segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Da Alienação à Depressão – caminhos capitalistas da exploração do sofrimento (4ª Parte)

Da Alienação à Depressão – caminhos capitalistas da exploração do sofrimento (4ª Parte)


Ao ocultar a injustiça e inibir a capacidade de indignação o indivíduo não só passa a considerar natural e inevitável o que não é, como assimila as vivências propostas a ponto de aderir a uma servidão voluntária que vai levá-lo à sua destruição. A condição para que estas pressões realizem o que o capital deseja é que o sujeito esteja só, abandonado pelos demais, enfraquecido em sua capacidade de ver e resistir à injustiça… Por Emilio Gennari

4. Os mortos-vivos do trabalho

- “Aposto que isso tem a ver com o assédio moral!”, afirma o ajudante ao tentar demonstrar que está aprendendo a lição.

- “Sim e não”, responde enigmática a coruja.

- “Mas, Nádia, este é um tema tão atual que não há quem não fale dele! E depois há milhares de processos judiciais contra as empresas que não só condenam esta prática como cobram compensações em dinheiro pelos estragos!”, insiste o homem ao não se dar por vencido.

- “O seu problema, querido bípede de óculos, é que o ângulo a partir do qual você enxerga a realidade continua fechado demais. É verdade que sair do umbigo para ver o pé já é um avanço, mas ainda não basta para perceber o que está em jogo e, muito menos, para criar condições capazes de reverter os processos que descrevemos acima.

Para início de conversa, fique sabendo que não mais do que 10% dos que sofrem alguma injustiça no trabalho recorrem a um processo judicial e, destes, 6 fecham acordos bem inferiores aos próprios direitos, o que deixa os patrões numa situação extremamente confortável e com a clara sensação de que as vantagens da exploração do sofrimento vão propiciar aumentos consideráveis da eficiência e dos lucros ainda por muito tempo. Além disso, vale lembrar que a prática do assédio moral em suas mais variadas modalidades não é nova, mas tem sim a mesma idade do trabalho realizado para outrem em troca de pagamentos que possibilitem a própria sobrevivência. Chefes e patrões sempre perseguiram trabalhadores e trabalhadoras ora de forma aberta, ora disfarçada, com medidas autoritárias ou com tapinhas nas costas, gritarias ou repreensões paternalistas. Em todos os casos, o objetivo dos constrangimentos criados era sempre o mesmo: extrair mais trabalho, mais produção, mais lucro, enfim, melhorar as possibilidades e os ritmos da acumulação.

aliendepre12O que é novo, portanto, não é o assédio moral, mas a realidade que abre as portas a distúrbios psíquicos, físicos e psicossomáticos cuja ocorrência cresce dia-após-dia até mesmo em profissões nas quais o dispêndio de esforço físico ainda é superior ao grau de tensão nervosa que acompanha o desempenho individual das tarefas. Nas páginas anteriores, vimos como as formas de solidariedade e companheirismo foram sendo desestruturadas em suas bases humanas fundamentais pelo aperfeiçoamento dos mecanismos que levam a considerar o outro como um concorrente a ser derrotado. Ao ocultar a injustiça e inibir a capacidade de indignação o indivíduo não só passa a considerar natural e inevitável o que não é, como assimila as vivências propostas a ponto de aderir a uma servidão voluntária que vai levá-lo à sua destruição.

A condição para que estas pressões realizem o que o capital deseja é que o sujeito esteja só, abandonado pelos demais, enfraquecido em sua capacidade de ver e resistir à injustiça, incapaz de pronunciar o famoso ‘você me paga’ ou ‘você não perde por esperar’ com o qual a dignidade ferida dificulta a resignação, pressiona por algum tipo de reação e, ao reafirmar sua participação no grupo dos que não aceitam baixar a cabeça, renova os vínculos e a revolta dos demais que são vítimas da mesma situação. Por isso, mais que à fragilidade das pessoas, o avanço do assédio moral e das patologias a ele relacionadas é proporcional ao recuo da solidariedade e, com ele, da possibilidade de uma resposta que procure atingir diretamente as causas do sofrimento.

