Nildo Viana
O Jovem Marx e o MarxismoPublicado na Revista Possibilidades, Núcleo de Pesquisa Marxista, Ano 1, num. 2, Out./Dez. de 2004.
O presente texto discute a idéia defendida por muitos pesquisadores que se dizem “marxistas”, segundo a qual haveria uma ruptura entre o “jovem Marx” e o “Marx da maturidade”, derivando daí a estranha tese de que o “jovem Marx” não era “marxista”. Althusser é o principal arquiteto desta concepção e por isso iremos abordar alguns elementos de sua tese para discutirmos esta questão. Nossa tese é a de que não houve nenhuma ruptura no pensamento de Marx, pois o que houve foi um desenvolvimento, o que implica alterações, continuação e, fundamentalmente, aprofundamento.
A tese que vê uma oposição inconciliável entre o “jovem Marx” e o “Marx maduro” se baseia em uma análise a-histórica. Na realidade, procura-se analisar o “jovem Marx” à luz do “último Marx”, ou seja, querem ver no “jovem Marx” todas as teorias do “Marx da maturidade” prontas e acabadas. Mas, como elas ainda estão em formação, são taxadas de “não-marxistas”. Entretanto, não é o futuro que explica o passado, mas ao contrário, é o passado que explica o futuro. Um pensamento só pode ser compreendido em sua historicidade.
A análise que afirma a continuidade do pensamento de Marx não é teleológica, como diz Althusser (1979), mas sim histórica. Ela não diz que no “jovem Marx” já estava presente o “Marx maduro” e nem que o primeiro tinha como finalidade se tornar o segundo. O que esta tese afirma é que o “jovem Marx” já tinha elementos e preocupações, que mais tarde seriam desenvolvidas e aprofundadas pelo “Marx da maturidade”, ou seja, era uma tendência que se efetivou e que a análise depois do processo concretizado revela isto. O “Jovem Marx” não tinha a finalidade de se tornar o “Marx maduro” mas isto aconteceu historicamente. Isto não ocorreu arbitrariamente, pois já havia essa tendência e ela se realizou posteriormente. Se Althusser fosse utilizar seu esquema defeituoso de análise para estudar o desenvolvimento do capitalismo teria que dizer: “existe uma ruptura radical entre o ‘capitalismo concorrencial’ e o ‘capitalismo monopolista’ e, por isso, só o último é capitalismo, assim como só o ‘Marx maduro’ é marxista; dizer o contrário é fazer uma análise teleológica”. Eis a miséria da história.
A tese da continuidade do pensamento de Marx deve não só se justificar metodologicamente como, também, se fundamentar e se comprovar nos escritos de Marx. Veremos, então, o desenvolvimento do pensamento de Karl Marx e assim demonstrar a continuidade nele presente. O seu pensamento apresentou três fases: a primeira fase, que vai de 1838 a 1844, expressa preocupações humanistas e filosóficas esboçando sua teoria da história e a análise do capitalismo; a segunda fase, que vai de 1845 a 1848, concretiza a sistematização de sua teoria da história; a terceira fase, que vai de 1849 até 1883 (ano de sua morte), elabora mais completamente sua teoria do capitalismo, que é uma teoria da luta de classes na época moderna e da transformação social, ou, segundo Rossana Rossanda, uma “teoria da revolução” (Rossanda, 1989).
Esta periodização do pensamento de Marx coincide com a de Korsch (1977), que relaciona tal evolução do pensamento de Marx com o desenvolvimento do movimento operário. Concordamos com Korsch no fato de que o marxismo se constitui, efetivamente, a partir da segunda fase, que coincide com uma época de ascensão das lutas operárias, mas no que concerne à terceira fase, temos uma pequena divergência. Sem dúvida, nesta fase há um recuo parcial do movimento operário (mas também uma ascensão no seu final, pois basta lembrar a Comuna de Paris de 1871, acontecimento de fundamental importância para o desenvolvimento da teoria marxista, o que é reconhecido pelo próprio Marx), o que fez com que Marx se dedicasse ao estudo do modo de produção capitalista, mas isto foi realizado no mesmo espírito do que o existente na fase anterior e significou um aprofundamento da teoria do capitalismo. Iremos retomar isto mais adiante.
