se ao domínio dos jogos de poder concernentes ao interior da máquina burocrático-acadêmica e às relações dessa máquina com o seu entorno (governos, agências de fomento, etc.). A linguagem dos “burocratas” é a do poder, e sua especialidade é conquistar, manter, traficar e barganhar influência. (Sem contar, obviamente, as formas semilegais ou mesmo ilegais de obter dinheiro utilizando-se da infraestrutura de instituições teoricamente públicas. “Teoricamente”, esclareça-se, porque universidades largamente elitistas e elitizadas jamais podem ser, a rigor, consideradas sem ressalvas como públicas, já que o acesso é tão restrito.) Os “burocratas” são, enfim, especialistas na reprodução (ampliada) do fisiologismo que se difunde a passos largos no capitalismo fin-de-siècle, sobretudo em sua (semi)periferia.
Os “(micro)empresários” são outra espécie em ascensão, ao menos em algumas áreas de conhecimento. Por convicção ou conveniência, para eles a universidade pública é um ambiente decrépito em meio ao qual, para sobreviver, é necessário introduzir formas e parâmetros “gerenciais” que mimetizem aqueles das empresas privadas. Entretanto, os arremedos de “parcerias público-privadas” por eles patrocinados costumam ser, analogamente às “parcerias público-privadas” do ambiente exterior à universidade, relacionamentos assimétricos, em que o “público” entra com o grosso dos custos e o “privado” absorve os maiores benefícios. Assim é que bolsas de estudo e de pesquisa (de iniciação científica, de mestrado e doutorado, etc.) e uma infraestrutura (espaço construído e utilizável, energia elétrica, equipamentos, etc.) financiadas pelos contribuintes pagadores de impostos são colocadas, mais e mais, a serviço de trabalhos privados de consultoria e projetos elaborados por encomenda de firmas privadas ou órgãos estatais – não raro em detrimento da dedicação à atividade docente e mesmo à atividade de pesquisa em sentido forte.
Os “caciques”, por fim, são aqueles que exercem um papel de liderança política. São os “medalhões”, aqueles em torno dos quais formam-se menos ou mais numerosos grupos de admiradores, seguidores e “disseminadores”. Dominam o idioma do poder, mas o utilizam de maneira não necessariamente semelhante à dos “burocratas”: enquanto que o típico “simples burocrata” pouco ou nada brilha, muitas vezes permanecendo todo ou quase todo o tempo na obscuridade, o “cacique”, que é uma figura de renome, empolga e arrebata plateias, influencia os debates e o tratamento de questões institucionais em sua área. Ou, pelo menos, costumava ser assim, já que, cada vez mais, testemunhamos a ação de “caciques” de reduzido talento oratório e pouca vocação para escrever e publicar coisas realmente importantes, mas que, em contrapartida, se mostram hábeis em agenciar o trabalho alheio (na base da superexploração de orientandos, por exemplo), assimilando alguns dos piores cacoetes de “burocratas” e “(micro)empresários”. Este assunto será retomado um pouco mais à frente.
As metáforas ecológicas acima empregadas (“fauna”, “espécies”, “mudanças ambientais”) foram escolhidas por permitirem a construção de uma imagem forte: a do risco de “extinção” ou, menos dramaticamente, de redução drástica da “população” de pesquisadores orientados e motivados para inovar e criar, para desafiar o conhecimento herdado. Utilizadas com o propósito de facilitar a comunicação (que é o propósito, aliás, de toda metáfora), essas metáforas merecem, a esta altura, um reparo crucial. Diferentemente de espécies biológicas, as “espécies” de que ora se trata constituem não tipos exclusivos, mas, isso sim, características básicas. Não necessariamente um indivíduo acadêmico concreto é apenas um “burocrata” ou um “inovador”; na esmagadora maioria dos casos de indivíduos acadêmicos concretos, diferentes características básicas se combinam – até mesmo porque cada um é obrigado ou encorajado a desenvolver, minimamente que seja, um certo conjunto variado de habilidades: saber pesquisar, saber ministrar boas aulas, saber lidar com a burocracia de seus próprios projetos de pesquisa (e, eventualmente, exercer, ainda que sem apetite para tal, cargos administrativos), e por aí vai. Por conseguinte, o que faz um indivíduo pertencer a uma determinada “espécie acadêmica” não é o fato de ele apresentar as características dessa “espécie” de modo exclusivo, mas sim de modo predominante e distintivo.
[*] Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Ilustrações: gravuras de Goya.
fonte: http://passapalavra.info/?p=23461