Mas isso não é tudo. Para que as pessoas falem de si mesmas, de seus anseios, angústias ou temores e para que se sintam livres para colocar em palavras seus sucessos, seus sonhos e frustrações de forma aberta e duradoura é necessário que haja um vínculo de confiança no seio do trabalhador coletivo. Sem este laço de reciprocidade é quase impossível se submeter à apreciação e ao julgamento do outro, vencer o medo de ser ignorado ou censurado, alimentar com idéias, valores e formas de comportamento a identidade coletiva de resistência, enfim, consolidar o chão sobre o qual se constrói a percepção comum da realidade e dos sentimentos de revolta perante a injustiça.

Sozinho e sem uma autêntica comunicação com os colegas, o sujeito torna-se alvo fácil das manobras de assédio que o desestabilizam cada vez mais na medida em que aumentam nele o medo de ser visto como fraco, frouxo, incompetente ou imprestável pela chefia e desacreditado pelos colegas. A partir disso, ele consente em calar, duvida da validade de sua experiência e percepção toda vez que esta se choca com a visão dominante, sente pesar ainda mais em suas costas os efeitos deletérios do trabalho e, sem perceber, começa a andar de ré em direção ao abismo. Ele dá início ao processo que o transforma em morto-vivo no dia em que os vínculos com os demais se desgastam a tal ponto de impossibilitar o compartilhamento real da experiência que o sujeito tem da realidade vivenciada por todos. Este vazio passa a ser preenchido pelo medo, pelo retraimento, pela necessidade de sustentar a suposta eficiência das barreiras que cada funcionário ergue para se defender, pelos ressentimentos em relação aos demais, pela sensação de aridez oriunda da falta de convívio com os colegas e pela agressividade com a qual ataca quem atua no sentido de acordá-lo da anestesia que melhora sua capacidade de tolerar o sofrimento”.

Burn out

- “E o resultado disso?”.

- “Resultado: distúrbios do sono, gastrites, úlcera, problemas cardíacos, hipertensão, doenças de origem psicossomática e, o que mais assusta, burn out, síndrome do pânico, depressão e até mesmo o suicídio”.

- “Burn… o que…?!?”, pede o secretário intrigado.

aliendepre21- “Facilmente confundido com o estresse, o burn out é algo bem mais insidioso. Pressionado pelo trabalho, o indivíduo experimenta uma sensação de exaustão física e emocional, eleva sua irritação e agressividade diante de situações corriqueiras até perceber que seu corpo e sua capacidade de reação estão entrando em pane. Como o próprio termo inglês indica, o sujeito se sente como uma terra totalmente queimada, um solo sobre o qual passou um fogo abrasador que transformou em cinzas todas suas energias físicas e psíquicas abrindo caminhos para a ocorrência de distúrbios bem mais graves. Freqüentemente registrado entre professores, bancários, agentes penitenciários, executivos e trabalhadores que lidam diretamente com o público em geral, este distúrbio revela uma ligação direta com uma tensão emocional crônica que nasce do contato excessivo com os outros e, particularmente, dos que dependem ou exigem seus cuidados. As primeiras manifestações costumam se disfarçar de insônia, hipertensão, úlceras digestivas, lapsos de memória, impaciência com colegas e familiares, sensação de fadiga crônica e frustração, vontade de largar tudo, de se mandar ou de sentimentos de onipotência acompanhados de traços típicos do comportamento paranóico. Estes sintomas, via de regra, acabam sendo tratados por si só e raramente são vistos como sinais de algo profundo e devastador a ser corrigido com práticas que busquem restabelecer o equilíbrio entre a vida no trabalho e a vida pessoal, ética e familiar”.

Síndrome do pânico

- “E quanto à síndrome do pânico? Será que o trabalho chega a ser tão assustador a ponto de provocá-la?”, pergunta o homem entre a ironia e a desconfiança.

- “Dos estudos consultados, aprendi que o trabalho não é a única causa deste distúrbio, mas sempre que a vida profissional é a base do pânico, nos deparamos com antecedentes de situações de muito estresse, metas elevadas, prazos apertados, responsabilidades excessivas, longos períodos de trabalho sem intervalos suficientes para repor as energias, tédio, a presença de uma atmosfera ruim na empresa, relações pessoais desgastadas, fracasso em obter promoções, medo da demissão ou uma profunda sensação de frustração em relação ao acerto de contas imposto pela realidade entre a idealização do próprio trabalho (ou de seu papel, como é o caso, por exemplo, dos trabalhadores na educação e do judiciário) e os magros resultados obtidos apesar do elevado dispêndio de energias.