Ao analisar a primeira fase de seu pensamento vemos uma preocupação com a “emancipação humana”, que leva a crítica do Estado, da sociedade burguesa e da propriedade privada (Marx, 1980). Mas é a partir da Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, que Marx esboça os fundamentos de sua teoria da revolução.
Neste escrito, Marx expõe uma crítica ao humanismo abstrato (como o de Feuerbach), pois o “homem é o mundo dos homens, o Estado, a sociedade” (Marx, 1978, P. 02)
[1]. Portanto, a crítica da “forma sacra da auto-alienação humana” deve ser substituída pela crítica de sua “forma profana”. A crítica da religião e da teologia devem ser substituídas pela crítica do direito e da política.
A partir dessa premissa Marx elabora de forma embrionária sua teoria da luta de classes. Na Alemanha, segundo Marx, é preciso surgir uma classe que se contraponha à classe dominante de forma radical. Todas as classes que conquistaram o poder implantaram uma nova forma de dominação. Por isso, todas as classes que pretendem se tornar a nova classe dominante, devem apresentar seus interesses particulares como os interesses gerais da sociedade e, assim, aparecer como a classe emancipadora de toda a sociedade. Mas é o proletariado, devido suas “cadeias radicais”, que representa, ao mesmo tempo, os interesses particulares de classe e o interesse geral da sociedade. O proletariado ao se libertar leva à libertação de toda a sociedade, pois ele é a dissolução da sociedade de classes.
Mas, segundo Marx, toda revolução necessita de um “elemento passivo”, de um “fundamento material”. O elemento ativo da revolução só será eficaz quando expressar o “elemento passivo”. O materialismo histórico-dialético se encontra esboçado neste texto. Quando Marx compara a política alemã com a dos outros países europeus e critica a primeira por apenas “pensar” o que os outros “fizeram”, realiza-se o prelúdio de A Ideologia Alemã. O papel revolucionário do proletariado e a luta de classes já são analisados por Marx. A importância dada ao “fundamento material” (que futuramente será identificado no conceito de modo de produção) e ao elemento ativo (a luta de classes) será retomada nos escritos posteriores formando a base do pensamento marxista
[2].
Todo o pensamento posterior de Marx será dedicado a fundamentar as premissas teóricas colocadas acima. O movimento da propriedade privada passa a ser acompanhado e explicado através do conceito de trabalho alienado. Este expressa as relações de produção capitalistas. Segundo Marx:
“Graças ao trabalho alienado, por conseguinte, o homem não só produz sua relação com o objeto e o processo da produção, como homens estranhos e hostis; também produz a relação de outros homens com a produção e o produto dele, e a relação entre ele próprio e os demais homens. Tal como cria sua própria produção como uma perversão, uma punição, e o seu próprio produto como uma perda, como um produto que não lhe pertence, assim também cria a dominação do não-produtor sobre a produção e os produtos desta. Ao alienar sua própria atividade, ele outorga ao estranho uma atividade que não é dele” (Marx, 1983, p. 89).Aí se encontram as relações de produção como realidade não-conceitualizada, isto é, a idéia de relações de produção já está esboçada mas o conceito ainda não aparece. A percepção de determinadas relações sociais existe mas sua conceituação só será efetivada posteriormente.
Nos Manuscritos de Paris, Marx procura fundamentar sua tese de que o proletariado é a classe revolucionária de nossa época (capitalista) e que sua libertação leva à “emancipação humana em geral”, ou seja, de toda a sociedade. Segundo ele:
“Da relação do trabalho alienado com a propriedade privada também decorre que a emancipação da sociedade da propriedade privada, da servidão, assume a forma política de emancipação dos trabalhadores; não no sentido de só estar em jogo a emancipação destes, mas por essa emancipação abranger a de toda humanidade. Pois toda a servidão está enredada na relação do trabalhador com a produção e todos os tipos de servidão são somente modificações ou conseqüência desta relação” (Marx, 1983, p. 100).Esta tese já estava presente na Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel e seria retomado no Manifesto Comunista, e se tornou um elemento permanente da teoria marxista.
