sábado, 26 de dezembro de 2009

Por que não festejo e me faz mal o Natal

Por que não festejo e me faz mal o Natal

por Mário Maestri*

Não festejo e me faz mal o Natal por diversas razões, algumas fracas, outras mais fortes. Primeiro, sou ateu praticante e, sobretudo, adulto. Portanto, não participo da solução fácil e infantil de responsabilizar entidade superior, o tal de “pai eterno”, pelos desastres espirituais e materiais de cuja produção e, sobretudo, necessária reparação, nós mesmos, humanos, somos responsáveis.

Sobretudo como historiador, não vejo como celebrar o natalício de personagem sobre o qual quase não temos informação positiva e não sabemos nada sobre a data, local e condições de nascimento. Personagem que, confesso, não me é simpático, mesmo na narrativa mítico-religiosa, pois amarelou na hora de liderar seu povo, mandando-o pagar o exigido pelo invasor romano: “Dai a deus o que é de deus, dai a César, o que é de César”!

O Natal me faz mal por constituir promoção mercadológica escandalosa que invade crescentemente o mundo exigindo que, sob a pena da imediata sanção moral e afetiva, a população, seja qual for o credo, caso o tenha, presenteie familiares, amigos, superiores e subalternos, para o gáudio do comércio e tristeza de suas finanças, numa redução miserável do valor do sentimento ao custo do presente.

Não festejo e me desgosta o Natal por ser momento de ritual mecânico de hipócrita fraternidade que, em vez de fortalecer a solidariedade agonizante em cada um de nós, reforça a pretensão da redenção e do poder do indivíduo, maldição mitológica do liberalismo, simbolizada na excelência do aniversariante, exclusivo e único demiurgo dos males sociais e espirituais da humanidade.

Desgosta-me o caráter anti-social e exclusivista de celebração que reúne egoísta apenas os membros da família restrita, mesmo os que não se freqüentaram e se suportaram durante o ano vencido, e não o farão, no ano vindouro. Festa que acolhe somente os estrangeiros incorporados por vínculos matrimoniais ao grupo familiar excelente, expulsos da cerimônia apenas ousam romper aqueles liames.

Horroriza-me o sentimento de falsa e melosa fraternidade geral, com que nos intoxica com impudícia crescente a grande mídia, ano após ano, quando a celebração aproxima-se, no contexto da contraditória santificação social do egoísmo e do individualismo, ao igual dos armistícios natalinos das grandes guerras que reforçavam, e ainda reforçam – vide o peru de Bush, no Iraque – o consenso sobre a bondade dos valores que justificavam o massacre de cada dia, interrompendo-o por uma noite apenas.

Não festejo o Natal porque, desde criança, como creio para muitíssimos de nós, a festa, não sei muito bem por que, constituía um momento de tensão e angústia, talvez por prometer sentimentos de paz e fraternidade há muito perdidos, substituindo-os pela comilança indigesta e a abertura sôfrega de presentes, ciumentamente cotejados com os cantos dos olhos aos dos outros presenteados.

Por tudo isso, celebro, sim, o Primeiro do Ano, festa plebéia, hedonista, aberta a todos, sem discursos melosos, celebrada na praça e na rua, no virar da noite, ao pipocar dos fogos lançados contra os céus. Celebro o Primeiro do Ano, tradição pagã, sem religião e cor, quando os extrovertidos abraçam os mais próximos e os introvertidos levantam tímidos a taça aos estranhos, despedindo-se com esperança de um ano mais ou menos pesado, mais ou menos frutífero, mais ou menos sofrido, na certeza renovada de que, enquanto houver vida e luta, haverá esperança.


* Historiador e professor do curso de História e do Programa de Pós-Graduação em História da UPF, RS. Publicado em La Insignia.

fonte: http://espacoacademico.wordpress.com/2009/12/24/por-que-nao-festejo-e-me-faz-mal-o-natal/

Jamal Juma, da campanha Stop the Wall, em prisão israelita

Jamal Juma, da campanha Stop the Wall, em prisão israelita

Jamal Juma, coordenador da campanha Stop The Wall [Acabem com o Muro] foi preso pelas autoridades israelitas em 16 de Dezembro. Esta recente prisão é mais uma escalada no ataque de Israel contra os defensores dos direitos humanos na Palestina. Por StopTheWall.org [*]

A segurança de Israel começou por convocar Juma para interrogatório à meia-noite de 15 de dezembro. Horas depois, trouxeram-no de volta à sua casa. Juma foi mantido algemado enquanto os soldados revistaram a sua casa durante duas horas, enquanto a esposa e os três filhos pequenos observavam impotentes. As palavras de despedida dos soldados foram dirigidas à sua mulher: que só voltaria a ver o marido quando houvesse uma troca de prisioneiros. Desde então, Juma tem estado preso, e proibido de falar com um advogado ou com a família, sem nenhuma explicação para a sua prisão.

juma3Jamal, de 47 anos, nasceu em Jerusalém e dedicou a sua vida à defesa dos direitos humanos dos palestinianos. O foco principal de seu trabalho é a capacitação das comunidades locais para defenderem os seus direitos humanos em face de violações provocadas pela ocupação. Ele é um membro fundador de várias ONGs palestinianas e redes da sociedade civil. Juma é coordenador da Palestina Grassroots Anti-Apartheid Wall Campaign desde 2002. É muito respeitado pelo seu trabalho e foi convidado para numerosas conferências de associações e da ONU. Os seus artigos e entrevistas são amplamente divulgados e sua obra foi traduzida em várias línguas. Sendo uma personalidade de grande visibilidade, Juma nunca tentou esconder ou disfarçar as suas atividades.

O Muro do Apartheid anexa e destrói grandes quantidades de terras palestinianas.

O Muro do Apartheid anexa e destrói grandes quantidades de terras palestinianas.

Jamal Juma é o preso de mais alto escalão no quadro de uma campanha de intensificação da repressão da mobilização popular contra o muro e os colonatos. Tendo começado por prender apenas ativistas locais das aldeias afectadas pela parede, as autoridades israelitas reorientaram-se recentemente para a detenção de defensores dos direitos humanos internacionalmente conhecidos, como Mohammad Othman e Abu Abdallah Rahmeh. Mohammad, um outro membro da campanha Stop the Wall, foi preso há quase três meses, no regresso de uma digressão de palestras na Noruega. Após dois meses de interrogatório, as autoridades israelitas ainda não conseguiram encontrar provas para acusar Mohammad e, por isso, emitiram uma ordem de detenção administrativa, de modo a evitar a sua libertação. Abdallah Abu Rahma, uma figura importante na luta não violenta contra o muro em Bil’in, foi levado de sua casa por soldados encapuzados no meio da noite, uma semana antes de Jamal ter sido preso.

Com estas detenções, Israel pretende quebrar a sociedade civil palestiniana e sua influência na tomada de decisões políticas a nível nacional e internacional. Este processo claramente criminaliza o trabalho dos defensores dos direitos humanos palestinos e a desobediência civil palestiniana.

Logotipo da campanha Stop The Wall (Acabem com o Muro).

Logotipo da campanha Stop The Wall (Acabem com o Muro).

É crucial que a sociedade civil internacional se oponha às tentativas israelitas de criminalizar defensores de direitos humanos que lutam contra o muro. A política de Israel de atacar os organizadores que apelam à responsabilização de Israel é um desafio directo às decisões dos governos e organismos mundiais como o Tribunal Internacional de Justiça (TIJ) para responsabilizar Israel pelas violações do direito internacional. Este desafio não deve ficar sem resposta.

[*] Original em stopthewall.org, traduzido do inglês por Passa Palavra

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

A formação dos gestores na indústria do calçado (Franca, 1950-1980)

A formação dos gestores na indústria do calçado (Franca, 1950-1980)*
Vinícius Donizete de Rezende**


Nas primeiras indústrias de calçados de Franca, entre as décadas de 1920 e 1950, o industrial representava o elemento central de disciplinarização da força de trabalho. Era comum que alguns deles trabalhassem diretamente na produção, o que contribuía para forjar um relacionamento social de maior proximidade entre patrões e empregados, contribuindo para se construir entre os trabalhadores a imagem do patrão como uma espécie de pai. Dada a grande diversidade do parque fabril nessa localidade, este tipo de relação social continuou presente em algumas fábricas até tempos recentes. Na medida em que as indústrias começaram a aumentar, o patrão tendeu a se dedicar mais à parte administrativa. Mesmo assim, por algum tempo, o fato dele deixar
seu escritório e caminhar no chão de fábrica podia implicar em constrangimento por parte dos operários, já que continuava a materializar o olhar disciplinador. Alzira Rodrigues (2004) relatou que, em meados da década de 1950, quando ingressou na indústria de calçados, a simples presença do patrão era suficiente para que os operários se dedicassem exclusivamente à produção. A gente conversava só quando o dono mesmo não tava lá por perto; quando ele
tava, a gente ficava quieta. Aí todo mundo ficava quieto, até os homens parava de conversar porque ele era... tinha uma cara ruim, uma cara de bravo, aí eles falavam assim: “Chegou o homem!” Aí todo mundo calava a boca. Ah, aí todo mundo ficava quieto.
Com a formação das grandes indústrias fabris, processo que em Franca intensificou-se a partir dos anos 1950, a função disciplinadora passou a ser exercida, sobretudo, pelos fiscais de produção, os quais representavam os interesses capitalistas. O relato a seguir ilustra a transição da fase em que os patrões eram as figuras centrais da disciplina fabril, para aquela em que delegaram o papel de vigilância aos chefes de seção e gerentes. Edna Andrade (2004), referindo-se aos anos 1970, afirmou que no dia a dia das grandes indústrias o operário não via os proprietários da empresa, e poderiam nem mesmo conhecê-los: “Patrão a gente nem vê, né Não. Patrão, cê dificilmente vê. No Samello, por exemplo, cê não sabia quem era o dono. No Calçados Terra eu não conhecia o dono, nunca vi!!! É só gerente e chefe!”.

