sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Os náufragos (4ª Parte)

Os náufragos (4ª Parte)

O esgotamento ideológico da esquerda e da extrema-esquerda naquela época não se pode explicar se esquecermos o destino dessas centenas de milhares de náufragos. Por João Bernardo

Por mais extraordinário que pareça, depois de tudo o que evoquei nos artigos anteriores, nos últimos dias da segunda guerra mundial ainda havia quem sonhasse com uma revolução.

Francis Bacon, um dos «Estudos para figuras na base de uma crucificação», 1944

Francis Bacon, um dos «Estudos para figuras na base de uma crucificação», 1944

O jornalista sueco Stig Dagerman relatou, numa reportagem de 1946, a opinião de um comunista alemão que passara longos anos no campo de concentração de Buchenwald. «Ele pensa que o momento era bom, que as condições favoráveis a uma resolução rápida mas em profundidade dos problemas estavam verdadeiramente reunidas em Abril de 1945. Os soldados que se viam forçados a voltar a passar as fronteiras em marcha atrás nutriam aversão ou ódio pelo regime hitleriano e teriam feito tudo para ajustar contas com ele. A multidão de prisioneiros dos campos de concentração estava pronta a atirar-se contra os seus carrascos, e nas grandes cidades destruídas pelas bombas houve durante toda a Primavera de 1945 fortes grupos de acção que levaram a cabo guerras civis locais contra os nazis. Mas por que não deu isso resultados? Ora, porque as vitoriosas nações capitalistas ocidentais não desejavam uma revolução antinazi. Os grupos revolucionários alemães foram isolados pelos exércitos dos vencedores, quando estes deveriam ter estabelecido com os seus canhões um círculo protector à volta da Alemanha, deixando os alemães ajustar[em] eles próprios contas com um passado odioso. Não tinham enviado para casa as massas revolucionárias dos campos de concentração em conjunto, mas sim em pequenos grupos inofensivos; os soldados tinham sido desmobilizados divididos em unidades muito pequenas e os núcleos de resistentes das cidades que iniciaram a desnazificação, por vezes forte e feio, mesmo antes do fim da guerra haviam já sido desarmados pelos Aliados […]».

Francis Bacon, outro dos «Estudos para figuras na base de uma crucificação», 1944

Francis Bacon, outro dos «Estudos para figuras na base de uma crucificação», 1944

Não sei, ninguém pode saber, se as esperanças daquele velho comunista eram realizáveis, mas as suas declarações mostram que elas eram reais. E não há dúvida de que tanto os governos das democracias como o bureau político soviético tomaram as precauções necessárias para aniquilar quaisquer veleidades insurreccionais. «Houve bairros de Berlim que permaneceram indomavelmente comunistas, mesmo sob Hitler», diz um personagem de Simone de Beauvoir num dos romances que mais nos ajuda a compreender as hesitações e hipocrisias do pós-guerra. «Durante a batalha de Berlim os operários de Köpenick e da vermelha Wedding ocuparam as fábricas, hastearam a bandeira vermelha e organizaram comités. Poderia ter sido o começo de uma grande revolução popular; […] os comités estavam prontos a fornecer os quadros do novo regime. […] E em vez disso o que sucedeu? Chegaram os burocratas de Moscovo, correram com os comités, liquidaram a base e instalaram um aparelho de Estado, ou melhor, um aparelho de ocupação».

Um atribuiu a responsabilidade aos Aliados ocidentais, o outro à burocracia soviética, mas não a tinham todos eles? Conseguiremos imaginar, hoje, a desolação e o desespero daqueles amantes da liberdade que se viam presos pelos governos democráticos, daqueles partidários do comunismo que se viam deportados pelo governo comunista? Nenhum chão firme lhes restava para pisar, os decálogos e cartilhas eram invalidados pela prova indesmentível dos factos que se sofrem na carne. Em que acreditar? Para onde ir? Os historiadores que mencionam o fim das ideologias e a crise das convicções, que estudam o cinismo do pós-guerra, o consumismo, a superficialidade dos interesses, por que motivo esquecem esses muitos milhares de refugiados, presos pelas potências inimigas dos regimes a que eles haviam fugido? Quando Arthur Koestler comentou «Estes cento e cinquenta homens que povoavam a chamada Caserna dos Leprosos eram o que restava das Brigadas Internacionais − que constituíram outrora o orgulho do movimento revolucionário europeu, a vanguarda da esquerda», ele definiu o destino de toda uma geração. Foram estas as determinantes profundas do niilismo ideológico. O entorpecimento do intelecto foi a condição da sobrevivência psicológica.

Será de estranhar, em tal contexto, que muitos homens e mulheres de esquerda se tornassem conservadores ou centristas ou simplesmente coisa nenhuma? A tese de que nazismo e stalinismo eram duas faces da mesma moeda, sustentada por tantos autores − Hannah Arendt talvez a mais perspicaz de todos − é errada teoricamente, mas quando recordamos os acontecimentos da época é compreensível que essa tese tenha surgido, sido divulgada e aceite. Falta-lhe a outra metade, todavia, que alguns se encarregaram de preencher, anunciando que a democracia é a outra face do totalitarismo e que esse labirinto é na realidade um beco sem saída. Tese teoricamente errada, também, porque havia fissuras nos muros que envolviam os espaços políticos. Mas não se tratava para aquelas pessoas de debater problemas teóricos e sim de sentir as marcas da própria vida.

Asger Jorn, «O Direito de águia», 1950

Asger Jorn, «O direito de águia», 1950

Não acreditemos na roupagem ilusória com que os académicos se revestem. Por detrás da apreciação fria dos dados e dos documentos havia imagens bem mais poderosas, e mesmo que as não evocassem gritavam-lhes dentro da cabeça, Max Ernst a cobrir uma parede com desenhos no campo de concentração de Le Vernet, os antifascistas polacos e lituanos a ser enviados para os campos de trabalho soviéticos, Walter Benjamin a morder a cápsula de cianeto que Koestler lhe dera, August Creutzburg a ser entregue pelos soviéticos aos nazis, as vidas de dezenas de milhares de judeus que alguns chefes de Estado fascistas e o próprio chefe dos SS estavam dispostos a vender aos Aliados e que estes não se interessaram em comprar. Deste tecido eram feitas as memórias profundas, tanto mais profundas quanto as pretendessem esquecer.

As utopias não morreram no pós-guerra, foram deliberada e sabiamente assassinadas. O esgotamento ideológico da esquerda e da extrema-esquerda naquela época não se pode explicar se esquecermos o destino dessas centenas de milhares de náufragos. Depois, foi necessário reconstruir tudo de novo.

Conta-se que em 1947 Victor Serge, quando se encontrou na Cidade do México com Natalia Sedova, a viúva de Trotsky, lhe disse: «Nós dois somos os últimos sobreviventes». E eram.

Referências

As declarações do antigo prisioneiro de Buchenwald encontram-se em Stig Dagerman, Outono Alemão, Lisboa: Antígona, 1991, págs. 118-119. A passagem de Les Mandarins, de Simone de Beauvoir, está na pág. 251 da edição Paris: Gallimard, 1954. O trecho citado de Arthur Koestler vem na sua obra Scum of the Earth, Londres: Eland, Nova Iorque: Hippocrene, 1991, pág. 114.

Nota sobre as ilustrações

A arte nunca pode ser ilustração nem comentário. A arte é a transposição de um acontecimento ou de uma coisa ou de uma situação para outro plano, e a criatividade estética consiste nessa operação de transposição. Quando, através da arte, nossa ou alheia, passamos a esse outro plano, podemos lançar dali um olhar novo sobre o mundo habitual. Por isso há tanto medo da arte. Quem sabe que panoramas ela irá rasgar? Muitos preferem a ilustração, para terem a garantia de que nunca experimentarão os riscos de uma visão diferente. Os quadros que acompanham esta série de quatro artigos constituem transposições para o plano estético das situações históricas que eu descrevi, e desenvolvem um discurso paralelo ao da minha narrativa.

O primeiro artigo abre com duas obras de Max Beckmann e no último artigo é avassaladora a presença de Francis Bacon, que se encontra também no segundo artigo. A forma estética destes dois pintores é idêntica. Ambos ressuscitaram o espaço cúbico unifocal da primeira Renascença, que entretanto havia sido posto de lado, mas provocaram-lhe uma acentuada distorção. O espaço cúbico unifocal operara uma idealização de tipo neoplatónico das pessoas e dos objectos, convertendo-os de realidades em arquétipos, e instaurara assim uma forma de relacionamento estática e pré-definida. A distorção daquele espaço introduziu-lhe inquietação, ambiguidade e mal-estar, por isso Beckmann e Bacon conseguiram, mais do que quaisquer outros pintores, exprimir a angústia de uma época. No resto eles são diferentes. Em Beckmann a angústia é objectiva, enquanto Bacon a interiorizou e a sua vida não foi mais do que um longo padecimento, mas ambos conseguiram transpor o naufrágio para o plano estético.

Fautrier é na minha opinião − como na de alguns (muito poucos) outros − um dos maiores pintores franceses do século XX. Os reféns e os fuzilados, que constituíram um tema obsessivo da sua obra da maturidade, e de que coloquei exemplos no primeiro artigo e no terceiro, têm um carácter telúrico que nos permite entender o horror da ocupação nazi como a verdadeira substância daquele tempo.

O expressionismo abstracto foi o resultado estético directo das tragédias não militares, mas civis, da segunda guerra mundial, e Pollock celebrizou-se como a maior figura desta corrente artística. Mas escolhi para o primeiro, o segundo e o terceiro artigos algumas obras suas do período anterior, mais tenebrosas do que o gestualismo elegante que se lhe seguiu. Arshile Gorky foi o precursor imediato do expressionismo abstracto, mas não foi só por isso que me lembrei dele no terceiro artigo. Gorky era de origem arménia, e recorri a dois dos seus quadros a propósito do genocídio dos judeus para recordar que outros povos foram vítimas de idênticas abominações. Outra das figuras marcantes do expressionismo abstracto, Motherwell interessou-se ao longo de muitos anos pela tragédia da república espanhola, com uma obsessão igual à que Fautrier demonstrara pelos reféns. Vemos um exemplo no segundo artigo. Ainda dentro da área do expressionismo abstracto incluí Asger Jorn no segundo artigo e no quarto, embora o considere um artista secundário e, aliás, escolhi obras não inteiramente abstractas. Mas Jorn foi um dos fundadores do grupo COBRA, que rompeu à esquerda com o trotskismo e com o surrealismo, a estética trotskista oficial, e mais tarde foi um dos criadores da Internacional Situacionista, o que permite ligar os náufragos aos problemas do nosso tempo.

Baselitz, nos segundo e terceiro artigos, é outro desses elos de ligação. Criado na Alemanha Oriental, este artista teve de passar para o Ocidente para dar largas à sua tremenda força criadora, e afinal deixou-a estiolar na teia dos marchands e das galerias, caindo no formalismo e nos tics. Entre os limites da arte oficial do capitalismo de Estado e os becos sem saída do mercado artístico do capitalismo liberal, Baselitz foi outro náufrago. Mas enquanto esteve capaz de gritar, fê-lo com vigor. Arrependo-me agora de, em vez dele, não ter recorrido a A. R. Penck, com um percurso idêntico, mas com uma força estética muito maior. Paciência. O grafiteiro Basquiat, de que coloquei uma obra no terceiro artigo, foi também um náufrago, precipitado pelos marchands e pela crítica institucionalizada para o mundo das celebridades pop, que depressa o liquidou. Criadores de uma estética exterior ao mercado, ou mesmo crítica do mercado, estes artistas acabaram reduzidos a objectos de consumo.