Em seu último “escrito juvenil”, A Sagrada Família, Marx novamente nega o humanismo abstrato e afirma o humanismo concreto:
“A classe possuidora e a classe proletária representam a mesma alienação humana. Mas a primeira sente-se à vontade nesta alienação; encontra nela uma confirmação, reconhece nesta alienação de si o seu próprio poder e possui nela a aparência de uma existência humana; a segunda sente-se aniquilada nesta alienação, vê nela a sua impotência e a realidade de uma existência inumana”. É, para empregar uma expressão de Hegel, no aviltamento, na revolta contra esse aviltamento, revolta para a qual aquela classe é empurrada pela contradição entre a sua natureza humana e a sua situação de vida, que reside a negação franca, categórica total desta mesma natureza” (Marx, 1979, p. 53).Assim sendo,
“No seio desta contradição, o proprietário privado é pois a parte conservadora, o proletário é a parte destruidora. Do primeiro emana a ação que mantém a contradição, do segundo a ação que a aniquila” (Marx, 1979, p. 53).A partir daí Marx procura sistematizar sua teoria da história esboçada anteriormente. Em A Ideologia Alemã, Marx e Engels pretendiam acertar contas com sua consciência filosófica anterior. É nesta afirmação que muitos se fundamentam para dizer que houve uma mudança brusca no “jovem Marx” que se transformou no “Marx maduro”. O Marx idealista, humanista e filosófico foi substituído pelo Marx materialista, classista e científico.
Isto, entretanto, não é verdade. O acerto de contas não significou a passagem do idealismo ao materialismo. Marx já havia notado em seus “escritos juvenis” que:
“É certo que a arma da crítica não pode substituir a crítica das armas, que o poder material tem que ser derrocado pelo poder material, mas também a teoria transforma-se em poder material logo que se apodera das massas, a teoria é capaz de apoderar-se das massas quando argumenta e demonstra ad hominem, e argumenta e demonstra ad hominem quando se torna radical; ser radical é tomar as coisas pela raiz. Mas a raiz, para o homem, é o próprio homem” (Marx, 1978, p. 8-9).Portanto, só quando se forma uma unidade entre teoria e necessidades radicais é que a teoria se transforma em poder material. Para o “jovem Marx”:
“As revoluções precisam, efetivamente, de um elemento passivo, de um fundamento material. Num povo, a teoria realiza-se somente na medida que é a realização de suas necessidades” (Marx, 1978, p. 9).Marx afirma que não é suficiente o pensamento estimular sua realização; é preciso que a realidade estimule este pensamento. Portanto, a teoria se torna força material quando é expressão real das necessidades radicais e, com isso, torna a necessidade ainda mais necessária.
Marx não aderiu ao “humanismo abstrato” e não abandonou o “humanismo concreto” e já colocava nos escritos de juventude que a emancipação humana seria resultado da luta de classes com vitória do proletariado. A separação entre o Marx “filosófico” e o Marx “científico” apresentada por Althusser é totalmente destituída de sentido, pois, além de ser um produto de uma concepção positivista, que busca transformar o marxismo em uma ciência, ela ignora que o marxismo significa a superação simultânea tanto da filosofia quanto da ciência, que são formas de pensamento constituídas em sociedades de classes e objetivando reproduzi-las, sendo, pois, formas sistematizadas de falsa consciência. Marx apontava para a superação da filosofia (Korsch, 1977; Viana, 2000) e sua obra, embora nem sempre com clareza, significou uma radical crítica da ciência, e unir marxismo e ciências humanas é, tal como colocou Fougeyrollas, igual ao casamento do fogo com a água.
