A formação dos gestores na indústria do calçado (Franca, 1950-1980)*Vinícius Donizete de Rezende**Nas primeiras indústrias de calçados de Franca, entre as décadas de 1920 e 1950, o industrial representava o elemento central de disciplinarização da força de trabalho. Era comum que alguns deles trabalhassem diretamente na produção, o que contribuía para forjar um relacionamento social de maior proximidade entre patrões e empregados, contribuindo para se construir entre os trabalhadores a imagem do patrão como uma espécie de pai. Dada a grande diversidade do parque fabril nessa localidade, este tipo de relação social continuou presente em algumas fábricas até tempos recentes. Na medida em que as indústrias começaram a aumentar, o patrão tendeu a se dedicar mais à parte administrativa. Mesmo assim, por algum tempo, o fato dele deixar
seu escritório e caminhar no chão de fábrica podia implicar em constrangimento por parte dos operários, já que continuava a materializar o olhar disciplinador. Alzira Rodrigues (2004) relatou que, em meados da década de 1950, quando ingressou na indústria de calçados, a simples presença do patrão era suficiente para que os operários se dedicassem exclusivamente à produção. A gente conversava só quando o dono mesmo não tava lá por perto; quando ele
tava, a gente ficava quieta. Aí todo mundo ficava quieto, até os homens parava de conversar porque ele era... tinha uma cara ruim, uma cara de bravo, aí eles falavam assim: “Chegou o homem!” Aí todo mundo calava a boca. Ah, aí todo mundo ficava quieto.
Com a formação das grandes indústrias fabris, processo que em Franca intensificou-se a partir dos anos 1950, a função disciplinadora passou a ser exercida, sobretudo, pelos fiscais de produção, os quais representavam os interesses capitalistas. O relato a seguir ilustra a transição da fase em que os patrões eram as figuras centrais da disciplina fabril, para aquela em que delegaram o papel de vigilância aos chefes de seção e gerentes. Edna Andrade (2004), referindo-se aos anos 1970, afirmou que no dia a dia das grandes indústrias o operário não via os proprietários da empresa, e poderiam nem mesmo conhecê-los: “Patrão a gente nem vê, né Não. Patrão, cê dificilmente vê. No Samello, por exemplo, cê não sabia quem era o dono. No Calçados Terra eu não conhecia o dono, nunca vi!!! É só gerente e chefe!”.
O principal argumento defendido nesse texto é o de que esse processo histórico resultou na formação de uma nova classe social, definida por Bernardo como a “classe capitalista dos gestores”, caracterizada por controlar tempo de trabalho alheio por meio da organização dos processos de trabalho e do desenvolvimento e controle de tecnologias. O fato de tal classe não deter a posse privada dos meios de produção a distingue dos burgueses. De acordo com a definição do referido autor, o capitalista é aquele que controla a organização do processo de trabalho e que, por isso, se apropria do produto que o trabalhador produz e controla a capacidade do trabalhador de obter produtos para consumir. [...] Tenho sempre insistido na
questão da existência de duas classes capitalistas. A classe da burguesia e a classe dos gestores. Ambas essas classes são organizadoras do processo de trabalho. Uns, os gestores, são organizadores coletivos do processo de trabalho; os outros referem-se às questões mais particularizadas do processo de trabalho, à particularização das unidades de produção. Mas ambos se entendem por referência à organização do processo de trabalho (1989: 11).1
Na formação do parque industrial de Franca, Zdenek Pracuch2 teve significativa importância no processo de organização do processo produtivo e na difusão de inovações tecnológicas na indústria de calçados. Possuía um amplo conhecimento de formas de controle do trabalho, cujo objetivo central era evitar o “desperdício de tempo” por parte dos operários, e fazer com que “produzissem o máximo possível”. Dentre as alterações nas relações de trabalho protagonizadas por ele,pode-se destacar a introdução da linha de montagem, no ano de 1965, na indústria Samello. Outra questão relevante foi a publicação, em 1981, de um livro referente à “organização científica” da seção de pesponto (costura do calçado).3 Portanto, esse personagem foi um dos principais representantes da classe dos gestores, já que se caracterizou por desenvolver, aplicar e exercer controle sobre o processo produtivo. Ao mesmo tempo, procuramos enfatizar que além de gestores como Pracuch, os quais ocupavam uma posição de destaque na hierarquia interna das empresas, sendo mais facilmente diferenciados da classe operária, a indústria calçadista de Franca possuiu um grande número de gestores oriundos do chão de fábrica. Os ex-operários