Falta explicar a presença de Max Ernst no primeiro artigo. De todos os surrealistas, que eu abomino porque reduziram a criatividade a uma técnica mental e, portanto, não foram capazes de produzir senão ilustrações, Max Ernst é o único que me parece merecer a qualificação de artista. Pu-lo ali porque foi um dos detidos no campo de Le Vernet.

fonte: http://passapalavra.info/?p=9966

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Estado Restrito: O mediador entre reestruturações produtivas e reestruturações educacionais.

Estado Restrito: O mediador entre reestruturações produtivas e reestruturações educacionais.

Aender Luis Guimarães[1]

O Presente texto foi apresentado no IV EBEM - Encontro Brasileiro de Educação e Marxismo – onde rendeu interessantes reações/sugestões, as sugestões pertinentes foram apropriadas e futuramente, em outros trabalhos, devem ser objetivadas. Todavia, nesta versão aqui apresentada o texto segue sem retificações. Comentários/críticas são bem vindas.

O presente trabalho nasceu de questionamentos suscitados no decorrer de uma pesquisa que ainda está em andamento. Investigando o setor calçadista de Franca-SP, percebemos a coexistência de diferentes níveis técnicos dos meios de produção que proporcionam conseqüências às disposições educacionais e culturais dos operários.

Destarte, nossa análise, no presente trabalho é pensar o sistema educacional por um prisma que considere as empresas e o Estado como agentes capazes de formar certo tipo de trabalhador. Esse tipo ideal de trabalhador é condizente com demandas capitalistas específicas alinhadas a reestruturação produtiva em curso.

Dentro do atual quadro da exploração capitalista, o toyotismo, que tem no uso da componente intelectual do trabalho seu sustentáculo, exige um deslocamento das habilidades e uma re-qualificação de seus trabalhadores. Tais habilidades e re-qualificações têm seu correspondente na educação por dois vieses distintos. Por um prisma é necessário atender demandas de setores específicos da economia com trabalhadores, que realizem atividades crescentemente mais complexas, que trabalham no âmbito da mais-valia relativa[2], o que acarreta um acréscimo de qualificação na busca por maior produtividade, esta

parte da força de trabalho é recrutada de maneira estável, e como se destina a ser plenamente explorada nas suas capacidades intelectuais, recebe cursos periódicos de treinamento e de atualização e assegura a produtividade das firmas em que labora”. (BERNARDO, 2004, p. 129)

Já pelo outro viés, exige-se uma redução dos custos e do tempo de formação de uma outra mão de obra. Estes são os trabalhadores que operam no âmbito de tecnologias convencionais, obsoletas ou em esferas complementares de outras tecnologias mais avançadas. Em outras palavras, são os trabalhadores que operam primordialmente no âmbito da mais-valia absoluta[3]. (BRUNO, apud – BERNARDO, 1998, p. VIII)

O trabalhador não é possuidor de uma capacidade laborativa, independente se física ou intelectual, livre para ser comercializado em condições iguais de compra e venda com os donos dos meios de produção pois

a apropriação da força de trabalho não resulta de uma relação entre um capitalista particular e um proletário particular, mas de uma relação entre classes globalizadas, só eventualmente mediatizada pelo mercado enquanto instrumento de repartição da força de trabalho entre os capitalistas. (BERNARDO, 1985, p. 91)

Essa mediação do mercado entre capitalistas e trabalhadores tem intrínseca relação como sistema educacional estatal, já que este último se incumbe de preparar a mão de obra da forma mais desejável aos capitalistas com recursos públicos.

Pelo referencial analítico aqui adotado, que faz usos de conceitos e interpretações do teórico Português João Bernardo, o próprio conceito de Estado e empresa deve ser revisto a luz da materialidade histórica nas relações sociais de produção contemporânea. Tal autor conceitua o Estado e as empresas de duas formas:

O Estado Restrito é aquele que inclui todas as configurações organizadas do poder de forma “oficial”, seja por meio de instituições ou dispositivos que num primeiro momento são responsáveis pela criação e manutenção das melhores Condições Gerais de Produção[4] possíveis.

Em uma outra vertente o Estado Amplo é uma referência ao funcionamento das empresas enquanto aparelho de poder. Nas empresas os patrões podem exercer uma forma de “poder legislativo” pela escolha do modelo de administração da empresa. É possível, também o exercício de um “poder executivo” pela aplicação das metas e formas administrativas, seja pela persuasão ou mesmo coação. E por fim um “poder judiciário” ao avaliarem o desempenho dos empregados, remunerando-os ou punindo-os de acordo com critérios específicos. (BERNARDO, 1998, p. 42)

A atual transnacionalização da economia e a conseqüente primazia do Estado Amplo permite ao capitalismo contemporâneo uma enorme capacidade de organização dos processos de produção e de disciplinamento da força de trabalho. A tecnologia eletrônica possibilitou que as operações econômicas das empresas já não se distingam de suas operações políticas e ideológicas.

A conexão estabelecida entre os vários tipos de ideologia, publicidade, lazer e vigilância, não são misturados, mas hierarquizada consoante às categorias e grupos sociais a que se destinam. Formando mentalidades, aptidões e homogeneização supranacional de comportamentos, aspirações e padrões de consumo, bem ao ritmo da economia transnacional liderada pelo Estado Amplo. (BERNARDO, 2004, P. 67)

Temos, ainda, o papel desempenhado pelas instituições educativas do Estado Restrito, que inevitavelmente, na nossa sociedade, tem suas políticas educacionais geridas e ditadas pelo capital ou no mínimo à serviço dele e assim sendo:

É na preparação de tipos diferenciados de subjetividade, de acordo com as diferentes classes sociais, que a escola participa na formação e consolidação da ordem social. Para isto é decisiva a transmissão e inculcação diferenciada de certas idéias, valores, modos de percepção, estilos de vida, em geral sintetizados na noção de ideologia. (SILVA, 1992, p. 15)

Não podemos deixar de focalizar que o processo de formação das classes sociais menos abastadas, direcionadas para o trabalho manual, acontece mais por negligência do que por imposição ativa:

Com a privação de credenciais, à qual ela está obviamente conectada [à escola], está na raiz da divisão mental/manual do trabalho... A escola cria o trabalhador manual não tanto ao ensinar habilidades manuais num sentido positivo, mas, ao invés, ao definir o manual em oposição a apropriação do conhecimento que caracteriza o trabalho mental. (SILVA, 1992 p. 135)

No modelo de Bowles e Gintis é, sobretudo, a vivência no sistema educacional que permite a introjeção de atitudes e valores de um homem condizente com as divisões existentes na produção capitalista. Temos, ainda, os diversos níveis incomunicáveis do sistema escolar, que efetivaria uma separação entre as classes, bem como suas respectivas qualificações e valores a serem assimiladas como nos dizem Baudelot e Establet. (BAUDELOT & ESTABLET, apud, SILVA, 1992, p.16)

Althusser prenuncia a materialidade da escola, dizendo que essa pode propiciar certos tipos de vivências que são ausentes às crianças no seio familiar. Tais como a convivência em amplos lugares, desenvolvendo a competitividade o universalismo e a especificidade. (ALTHUSSER, apud – SILVA, 1992, p. 81).

Por fim, é necessário o deciframento do código dominante, habilidade básica para que este novo homem alcance sucesso no sistema de méritos escolar como Bourdieu e Passeron anunciam. (BOURDIEU & PASSERON, apud, SILVA, 1992, p. 18). Tal código – cultura, educação, maneiras, etc - deve ser encarado como bens simbólicos que são eleitos conforme a posse de bens materiais/econômicos. Tais bens materiais/econômicos garantem que os bens simbólicos se tornem frutos dos primeiros de forma mais naturalizada possível em uma sociedade como a nossa, que prevalece a relação entre dominantes e dominados. (BOURDIEU & PASSERON, apud, Silva, 1992, p. 32).

O ambiente escolar por si só já efetiva uma separação em seus níveis que reflete a divisão entre o trabalho intelectual e o trabalho braçal. Ele também é responsável por propiciar relações sociais semelhantes às de uma empresa, sendo estas relações diferentes em diversos tipos de escola, efetivando aqui também, a formação de subjetividades dotadas de traços atitudinais em harmonia com a economia (SILVA, 1992, p. 34).

Neste ponto é importante perceber que a transmissão diferenciada de valores é feita pelos níveis do sistema de ensino. Para as classes dominantes a educação é mais horizontal, privilegiando a autonomia e auto controle. A educação propiciada as classes trabalhadoras é uma educação mais “condizente” com as condições subordinadas na organização produtiva e política da sociedade a qual essa classe vai, muito provavelmente, se inserir. Essa educação privilegia o conformismo e a submissão, ideal para aqueles que trabalham no chão de fábrica, principalmente no âmbito da mais-valia absoluta.

Nesse sentido, a estratificação do conhecimento é operacionalizada por meio de uma segmentação da transmissão dos conteúdos escolares para os diferentes níveis do sistema escolar. Esse problema se agrava, ao ser levado em consideração que, em nosso país os níveis mais elevados só são atingidos pela parcela dominante da população, ossificando assim, por meio da segmentação escolar a estratificação do conhecimento e das oportunidades sociais e econômicas. (SILVA, 1992, p. 62)

Portanto, a educação institucionalizada, de massa e estatalmente controlada é impelida inevitavelmente, em função do papel secundário que o Estado Restrito assumiu na sociedade de classes contemporânea, a produzir certos resultados. Resultados esses que buscam a modelagem de comportamento para a consolidação e perpetuação da democracia e do consumo. Democracia essa fundamentada em uma meritocracia que privilegia aqueles que obtêm sucesso no sistema escolar e/ou financeiro.

Assim, o Estado restrito promove duas formas de ensino. Uma educação restrita de alta qualidade, por exemplo, os cursos superiores em instituições públicas de ensino, que por meio de um processo eliminatório/classificatório segregacionistas, preparam a elite destinada a gestoriar[5] outros trabalhadores. E uma educação oferecida para a população na sua totalidade, uma educação ampla, atualmente sucateada que busca anular as desvantagens sociais advindas do nascimento e proporcionar competências para trabalhadores, para estes últimos se inserirem minimamente na esfera do consumo e da produção de bens em âmbitos interconectados de mais-valia absoluta e relativa. Em outras palavras estes trabalhadores:

Podem não saber ler nem escrever, mas são ágeis no que diz respeito à vida urbana, tem uma apreensão perfeita e rápida da comunicação audiovisual, são atentos às modas e ao primeiro sinal mudam de uma para outra, em suma, são suficientemente fúteis para não causarem nenhum perigo e suficientemente modernos para oferecerem uma imagem pública às empresas de bens de consumo que prosperam precisamente com a venda dos ícones da modernidade superficial. (BERNARDO, 2004, p. 135)

Em resumo, nesta dialética entre mais-valia absoluta e relativa o Estado Restrito, em nossa proposição, funciona como um mediador que se coloca entre as necessidades do mercado capitalista, o Estado Amplo, e a formação dos trabalhadores. Oferecendo ao mercado de trabalho pessoas com formação/qualificação para gerir e/ou trabalhar no âmbito da mais-valia relativa e pessoas “qualificadas” para trabalhar no chão de fabrica, principalmente no âmbito da mais-valia absoluta.



