Lucien Laurat no país dos espelhos (3ª Parte)
Lucien Laurat indicou a alternativa: ou a URSS regressava à propriedade privada capitalista ou estabelecia um controlo público através da instauração de uma democracia proletária. Por João Bernardo
Em 1931, mal havia começado a época dos planos quinquenais na União Soviética e o sector estatal da economia deparava ainda com um considerável sector privado, já Lucien Laurat, no seu livro L’Économie Soviétique. Sa Dynamique, son Mécanisme, defendia que «a burocracia bolchevista» se tinha convertido numa «nova classe exploradora» (pág. 7; ver tb. a pág. 165). Ambos os adjectivos são fundamentais. Bastava a classificação desta classe como «exploradora» para diferenciar Laurat de Trotsky e dos seus discípulos, que remetiam a existência de desigualdades na URSS para o nível da distribuição dos rendimentos e negavam que tivesse aparecido uma clivagem social nas relações de produção. E bastava classificar essa classe como «nova» para distingui-la da antiga burguesia e dos antigos gestores, considerando portanto que o regime soviético correspondia a um sistema de exploração diferente e não a um capitalismo de Estado, como pretendiam outros críticos de extrema-esquerda.
As teses enunciadas por Laurat destacaram-no no panorama da época. Para Trotsky o socialismo caracterizava-se pela estatização das relações de propriedade, o que se compreende se recordarmos as posições que ele adoptara acerca do papel da classe trabalhadora na economia tanto durante a guerra civil como durante a Nova Política Económica. Depois de ter sido expulso da União Soviética, uma das polémicas mais sistemáticas que Trotsky travou, só interrompida pelo seu assassinato, foi contra os teóricos e militantes de extrema-esquerda que defendiam a existência de um sistema de exploração na União Soviética, entendido por uns como capitalista e por outros como pós-capitalista. Trotsky não se cansava de repetir que o stalinismo representava o predomínio de uma elite determinada apenas no nível das relações de distribuição, que repartia em seu próprio benefício produtos escassos, mas sem se tratar de uma classe, pois não era detentora dos meios de produção, cuja propriedade cabia ao Estado. No fundo, o que estava em jogo nesta polémica era a questão de saber se o exercício do controlo económico pode corresponder a uma forma de apropriação e se as relações sociais de produção podem ser definidas a partir das relações de trabalho e independentemente das relações jurídicas de propriedade.
Aliás, num artigo de 1933 Trotsky mostrou até que ponto lhe escapavam as principais implicações da questão do carácter de classe do regime soviético ao afirmar que as teses expostas por Lucien Laurat se assemelhavam àquelas que Makhaisky havia defendido no princípio do século XX. Todavia, Makhaisky jamais sustentara que esta segunda classe dominante tivesse inaugurado um novo modo de produção, considerando-a, pelo contrário, como um agente do desenvolvimento capitalista. Na sua opinião, o socialismo, que constituía o programa político desta classe, não representava mais do que o desejo de emancipar do Estado absolutista a sociedade capitalista e de colocá-la sob a direcção desses novos senhores, e o socialismo de Estado seria uma modalidade da exploração capitalista.
A facção trotskista «tem um atraso cada vez maior perante a realidade», acusou Laurat. «Ela não vê que a oligarquia burocrática está já constituída enquanto classe […]» (pág. 229). «O que caracteriza uma classe […] é a sua função no conjunto do processo económico, a origem do seu rendimento. Uma análise desta questão mostra que a oligarquia burocrática da URSS é realmente uma classe, cujo rendimento provém da exploração da população» (pág. 163, sub. orig.). Por outro lado, criticando aqueles que consideravam a União Soviética como um capitalismo de Estado, Laurat argumentou que, se bem que o sector socialista da economia soviética tivesse conservado formalmente as principais categorias do capitalismo, bastaria a ausência de propriedade privada e de concorrência mercantil no interior deste sector para mostrar que não se tratava de capitalismo (págs. 80-83, 99, 116, 167-168). «Sem mercado não há valor de troca nem preço» (pág. 83). «Na economia soviética, o elemento consciente e regulador ocupa um lugar muito mais importante e dispõe de meios de acção incomparavelmente mais poderosos e mais eficazes, tendentes não a “corrigir” leis consideradas como fundamentalmente intangíveis, mas a suprimi-las por modificações graduais, cada vez mais ousadas, até ao ponto em que a quantidade se transforma em qualidade» (pág. 116).