Associada aos elementos descritos nas páginas anteriores, a presença desses fatores pode levar a um descontrole do sistema de alarme do nosso corpo. Não sei se você sabe, mas toda vez que o cérebro detecta algum perigo, dispara uma série de reações químicas que nos deixam prontos para uma reação imediata. Nosso coração bate mais rápido e mais forte, a respiração se intensifica, os músculos se tendem, a temperatura do corpo sobe e a pele fica suada. Trata-se de algo normal que, ao ocorrer, prepara o organismo a enfrentar um perigo real.

Nos portadores da síndrome do pânico, este mecanismo está desregulado e desencadeia falsos alarmes diante de situações corriqueiras que não representam qualquer tipo de ameaça. É como se uma sirene disparasse sem razão aparente, sem que haja uma ameaça real. Isso não significa que o sentimento de pavor e de pânico dos portadores desta síndrome não sejam reais e que seus corpos não passem pela mesma sensação física experimentada por qualquer pessoa diante de um perigo iminente. Simplesmente, o que acontece é que o gatilho destinado a detonar a reação química funciona na hora errada, quando não há motivo para isso. Ao experimentar um sentimento de súbito terror e uma sensação de morte, a mente das vítimas do pânico dispara, o coração parece sair pela boca, o suor molha a roupa, dores no peito, falta de ar, tontura e a clara impressão de que todo o controle sobre as próprias ações será paralisado ou perdido leva-as ao desespero. Sem terem consciência disso, a crise de pânico instala nelas o medo do medo. Ou seja, começam a temer que novos ataques possam acontecer e passam a evitar pessoas, lugares e situações que, em sua concepção, podem desencadear o pânico. Inevitavelmente, as atitudes defensivas adotadas para fugir de um novo ataque acabam provocando sérios transtornos em todos os aspectos da vida profissional e social dos que são atingidos por esta síndrome.

Assim como o primeiro beijo a gente nunca esquece, o primeiro ataque de pânico marca profundamente a memória com uma sensação de ruína iminente que se auto-alimenta na medida em que suas vítimas deixam de prestar atenção naquilo que está em volta delas e passam a se concentrar diretamente sobre o que está dentro delas. Sentimentos, dores, sensações ou qualquer mudança nas reações do corpo, por simples que sejam, são percebidas como sinal de que algo pior está a caminho. Do medo de um infarto ao de estar enlouquecendo, da insegurança mais simples ao temor de certos pensamentos e sentimentos, o pânico provoca um círculo vicioso do qual é difícil sair sozinho. Ainda que o primeiro ataque tenha durado poucos minutos, a sensação é tão devastadora que sua recuperação não vai ocorrer da noite para o dia, mas sim num lento processo no qual é essencial que o portador da síndrome aprenda a não fugir diante do que teme, não procure expedientes para tentar evitar, prevenir ou reduzir o pânico, mas comece a enfrentar o medo e os ataques para perceber que ele consegue sobreviver a seus efeitos, que é mais forte do que eles e que o próprio ataque é totalmente seguro.

Entre os principais problemas para dar início a esta empreitada está a incapacidade do indivíduo perceber a relação que existe entre os ataques de pânico e as situações estressantes que foram se acumulando nos últimos doze meses e deixaram marcas profundas tornadas invisíveis pela sobreposição das terríveis sensações produzidas pela crise de pânico. Em geral, as pessoas acham que o primeiro ataque se deu em função de algo imediato, quando, na verdade, este é apenas o resultado visível de um descontrole ocorrido meses antes e que pode vir a se manifestar pela primeira vez em situações banais ou até mesmo no gozo de um período de férias, quando o afastamento do trabalho parece motivo suficiente para não procurar nele as causas da síndrome.

A sobrecarga acumulada não tem hora marcada para disparar a sensação de terror que se experimenta e sua concretização se afasta no tempo. Com o ritmo lento das gotas que vão enchendo o pote, situações estressantes vivenciadas no trabalho estão entre os fatores que preparam silenciosamente o seu futuro transbordamento. Por esta razão, o que confunde ainda mais as pessoas que sofrem deste distúrbio é o fato delas se fixarem na gota d’água que fez o vaso derramar sem se dar conta de que isso só ocorreu porque ele estava cheio. Diante da ausência de fatos imediatamente visíveis, elas passam a acreditar que os distúrbios se devem a alguma doença grave do cérebro cujo ponto final é a morte ou a loucura.