[1] Mestrando em História e Cultura na Faculdade de História, Direito e Serviço Social - Unesp-Franca.

[2] A mais-valia relativa pode ser resumidamente pensada como um trabalho mais complexo e mais qualificado, portanto mais produtivo.

[3] “Constitui uma forma rudimentar de exploração... Para aumentar a extorsão de mais-valia absoluta basta prolongar a jornada ou reduzir a remuneração, o que a curto prazo deteriora as capacidades do trabalhador e lhe diminui a utilidade enquanto objeto de exploração”. (BERNARDO, 2004, P. 123)

[4] As Condições Gerais de Produção incluem, em suma, todo o conjunto das infra-estruturas materiais, tecnológicas, sanitárias, sociais, culturais e repressivas indispensáveis à organização geral do capitalismo e ao seu progresso...(BERNARDO, 1998, p. 30)

[5] Gestores neste trabalho são classificados como uma classe que vive do controle do trabalho alheio, por isso mesmo exploradores, no mesmo patamar que burgueses.

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Os náufragos (3ª Parte)

Os náufragos (3ª Parte)

«Salvar um milhão de judeus! E para fazer o quê com eles? Onde os vamos pôr?» Por João Bernardo

Indiquei no artigo anterior que, durante a vigência do Pacto Germano-Soviético, os judeus polacos que conseguiram fugir da zona do seu país ocupada pelo Reich para a zona ocupada pelo Exército Vermelho foram deportados ou metidos em campos de concentração, triste destino, mas ao menos foram aceites e ninguém voltou a pô-los do outro lado da fronteira. Mais sinistra foi a atitude do Reino Unido e dos Estados Unidos.

Georg Baselitz, «Travesseiro», 1987

Georg Baselitz, «Travesseiro», 1987

Enquanto durasse o regime nacional-socialista, a única coisa a fazer seria deslocar centenas de milhares de judeus da Europa para um lugar seguro. Ora, desde a conferência que, por sugestão do presidente dos Estados Unidos, Franklin Delano Roosevelt, reuniu delegados de 32 países na cidade francesa de Évian, durante o Verão de 1938, com o objectivo de estudar as possibilidades de realojamento maciço dos judeus do Reich, e até ao final da guerra, foram-se acumulando nos gabinetes oficiais centenas de planos, totalmente fúteis porque tanto os Estados Unidos e a Grã-Bretanha como as nações da América Latina, com a parcial excepção da República Dominicana, haviam deixado muito claro em Évian que se recusavam a receber multidões de refugiados. Cada governo só se dispunha a encontrar condições de asilo em países estrangeiros, que por seu turno remetiam para outros a solução do problema, e assim nada se fez.

No plano das intenções, porém, os projectos subsequentes à conferência de Évian são dignos de registo, já que uma boa parte deles, quando não propunha o envio dos judeus para congelarem no Alasca, previa o seu estabelecimento nas Guianas ou em qualquer região da África, o que revela um sonho das democracias − aproveitar as consequências da expansão imperialista do nacional-socialismo para conferir novo vigor ao seu próprio colonialismo.

Jean Fautrier, «O fuzilado - refém», 1945

Jean Fautrier, «O fuzilado - refém», 1945

Tudo somado, não havia motivo para que os judeus do Reich tivessem grandes ilusões. Em Maio de 1939, quatro meses antes do início da segunda guerra mundial, saiu da cidade alemã de Hamburgo o navio St Louis transportando mais de 900 judeus, a quem as autoridades nazis haviam dado autorização para abandonar o país, e que tinham a esperança de encontrar acolhimento nos Estados Unidos. Com o argumento de que a opinião pública norte-americana seria contrária à aceitação de mais judeus, visto já estarem preenchidas as quotas de imigração decorrentes da National Origins Quota Law, aprovada pelo Congresso em 1924, persuadiu-se o comandante a dirigir o navio para Havana, onde os fugitivos contavam receber visto do consulado dos Estados Unidos. Nessa época o governo cubano seguia obedientemente as indicações norte-americanas, e portanto recusou-se a dar asilo aos judeus e intimou o navio a abandonar a ilha. O comandante tentou então dirigir-se para Miami, onde foi impedido de aportar. Também o governo canadiano recusou a autorização de desembarque aos fugitivos. Não lhes restou outra solução senão fazer a viagem de regresso, e a carga humana acabou por ser depositada em vários países europeus, onde iria ficar mais tarde exposta à perseguição nazi.

A situação repetiu-se em 1940, quando um navio português carregado com cerca de 80 judeus fugitivos do Reich se viu recambiado dos portos mexicanos mas conseguiu que a maior parte dos passageiros desembarcasse nos Estados Unidos. Isto só serviu para endurecer mais ainda as posições do Departamento de Estado, a ponto de nos meados de 1941 o alto funcionário que então superintendia estes assuntos, confesso admirador de Hitler e de Mussolini e obcecado com o perigo de uma conspiração judaico-comunista, se gabar de ter estancado definitivamente a entrada de refugiados. Com efeito, enquanto a guerra durou os consulados norte-americanos concederam um número de vistos inferior ao que a lei lhes permitia.

Arshile Gorky, «Estrada da boa esperança», 1945

Arshile Gorky, «Estrada da boa esperança», 1945

Talvez as primeiras notícias do genocídio que estava a vitimar os judeus se tivessem devido a Thomas Mann, um dos mais notáveis romancistas do século passado, numa série de palestras que proferiu através da BBC em Dezembro de 1941 e Janeiro de 1942. Mas já em Outubro de 1941 a imprensa aliada recebera descrições de morticínios efectuados na Ucrânia sob a ocupação nazi, e em Janeiro de 1942 o governo soviético tornou público um relatório detalhado acerca das acções praticadas pelos Comandos de Extermínio organizados pelos SS nos territórios conquistados de leste. A partir de então as informações sucederam-se, umas mais aterradoras do que as outras. Uma rede clandestina de recolha de testemunhos organizada pelo historiador judeu Emmanuel Ringelblum, cativo no ghetto de Varsóvia, conseguiu transmitir aos governantes polacos refugiados em Londres documentação acerca de um dos campos de extermínio, dando ocasião a que a BBC anunciasse em Junho de 1942 que os nazis haviam inaugurado a política de «solução final» e contribuindo para que o governo polaco no exílio pudesse apresentar em Agosto desse ano ao governo dos Estados Unidos um relatório sobre o uso de câmaras de gás e de fornos crematórios. Além disso, em Julho de 1942 os serviços secretos aliados na Suíça souberam por uma fonte germânica fidedigna que Hitler ordenara a eliminação dos judeus. Estas informações foram confirmadas pouco depois por documentos emanados do Congresso Judaico Mundial, e no final do ano por notícias transmitidas por funcionários da Agência Judaica da Palestina. Entretanto, em Novembro, chegara a Londres Jan Karski, um membro da resistência polaca que, com insuperável audácia, havia penetrado num dos campos de extermínio e pôde descrever pessoalmente ao ministro britânico dos Negócios Estrangeiros, Eden, e ao próprio presidente dos Estados Unidos, Roosevelt, os métodos empregues pelos nazis. As informações foram-se acumulando e permitiram uma avaliação bastante exacta da situação.

Arshile Gorky, a sua última pintura, 1948

Arshile Gorky, a sua última pintura, 1948

A primeira reacção do Departamento de Estado norte-americano foi atrasar e dificultar tanto quanto possível a difusão dessas informações, e mais tarde o subsecretário de Estado, ou alguém por ele, chegou a proibir que os canais diplomáticos veiculassem outras notícias do mesmo género. Só em Dezembro de 1942 os Aliados procederam a uma declaração conjunta acerca da «política alemã de extermínio da raça judaica», e de então em diante tanto o governo dos Estados Unidos como o do Reino Unido se esforçaram por subestimar o problema e por adiar qualquer tipo de solução, recusando-se a dar fundos e a fornecer meios de transporte para salvar os judeus. Em Abril de 1943 a conferência anglo-americana das Bermudas, convocada especialmente para discutir as questões suscitadas por este genocídio, absteve-se de propor qualquer iniciativa eficaz. Finalmente, em Janeiro do ano seguinte o governo dos Estados Unidos criou o War Refugee Board, Comissão para os Refugiados de Guerra, mas perante a dimensão da tarefa os resultados obtidos foram insignificantes. «Na realidade», afirma uma equipa de eruditos, «tanto os britânicos como os americanos, depois de terem organizado a conferência das Bermudas […], opuseram-se a quaisquer planos de salvamento maciço dos judeus da Europa ocupada».

A política de omissão e de negligência deliberada foi seguida pelos Aliados a todos os níveis e em todas as circunstâncias. «Tenho consultado uma massa de material, parte dele confidencial, que lida com a difícil situação dos judeus da Europa, que estão desaparecendo rapidamente, e com o destino de sugestões para os auxiliar, e é uma história assustadora», escreveu um jornalista em Junho de 1944 num semanário de Nova Iorque.

Em 1940, com o curioso argumento de que um afluxo de judeus estimularia o anti-semitismo latente na Grã-Bretanha e acabaria por ser prejudicial à própria comunidade judaica, o ministro do Interior britânico, aliás uma figura importante do Partido Trabalhista, rejeitou uma proposta do governo colaboracionista francês, estabelecido em Vichy, que se dispunha a permitir a emigração de crianças judaicas.

Jackson Pollock, «Cinzento do oceano», 1953

Jackson Pollock, «Cinzento do oceano», 1953

No final de 1941, quando o embaixador da Turquia em Bucareste sugeriu ao representante dos Estados Unidos que os judeus romenos fossem transferidos para a Palestina através da Turquia, o Departamento de Estado norte-americano recusou-se a transmitir sequer esta proposta aos britânicos, invocando, entre outros argumentos, as dificuldades de transporte, a possibilidade de as comunidades judaicas dos demais países ameaçados pelo nazismo pedirem igualmente ajuda e a eventualidade de virem a surgir «pressões para um asilo no hemisfério ocidental».

Nos primeiros meses de 1943 a Suécia, um país neutral, ofereceu-se para acolher 20.000 crianças judias provenientes da Europa ocupada pelos nazis, com a condição de a Grã-Bretanha e os Estados Unidos pagarem os custos da sua alimentação e se comprometerem a repatriá-las no final da guerra, mas o governo norte-americano demorou tanto tempo a dar uma resposta que a ocasião se perdeu.

Em Março desse ano surgiu uma nova oportunidade de salvar um número muito considerável de vidas, quando a Bulgária anunciou que autorizaria os seus 60.000 ou 70.000 judeus a emigrarem para a Palestina, mas também então os Aliados não deram seguimento ao projecto.

Pouco depois, um plano do Ministério dos Negócios Estrangeiros do Reich, que encarava a possibilidade de trocar 5.000 crianças judias eslavas pelos alemães detidos em território britânico, foi recusado pelo governo de Londres com o argumento de que não havia equivalência entre as duas situações porque as crianças não possuíam a cidadania britânica.