Mas, então, qual é esse acerto de contas? Acontece que nos seus escritos juvenis, Marx, fazia, essencialmente, a “crítica das ideologias”. Isto não significa idealismo, pois qualquer materialista pode criticar as ideologias. O que define o caráter idealista ou materialista desta crítica é o ponto de vista em que ela se baseia. Quando Marx disse, que “em política os alemães pensaram o que os outros povos fizeram”, apenas anunciou a concepção materialista da história exposta nos Manuscritos de Paris e na Ideologia Alemã.
É na quarta tese sobre Feuerbach que compreendemos o “acerto de contas” de Marx:
“Feuerbach parte do fato da auto-alienação religiosa da duplicação do mundo em religioso e terreno. Seu trabalho consiste em dissolver o mundo religioso em seu fundamento terreno, mas o fato de que este fundamento se eleve de si mesmo e se fixe nas nuvens como um reino autônomo, só pode ser explicado pelo auto-dilaceramento e pela contradição desse fundamento terreno. Este deve, pois, em si mesmo, tanto ser compreendido em sua contradição, como revolucionado praticamente. Assim, por exemplo, uma vez descoberto, que a família terrestre é o segredo da sagrada família, é a primeira que deve ser teórica e praticamente aniquilada” (Marx, 1982, p. 12-13). Portanto, a crítica das ideologias deve ser precedida pela crítica do modo de produção, tal como na Ideologia Alemã. Nos escritos juvenis havia referências à base material, mas superficialmente, com exceção dos Manuscritos. É na Ideologia Alemã que Marx expõe as diversas formas de propriedade em seu desenvolvimento histórico culminando com o capitalismo que abre possibilidade para a realização do comunismo.
Após a Ideologia Alemã, Marx continua a aprofundar sua teoria da história mas agora em relação direta com sua teoria do modo de produção capitalista. Vê-se isto, em A Miséria da Filosofia, na Carta a Annenkov e no Manifesto Comunista. Em O Manifesto Comunista, Marx retoma sua tese de que o proletariado liberta toda a sociedade:
“Todas as classes que no passado conquistaram o poder trataram de consolidar a situação submetendo a sociedade às suas condições de apropriação. Os proletários não podem apoderar-se das forças produtivas sociais sem abolir o modo de apropriação que era próprio a estas e, por conseguinte, todo meio de apropriação em vigor até hoje. Os proletários nada têm de seu a salvaguardar; sua missão é destruir todas as garantias e seguranças da propriedade privada existentes até agora” (Marx e Engels, 1988, p. 86) [3]. Já tendo elaborado sua teoria da história, Marx passa a desenvolver sua teoria do capitalismo, que é um momento de desenvolvimento desta teoria e sua confirmação em um caso concreto. Marx começa seu primeiro escrito desta fase dizendo:
“De vários lados nos criticaram por não termos analisado as relações econômicas que formam a base material da luta de classes e das lutas nacionais nos nossos dias” (Marx, 1987, p. 19).É justamente isso que Marx começa a realizar em sua nova fase: analisar o modo de produção capitalista e as lutas de classes geradas por ele. No entanto, ele faz isso em um período não-revolucionário, tal como Korsch (1977) coloca, o que significa que sua teoria do capitalismo focaliza as lutas espontâneas e cotidianas que formam a essência do modo de produção capitalista, tal como se vê em O Capital. Somente com a ascensão da luta operária, ocorrida no final da década de 70 do século 19, com a Comuna de Paris, é que as lutas revolucionárias voltam ao foco de análise de Marx, embora ele já dedicasse atenção ao processo revolucionário a partir de 1848, em seus escritos sobre as lutas de classes na França.
Portanto, em Trabalho Assalariado e Capital, em O Capital, em Teorias da Mais-Valia, entre outros, Marx procura revelar a base material da revolução de nossa época: o capitalismo. Em As Lutas de Classes na França, O 18 Brumário, A Guerra Civil na França, entre outros, ele expõe o elemento ativo da revolução: a luta de classes. No primeiro caso, ele analisa as lutas de classes espontâneas, cotidianas; no segundo, as lutas mais radicais e que já apontam para se tornar lutas revolucionárias, o que ocorre no último texto acima citado, que tem uma parte dedicada à análise da Comuna de Paris.