O principal argumento defendido nesse texto é o de que esse processo histórico resultou na formação de uma nova classe social, definida por Bernardo como a “classe capitalista dos gestores”, caracterizada por controlar tempo de trabalho alheio por meio da organização dos processos de trabalho e do desenvolvimento e controle de tecnologias. O fato de tal classe não deter a posse privada dos meios de produção a distingue dos burgueses. De acordo com a definição do referido autor, o capitalista é aquele que controla a organização do processo de trabalho e que, por isso, se apropria do produto que o trabalhador produz e controla a capacidade do trabalhador de obter produtos para consumir. [...] Tenho sempre insistido na
questão da existência de duas classes capitalistas. A classe da burguesia e a classe dos gestores. Ambas essas classes são organizadoras do processo de trabalho. Uns, os gestores, são organizadores coletivos do processo de trabalho; os outros referem-se às questões mais particularizadas do processo de trabalho, à particularização das unidades de produção. Mas ambos se entendem por referência à organização do processo de trabalho (1989: 11).1
Na formação do parque industrial de Franca, Zdenek Pracuch2 teve significativa importância no processo de organização do processo produtivo e na difusão de inovações tecnológicas na indústria de calçados. Possuía um amplo conhecimento de formas de controle do trabalho, cujo objetivo central era evitar o “desperdício de tempo” por parte dos operários, e fazer com que “produzissem o máximo possível”. Dentre as alterações nas relações de trabalho protagonizadas por ele,pode-se destacar a introdução da linha de montagem, no ano de 1965, na indústria Samello. Outra questão relevante foi a publicação, em 1981, de um livro referente à “organização científica” da seção de pesponto (costura do calçado).3 Portanto, esse personagem foi um dos principais representantes da classe dos gestores, já que se caracterizou por desenvolver, aplicar e exercer controle sobre o processo produtivo. Ao mesmo tempo, procuramos enfatizar que além de gestores como Pracuch, os quais ocupavam uma posição de destaque na hierarquia interna das empresas, sendo mais facilmente diferenciados da classe operária, a indústria calçadista de Franca possuiu um grande número de gestores oriundos do chão de fábrica. Os ex-operários
tinham a função de controlar diretamente a força de trabalho e tornaram-se as figuras centrais para o sucesso ou não das inovações tecnológicas do setor, pois deviam fiscalizar a quantidade produzida e a qualidade do produto fabricado. O relato abaixo evidencia que a principal função da chefia era controlar a produtividade dos operários. De acordo com Edna de Andrade (2004),
o chefe pegava muito no pé. Cê não tinha liberdade de jeito nenhum! Pra ir tomar água o chefe já ficava olhando quanto tempo cê ia demorar, se você ia no banheiro ele já falava que demorou muito no banheiro. [...] Cê não podia parar né, era uma coisa assim, porque o chefe já vinha e: “- Por que cê tá parado?” Se o serviço fosse difícil você tinha que correr, se fosse fácil você tinha que correr também. Nesse mesmo sentido, o relato de Léia Silva (2005) descreve o controle do
processo de trabalho por parte da chefia através da conferência das fichas de produção. Era controlado, porque além de você colocar o seu nome na ficha, você tinha uma ficha de controle de quanto você fez no dia; então você marcava o número da ficha e o serviço que você fez, a quantidade de par. Aí eles controlavam; todo dia de tarde o chefe pegava e controlava, via que fulano fez tanto, e fulano tanto, e assim por diante. Então eles sabiam tudo que você fazia. E se num dia você fez menos já ia chegar e chamar sua atenção. Mandava aumentar a velocidade, fazer mais e o chefe ficava sempre andando lá dentro, sempre olhando. Pra não deixar fazer hora.
Outra forma de controle do trabalho ocorria por meio das linhas de produção, nas quais a velocidade da transportadora mecânica, e, portanto, o ritmo de trabalho, era regulada pela chefia. Freqüentemente, ocorria a intensificação do trabalho de acordo com a meta programada a cada dia, caracterizando a prática de speed-up.4 Como afirmou Joana da Silva (2004), "o ritmo é eles [chefia] que impõem, porque tem a que anda mais rápido [esteira transportadora], e isso é conforme o modelo do sapato.” De acordo com Pracuch, uma vez que as esteiras tinham a função de impor uma determinada velocidade de trabalho aos operários, os chefes ficavam mais livres
para verificar a qualidade do serviço executado, como pode se apreender no comentário que segue. Mas, já que o chefe fica mais livre da tarefa de “empurrar” o serviço, que agora
corre por si mesmo, sobra mais tempo para inspecionar a qualidade. O mal feito é feito duas vezes. E como na segunda vez a operária trabalha de graça [refere-se ao sistema de pagamento por peça], geralmente percebem que é mais vantajoso trabalhar bem logo na primeira vez (1981: 107). [grifos nossos] A preocupação de se controlar a qualidade do produto está diretamente
relacionada à intensificação do ritmo de trabalho, que poderia ter como efeito imediato fazer com que o operário negligenciasse a tarefa em execução como um recurso que lhe permitisse alcançar a meta exigida. Segundo Léia Silva (2005), em umas das fábricas que trabalhou na década de 1970, existiam dois chefes por seção, caracterizando o controle tanto sobre a quantidade produzida como sobre a qualidade do produto. Era um chefe de qualidade e um chefe de produção; então um vinha e te exigia produção, o outro vinha e te exigia qualidade. Tinha ficha e você tinha que colocar o nome na ficha e o que você tinha feito. [Então] sabiam quem tinha feito, e tinha que consertar. Isso, porque se costurar mal feito eles ficam sabendo. E vai ter que
fazer de novo. Sem contar que o chefe vem e dá uma ferrada na pessoa. Como afirma Pracuch, “ter que fazer outra vez” não era vantajoso para o operário que recebia de acordo com a quantidade produzida, visto que durante a realização do conserto ele estaria trabalhando sem receber e gastando tempo que poderia estar sendo utilizado para a realização de outros trabalhos. Portanto, o próprio trabalhador passava a se preocupar também com a qualidade da tarefa que executava. Além disso, “levar uma ferrada,” significava ser exposto ao constrangimento público. Portanto, os gestores procuraram desenvolver formas de controle que combinassem coerção, introjeção de normas disciplinares e estímulo aos interesses pessoais dos
trabalhadores por meio da remuneração. A importância de parte dos gestores ser ex-operários, explica-se por dois motivos principais. Em primeiro lugar, o fato de terem trabalhado diretamente na produção fazia com que conhecessem a linguagem do chão de fábrica e as formas de sabotagem que os operários desenvolviam. Possuíam o conhecimento necessário para
distinguir um acidente involuntário de uma ação proposital, como exemplifica o relato a seguir.
A gente conhece, né. Quem tá com prática no serviço, que sabe tudo que se passa,como que faz as coisas, a gente sabe, a gente percebe. Porque se a tesoura passou da linha e pegou num lugar por coincidência, é uma coisa; mas quando a pessoa estragou é diferente. Dá pra perceber (SOUZA, 2004). [grifos nossos] Portanto, quem veio do meio dos trabalhadores conhecia perfeitamente as técnicas de sabotagem do trabalho, e, por conseguinte poderia identificá-las com maior facilidade. Outra questão refere-se à linguagem. Um gestor originário do mesmo meio
social dos trabalhadores, possivelmente, encontraria com eles uma afinidade de discurso e de comportamento, o que contribuiria para atenuar as barreiras de classe em benefício da ordem capitalista. Conforme afirmou Marilene Leme (2005), “Às vezes o empregado tá até errado, mas o modo de você chegar e falar você ganha a confiança da pessoa.” 5
Em segundo lugar, esse processo caracterizou-se como uma forma de ascensão social vertical capaz de diminuir as expressões de contestação ao capitalismo, difundindo-se a idéia de que seria possível a um operário ascender socialmente na hierarquia interna da empresa. Isso poderia contribuir para minimizar o questionamento por parte de alguns trabalhadores, que ao invés de se rebelarem contra a desigualdade social passavam a almejar os cargos de chefia. Desta forma, tal possibilidade de ascensão constituiu-se em importante válvula de respiração para o sistema capitalista. Como afirma Marx (1975: 689), “quanto mais uma classe dominante é capaz de acolher em seus quadros os homens mais valiosos das classes dominadas, tanto mais sólido e
perigoso é seu domínio.” Um aspecto fundamental na transformação das relações de trabalho refere-se ao fato de que à medida que os gestores ganharam espaço no cotidiano fabril como
executores dos interesses do capital, eles transformaram-se nos principais alvos dos conflitos relacionados à produção. A partir da análise do processo de formação de uma classe social, tal como formulada por Thompson (1989), foi possível verificar que os operários passaram a ver nos seus superiores hierárquicos os representantes dos interesses do capital, os identificado como o “eles” da relação social, visto que sua função era controlar processos de trabalho.
Para os trabalhadores, a partir do momento em que os proprietários da empresa não mais percorriam o chão de fábrica, o chefe transformava-se na personificação do capital. Esse processo de formação de uma identidade significou reconhecer que os superiores hierárquicos não mais faziam parte da classe operária e que, conseqüentemente, possuíam interesses distintos dos seus. Como afirmou Everalda Flores (2005), “O patrão pra gente era o chefe, o patrão nunca aparecia!!! Cê nunca vê ele. Quem exerce o papel é mesmo o gerente e os chefes!!!” Léia Silva (2005) também expressou a diferenciação de interesses entre operários e chefia, ao afirmar que “Os gerentes e os chefes eram carrascos; quanto mais carrasco, a firma achava melhor. Era
de pegar no pé, de estar sempre do lado do patrão. Nunca o empregado tinha razão, era sempre o patrão.” 5 A partir dos relatos coletados, foi possível constatar que os gestores também se
identificavam de maneira distinta dos operários. Naturalmente, não se consideravam iguais aos patrões, porém percebiam que no conjunto das relações de trabalho haviam deixado de ter os mesmos interesses que os operários. Os seus interesses passavam a se identificar com os interesses da empresa. Essa situação vivenciada por algumas das entrevistadas fez com que afirmassem que no chão de fábrica era necessário desenvolver estratégias de relacionamento que diminuíssem os conflitos entre elas e os operários, contribuindo para amortecer os conflitos entre trabalhadores e capitalistas. De acordo Marilene Leme (2004), o chefe
tem que ficar dos dois lados. Então cê ajuda aqui e ajuda lá. Porque se você fizer a sua parte aqui, cê pode ter certeza que da parte de lá vai ter retorno. Que foi sempre a minha meta ali. Igual eu tô te falando eu nunca tive um problema, nem com o patrão e nem com empregado. Então cê tem que ficar no meio. [grifos nossos] A partir do relato de Benedita de Souza (2004), foi possível observar uma expressão da situação de ambigüidade em que os chefes de seção se encontravam dentro da grande empresa. Ao mesmo tempo em que se transformaram nos principais
responsáveis pelo controle do processo produtivo, continuavam subordinados aos proprietários. Essa situação poderia gerar desentendimentos, sobretudo, com os filhos dos fundadores das empresas que não chegaram a trabalhar diretamente no processo produtivo.
É isso que às vezes não dá certo. Que aí ele ia falar que uma coisa não é assim, sendo que ele não sabe. Nunca fez e porque é filho do patrão acha que pode fazer, e ele não entende muito disso. [...] Porque quase sempre é assim, falava: “- Aquele material que tá lá naquela mesa lá, por que tá lá e não em tal lugar?” Eu falava: “- Não, ele tá lá por isso e por isso.” Então a gente explicava, então quase sempre a gente saía bem, mas tem esses problemas também. Sempre acontece.
As trajetórias profissionais de ex-operárias que exerceram cargos de chefia indicaram que grande número dos gestores do setor calçadista era proveniente de famílias operárias de origem humilde e que tiveram que começar a trabalhar desde a infância para auxiliar no orçamento familiar. Dentro das fábricas de calçado sempre estiveram vinculados às atividades do setor produtivo, e por circunstâncias conjunturais – ter sido a primeira mulher a exercer a atividade de pesponto dentro de determinada empresa, ou ser uma das poucas pespontadeiras capazes de costurar o sapato do começo ao fim – acabaram se tornando chefes de seção. Outra característica comum aos gestores do chão de fábrica foi o fato de que tal posição poderia ser um estágio transitório em suas trajetórias profissionais, e uma simples mudança de empresa poderia colocá-los na situação anterior de operários. Esse fato era expressão do estágio de desenvolvimento e de peculiaridades do setor de calçados de Franca, o qual permaneceu sob o regime de capital fechado, sendo administrado por sucessões familiares, relegando aos gestores a função do exercício direto da autoridade.
Um outro aspecto a ser analisado diz respeito à noção de “zelar” pelos interesses da empresa. Tal fato significava, de certa maneira, cuidar dos seus próprios interesses, pois quanto maior a produção, maior poderia ser a porcentagem recebida por alguns chefes de seção. A incorporação de parte da mais-valia gerada na fabricação do calçado ficou evidente nos casos em que o salário era acrescido por uma participação nos lucros da empresa.
Eu tinha um tanto que eu ganhava por par produzido, mas eu tinha meu salário por fora. Eu tinha um fixo, mas quanto mais a seção produzisse mais eu ganhava. Era assim, por exemplo, não sei se naquele tempo era centavos, não lembro mais, mas tinha uma porcentagenzinha do que a seção produzia (SOUZA, 2004). [grifos nossos]
Dessa maneira, determinadas ações dos trabalhadores significavam, para seus superiores hierárquicos, “matar o tempo”, “enrolar” e “prejudicar a empresa”. Logo, era comum que eles mesmos se sentissem prejudicados, pois seriam os primeiros a serem responsabilizados por atrasos e quedas da produtividade. Esse conflitos sociais fizeram com que o cotidiano fabril fosse marcado por discussões, ameaças e brigas – chegando inclusive a agressões físicas – entre operários e chefes.6 As formas de punir a indisciplina dos trabalhadores foram diversas. Muitas
empresas instituíram Regulamentos de Fábrica. Perrot afirma que “o regulamento, portanto, é a expressão da vontade patronal, e os operários não têm nenhuma participação nele.” Os regulamentos, na maior parte das vezes, estabeleciam multas a serem aplicadas aos operários que desrespeitassem as normas da empresa. Entretanto, este tipo de sanção poderia se transformar em uma “fonte de contestação”, e muitas empresas passaram a adotar um “sistema de exclusão mais ou menos inspirado no exército e no colégio” (1987: 67, 69).
Muitas das indústrias de calçados de Franca adotaram o sistema de exclusão, que consistia em um grau escalonado de punição, compreendendo a advertência e a suspensão e, por fim, a demissão. Isabel Gomes (1989) afirmou que logo que começou a trabalhar em fábrica de calçados foi advertida em função de estar brincando com os companheiros durante o expediente de trabalho; como tal medida não surtiu efeito, em seguida foi suspensa.
Bom, eu entrei, fazia uma semana, uns dias que eu tava lá, já ganhei uma advertência, porque tinha uns grampinhos na esteira e eu pegava aqueles grampinhos junto com umas gominhas e ficava jogando nos outros. Aí, até que marcou o pescoço de um rapaz, aí eles me deram uma advertência. E, dentro de fábrica é o maior barato, cê ri e todo mundo escuta. E eu dava cada risada. Tanto que no terceiro mês que eu tava lá, tive uma outra advertência. Quando fazia cinco
meses ganhei uma outra, e tive suspensão. Este relato permite observar uma estratégia operária que visava minimizar a opressão exercida no cotidiano de trabalho, ilustrando algumas características da cultura operária do chão de fábrica, marcada pela prática de brincadeiras, que representavam uma tentativa dos trabalhadores de se apropriarem e recriarem a realidade a sua volta. Eram expressões evidentes do questionamento da disciplina fabril.7
Além das formas institucionalizadas de punição, existiram outras forjadas no próprio cotidiano de trabalho, as quais lembravam repreensões feitas a crianças dentro de casa ou nas escolas. Marilene Leme (2004), por exemplo, afirmou que uma de suas subordinadas recusou-se a trabalhar em um determinado dia e que por isso foi colocada sentada na frente da seção durante todo o expediente de trabalho. Este ato constituiu-se em uma forma de causar constrangimento à operária frente aos companheiros de trabalho. Era uma tentativa de abalar a dignidade da trabalhadora junto por meio de humilhação e ridicularização.
As práticas de coerção e agressão, verbal ou física, por parte da chefia foram amplamente denunciadas, nos anos 1980, por meio do boletim da categoria O Sapateiro, em sua seção “Festival de Mancadas”. Os responsáveis pela publicação adotaram a postura de mencionar tanto o nome da empresa como o dos chefes e gerentes envolvidos nas denúncias, o que indicava uma tentativa de intimidação e desmoralização dos mesmos junto aos operários. Além disso, freqüentemente ameaçavam um revide por parte dos trabalhadores.
Uma última característica a ser interpretada refere-se ao dos dirigentes sindicais dos anos 1980, responsáveis pela sua publicação do boletim, não definirem os superiores hierárquicos como membros de uma classe com interesses distintos em relação aos operários. Foram comuns as afirmações de que os chefes e gerentes também eram empregados, assim como os operários, e que, portanto, deveriam se unir a eles, pois também eram explorados.
Contudo, como procuramos demonstrar, apesar de serem empregados assalariados, a função dos gestores era controlar processo de trabalho. Dessa forma, nos pareceram equivocadas as afirmações dos dirigentes sindicais de que os chefes eram tão explorados quanto os trabalhadores, visto que o fato de serem assalariados não é suficiente para definir sua posição e função no conjunto das relações de trabalho. Eles representavam os interesses do capital, que eram antagônicos aos dos operários A posição dos sindicalistas da década de 1980 indica os limites de suas concepções político-ideológicas, limitadas a uma definição de classe social exclusivamente em função da propriedade dos meios de produção, sem levar em consideração as relações sociais e o controle do processo de trabalho. Portanto, afirmar para um chefe ou um
gerente que ele era igual aos operários não fazia sentido para os mesmos, que deixaram de se identificar como membros da classe operária.