Jean-Michel Basquiat, graffiti sem título, 1981

Jean-Michel Basquiat, graffiti sem título, 1981

Com igual má vontade deparou a proposta do ditador fascista romeno, o marechal Antonescu, que em Julho de 1943 pretendia vender aos Aliados, pela módica quantia de 170.000 dólares, a vida de 60.000 ou 70.000 judeus. O Departamento de Estado norte-americano demorou oito meses para autorizar as organizações judaicas a depositar em bancos suíços o dinheiro prometido, e como entretanto o Ministério dos Negócios Estrangeiros britânico e o Ministério da Economia de Guerra se opunham, invocando a «dificuldade de receber um número considerável de judeus», acabou por não se fazer nada.

Do mesmo modo, quando o almirante Horthy, regente do Estado fascista húngaro, anunciou que, com o acordo das autoridades do Reich, autorizaria a saída de todos os judeus que tivessem recebido vistos para outros países, num total entre 17.000 e 20.000 pessoas, os governos britânico e norte-americano tardaram tanto a responder que entretanto o exército germânico ocupou o país e uma vez mais as democracias deixaram passar a oportunidade de salvar vidas judaicas.

Finalmente, em Abril de 1944, quando o aparelho produtivo nazi deparava já com obstáculos insuperáveis, Heinrich Himmler, Reichsführer SS, comissário do Reich para o Reforço do Germanismo e ministro do Interior, ou seja, o maior personagem do regime a seguir a Hitler, recorreu a um dirigente sionista húngaro para apresentar às potências aliadas ocidentais uma proposta em que se comprometia a poupar a vida de um número máximo de um milhão de judeus e a autorizar a sua emigração com a condição de receber em troca 10.000 camiões, para serem usados somente contra os soviéticos na frente leste, e de lhe serem dadas acessoriamente quantidades consideráveis de café, chá, cacau, sabão e ainda outros artigos. Os Aliados recusaram o negócio e chegaram mesmo a prender o intermediário durante alguns meses. Decerto lhes importava menos a vida dos judeus, e menos ainda encontrar alojamento para um milhão de refugiados, do que acelerar a deterioração das capacidades de transporte do Reich. O político e homem de negócios britânico que então desempenhava as funções de Ministro Residente no Cairo exclamou, ao interrogar o emissário: «Salvar um milhão de judeus! E para fazer o quê com eles? Onde os vamos pôr?».

Se vários milhares de antifascistas estrangeiros haviam sido encerrados pelos governos democráticos em campos de concentração; e se as autoridades soviéticas deportaram ou prenderam e até colocaram em campos de trabalho muitos mais milhares de socialistas e de comunistas dissidentes ou até ortodoxos; e se os judeus que poderiam fugir não tinham quem os recebesse, o que facilitou muitíssimo o programa nazi de extermínio − restaria alguém depois da guerra para pensar numa revolução?

Referências

A citação de uma equipa de eruditos acerca da ineficácia da conferência das Bermudas encontra-se em I. C. B. Dear e M. R. D. Foot (orgs.) The Oxford Companion to the Second World War, Oxford e Nova Iorque: Oxford University Press, 1995, pág. 864. A declaração do jornalista I. F. Stone no semanário nova-iorquino The Nation pode ler-se em Katrina Vanden Heuvel e Hamilton dos Santos (orgs.) O Perigo da Hora. O Século XX nas Páginas do The Nation, São Paulo: Scritta, 1994, pág. 245. As frases citadas a propósito da atitude tomada pelo Departamento de Estado norte-americano relativamente à proposta apresentada pelo embaixador da Turquia em Bucareste e relativamente à reacção do Ministério dos Negócios Estrangeiros britânico e do Ministério da Economia de Guerra perante a proposta feita pelo marechal Antonescu vêm em Raul Hilberg, The Destruction of the European Jews, Londres: W. H. Allen, 1961, pág. 720 n. 19 e pág. 721, respectivamente. O desabafo de Lord Moyne, Ministro Residente no Cairo, encontra-se citado em Henry L. Feingold, Bearing Witness. How America and Its Jews Responded to the Holocaust, Syracuse: Syracuse University Press. 1995, págs. 87-88. Os leitores interessados por uma análise mais ampla destes acontecimentos podem consultar o meu Labirintos do Fascismo. Na Encruzilhada da Ordem e da Revolta, Porto: Afrontamento, 2003, especialmente as págs. 675 e segs.


fonte: http://passapalavra.info/?p=9963

(c) Copyleft: É livre a reprodução para fins não comerciais, desde que o autor e a fonte sejam citados e esta nota seja incluída.

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Agir é preciso!


Todas e Todos!

É urgente a luta pela libertação do refugiado político Cesare Battisti. É a luta contra a criminalização da esquerda anticapitalista. Divulguem por todos os meios ao vosso alcance os artigos em defesa de Cesare! Participem na campanha! Agir é preciso!

Produtivismo no campo acadêmico: o engodo dos números

Produtivismo no campo acadêmico: o engodo dos números

Antonio Ozaí da Silva*

"Há gente demais desesperada em publicar”
(Lindsay Waters, 2006, p.88).

“... a política de “panelas” acadêmicas de corredor universitário e a publicação a qualquer preço de um texto qualquer se constituem no metro para medir o sucesso universitário. Nesse universo não cabe uma simples pergunta: o conhecimento a quem e para que serve?”
Maurício Tragtenberg1


Os números apontam crescimento da produção científica. A reitora da USP, por exemplo, comemora a classificação da instituição no ranking do Higher Education Evaluation & Accreditation Council of Taiwain, segundo ela “um dos mais aceitos no cenário mundial”. Os dados apresentados indicam que a USP subiu 22 posições em relação a 2008, ocupando o 78º lugar no ranking. Assim, está entre as mais prestigiadas instituições universitárias do mundo e é considerada a primeira na América Latina e no Brasil. Para Suely Vilela, isto “reflete a qualidade da pesquisa desenvolvida por docentes e estudantes da universidade e repercute o aumento substantivo (58,1%) da produção científica indexada de 2005 a 2008, registrando-se, nos últimos dois anos, crescimento de 26%”.2
Fico orgulhoso em saber que a instituição que me acolheu para fazer o doutorado foi tão bem classificada por um organismo que parece de suma importância. Fecho o jornal e acesso o site da instituição na qual trabalho. A UEM, afirma o texto, “é novamente a melhor universidade do Paraná pelo segundo ano consecutivo, conforme o ranking do Ministério da Educação (MEC), divulgado, hoje (31), e que é baseado no Índice Geral de Cursos (IGC). O IGC sintetiza em um único indicador a qualidade de todos os cursos de graduação, mestrado e doutorado. Além disso, divide as instituições por valores contínuos que vão de 0 a 500 pontos e em faixas que vão de 1 a 5”. A UEM “saltou para 343 (dois pontos a mais que o obtido no ranking anterior), e o conceito se manteve na faixa 4.”3
Quanto contentamento e orgulho! Quase explodo de emoção. Afinal, os números dizem tudo: somos os primeiros. Imagino que a qualidade de ensino em nossa universidade deve estar otimamente bem. A pesquisa, então, deve superar todas as expectativas. Por curiosidade, acesso a página da Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação e o meu orgulho se expande sem limites. Vejo que estamos entre as 20 melhores instituições em todo o Brasil.4 Não é pouca coisa!