Em Para a Crítica da Economia Política ele resume sua teoria da história e faz alguns apontamentos sobre o capitalismo. Nos Grundrisse (1857-1858) retoma o desenvolvimento das formas de propriedade
[4]. Ainda nos Grundrisse analisa o capitalismo e volta a um tema, que, segundo muitos, foi superado pelo “Marx maduro”: a alienação. A Introdução Geral (1857) é, segundo Althusser, a prova de que Marx abandonou seu humanismo da juventude:
“Althusser cita regularmente – e com razão – a Introdução de 1857 como um texto clássico e primoroso do método marxista. Depois tem de enfrentar o caso dos Grundrisse, mas como é possível depreciar um livro que contém uma introdução saudada como magistral? Se Marx abandonou em 1845 toda noção de uma natureza humana alienada, então em 1857 estava irremediavelmente confuso, regredindo a suas preocupações de juventude e escrevendo um manuscrito que é ao mesmo tempo a quintessência da maturidade e um ato de infantilismo teórico” (Harrington, 1977, p. 163) [5].Nos seus escritos considerados “históricos”, Marx analisa a luta de classes na França e em outros países, mas já como luta de classes em processo de radicalização. No 18 Brumário, Marx coloca novamente que toda revolução precisa de um “elemento passivo” e de um elemento ativo:
“Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado” (Marx, 1986, p. 17).Os homens fazem sua história em condições determinadas, marcadas por lutas de classes cotidianas, pelo predomínio absoluto da classe dominante, do trabalho morto sobre o trabalho vivo e é sob estas condições que se desenvolvem as lutas de classes. As lutas de classes do presente são realizadas tendo por base as lutas de classes do passado e as cirscunstâncias constituídas por elas.
Entretanto, não se deve pensar que nos escritos “históricos”, Marx analisava apenas o elemento ativo (luta de classes extra-cotidianas) e nas obras “econômicas” apenas o elemento passivo (luta de classes cotidianas). A ênfase era colocada em um ou em outro, dependendo do escrito, mas não é possível separar um do outro a não ser em nível analítico e mesmo assim esses dois elementos se confundem, pois são partes constituintes e inter-relacionados, que formam a totalidade concreta. Basta ler suas “obras históricas” (Marx, 1986a; Marx, 1986b) ou O Capital (1988) para se notar isso. Segundo Engels:
“Se Barth pensa, pois, que nós negamos toda a reação dos reflexos políticos, etc. do movimento econômico sobre este movimento, ele combate simples moinhos de vento. Que estude o 18 Brumário de Marx, em que quase só se trata do papel particular que as lutas e os acontecimentos políticos desempenham naturalmente nos limites que lhes traça a sua dependência geral das condições econômicas, ou ainda, O Capital, o capítulo, por exemplo, sobre a jornada de trabalho, onde a legislação, que é todavia um ato político, tem uma ação tão profunda, ou o capítulo sobre a história da burguesia” (Engels, 1979, p. 47). Engels, mais à frente, conclui: “o que falta a todos estes senhores é a dialética”. Apesar disso tudo, Louis Althusser afirma que existe um “corte epistemológico” entre o “jovem Marx” e o “Marx da maturidade”. Para ele, a análise do pensamento de Marx não pode se basear na “história ideológica”, pois as idéias estão ligadas à história real. Althusser afirma:
“É preciso que se nasça um dia em alguma parte, e se comece a pensar e a escrever em um mundo dado. Esse mundo, para o pensador, é imediatamente o mundo dos pensamentos vivos do seu tempo, o mundo ideológico onde ele nasce para o pensamento” (Althusser, 1979, p. 62).Marx, o pensador, nasceu em um “mundo dado” e este era o “mundo da ideologia alemã” e por isso ele coloca como sua “problemática” a problemática desse “mundo ideológico”. Althusser cai em contradição ao afirmar que não se deve partir apenas da “história ideológica” e que se deve ligá-la à história real e, no fundo, dissolve a dita “história real” na “história ideológica”. A história real de Althusser é a história ideológica da Alemanha e o que ele entende por “história ideológica” é o pensamento de Marx tomado isoladamente. Assim, ele realiza a subsunção do indivíduo Marx ao mundo ideológico alemão, e apresenta uma concepção de história real reduzida à história coletiva da ideologia em determinado país.