tinham a função de controlar diretamente a força de trabalho e tornaram-se as figuras centrais para o sucesso ou não das inovações tecnológicas do setor, pois deviam fiscalizar a quantidade produzida e a qualidade do produto fabricado. O relato abaixo evidencia que a principal função da chefia era controlar a produtividade dos operários. De acordo com Edna de Andrade (2004),
o chefe pegava muito no pé. Cê não tinha liberdade de jeito nenhum! Pra ir tomar água o chefe já ficava olhando quanto tempo cê ia demorar, se você ia no banheiro ele já falava que demorou muito no banheiro. [...] Cê não podia parar né, era uma coisa assim, porque o chefe já vinha e: “- Por que cê tá parado?” Se o serviço fosse difícil você tinha que correr, se fosse fácil você tinha que correr também. Nesse mesmo sentido, o relato de Léia Silva (2005) descreve o controle do
processo de trabalho por parte da chefia através da conferência das fichas de produção. Era controlado, porque além de você colocar o seu nome na ficha, você tinha uma ficha de controle de quanto você fez no dia; então você marcava o número da ficha e o serviço que você fez, a quantidade de par. Aí eles controlavam; todo dia de tarde o chefe pegava e controlava, via que fulano fez tanto, e fulano tanto, e assim por diante. Então eles sabiam tudo que você fazia. E se num dia você fez menos já ia chegar e chamar sua atenção. Mandava aumentar a velocidade, fazer mais e o chefe ficava sempre andando lá dentro, sempre olhando. Pra não deixar fazer hora.
Outra forma de controle do trabalho ocorria por meio das linhas de produção, nas quais a velocidade da transportadora mecânica, e, portanto, o ritmo de trabalho, era regulada pela chefia. Freqüentemente, ocorria a intensificação do trabalho de acordo com a meta programada a cada dia, caracterizando a prática de speed-up.4 Como afirmou Joana da Silva (2004), "o ritmo é eles [chefia] que impõem, porque tem a que anda mais rápido [esteira transportadora], e isso é conforme o modelo do sapato.” De acordo com Pracuch, uma vez que as esteiras tinham a função de impor uma determinada velocidade de trabalho aos operários, os chefes ficavam mais livres
para verificar a qualidade do serviço executado, como pode se apreender no comentário que segue. Mas, já que o chefe fica mais livre da tarefa de “empurrar” o serviço, que agora
corre por si mesmo, sobra mais tempo para inspecionar a qualidade. O mal feito é feito duas vezes. E como na segunda vez a operária trabalha de graça [refere-se ao sistema de pagamento por peça], geralmente percebem que é mais vantajoso trabalhar bem logo na primeira vez (1981: 107). [grifos nossos] A preocupação de se controlar a qualidade do produto está diretamente
relacionada à intensificação do ritmo de trabalho, que poderia ter como efeito imediato fazer com que o operário negligenciasse a tarefa em execução como um recurso que lhe permitisse alcançar a meta exigida. Segundo Léia Silva (2005), em umas das fábricas que trabalhou na década de 1970, existiam dois chefes por seção, caracterizando o controle tanto sobre a quantidade produzida como sobre a qualidade do produto. Era um chefe de qualidade e um chefe de produção; então um vinha e te exigia produção, o outro vinha e te exigia qualidade. Tinha ficha e você tinha que colocar o nome na ficha e o que você tinha feito. [Então] sabiam quem tinha feito, e tinha que consertar. Isso, porque se costurar mal feito eles ficam sabendo. E vai ter que
fazer de novo. Sem contar que o chefe vem e dá uma ferrada na pessoa. Como afirma Pracuch, “ter que fazer outra vez” não era vantajoso para o operário que recebia de acordo com a quantidade produzida, visto que durante a realização do conserto ele estaria trabalhando sem receber e gastando tempo que poderia estar sendo utilizado para a realização de outros trabalhos. Portanto, o próprio trabalhador passava a se preocupar também com a qualidade da tarefa que executava. Além disso, “levar uma ferrada,” significava ser exposto ao constrangimento público. Portanto, os gestores procuraram desenvolver formas de controle que combinassem coerção, introjeção de normas disciplinares e estímulo aos interesses pessoais dos
trabalhadores por meio da remuneração. A importância de parte dos gestores ser ex-operários, explica-se por dois motivos principais. Em primeiro lugar, o fato de terem trabalhado diretamente na produção fazia com que conhecessem a linguagem do chão de fábrica e as formas de sabotagem que os operários desenvolviam. Possuíam o conhecimento necessário para
distinguir um acidente involuntário de uma ação proposital, como exemplifica o relato a seguir.