O problema é que o medo do pânico mantém o pânico vivo e deturpa em suas vítimas a interpretação de tudo o que acontece em volta delas. Dias bons ou ruins são comuns à toda a humanidade, e para a maior parte da população até mesmo as situações desagradáveis acabarão ficando para trás na medida em que as pessoas deixam de pensar nelas. Para as vítimas do pânico, porém, um dia ruim é sinônimo de que tudo dá errado, por isso, elas ficam tensas o dia inteiro, sentem-se pesarosas, incomodadas e acabam alimentando o pavor de ter mais um ataque de pânico”.

- “Mas isso é complicado demais para que um colega de trabalho possa ser de alguma ajuda!”, afirma o secretário ao apoiar o queixo na palma da mão esquerda.

Alfinetada por esta conclusão, Nádia fixa o olhar no rosto do seu ajudante, cruza as asas na altura do peito e, batendo a pata direita na mesa, lança uma expressão de reprovação que sublinha o “Será mesmo?!?” que acaba de se espalhar pela sala em alto e bom som.

Com a cabeça dobrada sobre os papéis, os ouvidos humanos parecem se abrir humildemente ao inesperado. Mais alguns instantes de silêncio e, em tom sério, a coruja diz:

- “A primeira coisa que qualquer colega pode fazer é não piorar o que já está difícil, mas, para isso, ele precisa entender como os portadores deste distúrbio vêem o mundo. Ou seja, é necessário olhar para a realidade não com os próprios óculos, mas pelas lentes através das quais eles enxergam o que está em volta deles. O problema maior é que, aliada ao individualismo e à competição que marcam presença nos locais de trabalho, a falta de informação sobre estes distúrbios costuma ampliar os estragos existentes toda vez que as pessoas tentam ajudar à sua maneira, ou seja, pelas lentes através das quais elas vêem a vida e buscam lhe dar um sentido.

Pra início de conversa, ajudaria bastante se, na dúvida sobre o que fazer, quem convive com as vítimas do pânico parasse de considerar como frescura, falta de caráter, parafuso solto ou sinal de miolo mole as expressões que os portadores da síndrome deixam transparecer em meio a mil constrangimentos e temores. Gozações, brincadeiras, frases preconceituosas ou apelos a sanções disciplinares por parte da chefia servem apenas para alimentar o medo de ver a própria vida ir por água abaixo, abundantemente presente nas pessoas atingidas por esse distúrbio.

O que mais assusta é perceber como gente instruída ou considerada ‘de bem’ procura tirar proveito dos distúrbios alheios para afastar o colega e ter assim a chance inesperada de subir na carreira. Aparentemente inofensivos e lógicos, seus comentários contribuem para que o outro que sofre se torne invisível perante os demais (e só volte a aparecer na hora do escárnio) e mostram-se incapazes de perceber que a situação vivenciada pelo colega é, na verdade, um sinal de alerta em relação à possibilidade do trabalho vir a danificar do mesmo modo sua própria integridade física e mental.

aliendepre3O irônico disso tudo é que exatamente estas pessoas são as primeiras e mais agitadas na hora de dizer que ‘aqui ninguém ajuda’, ‘ninguém dá uma chance’ quando seus projetos de ascensão são borrados ou obstaculizados por situações simples e corriqueiras. Cegos de amor pelo capital e pela ética que este viabiliza, são incapazes de perceber que não são ‘os outros’ a se afastarem deles, mas, sim, são eles que atuam prioritariamente no sentido de desqualificar, derrotar e, portanto, colocar o outro bem longe de suas vidas e preocupações, impedindo assim um mínimo de vivência coletiva.

Segundo, mas não menos importante, seria bom se, na tentativa de ajudar, não empurrássemos o colega para mecanismos que atrasam e dificultam sua recuperação. Estou me referindo, por exemplo, aos convites à resignação, a se conformar com a própria sorte como se a síndrome do pânico fosse uma sina ou, pior ainda, um castigo de Deus. Na mesma linha, não é para oferecer remédios que ajudem a acalmar nem para confirmar as atitudes que levam a evitar as situações nas quais a vítima do pânico acredita vir a ter um novo ataque e nem mesmo convidar a ‘tomar uma branquinha’ pra esquecer. Por melhores que sejam as intenções, é muito bom que a solidariedade não se expresse no levantar o tapete debaixo do qual o portador da síndrome pretende esconder exatamente o que precisa enfrentar para trilhar o caminho da cura.