Notas:
* Este texto é parte do cap. 3 de REZENDE, 2006. Financiamento: Capes e Fapesp.
** Doutorando em História Social pela Universidade Estadual de Campinas. Bolsista Fapesp.
1 Cf. uma discussão aprofundada sobre o tema em BERNARDO, 1987; Idem, 1991.
2 Graduado em 1945 pela Bata School of Labor (Batova Skola Práce), em Zlin na Tchecoslováquia, que
pertencia (até a expropriação pelo governo comunista) à Bata Shoe Organization com sede em Toronto,
Canadá. Dados extraídos de PRACUCH, 2004.
3 Cf. PRACUCH, 1981. Uma análise sobre os princípios de organização científica do trabalho formulados
por Pracuch foi desenvolvida no cap. 2 de REZENDE, 2006.
4 Intensificação do ritmo de trabalho. Cf. Cap. 6 de BEYNON, 1995.
5 Grifos nossos.
6 Cf. SOUSA, 2003.
7 Cf. análise sobre o tema no item 2 do cap. 3 de REZENDE, 2006.


Fontes orais:
ANDRADE, Edna Aparecida Lima de. Depoimento [jul. 2004]. Entrevistador: V. D. de
Rezende. Franca, 2004. 3 cassetes sonoros.
GOMES, Isabel Cristina. Depoimento [abr. 1989 - fev. 1990]. Entrevistadora: Silva
Cristina Arantes. Franca, 1989, 1990. 2 cassetes sonoros.
LEME, Marilene Paes. Depoimento [ago. 2004]. Entrevistador: V. D. de Rezende.
Franca, 2004. 2 cassetes sonoros.
RODRIGUES, Alzira Sanches. Depoimento [jul. 2004]. Entrevistador: V. D. de
Rezende. Franca, 2004. 3 cassetes sonoros.
SILVA, Joana Odete da. Depoimento [ago. 2004]. Entrevistador: V. D. de Rezende.
Franca, 2004. 3 cassetes sonoros.
SILVA, Léia Maria de Rezende. Depoimento [mar. 2005]. Entrevistador: V. D. de
Rezende. Franca, 2005. 3 cassetes sonoros.
SOUZA, Benedita de. Depoimento [jul. 2004]. Entrevistador: V. D. de Rezende. Franca,
2004. 2 cassetes sonoros.


Fontes Impressas:
PRACUCH, Zdenek. Organização e gerência do pesponto. Franca: Editora do
Calçadista, 1981.
______. Quem sabe explica! Crônicas sobre a atual tecnologia de produção de calçados.
Franca: Ribeirão Gráfica e Editora, 2004.
Referências bibliográficas
BERNARDO, João. “A produção de si mesmo”. In: Educação em Revista, Belo
Horizonte, n.9, 1989.
______. Capital, sindicatos, gestores. São Paulo: Vértice, 1987.
______. Economia dos conflitos sociais. São Paulo: Cortez, 1991.
BEYNON, Huw. Trabalhando para Ford: trabalhadores e sindicalistas na indústria
automobilística. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.
CASTORIADIS, Cornelius. A experiência do movimento operário. São Paulo:
Brasiliense, 1985.
MARX, Karl. O Capital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975. Liv. III, v. 05.
PERROT, Michelle. Os excluídos da história: operários, mulheres e prisioneiros. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1988.
REZENDE, Vinícius Donizete de. Anônimas da História: relações de trabalho e atuação
política de sapateiras entre as décadas de 1950 e 1980 (Franca – SP). Franca, 2006.
Dissertação (Mestrado em História) - Faculdade de História, Direito e Serviço Social,
Universidade Estadual Paulista.
SOUSA, Samuel F. de. Na esteira do conflito: trabalhadores e trabalho na produção de
calçados em Franca (1970-1980). Franca, 2003. Dissertação (Mestrado em História) -
Faculdade de História, Direito e Serviço Social, Universidade Estadual Paulista.
THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa. 2ª ed. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1989. 3v.

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

A escravatura não acabou

A escravatura não acabou

O tráfico de seres humanos, escravatura dos tempos modernos, está a aumentar por todo o Mundo. A maior parte das histórias não são tão espectaculares – e não têm final feliz. Por Francisco Colaço Pedro

A “crise” mundial está a fazer crescer o apetite pelo trabalho escravo: a cada dia que passa, milhares de pessoas são vendidas e forçadas a trabalhar ou a prostituir-se. O tráfico de seres humanos, escravatura dos tempos modernos, está a aumentar por todo o Mundo. A maior parte das histórias não são tão espectaculares – e não têm final feliz.

I

Há meses que ele não conhece outro lugar. O barco, registrado na Tailândia, tem quarenta metros de comprimento por uns cinco de largura. Todos os dias, 12 horas por dia, puxa as pesadíssimas redes de peixe. Ainda não tem 40 anos, mas tem um ar envelhecido e está magríssimo. Entre passar fome e comer o arroz podre e a comida, a qual tem a certeza de estar envenenada, a escolha é tudo menos fácil. Com ele estão outros companheiros birmaneses, uns com 60 anos. Trabalham todos os dias até ao limite do cansaço para absolutamente nada receberem em troca. Não há lugar para onde fugir e ele tem medo de toda a gente. Batem-lhe – uma vez foi quase até à morte. “Se fugir vou viver mais tempo”, repete para si.

A rotina era esta até ao dia em que a quebrou. Como habitual quando o barco está cheio de peixe, vendiam a mercadoria a um grande navio. Num desses descarregamentos, quando os dois barcos estavam juntos, viu finalmente a oportunidade. Fugiu.

*

Foi desde 2000 que se começou a falar regularmente de tráfico de seres humanos, e o problema se tornou bandeira de activistas e organizações pelo mundo fora. Nos últimos meses, de Hilary Clinton ao papa Bento XVI, tem sido condenado por discursos cheios de humanismo.