A gente conhece, né. Quem tá com prática no serviço, que sabe tudo que se passa,como que faz as coisas, a gente sabe, a gente percebe. Porque se a tesoura passou da linha e pegou num lugar por coincidência, é uma coisa; mas quando a pessoa estragou é diferente. Dá pra perceber (SOUZA, 2004). [grifos nossos] Portanto, quem veio do meio dos trabalhadores conhecia perfeitamente as técnicas de sabotagem do trabalho, e, por conseguinte poderia identificá-las com maior facilidade. Outra questão refere-se à linguagem. Um gestor originário do mesmo meio
social dos trabalhadores, possivelmente, encontraria com eles uma afinidade de discurso e de comportamento, o que contribuiria para atenuar as barreiras de classe em benefício da ordem capitalista. Conforme afirmou Marilene Leme (2005), “Às vezes o empregado tá até errado, mas o modo de você chegar e falar você ganha a confiança da pessoa.” 5
Em segundo lugar, esse processo caracterizou-se como uma forma de ascensão social vertical capaz de diminuir as expressões de contestação ao capitalismo, difundindo-se a idéia de que seria possível a um operário ascender socialmente na hierarquia interna da empresa. Isso poderia contribuir para minimizar o questionamento por parte de alguns trabalhadores, que ao invés de se rebelarem contra a desigualdade social passavam a almejar os cargos de chefia. Desta forma, tal possibilidade de ascensão constituiu-se em importante válvula de respiração para o sistema capitalista. Como afirma Marx (1975: 689), “quanto mais uma classe dominante é capaz de acolher em seus quadros os homens mais valiosos das classes dominadas, tanto mais sólido e
perigoso é seu domínio.” Um aspecto fundamental na transformação das relações de trabalho refere-se ao fato de que à medida que os gestores ganharam espaço no cotidiano fabril como
executores dos interesses do capital, eles transformaram-se nos principais alvos dos conflitos relacionados à produção. A partir da análise do processo de formação de uma classe social, tal como formulada por Thompson (1989), foi possível verificar que os operários passaram a ver nos seus superiores hierárquicos os representantes dos interesses do capital, os identificado como o “eles” da relação social, visto que sua função era controlar processos de trabalho.