Ao lado do que não é bom praticar, vale a pena esboçar algumas atitudes simples que podem fazer a diferença. No lugar de ridicularizar ou menosprezar a sensação de terror, procure estar com o colega nos momentos em que a insegurança e o pânico começam a se manifestar. Não precisa ser psicólogo ou psiquiatra, mas apenas gente que mereça este nome, para sustentá-lo na hora em que sua leitura dos dias ruins tende a alimentar a convicção de que não vai conseguir sair dessa ou está voltando à estaca zero.

Parece paradoxal, mas na medida em que o atingido pela síndrome vai tendo melhoras, o medo de perder a sensação renovada de que a vida vale a pena ser vivida faz ele notar mais os dias ruins do que os bons. A memória do sofrimento padecido nos ataques passados age como um carrasco que, com sorriso maldoso, lembra que tudo volta à estaca zero, insinua que a recuperação nunca vai acontecer e que o pânico irá sempre mergulhá-lo na terrível espiral do medo. Nestes casos, agir positivamente não é apelar para o ‘pensamento positivo’, tão abstrato e irreal para o portador da síndrome a ponto de receber o convite como uma desconsideração de seus sofrimentos.

Trata-se, isso sim, de ajudar a memória a agir no sentido inverso, ou seja, de resgatar as situações e as dificuldades já superadas, de recuperar os progressos já conseguidos, de cutucar a situação de choque e abalo temporário com a percepção de que não há cura milagrosa que faça o pânico desaparecer da noite pro dia, mas sim um caminho gradual no qual as crises se tornam mais espaçadas no tempo e menos intensas. Enfim, ajude a lembrar das pequenas melhoras conseguidas como prova material de que épocas boas são novamente possíveis, de que se continuar observando e fazendo o que já deu algum resultado ele poderá atravessar esta fase e consolidar sua recuperação que, no momento, parece colocada em dúvida por uma recaída temporária.

As palavras terão efeito multiplicado quando blindadas por atitudes concretas que procuram transformar em gesto de solidariedade a presença amiga revelada pelo que dizemos. Basta pouco: ajude o colega a evitar algumas situações que acirram a tensão no trabalho ao mesmo tempo em que apontam que não é ele que está ficando louco, mas é o trabalho que serve todas as doses diárias de veneno que, em vez de ajudar a reagir, mergulham as pessoas no isolamento, no sentimento de culpa, na insegurança causada pela ameaça de ‘ser o próximo a dançar’, enfim, numa ansiedade desgastante e desesperadora. Se não dá pra transformar um portador da síndrome do pânico em militante sindical, é possível agir no sentido de deixar marcos que, individual ou coletivamente, podem vir a questionar as certezas do senso comum e visualizar na prática que as coisas podem e devem ser diferentes.

Não se trata de algo extraordinário, mas sim de atitudes simples, simplesmente humanas, que ao ampliar a percepção da realidade ajudam a visualizar possíveis caminhos de mudança e, sobretudo, a colocar na ordem do dia a necessidade do envolvimento e da responsabilidade individual na solução dos problemas coletivos”.

Depressão

- “Agora, com a depressão as coisas devem ser mais complexas…”, comenta o homem em tom de desculpa.

- “É verdade – reconhece a ave em meio a um longo suspiro. Mas o tamanho do problema e o grau de dificuldade que impõe não são razões suficientes para desistirmos de buscar respostas. Ainda que não haja uma depressão igual à outra, que esta tenha origens diferenciadas ou se manifeste em graus e profundidades que variam de pessoa a pessoa, que vitime o trabalhador e o arraste por caminhos tortuosos cuja superação envolve uma releitura do passado e do presente que só um especialista pode ajudar a realizar, quem procura organizar o local de trabalho não pode se limitar a constatar ou denunciar os possíveis vínculos desse transtorno com as relações de produção. Ele precisa entender seus mecanismos e efeitos sobre as pessoas atingidas para que suas ações o aproximem de quem retorna ao posto após passar por abalos depressivos e sua conduta sirva de crítica real (atenção: eu disse real, não verbal) dos elementos que fazem do sofrimento humano um dos combustíveis destinados a aumentar a produtividade e os lucros”.