Os números nos deixam otimistas, mas não dizem muito sobre a realidade das estruturas de poder e os aspectos psíquicos, sociais e políticos que envolvem a pressão para publicar. Os dados estatísticos são frios, próprios do pensamento positivista imperante que deseja quantificar tudo. Mas como quantificar a angústia, o sofrimento humano dos que estão submetidos à pressão para publicar? Como quantificar o que sente aquele que não consegue se adequar a esta exigência? Nem todos somos escritores, nem todos temos os mesmos recursos e habilidades. Nem todos querem escrever e publicar. No entanto, não publicar é uma espécie de suicídio acadêmico e a condenação à exclusão. Os números nada dizem sobre a qualidade do que é publicado. É preciso repetir: “Quantidade não é qualidade!”. Não faz muito tempo, o intelectual produzia uma a três obras em toda a vida e era reconhecida a sua importância. Intelectuais como Maurício Tragtenberg seriam pessimamente avaliados pelos critérios produtivistas da atualidade.5
Pelos critérios burocráticos acadêmicos de hoje, um livro cuja tiragem seja apenas 500 exemplares, desde que chancelado pela autoridade “científica”, tem mais valor do que um livro cuja tiragem tenha ultrapassado os dez mil e que tenha conquistado público e uma certa relevância político-social. E isto desconsiderando que muitas tiragens terminam por cumprir a função social de contribuir com os que precisam viver da venda de lixo reciclável. Para o autor, valeu o aprendizado e, principalmente, os pontos que soma na carreira acadêmica.
Agora, querem até mesmo classificar os livros publicados, “qualificá-los” à maneira do “Qualis”.6 O poder burocrático quer determinar o que é e o que não é relevante. Talvez imagine que seus critérios e métodos avaliativos são neutros e imparciais. O resultado será o fortalecimento do professor-burocrata e a imposição de uma hierarquização de obras e autores. Até onde vai esta mania de quantificar e classificar? Recuso-me a ser avaliado por estes experts. Não escrevo para eles, e por mais que quantifiquem não poderão medir adequadamente os efeitos positivos e/ou negativos do que é publicado.
Já chega o que foi feito com os periódicos, sempre em nome da busca da excelência.7 Tomemos este periódico, a Revista Espaço Acadêmico, como exemplo. Sua periodicidade é mensal, está no IX ANO e soma 100 edições. É uma quantidade razoável de artigos publicados. Como medir, porém, sua qualidade? Por acaso os critérios de avaliação dos senhores e senhoras do poder burocrático podem medir o impacto de cada artigo na vida dos seus autores e quanto à utilização do material publicado? Será possível quantificar a exata contribuição dessas 100 edições para os
graduandos, pós-graduandos, mestrandos, doutorandos, etc.? Como escritor é muito mais importante para mim saber que este texto foi lido e que contribuiu de alguma forma com os leitores do que a classificação “Qualis” do mesmo. Como autor, é muito mais recompensador saber que o que escrevo foi adotado por algum colega e discutido com seus alunos. Como autor, me realizo muito mais com o ato de escrever e de, assim, estabelecer “pontes” com os leitores. É-me muito mais importante saber que o meu aluno leu o que escrevo do que a informação de que o veículo em que publico tem “Qualis” “x” ou “y”.
Inverteu-se a ordem das coisas. O imperativo é publicar, ainda que não se saiba bem o que deve ser publicado e nem importa se alguém lerá. Como notou Waters: “O problema é a insistência na produtividade, sem a menor preocupação com a recepção do trabalho. Perdeu-se o equilíbrio entre estes dois elementos – a produção e a recepção. Precisamos restaurar a simetria entre eles. O problema está em fundamentar o acesso ao posto de professor como dependente da quantidade de publicações – publicações que poucos lêem” (WATERS, 2006, p.25).
Segundo o editor da Harvard University Press, “as publicações acadêmicas se tornaram tarefa em série, como as peças que rolam pelas esteiras de uma linha de montagem. A produção é ofuscada, do mesmo modo que a recepção de tais produtos”. Ou seja: “O produto é tudo que conta, não sua recepção, não o uso humano. Isso é produção de um fim em si mesmo e praticamente mais nenhum outro” (Id., p. 42). Estamos num ritmo de produção taylorista-fordista. Os números nada dizem sobre os efeitos perversos da corrida pelo Lattes. Os números nos enganam, nos dão a sensação de que estamos na direção certa, que tivemos “progresso” (outro palavra emblemática da ideologia positivista). Contudo,
“Este progresso é apenas uma aparência enganadora, mascarando a melancolia acadêmica. (...) O estudioso típico se parece cada vez mais com a figura retratada por Charlie Chaplin em seu Tempos modernos, trabalhando louca e insensatamente para produzir. Estaríamos tomados por uma força que ultrapassou nosso controle? Devemos nos render ou lutar? O que se pode fazer? (Id., p.51).
A julgar pelos senhores e senhoras, sábios da “Casa de Salomão” moderna, só nos resta a adaptação e aceitação dos seus critérios de quantificação e classificação. Mas a sabedoria da atualidade diz: “não formule grandes questões; não pergunte por que as coisas são como são” (Id., p.53). Isto é, fique dentro da baleia!8 Como assinala Waters: “A idéia que agora domina a academia é a de evitar as idéias” (Id., p.76). Cada vez mais pessoas reduzem o trabalho intelectual ao objetivo de conquistar postos, promoções, se dar bem em editais, etc. Abandonam “a aprendizagem como um valor em si em nome da busca por credenciais” (Id., p. 81). Aceitam a servidão voluntária. Porém, “enquanto aceitarmos esse sistema, permaneceremos dentro da baleia” (Id., p. 83). Numa sociedade em que tudo é quantificado, na qual o TER é o determinante, em detrimento do SER; na qual a aparência é fundamental e aparecer é o que conta, os resultados expressados pelas estatísticas parecem dizer tudo o que é preciso saber sobre a universidade e o que se faz no campus. Não é por acaso que os políticos, e nisso acompanham com prazer os economistas, adoram apresentar dados estatísticos. E, claro, isto também é objeto de disputa política. Quanto mais os números apresentem umaimagem positiva, maior a possibilidade de ganho político.
Tudo isso parece muito “normal”, muito “natural”. Parece lógico que devamos nos alegrar pelos índices positivos, os quais geram um certo deslumbramento institucional e manchetes em jornais. Tudo está de acordo com o discurso da competência.9 E se está dando certo – com o perdão do gerundismo! – por que questionar? Quem o fizer, corre o risco de ser classificado como “chato”, “eterno descontente”, “pessimista de plantão” e coisas do tipo.
O papel do intelectual é duvidar, é tentar ver para além dos números, desvelar o que o que se esconde sob a aparência dos fatos, das estatísticas. Podemos passar a vida a desempenhar nossas tarefas práticas, a nos ocuparmos com a “produção científica”, a escrever artigos “científicos” e, não obstante, nos limitarmos a contemplar o mundo, a vivermos o medíocre cotidiano das nossas vidinhas. O intelectual é crítico, autocrítico, incomodado, angustiado e comprometido. Como escreveu Edward Said: “A ameaça específica ao intelectual hoje, seja no Ocidente, seja no âmbito não ocidental, não é a academia, nem os subúrbios, nem o comercialismo estarrecedor do jornalismo e das editoras, mas antes uma atitude que vou chamar de profissionalismo.
Por profissionalismo eu entendo pensar no trabalho do intelectual como alguma coisa que você faz para ganhar a vida, entre nove da manhã e cinco da tarde, com um olho no relógio e outro no que é considerado um comportamento apropriado, profissional – não entornar o caldo, não sai dos paradigmas ou limites aceitos, tornando-se, assim comercilizável e, acima de tudo, apresentável e, portanto, não controverso, apolítico e “objetivo” (SAID, 2005, p. 78).
O ethos predominante no campus caracteriza-se pelo conformismo diante das estruturas políticas e sociais e a busca incessante de mostrar produtividade. Os “improdutivos” são criticados pelos próprios colegas e excluídos de programas de mestrados e atividades afins. E os envolvidos que não conseguem cumprir as metas de “produtividade” exigidas são pressionados e convidados a saírem. A quantidade da produção é o cartão de visitas do profissional que é visto, e ver a si mesmo, como um intelectual. Devemos nos perguntar: por que escrever e publicar? Por que nos submeter à pressão produtivista sem questionar seus fundamentos? Por que aceitar que as estruturas burocráticas determinem o que devemos fazer das nossas vidas? Afinal, para que
servem tantos artigos “científicos”? Em que consiste o caráter “científico”? Na mera obediência aos padrões normativos? Quais as conseqüências da corrida pelos números em nossas vidas, na relação com os nossos alunos e colegas de trabalho? Qual a cultura que contribuímos para fortalecer quando simplesmente nos adaptamos e aceitamos as regras e normas como se fossem inexoráveis? Claro, há recompensas simbólicas e materiais. Eis um fator importante que nos ajuda a compreender a produção taylorista-fordista no campus. Sabemos como essas coisas funcionam. Se questionarmos, nos jogam na cara o argumento de que os que estão nas estruturas que determinam as normas que direcionam a vida acadêmica são nossos pares. Além de não contestar o poder burocrático, ainda querem nos responsabilizar por sua permanência. Não sei dos demais colegas, mas no que me toca, não indiquei nem elegi ninguém para me representar nestes organismos que se consideram superiores e agem como tal. Ao poder burocrático interessa manter a ordem das coisas, sua força advém da aceitação da cultura produtivista. Seus alicerces estão bem fincados no ethos do profissional acadêmico de hoje e na aceitação acrítica das ordens de cima. Infelizmente, esta servidão voluntária predomina até mesmo em setores da universidade dos quais se espera a atitude da reflexão crítica. O poder burocrático não é uma
abstração, mas aparatos materiais com gente de carne e osso. Ele se legitima pelo conformismo e capacidade de adaptabilidade dos pares. Que os que dão vida aos aparatos burocráticos falem em nome dos que os apóiam, mas não em meu nome! A necessidade de critérios para a avaliação das atividades no campus não justifica a camisa-de-força do poder burocrático. A exigência de mais e mais produção científica produz deformações e estimula atitudes anti-éticas e abusivas. No limite, abre as portas para práticas nada condizentes com o que se espera dos intelectuais e favorece a delinqüência acadêmica. É lógico que não podemos fechar os olhos ou nos
considerarmos totalmente isentos dos “pecados” inerentes à cultura produtivista. Como editor de revista, por exemplo, compreendo a angústia dos colegas diante da exigência de publicação. Até entendo a pressa que têm em publicarem. Disto, muitas vezes, depende a carreira a acadêmica, a aprovação em determinados estágios. É o futuro que está em jogo. Por outro lado, é preciso diferenciar entre a atitude motivada pela necessidade imperiosa de publicar, mas que se mantém dentro dos limites do razoável e ético, e aquele que beira as raias da delinqüência acadêmica. Ou seja, nem todos somos delinqüentes acadêmicos.10 Nem todos aceitamos acriticamente os números. Eles dizem tudo e nada; eles expressam parcela da realidade criada por nós, mas também escondem muito.

NOTAS
* Professor do Departamento de Ciências Sociais (UEM); Editor da Revista Espaço Acadêmico, Revista Urutágua e Acta Scientiarum. Human and Social Sciences; e membro do Conselho Editorial da Editora da Universidade Estadual de Maringá (EDUEM).
1 TRAGTENBERG, Maurício. A delinqüência acadêmica. REA, nº 14, julho de 2002.
2 VILELA, Suely. USP e reconhecimento internacional. Folha de S. Paulo, 30 de agosto de 2009, p. A3.
3 UEM. Novamente a UEM é a melhor do Paraná, segundo o MEC, 01.09.09. Acesso em 01.09.09.
4 “Segundo o levantamento, a UEM publicou 272 artigos no ano passado. A Universidade de São Paulo (USP) foi a instituição brasileira que mais publicou: 4.804. Em segundo lugar, ficou a Unicamp, com1.743 artigos, seguida pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com 1.516 publicações”. Os dados são de 2007 e a informação foi publicada 22 de julho de 2008. E tudo indicava melhoria no ranking. No mesmo site, informa-se que no primeiro semestre de 2008, segundo o ISI (Instituto de Informação Científica), a UEM já tinha 209 artigos publicados. No site da PPG, há dados detalhados sobre a produção docente, inclusive com acompanhamento semanal e outros tipos de quantificação.
5 Certa feita, a “produção acadêmica” do Professor Maurício Tragtenberg precisou ser avaliada. É muito instrutivo o parecer e vale a pena lê-lo:“Os que conhecem a atividade docente do Prof. Maurício Tragtenberg, dentro e fora da sala de aula, sua atividade como escritor e conferencista, ficam decepcionados com o relatório – não porque o Prof. Tragtenberg tenha feito pouco, mas porque o muito que fez parece pouco em um formulário padronizado de mais de vinte folhas, em que a maior parte dos itens fica em branco. O problema não é com o Prof. Tragtenberg: é com o relatório que o obrigam a preencher. Fico imaginando o tempo que ele deve ter gasto decidindo se um artigo seu foi publicado em “periódico especializado” ou em “periódico não-especializado”, ou então se deve ser classificado como “publicação de caráter variado”. Que desperdício de tempo! Imagino que, dentre os que vão ler o relatório, muitos considerem um artigo publicado em periódico especializado (em quê?) provavelmente mais importante do que outro publicado em periódico não especializado, e certamente mais importante do que algo classificado apenas como publicação de caráter variado. Mas será essa gradação (supondo que realmente exista) justificável? Receio que não. Conheço muitos artigos de divulgação que são muito mais profundos e valiosos do que muita irrelevância que se publica apenas por ser (ou se supor) especializada.
Karl Popper uma vez disse que a especialização pode ser uma grande tentação para o cientista natural, mas para o pensador crítico (que ele chama de “filosófico”) é um pecado mortal. Desse pecado mortal ninguém pode condenar o Prof. Tragtenberg.” “Parecer sobre o relatório de Atividades do Prof. Maurício Tragtenberg”, de 04 de outubro de 1991, assinado por Eduardo O. Chaves, Fermino Fernandes Sisto e Newton Aquiles Von Zuben.
6 Na 111ª Reunião do CTC, realizada em 24 de agosto de 2009, foi aprovado um roteiro para implementar esta avaliação. Ver http://www.capes.gov.br/images/stories/download/diversos/RoteiroLivros.pdf.
7 Ver “A sua revista tem Qualis?”, REA, nº 56, janeiro de 2006.
8 “As entranhas da baleia”, escreve George Orwell, “são apenas um útero grande o suficiente para conter um adulto. Lá ficamos, no espaço almofadado e escuro em que nos encaixamos perfeitamente, com metros de gordura entre nós e a realidade, capazes de manter uma atitude da mais completa indiferença, não importa o que aconteça” (ORWELL, 2005, p. 135).
9 Ver “Apologia da competência e a defesa da universidade pública”, REA, nº 14, Ano II, julho de 2002.