Para os trabalhadores, a partir do momento em que os proprietários da empresa não mais percorriam o chão de fábrica, o chefe transformava-se na personificação do capital. Esse processo de formação de uma identidade significou reconhecer que os superiores hierárquicos não mais faziam parte da classe operária e que, conseqüentemente, possuíam interesses distintos dos seus. Como afirmou Everalda Flores (2005), “O patrão pra gente era o chefe, o patrão nunca aparecia!!! Cê nunca vê ele. Quem exerce o papel é mesmo o gerente e os chefes!!!” Léia Silva (2005) também expressou a diferenciação de interesses entre operários e chefia, ao afirmar que “Os gerentes e os chefes eram carrascos; quanto mais carrasco, a firma achava melhor. Era
de pegar no pé, de estar sempre do lado do patrão. Nunca o empregado tinha razão, era sempre o patrão.” 5 A partir dos relatos coletados, foi possível constatar que os gestores também se
identificavam de maneira distinta dos operários. Naturalmente, não se consideravam iguais aos patrões, porém percebiam que no conjunto das relações de trabalho haviam deixado de ter os mesmos interesses que os operários. Os seus interesses passavam a se identificar com os interesses da empresa. Essa situação vivenciada por algumas das entrevistadas fez com que afirmassem que no chão de fábrica era necessário desenvolver estratégias de relacionamento que diminuíssem os conflitos entre elas e os operários, contribuindo para amortecer os conflitos entre trabalhadores e capitalistas. De acordo Marilene Leme (2004), o chefe
tem que ficar dos dois lados. Então cê ajuda aqui e ajuda lá. Porque se você fizer a sua parte aqui, cê pode ter certeza que da parte de lá vai ter retorno. Que foi sempre a minha meta ali. Igual eu tô te falando eu nunca tive um problema, nem com o patrão e nem com empregado. Então cê tem que ficar no meio. [grifos nossos] A partir do relato de Benedita de Souza (2004), foi possível observar uma expressão da situação de ambigüidade em que os chefes de seção se encontravam dentro da grande empresa. Ao mesmo tempo em que se transformaram nos principais
responsáveis pelo controle do processo produtivo, continuavam subordinados aos proprietários. Essa situação poderia gerar desentendimentos, sobretudo, com os filhos dos fundadores das empresas que não chegaram a trabalhar diretamente no processo produtivo.
É isso que às vezes não dá certo. Que aí ele ia falar que uma coisa não é assim, sendo que ele não sabe. Nunca fez e porque é filho do patrão acha que pode fazer, e ele não entende muito disso. [...] Porque quase sempre é assim, falava: “- Aquele material que tá lá naquela mesa lá, por que tá lá e não em tal lugar?” Eu falava: “- Não, ele tá lá por isso e por isso.” Então a gente explicava, então quase sempre a gente saía bem, mas tem esses problemas também. Sempre acontece.
As trajetórias profissionais de ex-operárias que exerceram cargos de chefia indicaram que grande número dos gestores do setor calçadista era proveniente de famílias operárias de origem humilde e que tiveram que começar a trabalhar desde a infância para auxiliar no orçamento familiar. Dentro das fábricas de calçado sempre estiveram vinculados às atividades do setor produtivo, e por circunstâncias conjunturais – ter sido a primeira mulher a exercer a atividade de pesponto dentro de determinada empresa, ou ser uma das poucas pespontadeiras capazes de costurar o sapato do começo ao fim – acabaram se tornando chefes de seção. Outra característica comum aos gestores do chão de fábrica foi o fato de que tal posição poderia ser um estágio transitório em suas trajetórias profissionais, e uma simples mudança de empresa poderia colocá-los na situação anterior de operários. Esse fato era expressão do estágio de desenvolvimento e de peculiaridades do setor de calçados de Franca, o qual permaneceu sob o regime de capital fechado, sendo administrado por sucessões familiares, relegando aos gestores a função do exercício direto da autoridade.
Um outro aspecto a ser analisado diz respeito à noção de “zelar” pelos interesses da empresa. Tal fato significava, de certa maneira, cuidar dos seus próprios interesses, pois quanto maior a produção, maior poderia ser a porcentagem recebida por alguns chefes de seção. A incorporação de parte da mais-valia gerada na fabricação do calçado ficou evidente nos casos em que o salário era acrescido por uma participação nos lucros da empresa.
Eu tinha um tanto que eu ganhava por par produzido, mas eu tinha meu salário por fora. Eu tinha um fixo, mas quanto mais a seção produzisse mais eu ganhava. Era assim, por exemplo, não sei se naquele tempo era centavos, não lembro mais, mas tinha uma porcentagenzinha do que a seção produzia (SOUZA, 2004). [grifos nossos]
Dessa maneira, determinadas ações dos trabalhadores significavam, para seus superiores hierárquicos, “matar o tempo”, “enrolar” e “prejudicar a empresa”. Logo, era comum que eles mesmos se sentissem prejudicados, pois seriam os primeiros a serem responsabilizados por atrasos e quedas da produtividade. Esse conflitos sociais fizeram com que o cotidiano fabril fosse marcado por discussões, ameaças e brigas – chegando inclusive a agressões físicas – entre operários e chefes.6 As formas de punir a indisciplina dos trabalhadores foram diversas. Muitas
empresas instituíram Regulamentos de Fábrica. Perrot afirma que “o regulamento, portanto, é a expressão da vontade patronal, e os operários não têm nenhuma participação nele.” Os regulamentos, na maior parte das vezes, estabeleciam multas a serem aplicadas aos operários que desrespeitassem as normas da empresa. Entretanto, este tipo de sanção poderia se transformar em uma “fonte de contestação”, e muitas empresas passaram a adotar um “sistema de exclusão mais ou menos inspirado no exército e no colégio” (1987: 67, 69).