- “Mas será que dá mesmo para percebermos como o deprimido vê o mundo?”.

- “A sua pergunta faz sentido não só em relação ao debate sobre os elementos que permitem enfrentar os novos desafios da atuação na base, mas também pelo fato da própria Organização Mundial da Saúde apontar os distúrbios depressivos como responsáveis pela quarta causa de morte e incapacidade em escala mundial com uma clara tendência a ocuparem o segundo lugar até 2020 logo atrás das doenças do coração. (1)

Em breves palavras, as depressões não são uma realidade passageira, mas sim algo que as mudanças em andamento dentro e fora das empresas tendem a tornar cada vez mais presente no cotidiano da história, na medida em que o enfraquecimento dos laços sociais apaga as dimensões essenciais da vida coletiva e fortalece o isolamento do indivíduo. Chamado a enfrentar sozinhos os traumas, as alegrias, as angústias, os sucessos e os fracassos de sua tensão para o reconhecimento, sem vivências coletivas que permitam sustentar e dar sentido ao sofrimento que é chamado a enfrentar, constantemente pressionado pelas ameaças de vir a ser um ‘sem futuro’ e pelos seus próprios sonhos de consumo, o sujeito tende a se aniquilar na exata medida em que a busca do ‘ter’ para compensar a falta de ‘ser’ o transforma numa ilha sacudida pela tempestade. Viver o individualismo dos novos tempos, como dizia Einstein, ‘é estar trabalhando sob o delírio apático pelo qual cada um é separado do outro, do resto do mundo material, do universo, quando na verdade somos todos partes inteiramente conectadas do próprio universo’. (2)

O impacto destes mecanismos nas vítimas da depressão leva-as a experimentarem uma perda de energia, de interesse e de satisfação na rotina do cotidiano acompanhada, em geral, por sentimentos de culpa, dificuldade de concentração, sentimentos de impotência e de fracasso, incapacidade de experimentar prazer (intelectual, estético, alimentar e sexual), irritabilidade, uma profunda sensação de que a existência deixou de ter sentido e pensamentos de morte ou de suicídio. Esta situação de abatimento pode se expressar através de frases que apontam a ausência de qualquer perspectiva futura e de força para reagir ou pelo reconhecimento explícito de que não se tem mais valor algum.

aliendepre51A percepção negativa que o depressivo tem da própria vida se reforça diariamente com as distorções que acompanham sua leitura da realidade. No ambíguo turbilhão da cotidianidade onde se confundem sentimentos e sensações opostas, as vítimas deste transtorno extraem lições negativas de situações que, numa condição de equilíbrio emocional, não apontariam neste sentido; retiram detalhes de seu contexto, superestimam sua importância e interpretam unilateralmente toda a sua experiência à luz do fragmento escolhido; generalizam facilmente conclusões precipitadas a partir de casos específicos e isolados; tendem ora a supervalorizar, ora a subestimar ou minimizar atributos pessoais, acontecimentos ou possibilidades futuras; relacionam consigo mesmos fatos ou reações alheias mesmo quando não há elementos para isso e colocam suas vivências em categorias opostas, o que faz com que tudo vire oito ou oitenta.

A soma desses mecanismos faz com que a depressão degrade o ‘eu’ da pessoa, eclipse sua capacidade de dar ou receber afeição, destrua a conexão com os demais, aniquile a capacidade de estar apaziguadamente apenas consigo mesmo e faz com que tudo o que está acontecendo no presente não passe de uma antecipação da dor futura, tão forte e tão intensa a ponto de apagar o passado e o presente. ‘Tornar-se deprimido é como ficar cego, a escuridão no início gradual acaba englobando tudo; é como ficar surdo, ouvindo cada vez menos até que um silêncio terrível o envolve, até que você mesmo não pode fazer qualquer som para penetrar o silêncio. É como sentir sua roupa se transformando lentamente em madeira, uma rigidez nos cotovelos e joelhos progredindo para um terrível peso e uma isolante imobilidade que o atrofiará e, dentro de algum tempo, o destruirá’. (3) Na depressão, as coisas mais simples exigem um dispêndio colossal de energia. Atender ao telefone pede um esforço sobre-humano, pois o braço pesa tanto quanto um elefante. Descer da cama, trocar de roupa, tomar banho, raspar a barba são atividades impossíveis para quem sente estar precisando de um guincho só para levantar a perna e fazê-la tocar o piso.