Isto graças aos casos que vão aparecendo nos grandes media e ao último relatório do tráfico de seres humanos do Departamento de Estado dos EUA. O mais importante documento sobre o tema veio confirmar que a “crise” mundial está a fazer disparar quer a procura quer a oferta no tráfico de pessoas, que surge intimamente ligado a outros três produtos do capitalismo: migração, pobreza e exclusão social. O relatório aborda o crescente recurso por parte dos patrões a formas de evitar os impostos e a organização de trabalhadores: trabalho barato, clandestino, forçado e infantil.

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“Portugueses escravizados, roubados e acorrentados em quintas de Espanha”, noticiava recentemente o Público, no terceiro caso semelhante descoberto nos últimos tempos. Essa prática que os portugueses banalizaram a partir do século XV tornou-se hoje mais sofisticada, mas não menos cruel. Os números estão para lá de qualquer capacidade de compreensão: mais de 12 milhões de pessoas estão neste momento sob alguma forma de escravatura. O tráfico de seres humanos é o maior negócio ilícito do mundo depois das armas e da droga.

Desde a angariação da “mercadoria” no estrangeiro, ao suporte logístico para a trazer até ao entreposto onde será vendida, as redes estão bem montadas. E não dispensam bons contactos nas polícias e governos. Redes que conhecem como ninguém os lugares para aliciar as vítimas: aqueles onde a miséria afoga as expectativas de vida. E sabem ainda melhor como fazer passar essa miséria a inferno. Enclausuramento, chantagem, maus-tratos, drogas – até pouco sobrar de um ser humano. Assim se organiza a escravatura no nosso tempo. Assim funciona em qualquer parte do Mundo.

II

Conseguiu entrar no navio sem que ninguém reparasse e escondeu-se nos porões do peixe. Só que cedo começou a gelar. Então tentou desesperadamente arrancar os cabos de electricidade, cortar o ar condicionado. Não conseguiu. E não aguentou mais. Voltou a subir, já fraco, gelado. No dia seguinte entregaram-no de volta ao pequeno barco. De volta à escravidão, à única vida que conhecia desde há cinco meses.

Já perdeu a conta aos anos que passaram desde os dias em que, pelas ruas da sua aldeia, no Sul da Birmânia, pregava o budismo e ensinava a grandes plateias o prazer da meditação. Por causa da violência da junta militar teve de fugir e atravessar uma fronteira – o passo que viria a arruinar-lhe vida. Na Tailândia ainda trabalhou na construção, até que um dia a polícia o apanhou, sem papéis. Também não tinha como pagar os 70 dólares que lhe exigiram. Esteve preso até ser vendido a uma “agência de trabalho”. Ali convenceram-no a trabalhar um mês num barco: “Se no fim estiveres feliz continuas, se não sais.” O ordenado seria duns 100 dólares por mês. Nunca tinha experimentado trabalho tão pesado, mas por um mês aceitou.

O barco deixou a Tailândia para não mais se voltar a aproximar de um porto. Compra combustível a grandes barcos no meio do oceano, os mesmos a que vende o peixe. “Não há forma de escapar. É como uma prisão flutuante.”

*

O tráfico é um dos expoentes dos problemas que as pessoas que deixam o seu país enfrentam: discriminação, clandestinidade, exploração laboral. No mundo em que as mercadorias são livres de passar fronteiras, as pessoas que o ousam fazer para melhorar a vida são violentamente barradas. O tráfico surge como uma solução tenebrosa: transformar as pessoas em mercadorias.

international_trafficked_victim“Os migrantes, sobretudo em tempos de disparidades económicas, querem naturalmente ir para onde podem ganhar algum dinheiro. Se não há oportunidades para o fazer legalmente, estão dispostos a contornar a lei, e ficam muito mais vulneráveis. Podem cair nas mãos de um traficante e ser severamente explorados”, explica Heather Komenda, da Organização Internacional das Migrações (OIM). Sujeitos, pois, às mais brutais chantagens, apenas por não estarem no país onde nasceram e não terem um estúpido papel.

A OIM é a personagem principal desse infindável mundo burocrático do “combate ao tráfico de seres humanos”, cheio de acordos internacionais, orçamentos, programas, planos de acção e dias comemorativos.

Os discursos humanistas não costumam sair duma cantilena de três “P”: prevenção, protecção e punição. Melhorar a legislação, apostar na educação, trabalhar no terreno e sensibilizar as pessoas. Demagogia por parte de quem defende um sistema económico que legitima a existência de exploradores e explorados, e cava o fosso entre os que têm tanto e os que nada têm – e por isso já nada têm a perder.

Portugal é também país de destino e porta de entrada para a Europa de centenas de mulheres brasileiras traficadas. É-lhes tirado o passaporte e são obrigadas a prostituir-se até retribuírem o que “devem”: documentos, viagens, pagamentos de agentes intermediários.

sex_tradeers056a_282_Durante uma conversa no programa de rádio MigraSons, Filipa Alvim, investigadora do ISCTE, explicou que “só começámos a ouvir falar mais a partir de 2000, mas o tráfico de mulheres é uma realidade que vem do século XIX, da chamada escravatura branca”. Gustavo Behr, da Casa do Brasil, sublinha o actual “endurecimento da legislação”, e a maior dificuldade de um imigrante “se apresentar num país se regularizar”.

Ambos alertam que o tráfico não deve ser visto como “a parte má” das relações de trabalho, aquela que deve ser combatida, mas antes como algo que é indissociável de todas as formas de exploração laboral, e da enorme violência a que estão sujeitos os trabalhadores migrantes.

Fontes do problema que governos e organizações internacionais se recusam combater: a procura do lucro a qualquer custo, a perda de direitos e a degradação das condições de trabalho em todo o mundo, as restrições cada vez mais violentas à migração.

III

Como este barco onde ele vive há outros cinco, propriedade da mesma “agência” tailandesa. Um está registado, os outros são cópias. Em todos há homens escravizados como ele, da Tailândia, da Birmânia, do Cambodja. Homens que todos os dias, durante 12h, puxam as pesadas redes. Sós, longe de casa, cada dia é um dia a menos para morte. Para ele, no entanto, um dia houve que foi mais do que isso. Com o nascer do Sol reparou numa ilha que surgia ao fundo. “Timor”, disseram-lhe. “Se fugir vou viver mais tempo”. Pelas 20h, discretamente, deitou uma garrafa ao mar. De seguida esvaziou um jerrican de plástico. Às 23h deitou uma segunda garrafa. À meia-noite testou uma última vez: as correntes continuavam a dirigir as garrafas para ilha. Então atou-se ao jerrican. E saltou.

*

Entrou em funcionamento em Díli o primeiro abrigo para mulheres traficadas para exploração sexual. A localização é mantida em segredo. “As raparigas [moças] têm ali um lugar para ficar, protecção, serviços de saúde, aconselhamento psicológico e legal, colaboração com a justiça e apoio para regressarem ao país”, explica Heather Komenda. Veio do Canadá para Timor-Leste para coordenar o programa contra o tráfico de seres humanos da OIM.

Em Timor-Leste, em nome da cooperação e do desenvolvimento, os internacionais vêm erguer uma sociedade como aquela onde cresceram. Com salários milionários a dois passos da pobreza extrema, constroem uma sociedade paralela, vedada aos timorenses, com bares, hotéis e restaurantes, cheia de muros e arame farpado.

timorc3Uma fonte policial confirma-me que todos os meses dezenas de raparigas [moças] são trazidas para Díli, escravizadas para satisfazer os internacionais e os timorenses com dinheiro. “Seria ingénuo pensar que não”, admite Heather. Não é só aqui: a indústria do sexo e o tráfico de mulheres floresceram em todos os lugares onde as missões de manutenção de paz das Nações Unidas tiveram uma presença prolongada.

“O tráfico está generalizado. As mulheres são convencidas de que vão trabalhar para a Austrália, e são levadas directamente para um bordel em Díli. Muitas são crianças.” São traficadas de países como China, Tailândia, Filipinas ou Indonésia.

Nesta matéria, aqui como em qualquer parte do mundo, a incapacidade da organização é gritante. “As vítimas de que temos conhecimento são aquelas que conseguiram fugir ou ser salvas pela polícia, e depois ainda vir à OIM pedir assistência. São obviamente menos de 1%”, diz Heather. “É como um iceberg: vemos a ponta, sabendo que o que está por baixo é enorme.”

IV

Hoje ele está sentado à minha frente e os seus olhos brilham. Tem um aspecto saudável. Conta-me tudo, fala horas a fio (é engraçado que o intérprete resuma cada meia hora em quatro ou cinco frases em inglês) e sorri. Está bem diferente do farrapo de ser humano que a Heather encontrou há umas semanas.

Chegou a uma praia de Timor pelas 6h da manhã daquele dia, tão fraco que era incapaz de andar. Tinha nadado durante mais de cinco horas. Por felicidade, a OIM, em Timor por outros motivos, deu com ele depois de ter passado uns dias numa aldeia próxima, ainda subnutrido, exausto, traumatizado e paranóico: achava que todos o perseguiam. A OIM tem agora algo em que colocar um pouco das suas enxurradas de meios e dinheiro. A ele, vão apoiá-lo a voltar a casa, nessa já distante Birmânia, e a recomeçar ali a sua vida.

É duro e é óbvio: a maior parte das histórias de tráfico humano não tem final feliz. São cerca de dois milhões de histórias, a cada ano. Dois milhões de anónimos, como ele.

Bibliografia

Relatório Tráfico de Seres Humanos no Mundo 2009: http://www.state.gov/g/tip/rls/tiprpt/2009/index.htm

MigraSons: Rádio e Diversidade: http://migrasons.blogspot.com/

“Portugueses escravizados, roubados e acorrentados em quintas de Espanha”: http://www.publico.clix.pt/Sociedade/portugueses-escravizados-roubados-e-acorrentados-em-quintas-de-espanha_1407144

OIM: http://www.iom.int/


fonte: http://passapalavra.info/?p=16394

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segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Ato em São Paulo: Liberdade a Cesare Battisti já!

Ato em São Paulo: Liberdade a Cesare Battisti já!

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No dia 10 de dezembro (quinta-feira), somando-se às diversas lutas que acontecerão por ocasião do Dia Internacional dos Direitos Humanos, realizaremos um ato em defesa da liberdade de Cesare Battisti.

A manifestação será na Av. Paulista, 1.842, em frente ao prédio do Tribunal Regional Federal, às 18h30.

Compareça e ajuda a divulgar.

Contamos muito com o apoio de todos.

***

Liberdade a Cesare Battisti Já!

Perseguido pelo governo italiano, acusado de crimes que não cometeu, o escritor Cesare Battisti também tem sido vítima de perseguição política no Brasil. Apesar de sua condição de refugiado político, absurdamente é mantido preso no próprio país que lhe concedeu refúgio.

Cesare Battisti se encontra preso ilegalmente, como afirma o Ministro do STF, Joaquim Barbosa. Ele é de fato um preso político, como também afirma o Ministro da Justiça, embora Gilmar Mendes e a mídia se esforcem para tratá-lo como preso comum.

Os que querem mantê-lo preso e extraditá-lo para a Itália desferem um ataque às instituições humanitárias e democráticas da sociedade, minando a instituição do refúgio político e usurpando do Poder Executivo, eleito pelo voto popular, a prerrogativa de concedê-lo. Extraditá-lo abriria perigosos precedentes: muitos países já elaboraram listas de refugiados para pedir extradições; além disso, abriria uma onda de perseguição e criminalização contra trabalhadores, sindicalistas combativos e movimentos sociais.