Muitas das indústrias de calçados de Franca adotaram o sistema de exclusão, que consistia em um grau escalonado de punição, compreendendo a advertência e a suspensão e, por fim, a demissão. Isabel Gomes (1989) afirmou que logo que começou a trabalhar em fábrica de calçados foi advertida em função de estar brincando com os companheiros durante o expediente de trabalho; como tal medida não surtiu efeito, em seguida foi suspensa.
Bom, eu entrei, fazia uma semana, uns dias que eu tava lá, já ganhei uma advertência, porque tinha uns grampinhos na esteira e eu pegava aqueles grampinhos junto com umas gominhas e ficava jogando nos outros. Aí, até que marcou o pescoço de um rapaz, aí eles me deram uma advertência. E, dentro de fábrica é o maior barato, cê ri e todo mundo escuta. E eu dava cada risada. Tanto que no terceiro mês que eu tava lá, tive uma outra advertência. Quando fazia cinco
meses ganhei uma outra, e tive suspensão. Este relato permite observar uma estratégia operária que visava minimizar a opressão exercida no cotidiano de trabalho, ilustrando algumas características da cultura operária do chão de fábrica, marcada pela prática de brincadeiras, que representavam uma tentativa dos trabalhadores de se apropriarem e recriarem a realidade a sua volta. Eram expressões evidentes do questionamento da disciplina fabril.7
Além das formas institucionalizadas de punição, existiram outras forjadas no próprio cotidiano de trabalho, as quais lembravam repreensões feitas a crianças dentro de casa ou nas escolas. Marilene Leme (2004), por exemplo, afirmou que uma de suas subordinadas recusou-se a trabalhar em um determinado dia e que por isso foi colocada sentada na frente da seção durante todo o expediente de trabalho. Este ato constituiu-se em uma forma de causar constrangimento à operária frente aos companheiros de trabalho. Era uma tentativa de abalar a dignidade da trabalhadora junto por meio de humilhação e ridicularização.
As práticas de coerção e agressão, verbal ou física, por parte da chefia foram amplamente denunciadas, nos anos 1980, por meio do boletim da categoria O Sapateiro, em sua seção “Festival de Mancadas”. Os responsáveis pela publicação adotaram a postura de mencionar tanto o nome da empresa como o dos chefes e gerentes envolvidos nas denúncias, o que indicava uma tentativa de intimidação e desmoralização dos mesmos junto aos operários. Além disso, freqüentemente ameaçavam um revide por parte dos trabalhadores.
Uma última característica a ser interpretada refere-se ao dos dirigentes sindicais dos anos 1980, responsáveis pela sua publicação do boletim, não definirem os superiores hierárquicos como membros de uma classe com interesses distintos em relação aos operários. Foram comuns as afirmações de que os chefes e gerentes também eram empregados, assim como os operários, e que, portanto, deveriam se unir a eles, pois também eram explorados.
Contudo, como procuramos demonstrar, apesar de serem empregados assalariados, a função dos gestores era controlar processo de trabalho. Dessa forma, nos pareceram equivocadas as afirmações dos dirigentes sindicais de que os chefes eram tão explorados quanto os trabalhadores, visto que o fato de serem assalariados não é suficiente para definir sua posição e função no conjunto das relações de trabalho. Eles representavam os interesses do capital, que eram antagônicos aos dos operários A posição dos sindicalistas da década de 1980 indica os limites de suas concepções político-ideológicas, limitadas a uma definição de classe social exclusivamente em função da propriedade dos meios de produção, sem levar em consideração as relações sociais e o controle do processo de trabalho. Portanto, afirmar para um chefe ou um
gerente que ele era igual aos operários não fazia sentido para os mesmos, que deixaram de se identificar como membros da classe operária.
