Lucien Laurat no país dos espelhos (2ª Parte)
É interessante que Laurat não se limitasse a mostrar que a União Soviética estabelecera uma sociedade de exploração e tivesse mostrado a fragilidade do sistema económico staliniano, que à primeira vista obtinha pleno êxito. Por João Bernardo
Enquanto se pôde organizar e exprimir - quero dizer, até Fevereiro de 1922, quando Lenin autorizou a polícia política a actuar no interior do próprio Partido Comunista - a oposição de esquerda não desistiu de criticar o sistema económico que estava a ser instaurado. Em 1920 e 1921 a Oposição Operária conduziu um ataque ao peso que os antigos gestores haviam voltado a adquirir na economia soviética e ao predomínio que os órgãos políticos exerciam no interior das empresas sobre os órgãos sindicais, mas esta corrente estava mais próxima da burocracia dirigente dos sindicatos do que dos trabalhadores de base. A posição da base encontrou expressão no interior do Partido Comunista sobretudo no grupo Centralismo Democrático, formado em 1919. Ao contrário do que se poderia hoje imaginar, o nome deste grupo em nada se referia à forma leninista de organização interna do partido mas à forma de organização da economia. Os membros desta facção admitiam o centralismo económico e a necessidade de planificação central, mas consideravam que ela devia assentar em bases democráticas, caracterizadas pela gestão das empresas por comités de operários e não, como Lenin e Trotsky haviam instaurado, pela sua gestão por uma tecnocracia de especialistas que incluía os antigos administradores e até os antigos proprietários. Mas é num documento fascinante difundido clandestinamente na Rússia em 1922, o Apelo do grupo Pravda Operária, que encontramos a primeira crítica bem estruturada dos interesses de classe que presidiram ao bolchevismo e que o conduziram a implantar um novo sistema de exploração capitalista.
Aquela foi a crítica teórica, mas houve ainda a crítica prática, neste caso feita com os pés, e o operariado abandonou maciçamente as cidades e refugiou-se nos campos. Este movimento migratório, contrário ao que caracteriza as sociedades modernas, deveu-se em parte ao facto de a revolução, depois a ocupação da Ucrânia e da Bielo-Rússia pelas Potências Centrais e finalmente a guerra civil terem afectado profundamente a produção industrial e de a fome grassar nas cidades. «Na Rússia», indicou Edward Hallett Carr, «onde a esmagadora maioria do operariado industrial era formada por antigos camponeses que geralmente mantinham uma certa ligação ao meio rural e que em alguns casos regressavam regularmente aos campos para participar nas colheitas, uma crise nas cidades ou nas fábricas, […] em vez de suscitar o tipo de desemprego que ocorria nos países ocidentais, provocava o abandono maciço das cidades pelos operários industriais, que retomavam a condição de camponeses. A desarticulação da indústria no primeiro Inverno da revolução dera já início àquele processo, e no 7º Congresso do partido, em Março de 1918, Bukharin mencionara a desintegração do proletariado. Este movimento foi enormemente acelerado quando a guerra civil precipitou nos exércitos de um e outro lado centenas de milhares de elementos de uma população já reduzida e exausta. […] entre 1913 e 1917 o número de assalariados na indústria subira de 2.600.000 para 3.000.000, e a partir de então declinou progressivamente para 2.500.000 em 1918, 1.480.000 em 1920-1921 e 1.240.000 em 1921-1922 […] Desde 1917 até ao Outono de 1920 o número dos habitantes de quarenta capitais de província diminuiu 33% […] e o número de habitantes de cinquenta outras grandes cidades reduziu-se 16% […] Quanto maior era a cidade, mais acentuado era o declínio. Em três anos, Petrogrado perdeu 57,5% da sua população, e Moscovo, 44,5%». Alec Nove mencionou valores um pouco diferentes, 2,6 milhões de operários em 1917 e 1,2 milhões em 1920, e Victor Serge, recordando a situação de Petrogrado em 1919, escreveu que a população da cidade passara num ano de aproximadamente 3 milhões a cerca de 700.000, o que corresponde a uma perda de 76,7% dos habitantes.