Além disso, ‘quando você está deprimido, precisa do amor de outras pessoas e, no entanto, a depressão provoca ações que destroem esse amor. Os deprimidos, geralmente enfiam alfinetes em seus botes salva-vidas’. (4) Pouco a pouco, ‘eles se tornam invisíveis porque sua própria doença faz com que cortem os contatos e as ligações humanas. A reação das pessoas ao encontrar alguém que sofre desse distúrbio é de rejeição e desconforto. Os que não estão afligidos pela doença não gostam de vê-la porque a visão do que ela produz os enche de insegurança e provoca ansiedade’. (5)

Nos casos mais graves, ‘a existência se torna um inferno tão insuportável que o temor da vida pode superar em peso o temor da morte e abrir as portas para o suicídio’. (6). Ou seja, se o comum é as pessoas não conseguirem pensar o mundo sem a sua presença, o deprimido pode chegar à conclusão de que o mundo seria um lugar melhor sem ele”.

- “O que ainda não consigo entender – diz o ajudante ao coçar a cabeça – é como alguém pode chegar a esse ponto sem se dar conta do que está acontecendo…”.

aliendepre6- “Simples, querido bípede de óculos. Via de regra, qualquer um de nós se comporta como uma castanheira centenária que, do alto de sua copa viçosa vê brotar uma pequena trepadeira na base do seu tronco. Para quem já enfrentou ventos, tempestades, frio, calor, secas e enchentes, o pequeno parasita parece algo totalmente insignificante ou que, com certeza, não pode ser visto como uma ameaça a quem, do alto de sua força e solidez, já atravessou os séculos. O problema é que aquele broto vai crescendo, não com uma velocidade assustadora ou efeitos imediatamente devastadores, mas sim devagarzinho, como quem busca um simples abrigo, uma chance para crescer ou um ponto de apoio para sair do chão e conquistar novas alturas. Trata-se de um processo lento, feito de idas e vindas, aparentemente inofensivo e perante o qual a castanheira sempre se ressegura com a certeza de que ela é maior, de que, afinal, o incômodo gerado pelo parasita não é tão grande e que os braços que agarram seu tronco dão até um colorido diferente que a distingue das demais árvores da floresta. Estação após estação, a trepadeira cresce a tal ponto que a árvore se sente sufocada, perde sua capacidade de respirar e articular as funções que proporcionam sua estabilidade e crescimento. Mas agora é tarde. A experiente castanheira mergulha de cabeça no pior dos mundos, ou seja, tem a morte como única perspectiva concreta de futuro imediato.

Neste momento, ela lança um grito de dor que, não poucas vezes, ganha a forma de um profundo silêncio ou da mais terrível solidão diante das árvores que, a um passo dela, continuam povoando a floresta. Sozinha ela não pode fazer nada. Faz-se necessária e urgente a intervenção de uma ajuda especializada que desbaste a trepadeira e envenene suas raízes. A terapia e os antidepressivos são a foice e o veneno que serão usados na árdua tarefa de matar o parasita e salvar a castanheira. Como ela, o deprimido sente quando a trepadeira murcha e cai, mas, ao mesmo tempo, percebe que lhe restam poucas folhas para apostar na recuperação e que suas raízes estão ainda muito frágeis.

O que é necessário para a estrita sobrevivência continua presente, mas não é nada agradável viver assim. Não é possível a castanheira se sentir forte, bela, sólida e resistente desta maneira. Qualquer brisa torna-se uma ameaça às poucas folhas que restam e, agora mais do que nunca, ela precisa se concentrar sobre si própria e poder contar com o apoio e a presença desinteressada das demais árvores da floresta, cujos troncos, ramos e folhas podem reduzir o impacto das intempéries e facilitar sua recuperação. Se é verdade que cabe à castanheira reunir as lembranças que a depressão afasta e protegê-las para o futuro, assimilar o alimento mesmo quando causa repugnância, movimentar seus ramos até quando cada folha parece pesar uma tonelada, bloquear os terríveis pensamentos que lhe inundam a mente, ter a coragem de superar a vergonha de continuar tomando os remédios, ouvir as árvores que torcem por sua recuperação e acreditar que vale a pena viver por elas mesmo quando, no fundo, não acredita nisso, é verdade que também a floresta tem que fazer a sua parte”.