Notas:
* Este texto é parte do cap. 3 de REZENDE, 2006. Financiamento: Capes e Fapesp.
** Doutorando em História Social pela Universidade Estadual de Campinas. Bolsista Fapesp.
1 Cf. uma discussão aprofundada sobre o tema em BERNARDO, 1987; Idem, 1991.
2 Graduado em 1945 pela Bata School of Labor (Batova Skola Práce), em Zlin na Tchecoslováquia, que
pertencia (até a expropriação pelo governo comunista) à Bata Shoe Organization com sede em Toronto,
Canadá. Dados extraídos de PRACUCH, 2004.
3 Cf. PRACUCH, 1981. Uma análise sobre os princípios de organização científica do trabalho formulados
por Pracuch foi desenvolvida no cap. 2 de REZENDE, 2006.
4 Intensificação do ritmo de trabalho. Cf. Cap. 6 de BEYNON, 1995.
5 Grifos nossos.
6 Cf. SOUSA, 2003.
7 Cf. análise sobre o tema no item 2 do cap. 3 de REZENDE, 2006.
Fontes orais:
ANDRADE, Edna Aparecida Lima de. Depoimento [jul. 2004]. Entrevistador: V. D. de
Rezende. Franca, 2004. 3 cassetes sonoros.
GOMES, Isabel Cristina. Depoimento [abr. 1989 - fev. 1990]. Entrevistadora: Silva
Cristina Arantes. Franca, 1989, 1990. 2 cassetes sonoros.
LEME, Marilene Paes. Depoimento [ago. 2004]. Entrevistador: V. D. de Rezende.
Franca, 2004. 2 cassetes sonoros.
RODRIGUES, Alzira Sanches. Depoimento [jul. 2004]. Entrevistador: V. D. de
Rezende. Franca, 2004. 3 cassetes sonoros.
SILVA, Joana Odete da. Depoimento [ago. 2004]. Entrevistador: V. D. de Rezende.
Franca, 2004. 3 cassetes sonoros.
SILVA, Léia Maria de Rezende. Depoimento [mar. 2005]. Entrevistador: V. D. de
Rezende. Franca, 2005. 3 cassetes sonoros.
SOUZA, Benedita de. Depoimento [jul. 2004]. Entrevistador: V. D. de Rezende. Franca,
2004. 2 cassetes sonoros.
Fontes Impressas:
PRACUCH, Zdenek. Organização e gerência do pesponto. Franca: Editora do
Calçadista, 1981.
______. Quem sabe explica! Crônicas sobre a atual tecnologia de produção de calçados.
Franca: Ribeirão Gráfica e Editora, 2004.
Referências bibliográficas
BERNARDO, João. “A produção de si mesmo”. In: Educação em Revista, Belo
Horizonte, n.9, 1989.
______. Capital, sindicatos, gestores. São Paulo: Vértice, 1987.
______. Economia dos conflitos sociais. São Paulo: Cortez, 1991.
BEYNON, Huw. Trabalhando para Ford: trabalhadores e sindicalistas na indústria
automobilística. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.
CASTORIADIS, Cornelius. A experiência do movimento operário. São Paulo:
Brasiliense, 1985.
MARX, Karl. O Capital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975. Liv. III, v. 05.
PERROT, Michelle. Os excluídos da história: operários, mulheres e prisioneiros. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1988.
REZENDE, Vinícius Donizete de. Anônimas da História: relações de trabalho e atuação
política de sapateiras entre as décadas de 1950 e 1980 (Franca – SP). Franca, 2006.
Dissertação (Mestrado em História) - Faculdade de História, Direito e Serviço Social,
Universidade Estadual Paulista.
SOUSA, Samuel F. de. Na esteira do conflito: trabalhadores e trabalho na produção de
calçados em Franca (1970-1980). Franca, 2003. Dissertação (Mestrado em História) -
Faculdade de História, Direito e Serviço Social, Universidade Estadual Paulista.
THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa. 2ª ed. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1989. 3v.