Assim, concluiu Laurat em polémica com Karl Korsch, a burocracia soviética nem encabeçava um capitalismo de Estado nem executava uma política capitalista ao serviço dos interesses dos proprietários privados (pág. 152-155). «[…] o que distingue a revolução russa das revoluções anteriores e impede qualquer comparação», escreveu ele, «é o aparecimento de uma nova casta dirigente e a formação dos alicerces económicos desta casta durante o próprio decurso do processo revolucionário, desde a conquista do poder» (pág. 155, sub. orig.). A ditadura bolchevista, impedindo a base de exercer qualquer controlo sobre a vanguarda organizada no partido, permitira que esta vanguarda se convertesse em elite e assumisse, enquanto oligarquia burocrática, o lugar de uma nova classe (págs. 155 e segs.).
Não se tratava apenas de uma classe dominante politicamente, mas também exploradora na esfera económica, já que a diferença entre a remuneração recebida pelos burocratas e o salário dos trabalhadores não era só quantitativa mas sobretudo qualitativa. No capitalismo a mais-valia inclui o fundo de acumulação e o fundo de consumo; e a concorrência obriga cada capitalista ou grupo de capitalistas a subordinar o consumo à acumulação, de maneira a ampliar as actividades da sua empresa. Para a oligarquia burocrática, porém, afirmou Laurat, a porção da mais-valia destinada ao consumo individual aparecia sob a forma de vencimentos, enquanto a outra parte, consagrada ao aumento da produção, aparecia sob a forma de lucro no balanço das empresas estatais e cooperativas. E como, na sua opinião, não existiria concorrência na economia soviética, nada levaria o fundo de consumo a submeter-se às necessidades do fundo de acumulação, tanto mais que os trabalhadores não dispunham de quaisquer meios de pressão sobre a oligarquia. Por isso os burocratas podiam despender em proveito próprio o fundo de acumulação e a pletora burocrática podia ultrapassar muito as necessidades decorrentes da mera gestão do aparelho económico (págs. 168 e segs., 216). «Estamos aqui», concluiu Laurat, «perante uma forma nova de exploração do homem pelo homem. A mais-valia da burocracia soviética constitui uma categoria económica sui generis, completamente diferente da mais-valia capitalista. Distingue-se dela pelo facto de englobar apenas o fundo de consumo dos exploradores, pois o fundo de acumulação, se bem que gerido por ela, não é propriedade sua» (pág. 178).
Nesta situação, para restabelecer o fundo de acumulação e prosseguir e ampliar a produção tornava-se cada vez mais necessário empregar formas suplementares de exploração, agravando a carga fiscal, impondo preços espoliadores ou simplesmente recorrendo à violência directa (págs. 179, 216-217, 224-225). Mas provocava-se assim inevitavelmente o marasmo económico e até a regressão das forças produtivas. E se era inegável que a produção fabril se desenvolvia muito na União Soviética, não era menos certo que mesmo os sectores em crescimento não estavam organizados eficazmente (págs. 190, 241-244). De qualquer modo, este crescimento fazia-se à custa da «atrofia das forças produtivas no resto da economia do país» (pág. 243). Nomeadamente, «a agricultura colectivizada», preveniu Laurat, «terá necessidade de subsídios para a sua própria acumulação» (pág. 237). Assim, enquanto o capitalismo se caracteriza pela sobreprodução crónica, a economia soviética distinguir-se-ia pela subprodução crónica (págs. 242-243). «Infelizmente, uma anarquia de outro tipo, o marasmo burocrático, substituiu-se à anarquia capitalista das iniciativas incontroláveis […]» (pág. 179).
Nestes termos, Lucien Laurat concluiu o livro indicando a alternativa: ou a URSS regressava à propriedade privada capitalista ou estabelecia um controlo público através da instauração de uma democracia proletária (págs. 231 e segs.).
Desde há muitos anos e ao longo de muitas páginas eu tenho pertencido ao número daqueles que classificam as antigas economias de tipo soviético como capitalismos de Estado. Era tão fictícia a noção de que não houvesse mercado na relação entre as empresas soviéticas, mesmo no auge do stalinismo, como era fictícia a noção de que a detenção da propriedade dos meios de produção pelo Estado corresponderia aos interesses históricos do proletariado. Se lermos descrições concretas do funcionamento das empresas soviéticas na época dos primeiros planos quinquenais apercebemo-nos de que elas tinham com o mercado uma relação bastante semelhante àquela que Galbraith, por exemplo, analisou para as empresas ocidentais na década de 1960 em The New Industrial State. Se a planificação do mercado suprimisse os mecanismos do mercado, o capitalismo só ocorreria no estado de livre concorrência pura, e este é um sistema que apenas existiu nas páginas de certos economistas. Mas não pretendo aqui alongar-me em questões que tratei abundantemente noutros lugares, e malgrado esta discordância de fundo tenho de admitir que há muito a dizer em abono das teses de Lucien Laurat.