Exigir a liberdade de Cesare Battisti, além de um ato de justiça e humanitário, é imprescindível como forma de manter liberdades políticas e direitos humanos, tão caros a muitas gerações. Estamos todos sendo atacados.

Calar ante isso é ser cúmplice.

Comitê de Solidariedade a Cesare Battisti (http://cesarelivre.org)

sábado, 5 de dezembro de 2009

De Neuquén para o Mundo: breve história dos bravos lutadores da FaSinPat Zanón

De Neuquén para o Mundo: breve história dos bravos lutadores da FaSinPat Zanón

Ao invés de lucros e exploração, a FaSinPat Zanón aponta para a produção de valores de uso, vínculos comunitários, unificação das lutas dos trabalhadores e utilização do espaço fabril para estudo. Por Henrique T. Novaes [*]

Muitos sindicalistas não conseguiriam imaginar o retorno ao chão de fábrica de dois trabalhadores que “puxaram” a luta da FaSinPat (Fábrica Sem Patrões) Zanón, mas foi isso que aconteceu em agosto de 2009, após a expropriação dos meios de produção.

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O plano de construir uma fábrica de azulejos e posteriormente de porcelanato na província argentina de Neuquén é típico de uma história de gângsters. Ela foi criada por um empresário italiano chamado Zanón com inúmeros subsídios dos militares argentinos, do governo da província e, nos anos 1990, com financiamentos de Menem, que, aliás, jamais foram pagos. Esta fábrica era considerada uma das mais modernas da América Latina e virou pó nos anos 1990. Mas é no final dos anos 1990 que essa história ganha novos adjetivos, principalmente no contexto que resultou na eclosão da rebelião social de dezembro de 2001.

Porém, antes disso, é preciso destacar que a província de Neuquén é extremamente contraditória. Por um lado, “recebeu” exilados do golpe de Pinochet e exilados argentinos que fugiram da repressão nos centros metropolitanos (Buenos Aires, etc.), houve um bispo de esquerda que abrigou muita gente da esquerda, houve as lutas dos piqueteros de 1994 em Cutral-Có, as lutas dos professores secundários que resultaram no assassinato do professor Carlos Fuentealba, a luta dos Mapuches e a experiência da Zanón. Por outro lado, Neuquén é governada há mais de 40 anos por um partido chamado Movimento Popular Neuquino (MPN), que governa a província de forma populista e faz(ia) uma farra com os recursos do petróleo da região.

O relato dos trabalhadores sugere uma luta que deve ser olhada por um mesmo prisma, mas por ângulos distintos. A luta contra um sindicato burocratizado. A luta contra um Estado corrupto e avesso às demandas dos trabalhadores. A luta contra um patrão autoritário e paternalista, que se enriquecia às custas dos trabalhadores e dos privilégios obtidos no Estado argentino. A luta por colocar a fábrica novamente em marcha, agora sob controle operário. A tentativa de produção de valores de uso, ao tentar escapar do “mercado” ou ao menos sinalizar a produção de azulejos para o povo e interesses “públicos”. A luta pelo resgate da união entre trabalhadores “classistas” e entre trabalhadores e estudantes, rompida pela ditadura civil-militar.

O estopim que deu origem à luta foi a demissão de 600 trabalhadores em 2001. Eles queimaram a carta de demissão e saíram nas ruas para protestar. Na fala dos trabalhadores aparece como principal motivação a tentativa de “abrir e averiguar o caixa da empresa”, “recuperar postos de trabalho”, “recuperar a comissão interna”, “Zanón é do povo” e “voltar a viver”.

O antigo patrão não se conforma com a luta dos trabalhadores e não acredita que os mesmos podem “andar sozinhos”. Talvez por oposição a isso que os trabalhadores lançaram a consigna: “os trabalhadores podem produzir sem os patrões, mas os patrões não podem produzir sem os trabalhadores”.

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A luta foi puxada por alguns trabalhadores do Partido dos Trabalhadores Socialistas (PTS), um partido trotskista que se originou na IV Internacional. O lema destes trabalhadores é “estatização sob controle operário”, lema nunca atendido pelo casal Kirchner. É curioso observar que na fábrica temos hoje não mais que seis trabalhadores do PTS, muitos “independentes”, trabalhadores de outros partidos, tentando conviver. É preciso reconhecer que sem o “caldo de indignação” na fábrica, na região e na América Latina, dificilmente a ocupação – que mais parece uma guerra civil - em Zanón poderia ganhar força. Lembremos que diante do saqueamento e espoliação argentina “Basta! Que se vayan todos!” se tornou o lema do conflito de dezembro de 2001.

O antigo refeitório da fábrica tinha dois pisos. Respeitando a hierarquia, os subalternos ficavam no andar de baixo e os “seres superiores” ficavam no andar de cima. Aqui, podemos fazer paralelos com o filme Metropolis, de Fritz Lang.

A parte que era dos trabalhadores se tornou uma biblioteca, ainda bastante simbólica em função da utilização praticamente nula. Na parte de cima funciona o novo refeitório. Mesmo ainda bastante figurativa, deve ser reconhecida a iniciativa de se criar uma biblioteca na fábrica. Em outras empresas recuperadas argentinas há um espaço para aulas de bacharelado, etc.

Há um laço comunitário com o Movimento de Trabalhadores Desocupados (MTD). Isso pode ser visto, por exemplo, quando a fábrica começou sua luta, eram mais ou menos 220 funcionários da antiga empresa. Hoje estão com 480, sendo que mais de metade destes vieram do MTD. Não deixa de ser curioso notar que esses trabalhadores recebem a mesma retirada (salário) que os outros, havendo apenas um complemento para trabalhadores mais antigos, para os trabalhadores dos conselhos e para os postos com insalubridade.

Pedro, o Pepe, um dos cooperados que vieram do Movimento dos Trabalhadores Desocupados (MTD), foi atingido no olho por uma bala durante uma passeata. Ele foi deslocado para o setor de imprensa. Se fosse noutra empresa, provavelmente seria despedido, ainda mais em tempos de produção toyotista-enxuta. A mãe de um jovem funcionário da fábrica, morto em 1999 num acidente de trabalho, passou a trabalhar na fábrica em função dos laços comunitários, pois este jovem era a principal fonte de renda da família.

No Bairro Nova Espanha, bem próximo à fábrica, os trabalhadores montaram um centro médico. Além disso, fizeram e fazem doações de azulejos para outros hospitais, para trabalhadores que têm suas casas incendiadas por desastres naturais, pobres da região que solicitam ajuda, etc.

Eles iniciaram uma política de contratação de mulheres. Já são trinta. O sindicato dos docentes da região (ATEN) fez uma proposta de utilização de um dos espaços da fábrica para darem aulas. No dia que estive em Neuquén, numa visita guiada, um professor do ensino médio dialogava com seus alunos, dizendo mais ou menos assim: “estamos vendo aqui a história viva da Argentina, que foi saqueada, espoliada pelo neoliberalismo. Mas, ao mesmo tempo, a história da resistência dos trabalhadores neuquinos”.

Alguns professores e alunos da UBA (Universidade de Buenos Aires), mas principalmente da Universidade de Comahue (UnCo), tentam resgatar a tradição de unificação das lutas entre trabalhadores e universitários inaugurada na Reforma de Córdoba de 1918, no Cordobazo de 1969, etc. Na UnCo dialogamos com o professor Rodriguez Lupo e com alunos da engenharia que ajudaram os trabalhadores nas passeatas, arrecadação de fundos, etc., bem como na restauração das máquinas, no aumento da qualidade dos azulejos, na reformulação do processo de trabalho, etc.

A ajuda dos químicos da UBA para criar “azulejos auto-limpantes” − azulejos que têm uma película que permite que o mesmo se limpe com a luz do sol − parece navegar na onda da produção de bens socialmente úteis, dada a sua utilidade em escolas e hospitais.

Muitos poetas, artistas, documentaristas, bandas de música de esquerda, intelectuais, etc., abraçaram a causa da FaSinPat Zanón, realizando shows, filmes, etc., para relatar, refletir e ajudar a transformar a realidade de Zanón. Pode-se dizer que tal como o caso da fábrica de relógios LIP, na cidade de Besançon, em França, que o caso FaSinPat Zanón passou de um âmbito da desconhecida região de Neuquén para o mundo. Também é preciso observar que alguns ativistas, intelectuais, etc., vão a Zanón como uma espécie de “Meca” dos movimentos sociais, tentando buscar ali a “solução” para os seus problemas.

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Tudo isso nos permite dizer que a fábrica está tendo um novo significado para os trabalhadores. Ao invés de lucros e exploração dos trabalhadores, a FaSinPat Zanón aponta agora para a produção de valores de uso (o mundo não é uma mercadoria), vínculos comunitários (“Zanón és del pueblo”), unificação das lutas dos trabalhadores e utilização do espaço fabril para estudo, seja deles mesmos seja de estudantes do ensino médio e fundamental, seja pelos trabalhadores, e instaura o rodízio nos cargos estratégicos da fábrica, a recuperação de outras fábricas na região, o classismo, etc.

Sobre o “classismo”, em novembro de 2009 a FasinPat Zanón conclamou todos os trabalhadores dos setores “combativos e antiburocráticos” para a realização da primeira plenária regional dos trabalhadores argentinos “classistas”.

Na estraçalhada Argentina do início deste milênio, alguns trabalhadores da desconhecida Neuquén resistiram bravamente e parecem estar inaugurando um novo ciclo de lutas anti-capital. Nas palavras de Natalio Navarrete, o “Chico”:

“O objetivo era entrar [na fábrica] para produzir e demonstrar que nós podíamos fazê-lo […] Com o que produzimos e com o que ganhamos temos que demonstrar que podemos gerar mais postos de trabalho, e criamos novos postos de trabalho […] Podemos trabalhar em conjunto [coordinar] com outros setores e ter outras alternativas, e estamos fazendo isso. Então vamos tendo novos desafios […], agora um dos últimos delineamentos que fizemos é chegar […] no nível nacional, com as fábricas ocupadas e com outros setores de desempregados […] para ir com toda essa gente aos grandes meios de produção, às grandes fábricas onde estão sendo recuperadas as comissões internas e onde está a burocracia e apresentar nossa experiência das fábricas ocupadas e começar a dizer sobre o trabalho que estamos fazendo, que pode haver coordenação, que os trabalhadores podem se juntar tanto os empregados como os desempregados” (Entrevistado por Fernando Aiziczon, Zanón – una experiência de lucha obrera, Buenos Aires: Herramienta, 2009, p. 215).