Referências
ORWELL, G. (2005) Dentro da baleia e outros ensaios. São Paulo: Companhia das Letras.
SAID, Edward W. (2005) Representação do Intelectual: as Conferências Reiht de 1993. São Paulo: Companhia das Letras.
TRAGTENBERG, Maurício. “A delinqüência acadêmica”. REA, nº 14, julho de 2002.
VILELA, Suely. USP e reconhecimento internacional. Folha de S. Paulo, 30 de agosto de 2009, p. A3.
WATERS, Lindsay. (2006). Inimigos da esperança: publicar, perecer e o eclipse da erudição. São Paulo: Editora da UNESP.
10 Sugiro a leitura de “Somos todos delinqüentes acadêmicos?”, REA, nº 88, setembro de 2008.

fonte: http://periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/8148/4571

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Os náufragos (2ª Parte)

Os náufragos (2ª Parte)

Quem soube lutar contra uns saberá lutar contra outros, foi este o pensamento que presidiu em todos os casos à atitude que o bureau político staliniano tomou para com os refugiados. Por João Bernardo

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Asger Jorn, «Olhando o passado», 1962

Por que não se exilaram na União Soviética os fugitivos do fascismo, acabando por ser presos nas democracias? Mas é que muitos deles se exilaram, pois era ali o país da revolução de Outubro, a pátria do socialismo. E o que lhes aconteceu?

Se centenas de combatentes republicanos na guerra civil espanhola foram internados em França no campo de concentração de Le Vernet, a sorte de muitos outros não foi melhor na União Soviética. Quem se revelara capaz de lutar num lado poderia fazê-lo no outro, além do que, os comunistas espanhóis haviam mostrado uma capacidade de mobilização e de organização incómoda numa situação em que só se pretendia a obediência passiva. Stalin e o seu bureau político não tinham disposição para correr riscos e enviaram para campos de trabalho numerosos refugiados da guerra civil espanhola.

Robert Motherwell, «Elegia à república espanhola, nº 70», 1961

Robert Motherwell, «Elegia à república espanhola, nº 70», 1961

«Dos 6.000 militantes comunistas espanhóis chegados à URSS, quando eu me evadi mal tinham sobrevivido 1.200», declarou Valentín González, o lendário El Campesino, numa das audiências de um processo num tribunal francês acerca da questão dos campos de concentração soviéticos. Ele, que fora um dos principais chefes comunistas durante a guerra civil, sabia do que falava. Na batalha de Guadalajara, em Março de 1937, as tropas italianas ao serviço de Franco haviam sido derrotadas pelos milicianos comandados pelo anarco-sindicalista Cipriano Mera e pelos comunistas Lister e El Campesino, ajudados por brigadas internacionais e pelos tanques do general soviético Dimitri Pavlov. Com a vitória dos fascistas El Campesino partiu para a União Soviética, onde entrou em desavença com a linha oficial e foi detido num campo de concentração, conseguindo a notável proeza de fugir, atravessando toda a Rússia de norte a sul e refugiando-se na Pérsia. Mas as autoridades britânicas capturaram-no e devolveram-no aos soviéticos. Internado então num dos mais terríveis campos de trabalho, onde lhe deram a incumbência de limpar as latrinas, El Campesino escapou de novo, desta vez com êxito.

Houve outros exemplos, mais notórios ainda, de cooperação entre forças policiais. Depois da ocupação da França pelas tropas do Eixo, a direcção do Partido Comunista francês apelou para que os alemães e austríacos detidos em Le Vernet e noutros campos de concentração franceses regressassem voluntariamente ao Reich. Era a época em que vigorava o Pacto Germano-Soviético, e se ignoro quantos antifascistas seguiram aquele conselho e se enfiaram de livre vontade na boca do lobo, é mais conhecida a história dos que foram para lá enviados à força. Com efeito, em seguida à assinatura dos acordos diplomáticos com o Reich, os dirigentes de Moscovo entregaram aos nazis várias dezenas de comunistas dissidentes alemães e autríacos, que estavam presos na União Soviética.

Georg Baselitz, «Onde está a malga de leite amarela, senhora Pássaro?», 1989

Georg Baselitz, «Onde está a malga de leite amarela, senhora Pássaro?», 1989

Margarete Buber-Neumann, que conheceu os campos de concentração soviéticos e os nazis, narrou a sua experiência num dos depoimentos fundamentais para a compreensão daquela época. Ela fora casada com o filho do notável filósofo judeu alemão, depois israelita, Martin Buber, e após o seu divórcio casou-se com Heinz Neumann, um dos mais interessantes e menos estudados agentes da Internacional Comunista, especialista em insurreições armadas. Stalin enviara-o à China e, malgrado a sua intervenção catastrófica no levantamento de Cantão em Dezembro de 1927, ele continuou a beneficiar da confiança daquele que era já o homem mais poderoso do comunismo mundial. Neumann tornou-se então o representante pessoal de Stalin no interior do Partido Comunista alemão e foi ele quem verdadeiramente o dirigiu desde Outubro de 1928 até Outubro de 1932, encaminhando-o ainda mais decididamente para a nefasta perspectiva nacionalista e virada para o diálogo com a extrema-direita radical que analisei noutro artigo publicado neste site. Em Outubro de 1932 tornou-se público que Neumann caíra em desgraça e fora afastado do bureau político, embora a orientação ultranacionalista que ele preconizara se mantivesse em vigor, a tal ponto que a declaração oficial do Partido o acusou de não proceder a uma luta suficientemente intensa contra a social-democracia. Neumann foi então relegado para funções secundárias e empregue em missões de menor importância, até que em 1937 ele e Margarete foram presos na União Soviética e enviados para campos de concentração.

Francis Bacon, «Criança paralítica andando de gatas», 1961

Francis Bacon, «Criança paralítica andando de gatas», 1961

Em 1940, ao abrigo do Pacto assinado com o Reich, as autoridades soviéticas retiraram dos seus campos de concentração várias dezenas de prisioneiros alemães e austríacos e entregaram-nos às autoridades nazis, que os meteram a todos em campos de concentração. Margarete Buber-Neumann contava-se entre eles. As suas responsabilidades no movimento comunista nunca haviam sido grandes e ela notabilizou-se sobretudo pelo testemunho que nos deixou, mas outras figuras que tiveram um importante papel político seguiram o mesmo percurso atribulado. August Creutzburg, por exemplo, um dos muitos que em 1920 transitaram do Partido Social-Democrata Independente para o Partido Comunista alemão, onde assumiu funções dirigentes, sobretudo a partir de 1929, emigrou em 1933, depois de Hitler ter alcançado o poder, e refugiou-se na União Soviética em 1935. Preso em 1937, foi entregue aos nazis em 1940. Destino semelhante teve Franz Koritschoner, um dos fundadores do pequeno Partido Comunista da Áustria. Refugiado e depois preso na União Soviética, foi entregue aos nazis em 1940.

Enquanto os dirigentes soviéticos remetiam à procedência várias dezenas de comunistas dissidentes alemães e austríacos, em sentido inverso dezenas de milhares de polacos fugiam da zona do seu país ocupada pelo Reich para a zona ocupada pelo Exército Vermelho. Mas reproduziu-se com eles o mesmo dilema em que o bureau político staliniano se encontrara perante os exilados da guerra civil de Espanha, com a agravante de que a esmagadora maioria dos refugiados polacos não era comunista e simplesmente, entre dois males, preferira Stalin a Hitler. Além disso, os numerosíssimos judeus polacos sabiam que na zona de ocupação soviética não seriam encerrados em ghettos e, depois, exterminados.

Mas Stalin não hesitou e decretou a detenção sistemática de toda aquela massa humana, tanto em prisões, para os suspeitos de activismo político, como em campos de trabalho, para os restantes. Contando com os refugiados e com aqueles que já antes habitavam a zona do seu país ocupada pelos soviéticos, calcula-se que a partir da Polónia oriental tivesse sido deportado cerca de um milhão de pessoas, quer para prisões e campos de trabalho quer para residirem obrigatoriamente em outras regiões. A última vaga de deportações incluiu uma elevada percentagem de membros do próprio Partido Comunista, especialmente os que haviam organizado os Comités Locais antes da chegada do Exército Vermelho, e de membros das Milícias Operárias. Só depois do ataque nazi à União Soviética, em 22 de Junho de 1941, que levou à assinatura do tratado entre Stalin e o general Sikorski, primeiro-ministro do governo polaco no exílio e comandante-chefe das forças polacas livres, é que os prisioneiros polacos foram libertados.

As detenções maciças de refugiados revelam que os dirigentes soviéticos queriam, por um lado, evitar que a população russa tomasse contacto com pessoas que tinham conhecido outros sistemas políticos e outras formas de vida e cujas mentalidades não haviam sido formadas pela propaganda staliniana; e, por outro lado, temiam a presença de exilados políticos que haviam dado mostras de coragem e de determinação e estavam ligados entre si por redes organizacionais independentes do monolitismo soviético. Quem soube lutar contra uns saberá lutar contra outros, foi este o pensamento que presidiu em todos os casos à atitude tomada para com os refugiados.

Jackson Pollock, «A Loba», 1943

Jackson Pollock, «A loba», 1943

Enquanto vigorou o Pacto Germano-Soviético, as mesmas deportações maciças que se verificaram a partir da Polónia oriental ocorreram também a partir dos Estados bálticos, e note-se que entre as categorias de lituanos condenados à deportação contavam-se todos os membros dos partidos e facções de esquerda e extrema-esquerda, com excepção dos comunistas de obediência staliniana.

Pelas mesmas razões que o haviam levado a prender combatentes da guerra civil espanhola e antifascistas polacos e lituanos, o bureau político staliniano decidiu, terminada a guerra, internar em campos de concentração muitos, ou mesmo a maior parte, dos militares soviéticos que tinham sido aprisionados pelas forças do Eixo. Era comum a justificação de que esses militares haviam demonstrado pouca combatividade, pois não lutaram até à morte, mas o argumento revela uma completa indiferença quanto às condições em que se processara uma guerra onde os confrontos pessoais quase não existiam e onde se executavam deslocações de enormes massas humanas. A coragem individual pouco contribuía para que massas de soldados fossem ou não cercadas. Uma vez mais, vemos o que os dirigentes stalinianos realmente temiam ao sabermos que entre os antigos prisioneiros de guerra soviéticos condenados ao internamento nos campos de concentração da Sibéria estavam incluídos aqueles que se haviam destacado na formação de organismos de resistência dentro dos campos de concentração nazis. «Numerosos russos que haviam sobrevivido aos campos de concentração nacionais-socialistas foram depois internados nos do seu país. Mesmo um oficial superior como Nikolay Simakov, unanimemente considerado como o responsável pelos grupos de resistência russos em Buchenwald, foi posto depois da guerra nas prisões soviéticas», observa Hermann Langbein, um dos melhores especialistas do assunto. «Jorge Semprun, que naquela época foi um quadro superior do Partido Comunista espanhol e que esteve ele próprio internado em Buchenwald, escreve que “a maior parte [dos detidos soviéticos] passou directamente dos campos alemães para os gulags stalinianos”».

Mas os judeus, que a todo o custo procuravam escapar do Reich e dos territórios ocupados pelos nazis, não teriam eles encontrado nas democracias um refúgio mais ameno do que a deportação e os campos de trabalho com que as autoridades soviéticas os mimosearam até Junho de 1941?

