Crise e oportunismo: o internacionalismo anticapitalista em tempos de Fórum Social Mundial (7)
Num balanço final, o FSM revela-se um freio às lutas sociais - mas, ao mesmo tempo, um poderoso instrumento de mobilização a ser aproveitado. Por Manolo.
As avaliações dos dez anos de Fórum Social Mundial, geralmente de caráter conjuntural e ligadas a estratégias políticas de qualquer dos campos geopolíticos descritos até o momento, oscilam entre a continuidade de seu modelo, com poucas alterações, e sua transformação em algo como uma “nova Internacional” – ou seja, num espaço de articulação internacional de onde sairiam propostas de ação, programas etc.
De um lado, a recorrente responsabilização das ONGs por problemas sobre os quais dificilmente teriam alguma influência[1] ou – em versão atualizada do velho chavão da “traição das direções” – a acusação de haver hegemonizado a coordenação do Fórum e dificultado a livre atuação dos movimentos sociais[2]; a oposição entre uma visão “particularista autonomista” destas mesmas ONGs e “outra totalizante e mais contextualizada, própria das organizações políticas”[3]; a defesa da criação imediata de novos instrumentos “para determinar prioridades em termos de demandas, objetivos”, “um calendário comum de ação, um elemento de estratégia comum”, mesmo em paralelo ao FSM[4]; e, de forma mais moderada, a análise do surgimento de um “pós-altermundismo”, no qual governos que implementam programas contrários ao neoliberalismo – tais como os de Evo Morales (Bolívia), Rafael Correa (Equador) e Hugo Chávez (Venezuela) – teriam colocado o movimento “altermundista” “contra o muro” e o levado a buscar “novos espaços e formas de articulação entre movimentos sociais, forças políticas e governos conduzindo combates comuns”[5]. De outro, uma defesa da renovação do atual modelo do Fórum com base na proliferação de edições locais, temáticas, nacionais e regionais, para capilarizá-lo; na renovação de seus alvos – do neoliberalismo para a mudança climática; e no ressurgimento do ativismo “altermundialista” visto na Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas, realizada em Copenhague em dezembro de 2009 e marcada pela retomada das “ações globais”[6].
Qualquer dos dois campos corresponde aos interesses de certos tipos de burocrata, em diversos níveis: desde os intelectuais do jet-set da esquerda internacional ainda presos ao “estatocentrismo” político característico da herança bolchevique até os funcionários de carreira de qualquer ONG internacional; desde o jovem que modela sua militância em função de algum dos governos “populares” mundo afora – com seus correspondentes projetos de poder, que não têm resultado em outra coisa além do aprofundamento, a partir da esquerda, das novas formas de governança difusa que “representam um ataque em profundidade aos espaços de autonomia conquistados pelos movimentos”[7] – até o jovem militante que, para sustentar determinado nível de vida sem se deixar explorar numa empresa qualquer, cria algum “projeto” em “sinergia” com algum “parceiro” que “aporta recursos” para promover a “cidadania ativa” e a “defesa e promoção dos direitos”, tendo como “desafio” a “incorporação da cidadania”[8].
Esta dicotomia, além de falsa, é pouco oportuna. O Fórum Social Mundial se encontra no meio da disputa geopolítica analisada na parte anterior deste ensaio. Se relermos a história da criação do FSM segundo este quadro analítico, as coisas mudam de figura. Diante do crescimento das lutas anticapitalistas internacionais e do esboço do surgimento de um sujeito político internacional que já não era apenas classe trabalhadora[9], capaz de inserir no quadro geopolítico global outros sujeitos além daqueles que já compartilhavam entre si o poder global, um grupo de gestores de ONGs com atuação no país com o 10º PIB global – o Brasil – convoca gestores de outra ONG com atuação disseminada por toda a Europa, mas sediada no país com o 5º PIB global – a França – para criar uma reunião global de movimentos sociais e ONGs em contraposição a uma reunião mundial gestores de Estados e de empresas (o Fórum Econômico Mundial).