[*] Henrique T. Novaes é Economista (Unesp-Araraquara). Doutorando em Política Científica e Tecnológica (Unicamp), onde estuda a relação da universidade com os movimentos sociais na América Latina. Autor do livro: O fetiche da tecnologia – a experiência das fábricas recuperadas (Editora Expressão Popular). Coordenador do curso de especialização “Economia Solidária e Tecnologia Social na América Latina” (Unicamp). Correio eletrônico: hetanov@yahoo.com.br

Fotografias: Henrique T. Novaes


fonte: http://passapalavra.info/?p=15791

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segunda-feira, 30 de novembro de 2009

A Onda

A Onda


A confusão do político com o afectivo, que ameaça todos os grupos, constitui o grande risco do totalitarismo. A política exercida com a razão é o antídoto do fascismo, que sempre se apresenta como uma política da emoção. Por João Bernardo

onda-7A Onda, Die Welle, é um filme realizado [dirigido] na Alemanha em 2008 por Dennis Gansel. Um professor amante de rock e com simpatia pelo anarquismo − personagem apesar de tudo frequente e revelador dos anseios frustrados de antigos estudantes insubmissos que acabaram por integrar o rebanho − foi encarregado pela directora da escola de dar um curso sobre os regimes autocráticos. Na Alemanha, inevitavelmente, o fascismo iria ser o tema dessas aulas, e como ninguém queria ouvir mais uma vez as banalidades de sempre sobre o Terceiro Reich e a culpabilidade alemã, o professor decidiu romper a barreira do desinteresse procedendo a uma experiência pedagógica. Propô-la aos alunos e eles aceitaram. Durante uns dias, o professor obrigaria os alunos, com o consentimento deles, a cumprirem os rituais físicos da disciplina de massas, esperando que eles aprendessem assim o conteúdo ideológico dessa disciplina.

Ao ver o filme, qualquer português da minha idade encontrará ali as aulas de Educação Física da sua infância. O que nos obrigavam a fazer! Talvez por isso todos nós, os jovens esquerdistas, éramos péssimos em ginástica. Se o taylorismo é a disciplina do corpo para a produção, o fascismo foi a disciplina do corpo para a política. Na experiência pedagógica daquele professor tudo começou com gestos simples, o levantar e o sentar, o estar sentado direito e de pés juntos.

E o professor tinha razão, porque antes de ser uma ideologia ou uma forma de governar, o fascismo fora acima de tudo um ritual colectivo, a encenação diariamente repetida da hierarquia e da submissão, da ordem enquanto anulação do indivíduo na grande colectividade, na pátria ou na raça.

O passo seguinte, não menos decisivo, foi a escolha de um uniforme, porque o uniforme não é apenas um símbolo de identidade do grupo. Muito mais do que isso, no fascismo o uniforme era uma máscara que ocultava as diferenças sociais, aquilo que já não sei que crítico britânico denominou «sartorial socialism», socialismo de alfaiate. E o pior é que foi esta a argumentação empregue por alguns alunos para convencer outros, mais renitentes, a aceitar o uniforme. Ele é democrático, diziam eles, pois reduz todos à mesma condição. E não é a democracia nos dias de hoje o mais insuspeito e incontroverso dos valores? Democrático dentro das paredes da sala de aulas, porque lá fora, apesar de envergarem roupa idêntica, os alunos eram ricos ou pobres ou assim-assim, sem que competisse ao uniforme abolir aquela realidade fundamental. A discussão na turma a propósito da adopção de uniforme foi das mais sugestivas, porque surgiu ainda o argumento de que nas democracias as fardas são comuns e até os executivos das empresas adoptam padrões de vestuário. Precisamente. Será que o fascismo foi democrático? Ou é a democracia que é fascista? E não podia ser mais aterrador o uniforme criado pelo professor e pelos alunos, calças jeans azuis e camisa branca. Na sua inteira banalidade, este uniforme lembrou-me o que John Le Carré descreveu em A Small Town in Germany, onde relatou o desenvolvimento de um fascismo pós-fascista, um movimento cinzento e anónimo de mediania social.

onda-42Adoptado o uniforme, impunha-se naturalmente a escolha de uma saudação, o outro elemento ritual necessário para a identificação do grupo. E como o desporto aquático era a especialidade daquele professor e daquela turma, a saudação acabou por ser um gesto de braço reproduzindo o movimento de uma onda. Aquela tribo adquirira o seu nome e o seu totem. A Onda.

Porém, o que começara como um jogo continuou como um mecanismo inelutável, cujas engrenagens já não puderam ser sustidas e cujos efeitos não puderam ser travados. A sociedade não é um laboratório e as experiências sociais têm efeitos reais. A partir do momento em que se começa a fazer algo como experiência, ela deixa de ser gratuita. Talvez seja esta a maior lição de um filme que tem tantas. Contrariamente ao que imaginam os pós-modernos, a futilidade é uma coisa muito séria.

Uniforme, saudação, rituais, disciplina de massas, este conjunto excluiu tudo o resto. As aulas deixaram de ser − ou de pretender ser − a transmissão ou a partilha de um conhecimento e converteram-se na mera afirmação da identidade do grupo. A vida privada foi eliminada. Não só a vida privada, aliás, mas todos os tipos de existência que ultrapassassem os limites do grupo. A Onda não tinha vias de saída, nem sociais nem mentais. A redução da existência a uma perspectiva única, é isto o totalitarismo, e o apelo aos sentimentos é aqui um dos procedimentos mais eficazes. Lealdade, afecto, devoção, nada disto podia ser gasto com namoradas ou com colegas, mas apenas com o grupo ou com as pessoas enquanto membros do grupo. A confusão do político com o afectivo, que ameaça todos os grupos, constitui o grande risco do totalitarismo, tanto mais perigoso quanto é a sedução da demagogia fácil. A política exercida com a razão é o antídoto do fascismo, que sempre se apresenta como uma política da emoção.

onda-9A Onda deu aos alunos o que lhes faltava, o sentido de uma comunhão colectiva, mas com a condição de eles darem tudo… a quem? Ao grupo? Através da hierarquia instaurada, tudo é dado inevitavelmente ao chefe do grupo, por isso ele pode aparecer como o generoso dispensador de benesses e de conselhos. O autoritarismo não é senão a exploração afectiva dos que se entregam à autoridade. O carisma não emana do chefe, é-lhe dado pelos que acreditam nele e que não têm consciência de que recebem de volta no plano simbólico aquilo que lhe concederam no plano real.

Mas não foi só através da repetição dos gestos da disciplina colectiva que os alunos assimilaram o fascismo, a ponto de o adoptarem. O terreno propício estava criado pelo misto de ignorância e de ressentimento que caracterizava a quase totalidade dos estudantes daquela turma, como caracteriza a sua esmagadora maioria noutras escolas e em outros países. A ignorância não consiste em não se saber mas em não desejar saber. A ignorância é só outro nome que se dá ao desinteresse. O ressentimento é a outra face do mesmo problema. Referindo-se à base popular dos precursores do fascismo francês, Eugen Weber observou que ela se caracterizara por «odiar os ricos e desprezar os pobres», o que constitui a definição do ressentimento. Naquele caso, o ressentimento era antes de mais sentido pelo professor, licenciado com diplomas de segunda ordem, enquanto os colegas tinham vindo de melhores universidades. O ressentimento era sentido também por muitos alunos e alunas, invejosos dos que tinham melhores notas ou melhores carros ou melhores roupas, das que eram mais bonitas e dos que eram mais atléticos. Como ninguém tem tudo, a semeadura do ressentimento encontra campos férteis. E assim os perdedores de sempre, os tímidos, os incapazes sentiram-se fortes em grupo e foram eles quem forneceu à turma a estrutura embrionária das tropas de choque.

Quando o professor fez numa aula um discurso demagógico contra o capitalismo, quem conhecer a história sabe que se tratava de uma colagem de citações fascistas, mas quantos esquerdistas actuais não o aplaudiriam com toda a boa fé? Quantos esquerdistas não descobririam, se lessem os fascistas, que na verdade eles mesmos são fascistas? Há alguns meses este site publicou um artigo meu, Entre a Luta de Classes e o Ressentimento, que foi reproduzido noutros lugares, e num desses blogs um leitor indignado escreveu que «o João Bernardo está à direita de Átila». Com efeito, quando se julga que a extrema-direita é uma esquerda, em que lugar hão-de pôr a extrema-esquerda?

Se bem que tivesse começado a espalhar-se pela cidade, o fascismo de A Onda fora gerado dentro das paredes de uma sala de aula e mantinha na escola a sua base de sustentação. Foi a estrutura escolar que forneceu o quadro daquela experiência. O professor não inventou uma nova relação com os alunos, apenas deu outro rigor e marcou de outro modo a hierarquia subjacente à vida da escola. Normas, submissões e comportamentos que no quotidiano aparecem de maneira dissimulada passaram para o primeiro plano e preencheram toda a cena. Ainda aqui o filme indica um dos mais importantes caminhos para a análise do fascismo, porque entre as duas guerras mundiais o fascismo jamais poderia ter ascendido e imperado sem o quadro prévio que lhe fora fornecido pelo liberalismo burguês. Compreenderemos o mecanismo básico do fascismo se soubermos que ele foi uma revolta no interior da ordem, não contra a ordem − ainda que, nalguns casos, pudesse tê-la derrubado depois. Do mesmo modo, aquele fascismo escolar surgiu no interior da hierarquia docente e contou com a protecção discreta, embora significativa, da directora da escola, numa ocasião em que o barulho dessas estranhas aulas começara a incomodar os professores conservadores que davam aulas ao lado. Mas o que sucederia à directora da escola, conservadora também, se A Onda alastrasse? Não seria ela substituída pelo criador de A Onda, como aconteceu sempre com os aprendizes de feiticeiro que pensaram usar o fascismo para reforçar a sua autoridade e que terminaram vendo a autoridade reforçada, mas não a deles?

E se aquele homem fosse professor na Universidade Bandeirante?

Poderia aquela experiência ocorrer em outro lugar que não numa escola? Ela não poderia ter como quadro uma empresa, pelo menos durante as horas de trabalho, porque o grupo alteraria as relações sociais de produção. Para o fascismo foi intocável o sistema de trabalho, e dentro dos muros das empresas o totalitarismo fascista jamais substituiu o totalitarismo patronal. Quando observamos algumas práticas de controlo da força de trabalho desenvolvidas nas empresas japonesas e a partir daí difundidas por todo o mundo, verificamos uma grande semelhança com os rituais políticos do fascismo. Mas dentro das empresas as manifestações de disciplina colectiva destinam-se a aumentar a produtividade e obedecem às hierarquias internas das empresas, enquanto os rituais fascistas, que vigoram fora das empresas, obedecem à hierarquia política e destinam-se a manter a ordem social global. Estas duas esferas totalitárias justapõem-se sem se interpenetrarem. Tanto assim que o «sartorial socialism», o socialismo de alfaiate que vestia patrões e empregados com os mesmos uniformes nas mesmas milícias, servia para as ruas e para as praças mas era excluído das fábricas ou dos escritórios. Ora, o estudante tem algo em comum com o desempregado. A sua actividade não é considerada, em termos capitalistas, um trabalho, mas apenas uma preparação para o trabalho. É conhecido o papel que os desempregados tiveram na ascensão de algumas formas de fascismo durante a profunda crise económica da década de 1930. Temos no caso daqueles estudantes um fascismo dos tempos livres.

E na perspectiva dos tempos livres vemos que a escola não foi o único quadro constitutivo do fascismo de A Onda. Os pequenos grupos informais existentes entre os alunos, os minúsculos gangs de esquina que alguns deles formavam nos corredores da escola ou nas ruas da cidade, foram mobilizados para confluir no grupo mais vasto, e ao mesmo tempo que perderam a sua identidade contribuíram para dar à Onda uma identidade única e coesa.

onda-2Numa noite em que um pequeno bando de A Onda, enquadrado pelo embrião de tropas de choque, enfrentou outro pequeno bando de anarco-punks, vemos uniformes em ambos os lados, opostos nas suas características estéticas, mas ambos identificadores de uma demarcação de grupo. O fascismo é uma realidade envolvente, cujos sintomas estão dispersos, por isso é sempre possível articulá-los e conjugá-los, criando uma realidade visível onde antes existiam apenas indícios dissimulados. É esta a operação chave do fascismo, e posso pensar que se algum daqueles anarco-punks que se bateram na rua contra A Onda tivesse decidido seguir o curso sobre a autocracia teria com facilidade sido engolido pelo colectivo fascista, como outros alunos com aspecto igualmente punk haviam sido absorvidos também.