Além da crise económica e da fome, outros factores pesavam, já que o controlo exercido pelo poder bolchevista era muitíssimo mais completo nas cidades do que nos campos. A militarização do trabalho decretada em Março de 1920 e as considerações de Trotsky acerca da alegada produtividade do trabalho obrigatório não eram de molde a cativar as simpatias dos proletários. No campo, apesar de tudo, podia-se plantar alguma coisa, o suficiente talvez para não morrer de fome, e podia-se fugir para os bosques sempre que se aproximavam as tropas de um ou outro lado da guerra civil. O esvaziamento das cidades e a formação de bandos semi-rurais semiguerrilheiros, que os bolchevistas apelidavam genérica e apressadamente de bandidos, constituíram um só fenómeno, e para a sua génese contribuiu também a militarização da mão-de-obra.
Foi mais uma vez Carr quem tocou no cerne do problema, ao invocar «o facto paradoxal de a instauração da “ditadura do proletariado” ter sido seguida por uma acentuada diminuição, tanto nos números como no peso específico ocupado na economia, daquela classe em cujo nome a ditadura era exercida». Na verdade, o proletariado fora duplamente esvaziado da revolução: por cima, porque os gestores desalojaram os comités de fábrica dos lugares de chefia; e por baixo, com o despovoamento das cidades e das indústrias.
Terminada a guerra civil era urgente retomar o crescimento económico e restaurar o tecido social. O Partido Comunista − não só Lenin e Trotsky, mas também todas as facções de oposição − esmagou em Março de 1921 a insurreição dos marinheiros de Kronstadt e da numerosa população operária dos estaleiros e oficinas dessa base naval. E logo em seguida adoptou a parte económica do programa dos insurrectos e inaugurou nesse mesmo mês a Nova Política Económica. Tratava-se de um sistema de economia mista, em que as empresas privadas coexistiam com a intervenção do Estado, e vale a pena ver como Trotsky, nas novas circunstâncias, passou a considerar a posição da classe operária. Em 1922, quando detinha ainda uma boa parte do seu antigo poder, Trotsky proclamou: «É preciso que cada fábrica do Estado, assim como o seu director técnico e o seu director comercial, estejam submetidos não só ao controlo de cima, isto é, ao controlo dos órgãos de Estado, mas ao controlo de baixo» − o dos trabalhadores? Não − «isto é, ao do mercado, que durante um período ainda muito longo continuará a ser o regulador da economia estatal». Já não era altura de evocar a produtividade do trabalho forçado, pois a Nova Política Económica assentava exclusivamente no assalariamento, mas os trabalhadores continuavam a ser afastados de qualquer lugar de direcção da economia estatal e nem sequer era o Partido Comunista que os substituía nessa tarefa, mas simplesmente o mercado.
A liberdade de iniciativa concedida aos camponeses pela Nova Política Económica permitiu à produção agrícola ultrapassar a crise e atingir, em 1926, um valor global equivalente ao registado antes do começo da primeira guerra mundial, enquanto alguns ramos da pecuária excederam mesmo aquele nível. Todavia, a estagnação da indústria não foi superada e a oposição comunista de esquerda temia que, se um tal desfasamento continuasse, o baixo nível da produção fabril comprometesse a própria recuperação da agricultura, o que veio com efeito a suceder, e muito rapidamente. A catástrofe era iminente. Foi então que Stalin, numa das reviravoltas em que era mestre, deixou de apoiar a direita do Partido Comunista e adoptou as teses da esquerda, procedendo a uma colossal operação de engenharia social.