Daí o combate ao “espírito de Seattle”, seu apego a uma versão aburguesada da não-violência[10], a construção de um campo “anti-neoliberal” em contraposição a um campo propriamente anticapitalista[11] e as inúmeras tentativas de restrição dos temas à mera formulação de “alternativas”; a intenção básica era romper a hegemonia do Fórum Econômico Mundial como espaço de formulação de políticas para o mundo, mas fazê-lo em prol de “alternativas” a serem construídas ainda neste mundo pelas ONGs e seus “parceiros”. O “outro mundo possível” é aquele onde as ONGs internacionais são legitimadas como sujeitos políticos internacionais cujas propostas políticas são adotadas como norte para a produção econômica e para a reprodução da vida social. Nada mais, nada menos. Além disso, o foco na crítica ao “neoliberalismo”, e não ao capitalismo, sem adjetivos, permite concentrar no mesmo pólo tanto os intelectuais de esquerda afeitos à canalização das lutas populares para a conquista do poder de Estado quanto os funcionários de carreira de ONGs que têm no Estado um potencial financiador; para eles, trata-se de uma modificação de rumos dentro do próprio capitalismo em direção à sua “humanização”, ou, quando muito, a defesa da reedição do capitalismo de Estado que vem sendo construída na América Latina.
O “núcleo histórico” de oito fundadores do FSM criou um instrumento de refreamento das lutas anticapitalistas em nível internacional. Eric Toussaint, presidente do Comitê para a Anulação da Dívida do Terceiro Mundo (CADTM) da Bélgica e integrante do Conselho Internacional do Fórum Social Mundial, comenta, assustado, após o Seminário “10 anos depois”: “organizações como o Ibase, e personalidades como Chico Whitaker [da Comissão Brasileira de Justiça e Paz] e Oded Grajew [da CIVES – Associação Brasileira de Empresários pela Cidadania] se opõem à evolução rumo a um instrumento de luta. A coisa que me preocupa é chegar em Porto Alegre e ver que o seminário ‘10 anos depois’ é patrocinado por Petrobras, Caixa, Banco do Brasil, Itaipu Binacional, e com forte presença de governos. Isso obviamente me preocupa”[12]. Aquilo que já estava apontado desde o início do Fórum agora aparece como um problema incontornável, e as tensões internas entre setores responsáveis pela criação e consolidação do Fórum Social Mundial transparecem nas avaliações destes dez anos de evento. Os mesmos que hoje reclamam da sua “intranscendência”[13] – ou seja, de sua recusa a dialogar com governos, mesmo os ditos “populares”, ponto sobre o qual convergem desde as ONGs mais integradas até os movimentos mais radicalmente anti-sistêmicos – foram alguns dos maiores entusiastas de sua criação[14], e silenciaram quando organizadores deste mesmo Fórum insistiram no refreamento das lutas em favor de um evento mais “propositivo”.
Qualquer tentativa simplista de avaliação enquadrada em algum destes dois campos de opinião deixa escorrer por entre os dedos o essencial. Não é no Fórum Social Mundial ou em qualquer espaço semelhante que se fortalecem as lutas contra o capitalismo; tais espaços resultam desta luta, não são a luta. Comparecem a estes eventos tanto uma camarilha de burocratas – estatais ou de ONGs – quanto militantes de base que hajam conseguido algum meio de bancar seu deslocamento, hospedagem e demais despesas de viagem. A articulação internacional das lutas locais é necessária, como demonstra a experiência da Ação Global dos Povos; o problema não está aí, mas sim no aproveitamento destas mesmas lutas para reforçar um ou outro setor do campo hegemônico global – empresas transnacionais, ONGs internacionais, blocos econômicos regionais, máfias e organizações semelhantes, organismos multilaterais internacionais – em favor de suas lutas contra os demais.
