sexta-feira, 30 de abril de 2010

Social-democracia e progressismo

Social-democracia e progressismo

Os processos que acontecem no Cone Sul da América Latina costumam ser considerados, por uns quantos analistas, em sintonia com as experiências das social-democracias europeias. Apesar disso, apresentam particularidades que impedem o uso de conceitos nascidos em outros tempos para compreender outras realidades, toda a vez que os assim chamados governos progressistas respondem a processos originais num momento muito particular do capitalismo global. Por Raul Zibechi. Tradução: Passa Palavra

Depois da Segunda Guerra Mundial se generalizou, em boa parte da Europa ocidental, um modelo que implicou numa clara ruptura com relação às social-democracias das primeiras décadas do século XX, inclusive aquelas que foram catalogadas como reformistas pelos revolucionários da Terceira Internacional. Assim, os novos partidos social-democratas controlavam os grandes sindicatos, através dos quais monopolizaram a representação do mundo do trabalho. Em segundo lugar, aceitaram sem reclamações a economia de mercado e estabeleceram compromissos com as burguesias que se plasmaram no Estado de bem-estar, que beneficiava as classes que, no pré-guerra, haviam lutado entre si pela hegemonia da sociedade. Por último, um vasto aparato de controle partidário assegurava o cumprimento dos pactos sociais, correspondendo à social-democracia o controle do trabalho nas fábricas através de uma vasta burocracia partidária e sindical.

phpj7sxps-300xNa América Latina, o mais próximo a este modelo foram o varguismo no Brasil e o peronismo na Argentina, que se apoiaram, além disso, na criação de grandes empresas estatais que jogaram um papel destacado no projeto desenvolvimentista. Estes processos, tal como nas social-democracias europeias, estiveram estreitamente ligados à potência da classe trabalhadora organizada nos sindicatos, onde a base tinha certa margem de manobra com a qual as burocracias estatais e sindicais deveriam contar, sob risco de verem-se suplantadas desde baixo. Os trabalhadores tinham direitos que não estavam em questão, e a maior parte dos de baixo se referenciavam nestes direitos seja para defendê-los, seja para conquistá-los quando ainda não haviam sido reconhecidos.

O progressismo sul-americano tem uma genealogia completamente diferente. É, em todos os sentidos, filho do neoliberalismo, ou seja, do selo do capital financeiro e do enorme poder das empresas multinacionais que hoje nenhum Estado tem capacidade de controlar. As diferenças entre ambos os projetos não são menores. A cúpula do poder é compartilhada por um Estado diminuído, incapaz de dirigir a sociedade, e capitais poderosos, nos quais têm um peso considerável os fundos de pensão, co-administrados por ex-dirigentes das centrais sindicais. Isto faz com que hoje os estados apoiem os processos de concentração e centralização do capital, que busca, assim, competir em melhores condições no mercado global. É o que está fazendo o governo Lula, apoiando fusões e criando as condições para que as empresas brasileiras se convertam em grandes multinacionais.

Em segundo lugar, os progressistas já não falam de direitos universais, senão de “inclusão” e “cidadania”, que pretendem construir com base em transferências monetárias que são, na realidade, novas formas de clientelismo. Como renunciaram a qualquer reforma estrutural, que creem espantar os investidores, limitam-se a mitigar a miséria das maiorias com migalhas que não incomodam nem dificultam a acumulação e a expropriação dos bens comuns que realiza diariamente o modelo extrativista. Em terceiro lugar, como não estamos diante de um modelo produtivo, mas sim especulativo, financeiro-extrativista, não pode haver nem direitos, nem Estado social, senão uma crescente marginalização dos de baixo, que se resolve com assistencialismo e militarização dos bairros periféricos pobres.

Em resumo: aprofundamento do capitalismo, desorganização crescente da sociedade, domesticação da maior parte dos movimentos e repressão para os obstinados. Isto se completa com uma nova associação entre capital e Estado, convertido num tipo de “central de inteligência” que orienta a centralização e verticalização do capital, segundo a feliz expressão do sociólogo brasileiro e fundador do Partido dos Trabalhadores, Luiz Werneck Vianna (IHU Online, 21 de março). Pelo que conheço, é no Brasil onde se está debatendo com maior intensidade o desvio do progressismo, talvez porque o novo imperialismo brasileiro comandado por Lula foi um golpe político inesperado para a geração de fundadores do PT.

Luiz Marinho (ex-presidente da CUT) qaundo era ministro do  Trabalho

Luiz Marinho (ex-presidente da CUT) qaundo era ministro do Trabalho

De mãos dadas com os governos progressistas, e à sombra da futura quinta potência global, está nascendo um novo modelo de sociedade, diferente do que conhecíamos até agora, como é diferente o modelo chinês. O sociólogo Francisco de Oliveira, também fundador do PT, define este modelo como uma base muito ampla de pobres e, acima, uma classe formada no processo de concentração e centralização do capital (IHU Online, 22 de março); que não são, a rigor, os clássicos burgueses, ou seja, que não são somente os proprietários dos meios de produção, mas também uma ampla camada de administradores, muitos deles provenientes da esquerda e dos sindicatos. Esta é uma das novidades. A segunda é que os pobres têm agora acesso ao consumo: telefones celulares, roupa de baixa qualidade, motos e às vezes até carros comprados em prestações.

Mas o poder do trabalho é cada vez menor, diferentemente do que sucedia com a social-democracia, que, bem ou mal, buscava evitar uma deterioração do poder de seus representados para manter o seu próprio. Quando o Estado foi cooptado pelo capital centralizado e os movimentos foram convertidos em meras organizações, decalque e cópia das ONGs, relançar a luta social não será tarefa simples. Entre outras razões, porque o progressismo e seus intelectuais buscam erradicar o espírito crítico, a criatividade coletiva e o desejo de confrontação que caracteriza cada ciclo de lutas.


fonte: http://passapalavra.info/?p=22776

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