Porque o mundo para o pensador é imediatamente “o mundo dos pensamentos vivos do seu tempo”? Este é um pensador abstrato inventado por Althusser e não um pensador real que não é só um pensador, mas também um determinado indivíduo com todas as implicações derivadas daí. Entre o pensador e o “mundo dos pensamentos vivos” existe a mediação do processo histórico de vida de tal pensador e este não é apenas o mundo das idéias mas um mundo concreto, múltiplo, marcado pelo conjunto das relações sociais. Logo, a ligação entre eles não é imediata e sim mediada.
A “história real” ao qual a “história ideológica” de Marx está ligada é a história da “ideologia alemã”. A proposta analítica de Althusser leva a imaginar uma Alemanha dominada pela ideologia e sem nenhuma contradição: a sociedade alemã é uma “sociedade sem história”. Ao negar em Marx uma “história ideológica”, Althusser cria uma “história ideológica” da sociedade alemã. Os pensadores individuais (independentemente da classe, religião, etc.) estão subsumidos à ideologia dominante. A relação de um pensador com a ideologia dominante, ao contrário do que pensa Althusser, não é uma relação de “submissão automática”. Além disso, Althusser cai em contradição, como já dissemos, pois afirma que a análise do pensamento de Marx não pode se basear apenas na “história ideológica”, pois esta está ligada à “história real”, mas o que faz Althusser é ligar o pensamento de Marx à história ideológica alemã, e, ao mesmo tempo, desligar esta da história real (história da sociedade), isto é, autonomiza a ideologia, como se esta tivesse um desenvolvimento autônomo. A ideologia do indivíduo Marx não é autônoma e nem pode ser desligada da história real, mas a ideologia alemã é autônoma e desligada da história real...
[6]Quando Althusser diz que os jovens hegelianos colocam as idéias européias dentro de sua própria “problemática”, ele revela que estas não se impõem totalmente e automaticamente aos jovens hegelianos. Da mesma forma, a ideologia alemã não se impõe totalmente e automaticamente ao “jovem Marx”, pois ele a coloca, para utilizar expressão de Althusser, dentro de sua própria “problemática”. O que Althusser faz é negar qualquer papel ao processo histórico de vida do “jovem Marx”. Este estaria preso no reino da “ideologia alemã” e só poderia se libertar ao chegar na França. Althusser só não explica porque muitos pensadores alemães foram para a França, mas não se tornaram “marxistas”...
Mas, agora vejamos os fundamentos políticos-ideológicos, que levam a opor o “jovem Marx” ao “Marx maduro”
[7]. Os que privilegiam o “jovem Marx” (da primeira fase) evitam a crítica do modo de produção capitalista aderindo a um “humanismo abstrato” e os que privilegiam o “Marx maduro” (da terceira fase) evitam a crítica humanista (portanto, universal, o que revela o caráter simultaneamente particular e universal da luta proletária) ao capitalismo aderindo a uma concepção economicista do homem (homo economicus).