Mas nem tudo é “negatividade” neste processo. A proliferação de edições do Fórum Social Mundial em nível local, nacional e regional, já em execução, contribui para alavancar articulações inexistentes entre as lutas e para fortalecer outras previamente existentes. A edição de 2004, em Mumbai, o demonstra. O Fórum, com sua aura “cidadanista”, é a justificativa perfeita para angariar fundos para sua realização, para o deslocamento até ele etc.; tendo isto em mente, movimentos anticapitalistas o aproveitam para realizar suas próprias plenárias e eventos. Se isto os isola dos demais movimentos que participam do evento “oficial”, trata-se de mais uma “artimanha” de recusa à cooptação, assim como a recusa ao diálogo com governos “populares”.
Em tempos de um Fórum Social Mundial que se presta a debater Crise e oportunidades, o anticapitalismo internacionalista, em momento de crise, foi capturado na armadilha oportunista de um setor que desejava reforçar sua legitimidade como global player. Sua reconstrução, entretanto, vem sendo sussurrada nas pequenas oficinas dos Fóruns, na retomada das lutas internacionalizadas após a conferência de Copenhaguen, na apropriação que os movimentos sociais de base fazem do slogan “um outro mundo é possível”. Quem andar pelas ruas, verá.
(A série termina aqui. Leia as partes anteriores: [1] - [2] - [3] - [4] - [5] - [6])
Notas
[1]: Emir Sader. “Fórum Social: o risco da intranscendência”. Agência Carta Maior, 20.01.2006, http://www.cartamaior.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=2839.
[2]: Emir Sader. “Balanço do Fórum e do outro mundo possível”. Agência Carta Maior, 04.02.2009, http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=15599.
[3]: Gilberto Maringoni. “A forma-Fórum se esgotou?”. Agência Carta Maior, 31.01.2010, http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=16377.
[4]: Igor Ojeda. “Para além do Fórum Social Mundial, a Quinta Internacional” (entrevista a Eric Toussaint). Brasil de Fato, 28.01.2010, disponível em http://www.brasildefato.com.br/v01/agencia/entrevistas/para-alem-do-forum-social-mundial-a-quinta-internacional/view.
[5]: Douglas Estevam. “O pós-altermundismo e os desafios das lutas globais” (entrevista a Bernard Cassen). Revista Fórum, nº 70, jan. 2009, http://www.revistaforum.com.br/sitefinal/EdicaoNoticiaIntegra.asp?id_artigo=5876.
[6]: Gabriel Brito e Valéria Nader. “Fórum é o laboratório para se construir outro paradigma de civilização (entrevista a José Correia)”. Correio da Cidadania, 06.02.2010, http://www.correiocidadania.com.br/content/view/4301/9/.
[7]: Raúl Zibechi. Territorios em resistencia: cartografia politica de las periferias latinoamericanas. 2ª ed. Buenos Aires: Lavaca, set. 2009, p. 125.
[8]: O sarcasmo é inspirado pelo excelente artigo de Paulo Eduardo Arantes (“Esquerda e direita no espelho das ONGs”. Em Zero à esquerda. São Paulo: Conrad, 2004).
[9]: É a polêmica tese de Michael Hardt e Antonio Negri em Multidão: guerra e democracia na era do Império. Rio de Janeiro: Record, 2005. Embora ambos considerem este sujeito como já dado no período entre 2001 e 2003, considero que este novo sujeito estava – como ainda está – em processo de construção a partir da ação conjugada daqueles mesmos que costumávamos chamar apenas de trabalhadores contra um sem-número de aspectos da exploração e das opressões sob o capitalismo.