Referências

As declarações de El Campesino na audiência de 15 de Dezembro de 1950 do processo movido por David Rousset, antigo deportado num campo de concentração nazi, contra o jornal comunista Les Lettres françaises encontram-se em Le Procès des Camps de Concentration Soviétiques, [Paris]: Dominique Wapler, 1951, pág. 88. A declaração oficial do Partido Comunista alemão relativamente ao afastamento de Heinz Neumann vem citada em Hermann Weber, La Trasformazione del Comunismo Tedesco. La Stalinizzazione della KPD nella Repubblica di Weimar, Milão: Feltrinelli, 1979, pág. 256. O testemunho de Margarete Buber-Neumann acerca dos campos de concentração soviéticos e nazis constitui a integralidade do seu livro Under Two Dictators, Londres: Victor Gollancz, 1949. Uma vez mais, foi Arthur Koestler um dos poucos autores a interessar-se pelo destino dos fugitivos políticos de esquerda na Europa de leste durante a segunda guerra mundial. Veja-se o seu livro The Yogi and the Commissar and Other Essays, Nova Iorque: Collier, 1961, sobretudo as págs. 180 e segs. A citação relativa à detenção em campos de concentração soviéticos dos antigos prisioneiros de guerra soviéticos no Reich encontra-se em Hermann Langbein, La Résistance dans les Camps de Concentration Nationaux-Socialistes, 1938-1945, [Paris]: Fayard, 1981, pág. 203 n. 17.


fonte: http://passapalavra.info/?p=9960

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terça-feira, 8 de setembro de 2009

Da Alienação à Depressão – caminhos capitalistas da exploração do sofrimento (5ª Parte - Final)

Da Alienação à Depressão – caminhos capitalistas da exploração do sofrimento (5ª Parte - Final)

O sofrimento, a depressão, a angústia, a solidão em suas mais variadas formas e graus são apenas a renovação de um apelo a resgatarmos o que de mais autenticamente humano ficou esquecido nas asas do tempo… O importante é que faça as pessoas se reconhecerem no drama do outro, perceberem que as coisas são o que são porque deixamos de agir ou porque só atuamos numa determinada direção… Por Emilio Gennari

5. Entre o prego e o martelo

- “É pra ter… medo… ou… esperança?!?”, indaga desconfiado o homem ao apoiar o rosto na palma da mão.

f_aliendepressao4- “Nem uma coisa nem outra – responde imediatamente a coruja. De início, trata-se de entender e trabalhar os estreitos espaços deixados vazios pela lógica dominante na medida em que o mundo por ela projetado entra em contradição com a realidade do trabalhador, com suas expectativas, suas razões de sofrimento, enfim, com tudo aquilo que aumenta nele a sensação de incerteza. Exatamente por isso, não podemos esperar grandes aberturas para a agitação e a mobilização, mas apenas a chance apertada de ocupar o incômodo espaço entre o prego das idéias e o duro martelo de um sistema explorador. Neste sentido, somos chamados a transformar a esperança em projeto concreto, em instrumento de intervenção cotidiana, em tentativas que podem abrir brechas na mata fechada da realidade que o capitalismo contemporâneo entrega à história. Só assim a esperança não se transforma em ilusão e começa a ganhar cor e forma”.

- “Então, que instrumentos você apontaria para começar a alterar os rumos dos acontecimentos?”, insiste o secretário ao não se dar por vencido.

Passo a passo, Nádia se aproxima do seu ajudante, envolve seu ombro esquerdo com o calor da asa e, com voz pausada, sugere:

- “Aos homens e mulheres que buscam organizar o local de trabalho como base fundamental de um processo de mudança social podemos dar apenas algumas dicas vindas ora de reflexões, ora de experiências que tentam reverter o clima de servidão coletiva no âmbito do qual se dá o aniquilamento do indivíduo como ser humano.

Como quem procura uma vacina capaz de neutralizar as investidas de um vírus poderoso, a fase em que nos encontramos como movimento não permite sugerir fórmulas testadas, mas somente indicações de por onde é possível criar e alimentar dúvidas nas certezas do senso comum.

Entre os primeiros passos, está a necessidade de desenvolvermos nossa capacidade de ouvir os sons do silêncio e captar a carga de sofrimento que eles expressam através das posturas, dos gestos e das expressões dos colegas. Trata-se, por exemplo, de mapear os momentos em que nos deparamos mais freqüentemente com atitudes agressivas ou com a ansiedade acentuada por situações de espera prolongada, as respostas individuais diante de tarefas particularmente penosas ou perigosas, o desaparecimento das ocasiões informais de confraternização ou de sua utilização e desvirtuamento pela empresa a ponto de alterar o sentido e o clima das relações entre as pessoas.

Além disso, precisamos detectar e detalhar os fatores que introduzem ou alimentam o medo, a desconfiança recíproca, o desânimo e a resignação ao lado dos que provocam reações instintivas e adversas quando do não-reconhecimento dos próprios méritos ou dos esforços despendidos, as razões de tensão e conflito entre indivíduo e equipes, o que destrói o sentimento de confiança recíproca e a capacidade de se indignar diante da injustiça.

Se a análise do individualismo e do isolamento do sujeito no âmbito do trabalhador coletivo que apresentamos acima como elementos que levam a um fechamento de cada um em sua esfera privada pode oferecer um ponto de partida suficiente, a possibilidade de mudar a realidade vai depender da sensibilidade com a qual fazemos a leitura do que é próprio de cada ambiente de trabalho, de como cada patrão (público ou privado, pouco importa) desorganiza o nosso time e leva cada empregado a procurar suas válvulas de segurança diante do sofrimento físico e psíquico ao qual está sendo submetido. Trata-se, enfim, de conhecer profundamente a cobra para poder desenvolver um soro apropriado.

Colocar-se em posição de ouvir, porém, não significa apenas mapear silenciosamente os sinais com os quais os colegas expressam suas sensações, medos e expectativas, mas também se preparar para um longo processo de reconstrução das relações de amizade, confiança e solidariedade sem as quais será impossível consolidar um mínimo de identidade coletiva capaz de criar vínculos, fortalecer cumplicidades e preparar o terreno para a vivência de novos valores, idéias e formas de comportamentos com as quais estimular o sentimento de indignação e rebeldia.

Ouvir o sofrimento com esta postura é ter consciência de que quem o expressa nutre a expectativa de um alívio ou, pelo menos, de uma mudança ainda que inicialmente confusa, incipiente e contraditória. Isso exige desprendimento, paciência, capacidade de penetrar na visão de mundo do outro sem julgamentos pré-concebidos, mas com a acuidade de quem procura abrir canais de comunicação que permitam entrar em sintonia e se fazer entender pelo colega, ganhar sua confiança e, em seguida, levá-lo a refletir sobre suas percepções e vivências, a questionar o que havia sido interiorizado como normal ou natural e a adotar novas atitudes e novos valores.

Paralelamente a isso, sempre e quando a situação o tornar oportuno, a militância deve começar a dar voz ao silêncio, ou seja, a colocar em palavras o que o conjunto das pressões dentro e fora dos locais de trabalho procura calar. Longe de fazer discursos, assumir posturas radicais (que se revelam tão ridículas quanto incapazes de esconder a falta de meios para serem transformadas em realidade) ou até mesmo de expressar o que seria imediatamente necessário sem que haja a menor condição para implementá-lo (o que faz as pessoas se retraírem como ouriços ou concordarem com o que é dito só para serem deixadas em paz), a palavra tem que expressar prioritariamente o longo e silencioso trabalho pelo qual a nova interpretação do cotidiano abre seu caminho entre as resistências do senso comum.

A fala tem que ser tão sincera e aberta quanto basta para sugerir, alertar, questionar compreensões não como quem ensina de cima pra baixo, mas como quem também está procurando, e, na medida do possível, deve introduzir o colega na possibilidade de olhar para o próprio sofrimento, de se reconhecer no que está sendo dito; e tão respeitosa da individualidade do outro e da insegurança que nasce nele ao se ver descoberto no que cobria com seu silêncio a ponto deste não fugir diante dela, não se esconder automaticamente em suas formas de defesa, mas de começar a ouvir o que soa incomum num ambiente no qual toda manifestação de sofrimento tende a ser recebida como estranha, indesejada, símbolo de fraqueza ou de falta de vontade de se superar”.

- “E que aspectos você acha que podem ser trabalhados com a postura que está sugerindo?”, pergunta o secretário entre a incerteza e a desconfiança.

Apoiando o queixo na ponta da asa, a ave permanece pensativa por alguns instantes. Em seguida, emite um longo suspiro e, sem alterar o tom de voz, responde:

Desconstruir os discursos empresariais

- “Talvez, a primeira coisa a fazer seja a de proceder de forma sistemática e rigorosa à desconstrução do discurso da empresa e das formas pelas quais esta se aproveita das percepções do senso comum para afirmar como natural e verdadeiro algo que não o é. Mais do que costurar longas e detalhadas intervenções, é bom que organizadores e organizadoras se capacitem a captar a realidade que é dissimulada e a devolvê-la aos colegas através de perguntas simples e diretas. Isso significa que se faz necessário tanto um aprofundamento da análise e um levantamento dos métodos utilizados na distorção da comunicação interna, como a coleta de testemunhos e acontecimentos que, ao serem lembrados na forma de indagações levam a colocar sob suspeita a visão de mundo com a qual os demais interpretam a realidade.

f_aliendepressao1Na mesma linha, faz-se necessário ajudar as pessoas a tocarem a inversão de valores da qual falamos nas páginas anteriores, a constatarem a que interesses reais ela responde e como estes se escondem nas atitudes que a introduzem no trabalhador coletivo. Neste âmbito, não só é possível mostrar a diferença entre a coragem e a virilidade, mas como a segunda é irmã gêmea da covardia para consigo próprio e com os demais. Ao resgatar que a coragem se dispõe a lutar contra a correnteza e que a virilidade é uma artimanha sutil para levar as pessoas à servidão coletiva, não vai ser difícil colocar em evidência que só crescemos como seres humanos quando ao menos tentamos enfrentar o nosso medo.

Por esse caminho, precisamos construir não só relações de amizade e confiança que reabilitem a reflexão aberta sobre o medo e o sofrimento no trabalho, mas podemos fazer com que nossa ação comece a combater o cinismo e as expressões pelas quais a inversão de valores e posturas éticas permite a banalização do mal, o adormecimento do sentimento de indignação e a desmobilização da ação política. Além de dar o nome aos bois e de evidenciar as conseqüências reais da aceleração dos ritmos, das demissões, do envolvimento nas metas, da assimilação dos supostos processos de auto-realização oferecidos pelas empresas, trata-se de levar as pessoas a vivenciarem pequenos gestos de coragem destituídos de virilidade, ou seja, de assumir pequenas rebeldias que, ao serem praticadas, começam a resgatar condutas que, sem alarde, introduzem questionamentos reais no ambiente de normalidade servil instalado nos locais de trabalho.