A negação da crítica humanista serve para justificar a concepção de socialismo que Marx denominou nos Manuscritos de “comunismo vulgar”. A crítica humanista nega tanto o pseudo-socialismo pequeno-burguês que se baseia na distribuição de propriedade ou de renda, expressando a “inveja universal”, quanto o pseudo-socialismo estatal que se baseia na transformação de todas as pessoas em assalariados submetidos ao capital incorporado na comunidade como “capitalista abstrato” (Marx, 1983). Em outras palavras, a crítica humanista é dos elementos do marxismo que serve para refutar o pseudo-socialismo, tanto o pequeno burguês, presente, por exemplo, nas correntes reformistas (social-democracia), e em propostas específicas como a da reforma agrária, quanto no estatal, expressão dos interesses de classe da burocracia e que se revela no capitalismo de estado seu modelo exemplar (cuja experiência histórica teve na URSS, Leste Europeu, China, Cuba, etc., enquanto formas de manifestação).
A negação da crítica ao modo de produção capitalista serve para justificar a tese da via pacífica ao socialismo ou que a transição ao socialismo não é realizada através da ação revolucionária do proletariado. A crítica do modo de produção capitalista nega tanto a possibilidade de passagem pacífica ao socialismo quanto a possibilidade da transformação ser realizada pelo conjunto da sociedade.
É claro que em Marx não existe uma diferença entre a crítica humanista e a crítica ao modo de produção capitalista, mas existe em alguns intérpretes de sua obra que se submetem à divisão capitalista do trabalho intelectual e com isso reproduzem a alienação. Ao separar teoria e prática, razão e valores, etc. cria-se o positivismo “marxista”, ou melhor, o positivismo revisitado em linguagem marxista.
Assim, os pseudomarxistas que defendem o falso socialismo do capitalismo de estado russo (a antiga URSS) querem abandonar a crítica humanista e até mesmo o papel revolucionário da luta de classes para defender uma metafísica “luta de sistemas” ou de “modos de produção”, compreendendo este último de forma fetichista. Esta é a posição dos stalinistas e althusserianos. Para eles, o marxismo nada tem a ver com luta de classes e sim com luta de sistemas ou modos de produção – o capitalismo de estado (“socialismo real”), por um lado; e o capitalismo privado, por outro (Santos, 1986). Numa entrevista entre Sartre e Pierre Victor, este último coloca que uma afirmação do primeiro lhe lembrava o que Althusser certa vez lhe disse. Sartre, imediatamente, retrucou: “sou muito pouco parecido com Althusser, deve ser um mal-entendido, sabes” (Sartre; Gavi; Victor, 1975, p. 184). A rapidez com que Sartre busca se desvencilhar da comparação com Althusser é não apenas perspicaz e justificada, como necessária, principalmente depois da afirmação de P. Victor: “tinha-lhe dito, um dia, que se éramos comunistas era por causa da felicidade. Respondeu-me [Althusser] em suma: não se deve dizer isso; é para provocar uma mudança no modo de produção...” (Sartre, Gavi; Victor, 1975, p. 184). Assim, o althusserianismo é, com seu estruturalismo anti-humanista, uma cópia do stalinismo, com sua consciência coisificada de acordo com os interesses da burocracia soviética.
Em resumo, Marx na sua primeira fase se preocupava com a “emancipação humana” e caminhou para a percepção, com o desenvolvimento do seu pensamento, de que isto só seria possível com a revolução proletária. Na segunda fase sistematizou sua teoria da história, sua visão do desenvolvimento histórico da humanidade comandado pela luta de classes e pela tendência histórica da revolução proletária. Na terceira fase, desenvolveu esta teoria e aprofundou sua análise do capitalismo para descobrir a tendência histórica de criação do comunismo através da revolução proletária. O marxismo é uma teoria da alienação (humanismo histórico-concreto), uma teoria da história (materialismo histórico-dialético), uma teoria do capitalismo e da revolução proletária (expressão teórica do movimento operário), sendo estes elementos inseparáveis, constituindo uma totalidade indivisível e que só podem ser analisados e desenvolvidos conjuntamente em sua forma posterior acabada, e a partir daí só é possível enfatizar um aspecto mas sem separá-lo dos demais.
A conclusão final a que chegamos é, portanto, a seguinte: não existe nenhuma “ruptura radical” entre o “jovem Marx” e o “Marx da maturidade”.