Não foi nesta refrega entre milícias uniformizadas, apesar de rivais, que A Onda foi posta em causa, mas na competição de desporto aquático realizada com os alunos de outra instituição, que curiosamente se chamava Escola Ernst Barlach, em homenagem a um dos grandes escultores do expressionismo, vilipendiado pelos nazis como «artista degenerado». Barlach não fora só um grande escultor e conseguira imprimir a algumas das suas obras um antimilitarismo que não vinha dos bons sentimentos mas do horror intrínseco da guerra. Foi ali, no confronto entre a realidade do fascismo e a memória do antimilitarismo, que a violência e o autoritarismo de A Onda começaram a ultrapassar os limites do que era internamente aceitável pelo próprio grupo, precipitando-o para a implosão final.

Antes do mais, foi porque no resto da sociedade não houve quem necessitasse de um grupo com aquelas características que a violência sistemática de A Onda, em vez de continuar a expandir-se contra o inimigo exterior, se virou contra si mesma. Mas o filme deixa em suspenso a grande questão. O que teria sucedido se alguém, se alguma força política, se a própria polícia, naquele momento, naquela cidade, estivesse interessado num grupo assim? Parece tão fácil chegar ao fascismo, que em vez de explicar o fascismo talvez o que devesse ser explicado fosse o não-fascismo.

A última cena do filme fixa o rosto do professor, já dentro do carro da polícia que o leva preso, transfigurado pela descoberta, tal como o sr. Kurz na novela de Joseph Conrad, quando murmurou, no momento de morrer, «O horror! O horror!». Aquilo que o professor sentiu dentro dele, indizível porque não há palavras que o expressem num instante menor do que um segundo, foi a compreensão dos mecanismos da história. Mas a história é assimétrica, como o tempo que a sustenta, e flui só num sentido. Podemos compreender a prática, mas só depois de a termos praticado, e lançamo-nos na história sem garantias prévias. A Onda é um filme precisamente sobre isto, sobre o fascismo difuso no quotidiano e que só entendemos como fascismo depois de ele já estar instalado.

«O horror! O horror!»

«O horror! O horror!»


fonte: http://passapalavra.info/?p=15523

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quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Vigília em solidariedade a Cesare Battisti

Vigília em solidariedade a Cesare Battisti

Cesare Battisti declarou que a sua salvação está nas mãos dos movimentos sociais. É um diagnóstico correto, mas é também perante uma grande responsabilidade que ele coloca os movimentos sociais.

No dia 24 de novembro o Comitê de Solidariedade a Cesare Battisti realizou um debate, que foi transmitido ao vivo pelo Passa Palavra.

cesare-1Saímos desse debate animados e perplexos, sem conseguirmos separar estas duas sensações. Um dos representantes do Comitê de Solidariedade disse que nunca, em nenhuma das sessões realizadas até agora, tinha visto reunidos representantes de tantas entidades diferentes. Mas isto é animador ou desolador?

Mesmo tendo em conta o que explicou um membro do Fórum de Ex-Presos Políticos, que a sua presença tinha um caráter meramente individual, é certo que na mesa e na platéia contavam-se representantes de um partido, o Partido Comunista Brasileiro, e de uma corrente, a Esquerda Marxista. Mas, e os outros? Como um dos intervenientes observou, nem sequer fizeram um telefonema! E, no entanto, não foi porque não tentássemos, mas num caso não tivemos resposta e noutro caso disseram-nos que a agenda estava toda preenchida. Infelizmente as lutas sociais não obedecem a um calendário rigoroso, e talvez por isso se perdem tantas oportunidades.

Ouvimos também falar um representante da coordenação da Intersindical, e tudo o que ele disse nos deixou muito animados. Mas não podemos esquecer que a direção de um sindicato comunicou que não poderia estar presente no debate porque nesse dia tinha de fazer trabalho de base.

Isto é trágico. Praticamente todos os intervenientes, na mesa como na platéia, foram unânimes em relacionar a perseguição que é feita a Cesare Battisti com a criminalização de que têm sido sistematicamente vítimas os movimentos sociais, com a perseguição aos sindicalistas, com a política de genocídio que está a ser praticada nas favelas e que atinge o povo mais pobre e em grande medida a população negra.

Esta constatação deixou-nos animados, porque o caso de Cesare Battisti não é apenas o de um combatente estrangeiro que lutou no seu país, num continente do outro lado do mar. É um caso estreitamente ligado às perseguições políticas que ocorrem todo dia no Brasil. Uma figura personifica tanto a perseguição a Cesare Battisti como a criminalização dos movimentos sociais − o ministro Gilmar Mendes. Mas, e aqui ficamos perplexos, onde estavam as vozes dos movimentos sociais que são vítimas deste inimigo comum? Nenhuma se fez ouvir, não estavam presentes nesse debate. E foram vários os intervenientes, na mesa como na platéia, que observaram com estranheza essa ausência. Os grandes ausentes, afinal, eram os grandes atingidos. Será que os movimentos sociais ainda não deliberaram se são contra ou a favor da extradição de Cesare Battisti? Será que os movimentos sociais, bem como os sindicatos, não pensaram que a solidariedade que toda a esquerda lhes tem prestado em todos os momentos lhes impõe que sejam igualmente solidários? A solidariedade não é uma via de sentido único.

Todos os intervenientes estiveram de acordo num ponto, que é o ponto básico. A necessidade de fazer pressão sobre o governo e sobre o presidente Lula para que não extradite Cesare Battisti e o liberte rapidamente. Acharam uns que essas pressões se devem fazer, para empregar uma expressão que foi usada, como se fôssemos assaltar um baluarte inimigo. Defenderam outros que nesta questão o governo e o presidente são aliados a quem nos cumpre oferecer munições. Mas para lá desta clivagem, todos estiveram de acordo sobre a necessidade de pressionar o governo e o presidente.

Ora, como um dos intervenientes observou com lucidez, é impossível fazer pressões se não representarmos pelo menos alguns milhares de pessoas que se manifestem nas ruas por todo o país. «Não viemos aqui discutir o que o governo deve fazer», disse um dos intervenientes, «devemos discutir o que os movimentos sociais têm de fazer».

Mas será que os movimentos sociais e os sindicatos estão dispostos a mobilizar pelo menos uma pequena parte dos seus militantes e dos seus quadros, nesta luta que é também uma luta deles? Será que os partidos de esquerda estão dispostos a usar a influência que possuem? Cesare Battisti declarou − e fê-lo por várias vezes − que a sua salvação está nas mãos dos movimentos sociais. É um diagnóstico correto, mas é também perante uma grande responsabilidade que ele coloca os movimentos sociais.

cesare-21Ainda aqui nossa perplexidade foi indissociável do otimismo, porque nada está perdido se as pessoas de base, se os militantes comuns fizerem pressão junto às entidades a que pertencem para elas se mobilizarem em defesa de Cesare Battisti. Seremos poucos demais, não conseguiremos nada?

Um dos representantes do Comitê de Solidariedade observou que a campanha de defesa de Cesare Battisti e de esclarecimento acerca da sua ação política foi toda ela conduzida pela internet, já que a grande mídia só se fez porta-voz do governo italiano e das forças que querem aqui a extradição de Cesare. A isto nós acrescentamos que mesmo na internet essa campanha foi conduzida sem qualquer colaboração de uma grande parte dos sites da esquerda institucional. Mas quanto a isto, em vez de perplexos, ficamos mais animados, porque vemos que muita coisa podemos fazer com as nossas forças.

O debate encerrou-se com a decisão de fazer um dia de vigília em apoio a Cesare Battisti, com indicativo de data para 10 de dezembro.

Como disse um dos representantes do Comitê de Solidariedade, o acordo é total quanto ao objectivo final, mas cada um ocupando seu espaço político próprio. Só assim podemos construir uma ação eficaz, uma vigília com um único ponto e que reúna o maior espectro social e político possível em torno desse ponto − Liberdade imediata para Cesare Battisti. Passa Palavra

sábado, 21 de novembro de 2009

Os Gestores como classe dominante: notas de uma pesquisa sobre o marxismo de João Bernardo


Os Gestores como classe dominante:

notas de uma pesquisa sobre o marxismo de João Bernardo

Por JOÃO ALBERTO DA COSTA PINTO

Departamento de História da Universidade Federal de Goiás (UFG)



Aproveito esta oportunidade para dar notícia de uma pesquisa que venho desenvolvendo sobre a obra e a trajetória teórico-política de João Bernardo, pensador marxista português. Pelas limitações circunstanciais utilizarei este espaço para dar nota de um importante aspecto teórico presente na centralidade do conjunto de sua obra: os gestores como classe dominante no capitalismo.

Os gestores como classe dominante que se desenvolveu conjuntamente com a burguesia na consolidação do capitalismo como modo de produção. O capitalismo teria assim, na sua constituição histórica a afirmação de três classes: a burguesia, os gestores e o proletariado. Essa proposição é sugerida pela obra que João Bernardo vem desenvolvendo nas últimas décadas num conjunto de livros que foram editados tanto em Portugal como no Brasil, sendo alguns deles já traduzidos para o inglês, para o francês e para o espanhol (01).[1]

São necessárias algumas definições. A primeira delas, a definição de capitalismo que centraliza a argumentação do autor:

"Capitalismo é o único sistema econômico que assenta na produção de mercadorias, ou seja, onde os bens são produzidos com a finalidade única da sua venda. (...) O capitalismo implica a criação, no processo de produção, do seu próprio mercado. Produz-se um número crescente de bens e só a venda no mercado permite que o capital entre em novo ciclo produtivo. Este regime implica uma concorrência permanente para o escoamento comercial dos produtos. (...) é a própria concorrência entre capitalistas particulares que leva à expansão do mercado em geral. O objectivo dos capitalistas particulares não é o de dividir entre si um mercado estático, mas sobretudo o de expandir o mercado que cada um dispõe. Para isso procuram permanentemente aumentar a produtividade. (...) a concorrência inter-capitalista no mercado assenta na concorrência inter-capitalista no próprio processo de produção; o mecanismo fundamental da concorrência reside na luta pelo aumento da produtividade a qual se processa inteiramente ao nível do fabrico dos produtos. O aumento da produtividade numa dada empresa pressupõe o conhecimento dos processos de fabrico nas restantes, (...) exigindo-se para isso uma relação tecnológica entre as unidades de produção. É a partir de uma base comum de inter-relação tecnológica que as empresas vão entrar em concorrência pelo crescimento da produtividade" (Bernardo, 1979: 20-21).

Antes, porém, que esse processo econômico se realize integralmente é necessário que o Estado tenha desenvolvido, ou esteja a desenvolver, as chamadas Condições Gerais de Produção (CGP), condições, entre outras, como a "organização do sistema geral de ensino", "a extensão da medicina à generalidade da população", "medicina preventiva e a vacinação", "esgotos e novas condições urbanas", etc (Idem, 1979: 23-36). Em suma, condições gerais de produção que "ultrapassam os limites de cada empresa particular e constituem uma vasta teia, sem a qual essas empresas e o próprio capitalismo não poderiam existir" (Idem, 1979: 36).