Os planos quinquenais, instaurados a partir de 1928, resolveram num prazo muito curto a desastrosa situação económica e deram trabalho a toda a gente, a tal ponto que o operariado industrial se revelou insuficiente e teve de se recrutar maciçamente um novo proletariado. Para isso era urgente concentrar a propriedade da terra, convertendo-a em propriedade do Estado, e mecanizar as actividades agrícolas, de maneira a encaminhar para a indústria uma mão-de-obra tornada excedentária nos campos. Num círculo em expansão, as elevadíssimas taxas de crescimento industrial exigiram a colectivização imediata da agricultura, e a colectivização da agricultura libertou a mão-de-obra indispensável ao crescimento da indústria, mas não se tratou de uma operação conduzida apenas a partir de cima. O bureau político staliniano mobilizou os camponeses mais pobres contra os camponeses ricos e até contra os camponeses médios, desencadeando verdadeiramente uma segunda guerra civil. Ao mesmo tempo, mediante cursos universitários acelerados, Stalin promoveu de maneira maciça e muito rápida proletários a engenheiros e técnicos. Isto permitiu-lhe poucos anos depois, nos processos de Moscovo, liquidar a velha tecnocracia que apoiava Zinoviev ou Trotsky. Assim, com três operações sociais conjugadas, o stalinismo criou um novo campesinato, trabalhando nas fazendas do Estado, socialmente mais próximo de operários agrícolas do que da tradicional população rural; criou uma nova classe operária, numa indústria renovada e muitíssimo ampliada; e criou uma nova tecnocracia, promovida a partir do proletariado. O stalinismo criou, em suma, uma base social própria, e foi isto, muito mais do que a repressão, que assegurou durante décadas a solidez daquele regime.
Ao enraizamento interno do stalinismo correspondeu o seu prestígio mundial, já que a economia soviética atingia taxas de crescimento espantosas quando os demais países estavam mergulhados numa crise muito profunda. Para termos uma ideia rápida da situação, basta recordar que nos Estados Unidos se formavam filas de engenheiros e de técnicos qualificados à porta dos consulados soviéticos para obter vistos que lhes permitissem trabalhar no quadro dos planos quinquenais. Só no Outono de 1931 a Amtorg Trading Corporation, a firma exportadora e importadora que serviu de representante oficiosa da União Soviética até o governo norte-americano estabelecer relações diplomáticas com aquele país, recebeu nos seus escritórios de Nova Iorque cem mil pedidos de emprego.
Neste contexto, é especialmente interessante que Lucien Laurat não se tivesse limitado a mostrar que a União Soviética estabelecera uma sociedade de exploração e tivesse mostrado a fragilidade do sistema económico staliniano, que à primeira vista parecia obter um pleno êxito.
Bibliografia e referências
O segundo volume de A Revolução Bolchevique, de Edward Hallett Carr, editado em Portugal pela Afrontamento, contém numerosas informações acerca das várias correntes da oposição de esquerda no plano económico. O Apelo do grupo Pravda Operária pode ser lido aqui.
A passagem de Edward Hallett Carr relativa ao esvaziamento das cidades encontra-se em A History of Soviet Russia. The Bolshevik Revolution, 1917-1923, Harmondsworth: Penguin, 1966, vol. II, págs. 195-198. Os dados fornecidos por Alec Nove acerca do mesmo assunto estão em An Economic History of the U.S.S.R., Harmondsworth: Penguin, 1978, págs. 66-67 e as indicações de Victor Serge vêm em Mémoires d’un Révolutionnaire, 1905-1941, incluídas em Jean Rière e Jil Silberstein (orgs.) Victor Serge. Mémoires d’un Révolutionnaire et autres Écrits Politiques. 1908-1947, Paris: Robert Laffont, 2001, pág. 558. A observação de Carr sobre o facto de a ditadura do proletariado ter sido feita com cada vez menos proletários está em A History of Soviet Russia. The Bolshevik Revolution, 1917-1923, op. cit., vol. II, pág. 198. As declarações de Trotsky em 1922 relativas à Nova Política Económica encontram-se em Léon Trotsky, La Nouvelle Politique Économique des Soviets et la Révolution Mondiale, Paris: Librairie de «L’Humanité», 1923, pág. 23. A informação relativa aos pedidos de emprego na Amtorg é fornecida por William E. Leuchtenburg, Franklin D. Roosevelt and the New Deal. 1932-1940, Nova Iorque: Harper & Row, 1963, pág. 28.
fonte: http://passapalavra.info/?p=17055
(c) Copyleft: É livre a reprodução para fins não comerciais, desde que o autor e a fonte sejam citados e esta nota seja incluída.
Nenhum comentário:
Postar um comentário