É deveras notável que precisamente na época em que todo o mundo pasmava perante as elevadíssimas taxas de crescimento económico alcançadas pelo primeiro plano quinquenal, Laurat tivesse descortinado contradições e desequilíbrios cujas consequências só se revelariam plenamente bastantes anos mais tarde. Com efeito, as reformas económicas sucessivamente propostas após a morte de Stalin tiveram como um dos objectivos a resolução dos problemas detectados por Laurat. A alternativa que ele enunciou, ou o regresso à propriedade privada capitalista ou a instauração de formas de controlo do poder público pela classe trabalhadora, é muito interessante no plano teórico, pois estabelece uma equivalência entre mercado e democracia. Se Laurat entendia democracia na acepção de «controlo público» (pág. 184), então não há dúvida de que, em termos capitalistas, o mercado é uma instituição democrática. Samuelson, num manual de economia que educou gerações, identificou um dólar a um voto na sua análise dos mecanismos do mercado. Além disso, a alternativa formulada por Laurat é interessante como previsão, já que, na esfera soviética, os esforços dos economistas reformadores oscilaram entre o reforço dos mecanismos de livre mercado, nos situados à direita, e a criação de mecanismos de controlo popular do poder público, nos situados à esquerda. Nenhuma das duas vias de reforma teve êxito, afinal, porque a burocracia comunista resistiu até ao fim à adopção de medidas económicas ou políticas que atingissem o carácter monolítico do seu poder. A crise final do sistema soviético ocorreu nos termos que Lucien Laurat previra seis décadas antes.
Mas a forma como Laurat descreveu a génese da oligarquia burocrática limitou-a ao contexto soviético. E ao prever que o domínio da burocracia implicaria uma situação de crise permanente e que ela «podia apenas representar um estádio transitório no decurso da revolução russa» (pág. 244), Laurat afastou implicitamente a hipótese de que aquela nova forma de exploração correspondesse à abertura de uma nova fase histórica. Por isso, neste seu livro ele não colocou o problema de saber até que ponto aquela classe exploradora teria surgido também noutros países. Do mesmo modo, numa obra publicada três anos depois, Économie Dirigée et Socialisation, Laurat defendeu que nos países ocidentais a introdução da planificação e a intervenção organizadora do Estado alteraram mas não suprimiram os fundamentos do capitalismo, limitando-se a transferir parcialmente a concorrência do plano económico para o plano político e a modificar o jogo de forças em benefício dos grupos capitalistas mais ligados ao aparelho estatal (págs. 157-160). Apesar dos progressos do capitalismo em direcção à economia dirigida, Laurat continuava a não detectar nas sociedades ocidentais o aparecimento de uma classe correspondente à oligarquia burocrática, que seria um fenómeno especificamente soviético e não mundial. Parece, todavia, que noutra obra, editada em 1939, e que não pude consultar, Lucien Laurat passou a defender a tese de que a mesma classe que tomara o poder na Rússia se desenvolvia igualmente no seio do capitalismo ocidental.
Mas quem foi Lucien Laurat?
Bibliografia e referências
A obra de Lucien Laurat L’Économie Soviétique. Sa Dynamique, son Mécanisme, foi editada em Paris, em 1931, pela editora Valois. A sua obra de 1934, Économie Dirigée et Socialisation, foi editada em Paris e Bruxelas por L’Églantine. Quanto ao livro de Laurat publicado em 1939 ver Eugene Kamenka, Bureaucracy, Oxford e Cambridge, Ma.: Basil Blackwell, 1989, pág. 154.
As polémicas teóricas a respeito do carácter de classe da União Soviética encontram-se elucidadas em Henri E. Morel, «As Discussões sobre a Natureza dos Países de Leste (até à Segunda Guerra Mundial): Nota Bibliográfica», em Artur J. Castro Neves (org.) A Natureza da URSS, Porto: Afrontamento, 1977.
Trotsky procedeu à assimilação entre as teses de Laurat e as de Makhaisky no seu artigo «The Class Nature of the Soviet State», incluído em George Breitman e Bev Scott (orgs.) Writings of Leon Trotsky (1933-34), Nova Iorque: Pathfinder, 1972, págs. 111-112.
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