Com essa definição de capitalismo, cumpre agora perceber como o autor conceitua as classes que o compõem enquanto modo de produção. Para João Bernardo são três as classes sociais no capitalismo. Classes que não se determinam em si como substâncias, mas, nas relações que realizam entre si. Além da classe explorada (o proletariado), o capitalismo apresenta mais duas classes, formadas historicamente diante dos "dois aspectos fundamentais do polo explorador do capitalismo": a burguesia e os gestores.

"(...) a burguesia representando a parcelarização das empresas, a privatização da propriedade do capital; e uma outra classe, que consubstancia a integração tecnológica entre as unidades de produção, as condições gerais de produção; em virtude das funções predominantemente organizacionais que esta classe desempenha, na união entre os vários processos particulares de fabrico e, portanto, na orquestração do capitalismo como um todo, posso chamar-lhe classe dos gestores" (Idem, 1979: 36-37, destaque do autor).

Ressalve-se que esse gestor não é um substituto do burguês, mas, um seu contemporâneo (Idem, 1979: 37). Destaque-se, na citação anterior como o autor caracteriza o processo estrutural que dá existência histórica às classes dominantes no capitalismo. O comando pessoal da empresa privada em si, que dá definição ao burguês como proprietário, e as relações de produção e de mercado que impõem uma lógica de relações entre o conjunto sistêmico das unidades produtivas, atividade que transcende as práticas individuais dos proprietários, atividade que é transferida aos gestores, tanto na organização global do sistema econômico a que estão envolvidas essas unidades produtivas, como na organização global do sistema político que organizará a estruturação no mercado das condições gerais de produção, aqui, o papel é dos gestores do Estado. Ainda uma ressalva. A particularização do burguês à sua unidade produtiva não significa isolamento, significa, como diz João Bernardo, em outro momento da sua obra, "que cada unidade econômica veicula os aumentos de produtividade exclusivamente ao longo da linha de produção em que diretamente se insere" (Bernardo, 1991: 203), e essa organização é que dá a caracterização de classe a burguesia, a unidade produtiva deve estar em relação com as outras unidades produtivas, concorrendo no mercado e na produção por uma ampliação de sua capacidade produtiva. A burguesia, como classe se constituiu pela organização particular de sua produção premida pela concorrência com outras unidades produtivas. A classe dos gestores condiciona sua existência histórica, inicialmente, pela organização integrada dessas unidades particulares, em paralelo à organização dentro do Estado das condições gerais de produção. Entretanto, apesar de se originar também na empresa privada, os gestores enquanto classe têm no Estado o seu "campo privilegiado de existência", pelas funções de organização dos inter-relacionamentos globais exigidos pela sempre ampliada reprodução do capital.

São possíveis algumas conclusões. Diz João Bernardo que uma visão dicotômica dos conflitos sociais no capitalismo, parece-lhe ultrapassada, se restringida à luta entre burguesia e proletariado, para o autor, com o desenvolvimento do capitalismo conferiu-se "uma importância prática cada vez maior à inter-relação das unidades de produção e às condições gerais de produção, condenando ao arcaísmo qualquer concepção centrada no isolamento das empresas" (Bernardo, 1979: 57). Dessa maneira, os gestores partilham com a burguesia do "controle dos aspectos decisivos do capitalismo", ambas, são assim, "classes exploradoras e como tal se opõem ao proletariado" (Idem, 1979: 59); dessa constituição de práticas históricas, com a evolução do capitalismo, a integração tecnológica entre as empresas tende a progredir e com isso, a função sócio-histórica da burguesia enquanto classe tende a se reduzir em detrimento do crescimento do controle do capital por parte dos gestores, daí desenvolver-se dentro das estruturas do Estado, dependendo de cada situação, uma subalternização da burguesia como classe frente aos gestores como classe progressivamente mais organizada. O Estado brasileiro no período 1930 – 1964, possui uma historicidade que demonstra muito bem essa análise sugerida pelo pensador marxista português.

Muitos outros elementos justificam historicamente os gestores como classe, mas, para efeitos de síntese, limito-me a mais uma rápida apresentação do argumento do autor.

A classe gestorial, porque se relaciona com a integração das unidades econômicas no processo global e com a coordenação dessas articulações, desenvolveu formas integradas de propriedade do capital, que não é particularizada individualmente, mas unificada por grupos mais ou menos numerosos de gestores que, assim, detêm enquanto coletivo empresas, conjuntos de empresas ou até a totalidade da economia num país" (Bernardo, 1991: 205).

Em suma, quanto mais se desenvolve a economia capitalista mais se consolidam os gestores como classe, os que se responsabilizam diretamente pela organização e integração desse desenvolvimento. "São a classe capitalista que, contemporânea da gênese deste modo de produção, expande-se e reforça-se com o crescimento econômico, confundindo-se com ele o seu eixo de evolução" (Idem, 1991: 216). No processo de expansão capitalista verifica-se crescentemente a "eliminação física" dos indivíduos burgueses provocada pela falência do seu projeto empresarial na concorrência do mercado. Esses indivíduos assumirão funções de chefia em qualquer âmbito administrativo presente no capitalismo, tornam-se, portanto, gestores do capitalismo, por muitas vezes são colaboradores nas empresas que já foram suas. Constata-se então, o fenômeno histórico no capitalismo do declínio progressivo da burguesia como classe dominante em detrimento de uma expansão progressiva dos gestores como classe dominante (Idem, 1991: 216), a burguesia definha para alimentar a outra classe capitalista em expansão.

Quando a hegemonia nas classes dominantes era da burguesia, fato que se verifica com clareza até o fim da década de 1920, era corriqueiro aos gestores, no processo de sua ascensão como classe, estarem dispersos "por campos e instituições várias" e serem por isso uma classe ainda incapaz de "comportamento unificado", daí "puderam confundir-se com os trabalhadores numa comum oposição à burguesia". Esse momento de efetiva ambigüidade de classe, "permitiu que grandes movimentos da classe dos trabalhadores, inicialmente dirigidos para a destruição do modo de produção capitalista, acabassem afinal reconvertendo-o em formas novas, acelerando assim o seu desenvolvimento e consolidando-o" (Idem, 1991: 217). Esse fenômeno tão característico das lutas anti-capitalistas no século XX acabava por reforçar a apropriação da mais-valia relativa, isto é, reforçar um capitalismo cada vez mais organizado, cada vez mais sistematizado pela classe dos gestores. O corolário sob o ponto de vista dos trabalhadores, é paradoxal, porque viu nascer em definitivo, no seu próprio campo de lutas, um ex-aliado como um inimigo de classe. Dessa maneira, parafraseando o autor, os gestores, como classe, são o efetivo "inimigo oculto" dos trabalhadores.

Nas 959 páginas do monumental estudo que desenvolveu sobre a história do fascismo no século XX – Labirintos do Fascismo. Na Encruzilhada da Ordem e da Revolta (2003), entre muitas definições, João Bernardo apresenta uma expressiva síntese historiográfica sobre a questão da relação - gestores e capitalismo, que para efeitos de conclusão deste pequeno artigo a considero integralmente.

Diz o autor que os gestores "surgem como o eixo de articulação de todas as variantes do capitalismo moderno" (Bernardo, 2003: 307). São três as variantes do capitalismo moderno: a variante democrática do New Deal nos EUA – um modelo de capitalismo identificado como keynesiano; a variante soviética, como expressão de capitalismo de Estado e a variante fascista européia. Afirma João Bernardo, que no período entre as duas guerras mundiais, a burguesia "mostrou-se incapaz de se renovar e de remodelar o sistema econômico. Perante esta falência histórica da classe que até então havia sido hegemônica foram os gestores quem assumiu a direção dos acontecimentos, salvando o capitalismo" (Idem, 2003: 306). Salvação essa, demarcada naqueles três exemplos referidos acima e caracterizados sumariamente a seguir.

No modelo do keynesianismo do New Deal, "conservaram-se as instituições burguesas", mas já remodeladas pelos gestores, o imperativo político definiu-se pela manutenção da ordem. No pós-1929, pela própria natureza da crise macroestrutural, os trabalhadores foram crescentemente alijados, apesar de suas lutas, dos centros decisórios – por exemplo, não se constituiu nos EUA, a partir desse momento um forte Partido Comunista de bases nacionais. O autor define a ação dos gestores dentro das instituições burguesas, com os trabalhadores crescentemente marginalizados nas mesmas como uma "modalidade de manutenção da ordem. Num esquema: gestores + burguesia / proletariado" (Idem, 2003: 306).

O inverso aconteceu na União Soviética. Conforme o autor, "enquanto o proletariado procurava a aliança dos gestores para destruir ou transformar as relações sociais de produção, confundindo assim a burguesia com a totalidade do capitalismo" (Idem, 2003: 307), os gestores apropriavam-se do apoio do proletariado para apenas modificar o estatuto jurídico de propriedade, "de maneira a desenvolver formas de apropriação adequadas ao caráter coletivo da classe gestorial e a retirar à burguesia a exclusividade do controlo do capital. Nesta indefinição entre relações de propriedade e relações de produção", afirmaram-se as "grandes derrotas do proletariado" e os "mais macabros paradoxos do socialismo" (Idem, 2003: 307). No esquema sugerido pelo autor, na experiência dos socialismos ortodoxos contemporâneos dos quais a experiência do stalinismo soviético é o grande paradigma, a equação é "gestores + proletariado / burguesia" (Idem, 2003: 307).

A situação do fascismo obedeceria a um esquema híbrido. Como na ortodoxia stalinista, o fascismo também "institucionalizou a mobilização do proletariado sob o comando dos gestores", no entanto, a "afinidade do fascismo com o New Deal e com o keynesianismo resultou da manutenção das instituições burguesas na sua aparência exterior, embora a burguesia ficasse relegada a um lugar secundário" (Idem, 2003: 307). O fascismo impunha à burguesia a ameaça do proletariado para afirmar os gestores como condutores do capitalismo, ou seja, no fascismo, os gestores mantiveram o quadro capitalista de feições burguesas, "respeitou[-se] o quadro da ordem", mas, acrescentou-lhe o medo da "revolta, suscitado pelos ecos da mobilização proletária. Num esquema: gestores + burguesia + proletariado" (Idem, 2003: 307).

Restaria aqui, como um possível desdobramento analítico das perspectivas apontada pelo modelo do autor, apresentar uma definição dos gestores na organização do capitalismo brasileiro quando do período da convencionalmente chamada Era Vargas. Mas, por agora, limito-me à descrição parcial desse modelo, deixando essas possibilidades interpretativas para uma outra oportunidade.

[1] João Bernardo, nascido na cidade do Porto, Portugal, em 1946, tem uma obra que atualmente soma doze livros e inúmeros ensaios e artigos publicados em revistas nacionais e internacionais. Desse conjunto de obra, destaco para esta ocasião, os livros: O Inimigo Oculto. Ensaio sobre a Luta de Classes. Manifesto Anti-Ecológico. Porto: Afrontamento, 1979; Economia dos Conflitos Sociais. São Paulo: Cortez, 1991; e, Labirintos do Fascismo. Na Encruzilhada da Ordem e da Revolta. Porto: Afrontamento, 2003.