Neste contexto, até mesmo as expressões com as quais os colegas sublinham seus anseios de um trabalho melhor, menos penoso, não-repetitivo, do qual seja afastada toda insalubridade e periculosidade podem começar a ser tratadas apontando que toda mudança no sentido de atender a estes anseios depende de uma conquista coletiva a ser viabilizada e não de uma dádiva que, um dia, virá pela compreensão amistosa dos patrões. Por progressista e modernizante que seja, toda medida empresarial tem por objetivo aumentar o controle do capital sobre o trabalho, elevar a produtividade e reestruturar as relações tanto quanto basta para garantir a continuidade e o aprofundamento da exploração. Neste processo, empregado ou parceiro, peão ou colaborador, pouco importa qual é o nome pelo qual são chamados os trabalhadores, eles vão continuar sendo um prolongamento da máquina que, por mais forte, criativo e servilmente dedicado que seja, não deixará de ter sua criatividade sugada, sua energia dilapidada e seu corpo danificado até ser definitivamente afastado do processo produtivo para o qual acreditava ser um elemento insubstituível.

Um trabalho de base que acompanhe as formas sugeridas tem boas chances de questionar também as razões pelas quais as pessoas adotam a servidão voluntária como caminho para o reconhecimento social. Sem ter a pretensão de dar lições de moral, é possível mostrar como a lógica que orienta as posturas adotadas na empresa torna-se base para fortalecer o cotidiano fora dela numa reação em cadeia que alimenta a submissão na mesma medida em que o desejo de reconhecimento alheio, via realização de sonhos de consumo, é tida como etapa fundamental na construção da própria identidade e realização pessoal. A busca incessante das que chamamos de ‘próteses do prazer’ inverte nossa relação com as coisas que nos rodeiam.

O ter para sentir o ser

Na medida em que a identidade do indivíduo, e, portanto, o seu equilíbrio mental, deita raízes no ter o maior número de coisas possíveis, não é o sujeito a possuir as coisas, mas sim são elas que o possuem e o transformam em objeto que destina a vida inteira a seu serviço. Sempre que as mercadorias são parte do seu ser a ponto de ‘não poder mais viver sem isso’, a possibilidade de perder o que foi adquirido leva o indivíduo a se tornar prisioneiro da preocupação de não vir a ter o que possui, a se cercar do desnecessário para se sentir mais protegido contra a frustração e a reafirmar inconscientemente os fatores que reforçam sua servidão voluntária ao que a sociedade capitalista oferece como vacina contra a solidão e caminho para o sucesso.

f_aliendepressao7A percepção dessa realidade pode deixar um gosto amargo na boca, a sensação de ver desmoronar os castelos de areia pacientemente construídos ou até mesmo uma profunda insegurança oriunda do vazio que fica quando as convicções anteriores desabam diante das contradições em que estão inseridas. O problema está no fato de que é quase impossível alterar o rumo geral dos acontecimentos se a luta pelas questões específicas do trabalho não se aliar e se inserir no esforço para questionar e equilibrar o peso das relações entre as coisas e as pessoas pelo menos na vida daqueles que partilham momentos prolongados e preciosos de um mesmo cotidiano. Do contrário, será sempre necessário trabalhar mais para ter mais. Será impossível manter vínculos que não impliquem em ganhos imediatos. E ninguém vai ser capaz de renunciar a nada pessoal para vivenciar com gratuidade momentos coletivos por simples e abertos que sejam”.

- “Puxa… Isso é bem complicado!”, afirma o secretário ao adiantar a justificativa de sua possível falta de envolvimento.

- “Você não deixa de ter razão – reconhece a coruja ao balançar a cabeça. E o problema aqui não está no fato de que, para nós trabalhadores, nada é fácil e tudo deve ser pacientemente construído e conquistado. As relações que o capital foi construindo são de tamanha profundidade que, em plena crise econômica, a confiança das pessoas nas grandes empresas e na possibilidade destas atenderem às demandas sociais, aos sonhos de consumo e realização, passou de 61%, em 2008, para 67%, em janeiro de 2009. Parece um paradoxo, mas tudo não passa de uma amostra bem simples de que quando as mudanças necessárias para garantir a vida coletiva são tão profundas a ponto de fazerem os indivíduos suspeitarem que o nível de satisfação já alcançado pode sofrer algum desgaste, o homem-massa costuma preferir a catástrofe futura aos sacrifícios imediatos para conseguir viabilizá-las.

A insegurança da crise acaba alimentando o medo do desconhecido que, por sua vez, se transforma em carrasco do novo, de tudo aquilo que sugere algo diferente em relação ao patamar consolidado, por baixo e precário que seja. Em breves palavras, é como se além da dificuldade de vencer a inércia na hora de empurrar o carro, tivéssemos que lidar com um motorista que, inseguro e desconfiado, pisasse seguidamente no freio desgastando assim as energias de quem procura tirá-lo do sufoco. Por isso, além de muita paciência, insistência, transparência, honestidade e autenticidade, a ação da militância não pode se restringir à denúncia de algumas peças soltas do mundo do trabalho, mas deve, na medida do possível, conectar sua crítica real aos aspectos da totalidade nos quais o trabalhador coletivo precisa visualizar a possibilidade de buscar sua nova identidade, de exercer sua capacidade de indignação e de construir novas perspectivas de futuro”.

- “Mas será que o aprofundamento da exploração não vai ajudar nem um pouquinho a acordar as pessoas e a facilitar a ação dos sindicatos?”.

Falar ao coração as idéias destinadas à cabeça

- “Seria bom se fosse, mas infelizmente, as respostas à altura de uma crise econômica não podem ser improvisadas, nem aparecem espontaneamente nas inquietações da massa ou no súbito emergir de uma suposta consciência de classe que tenha como ponto de partida apenas a piora das condições de vida e de trabalho. De imediato, um maior grau de exploração tende a fazer com que as pessoas se dobrem ainda mais sobre si próprias, embarquem no salve-se-quem-puder, se agarrem a todas as possibilidades individuais de manter o próprio nível de vida e nem o embrutecimento dos setores mais empobrecidos, nem uma atuação mais contundente do crime organizado são, por si só, suficientes para fazê-las sair do marasmo e iniciar um processo de profundas mudanças sociais. Se na fase de crescimento da economia há um renovar-se da confiança nas possibilidades do sistema, o pipocar das contradições no bojo da crise precisa de um longo trabalho de organização já acumulado para tornar-se o momento-chave de uma ruptura.

f_aliendepressao6No final deste primeiro semestre de 2009, já é possível vislumbrar a eclosão de espasmos de dor, ou seja, de momentos em que o sofrimento atinge um grau tão elevado que a sobrevivência pode levar a efetuar saques, protestos, movimentos no sentido de garantir maior atendimento social por parte do Estado, mas nada que o próprio sistema não consiga incorporar e superar. A falta de inserção e organização de base, aliada à ação centrada em aspectos econômico-corporativos têm gerado tamanho atraso em relação às possibilidades abertas pela conjuntura a ponto de não ver colocado sequer um questionamento sério aos lucros consolidados pelas empresas ou à suposta função social por elas desempenhada e à qual sempre se alude toda vez que os patrões procuram extrair do Estado novas benesses e novas possibilidades de acumulação.

Longe de questionar os lucros no exato momento em que estes condenam ao desemprego centenas de milhares de trabalhadores, o centro das preocupações é a manutenção do posto em nome da qual se cede bem mais do que pode ser garantido pelos patrões. A esperança de que as coisas não piorem ainda mais, típica desta postura, não deixa sequer perceber que a elevação da produtividade sob o impacto do medo da demissão, que atormenta os que continuam empregados, vai proporcionar novos cortes e fazer com que a crise seja vista como algo do qual precisa se proteger e não como algo que precisamos pilotar para virar o jogo. Para que a dor e o sofrimento se tornem base de uma nova resposta coletiva eles precisam ser conhecidos e organizados, e isso não ocorre por decreto ou pela ação de forças estranhas à história.

Ainda que estejamos em atraso nesta corrida contra o tempo, há espaços de sobra para que os sindicatos fortaleçam a percepção da injustiça que ameaça a vida em sociedade com força redobrada. Mas, para mobilizar uma ação coletiva contra ela, não basta que as pessoas compreendam as situações dramáticas nas quais milhões de famílias vão mergulhar. É necessário que esta percepção atinja a compreensão de quem ainda trabalha despertando nele sentimentos de compaixão (ou seja, de sofrer com, de sentir na própria pele a dor da injustiça infligida ao outro), não de comiseração que, via de regra, deixam a consciência em paz com pequenos gestos de solidariedade ou frases que resumem no ‘coitadinho dele’ o máximo de participação no sofrimento alheio.

Apesar de aparentemente pequenos, estes são elementos essenciais para levar as pessoas a agir e não apenas a se comoverem. E para atingir a sensibilidade de quem tem um sentimento de indignação anestesiado não basta uma exposição racional da situação e de suas causas. Este caminho costuma ser brecado pelo senso comum cujas mudanças ocorrem antes pela via do sentimento do que da razão.

Por isso, mais do que repetir chavões aparentemente auto-explicativos, trata-se de encontrar uma linguagem que seja capaz de falar ao coração as idéias que se destinam à cabeça. Longe de apostar no sentimentalismo barato, faz-se necessária a utilização de meios que sejam capazes de furar a barreira da racionalidade capitalista, amplamente assumida até mesmo nas relações afetivas vivenciadas no âmbito familiar, entrando pelo único caminho que, a meu ver, ainda permanece aberto: o dos sentimentos contraditórios com os quais o sujeito se depara em sua vida cotidiana e onde se vê constantemente preso na tensão entre os sonhos de afirmação e as frustrações que a eles se seguem, entre o medo e a busca de segurança, entre o desejo de realização pessoal e a realidade material que derrete sob os seus pés o que considerava sólido e inabalável.

Nada impede que a nova linguagem lance mão do teatro, da encenação, da poesia, de testemunhos, do vídeo, do cinema, da internet e dos recursos que a modernidade coloca ao nosso alcance. O importante é que faça as pessoas se reconhecerem no drama do outro, perceberem que as coisas são o que são porque deixamos de agir ou porque só atuamos numa determinada direção, que a sociedade não é uma nau sem rumo, mas sim um transatlântico com comandantes, oficiais, tripulação, passageiros. Nele, trabalhadores e trabalhadoras são mantidos no porão da casa de máquinas, alegrados com pequenos prazeres pelos quais acreditam estar desfrutando do que a vida pode oferecer, mas que impedem ao seu descontentamento de se transformar em vontade de assumir o controle do navio e dirigir a proa rumo a uma sociedade onde haja tudo para todos.

Nada está perdido. O sofrimento, a depressão, a angústia, a solidão em suas mais variadas formas e graus são apenas a renovação de um apelo a resgatarmos o que de mais autenticamente humano ficou esquecido nas asas do tempo”.

- “Eu ainda acho que se correr o bicho pega, se ficar o bicho come!”, reafirma o secretário incrédulo.

- “Mas se juntar o bicho foge!”, arremata Nádia antes de mergulhar na escuridão da noite. Sem palavras diante do tamanho da tarefa que se faz necessária para vencer a alienação, o secretário tira os óculos e arruma os papéis do relato que transformam a mesa em berço de idéias e debates.

Lá fora, a cidade dorme na esperança de que alguém faça o que só a classe trabalhadora pode fazer.

Na parede da sala, o relógio marca os primeiros minutos do novo dia. É 1º de maio de 2009, dia que convida à reflexão e à ação, a construir nas trevas da noite os passos de um novo amanhecer…

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Nota

(1) Dados extraídos de MELO, Clayton, Brasileiro confia mais nas empresas, em Gazeta Mercantil, 30 de janeiro de 2009.

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