[10]: Há vários significados para a “não-violência” além do pacifismo vago defendido pelos criadores do Fórum Social Mundial, como deixa transparecer o diálogo que resultou na retirada desta expressão do 4º ponto de partida da Ação Global dos Povos: “a palavra não-violência tem significados diferentes na Índia (onde ela significa respeito pela vida) e no Ocidente (onde ela significa também respeito à propriedade privada). Este simples mal-entendido provou ser completamente incorrigível na mídia e, na verdade, no próprio movimento. O movimento norte-americano percebeu que o termo poderia ser mal compreendido, o que não permitiria a diversidade de táticas e mesmo contribuiria para a criminalização do movimento. As organizações latino-americanas também colocaram objeções ao termo em sua conferência regional e argumentaram que um ‘chamado à desobediência civil’ era o bastante, ao passo que o termo não-violência parecia implicar uma rejeição de uma enorme parte da história de resistência desses povos e, como tal, foi impropriamente entendido por grande porção do movimento. Este ponto de vista foi particularmente colocado pelos movimentos do Equador e da Bolívia, os quais têm praticado desobediência civil com centenas de milhares de pessoas nos últimos anos, embora eles joguem pedras quando o exército mata com balas (o que regularmente acontece). De fato, sempre houve uma compreensão da AGP que não-violência seria entendido como um princípio/guia ou um ideal que sempre deveria ser compreendido de acordo com situações culturais e políticas específicas. Ações que são perfeitamente legítimas em um contexto podem ser desnecessariamente violentas (contribuindo para brutalizar as relações sociais) em outro e vice-versa. De modo mais claro, o exército zapatista (EZLN) foi convidado para estar na primeira geração de convocantes. A expressão finalmente encontrada pareceu respeitar esta instância fundamental, visto que ela explicitamente propõe MAXIMIZAR o respeito à vida”. (Ação Global dos Povos. Pontos de partida. Cochabamba, 2001. Disponível em http://www.nadir.org/nadir/initiativ/agp/pt/hallmpt.htm).
[11]: “Há, de fato, duas posições primárias na resposta às atuais forças dominantes da globalização: ou se trabalha para reforçar a soberania dos Estados-nação como barreira defensiva contra o controle do capital estrangeiro e global, ou se busca uma alternativa não-nacional à presente forma de globalização que é igualmente global. A primeira coloca o neoliberalismo como categoria analítica primária, vendo o inimigo como a atividade capitalista global irrestrita com poucos controles estatais; a segunda é mais claramente posicionada contra o próprio capital, quer seja ele regulado pelo Estado ou não. A primeira pode com justiça ser chamada de posição anti-globalização, até o ponto em que as soberanias nacionais, mesmo se ligadas pela solidariedade internacional, servem para limitar e regular as forças da globalização capitalista. A libertação nacional, desta maneira, permanece para esta posição como a meta final, como foi para as antigas lutas anticoloniais e anti-imperialistas. A segunda, em contraste, opõe-se a qualquer soluções nacionais e busca, ao invés, uma globalização democrática”. (Michael Hardt. “Porto Alegre: today’s Bandung?”. New Left Review, n.º 14, mar.-abr. 2000, p. 115).
[12]: Igor Ojeda. “Para além do Fórum Social Mundial, a Quinta Internacional” (entrevista a Eric Toussaint). Brasil de Fato, 28.01.2010, disponível em http://www.brasildefato.com.br/v01/agencia/entrevistas/para-alem-do-forum-social-mundial-a-quinta-internacional/view.
[13]: Emir Sader. “Fórum Social: o risco da intranscendência”. Agência Carta Maior, 20.01.2006, http://www.cartamaior.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=2839.
[14]: “O FSM foi uma vitória moral, porque ficou claro que os grandes temas da humanidade são discutidos em Porto Alegre, e não em Davos. Foi ainda uma vitória ideológica, porque ajudou a deslocar os grandes debates para a ótica social, articulando o econômico, o cultural e o político contra o economicismo. (…) O certo é que Porto Alegre representou um caminho sem volta na luta por um mundo novo. Temos grandes responsabilidades, como a elaboração de procedimentos democráticos de construção dos consensos. Procedimentos que recolham a diversidade e a multiplicidade que foram as marcas do FSM. Ficou claro que as formas de organização e de direção existentes até aqui – de partidos, de movimentos sociais ou de ONGs – se revelaram superadas pelos elementos novos e multitudinários. A organização de Porto Alegre 2002 já começou e está na mão de todos os que se identificam com os ideais defendidos pelo FSM”. Emir Sader. “Porto Alegre: o velho e o novo”. Folha de São Paulo, seção “Tendências/Debates”, 16.01.2001.
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