- “Por exemplo…?”

- “Ora, um bom começo seria se as manifestações de abatimento próprias da depressão não fossem recebidas com ações que tendem a agravá-las. Refiro-me, por exemplo, às advertências da chefia, sanções disciplinares, ridicularização dos colegas, acusações gratuitas de falta de motivação, insinuações de que ‘o cara é esperto e está fazendo corpo mole para os outros se ferrarem’, marginalização ou exclusão do grupo, avaliações de desempenho ou julgamentos éticos pelos quais o colega deprimido sente estar cedendo em sua fragilidade diante do que os demais parecem suportar sem grandes problemas. Se para a empresa só vale quem produz e dá o sangue para o lucro, para quem busca reconstruir vínculos de amizade e confiança capazes de alterar a percepção do trabalhador coletivo sobre o sentido do trabalho, as atenções devem ser centradas em comportamentos que revelam traços de autêntica humanidade, inteligência, lealdade e coragem para dar o nome aos bois ou colocar o dedo nas feridas.

Trocado em miúdos, isso significa que devemos evitar, por exemplo, constatações tais como ‘ele está pra baixo porque não tem Deus no coração’. Algumas concepções e seitas religiosas tornam muita gente incapaz de ver que, como doença, a depressão, e não a falta de religião (que, por sinal, costuma ser prática corrente de um bom número de deprimidos), faz com que os olhos sejam cobertos por um véu cinzento através do qual o mundo e a vida passam a não ter cor. Isso significa que, como doença, a depressão se deposita esmagadoramente por cima da personalidade. Quanto mais o deprimido procura juntar os cacos dele mesmo, mais esse transtorno se encarrega de mostrar-lhe que ele vai continuar desmoronando e se fragmentando cada vez mais.

Por isso, além de não ter nenhum contato privilegiado com o céu, quem julga um doente com base na fé é tão cego que sequer consegue perceber que está condenando alguém que já vive o inferno na terra em nome do mesmo Deus em quem diz acreditar e que, por sinal, ordena a qualquer homem de fé que ele deveria ser o primeiro a estender gratuita e desinteressadamente a mão a quem está se esforçando para sair do abismo. O preconceito baseado numa errônea interpretação religiosa da vida e dos acontecimentos faz com que algumas pessoas sintam a sensação do dever cumprindo mesmo quando acabam de jogar uma bigorna de ferreiro para alguém que, ao estar se afogando, pede uma mão, um galho, um pedaço de corda, enfim, algo ao qual se agarrar para não afundar de vez.

Um segundo elemento, tão prejudicial quanto o anterior, se expressa através de um convite nefasto que ganha as feições de um conselho de amigo: ‘no seu lugar, eu jogaria fora esses remédios. São eles que te deixam lerdo e bobo’. As pessoas não percebem que esta amostra típica do senso comum não só aumenta a vergonha do deprimido de ter que depender de uma medicação forte para manter um equilíbrio emocional que, às vezes, permanece instável por anos a fio, como é tão absurda quanto aconselhar alguém que está no meio de um tiroteio a se livrar do colete à prova de bala pelo simples fato de que este o faz suar ou está completamente fora de moda.

Mas há algo aparentemente inofensivo que é igualmente prejudicial. Se, normalmente, um bom café ajuda a ‘pegar no tranco’, no deprimido, aquela xícara fumegante de líquido preto serve apenas para devorar as poucas energias com as quais conta e estimula respostas que tem a ansiedade como fator predominante. Algo bem parecido ocorre com o guaraná em pó ou com bebidas estimulantes que acabam jogando gasolina no fogo das sensações que ajudam o deprimido a mergulhar mais em seus piores sentimentos. As coisas não são diferentes em relação ao álcool e às drogas. Além de cortar o efeito da medicação e desgastar ainda mais o organismo debilitado, deixam o portador desse transtorno com dois problemas: a depressão e as drogas.

Não é difícil que haja também situações nas quais, sem perceber, corremos o risco de transformar no seu contrário uma atitude honesta de sincero companheirismo. Sensibilizadas com a situação dos colegas, há pessoas que passam a tratá-los como se fossem totalmente incapacitados sem perceber que a depressão pode agir exatamente no sentido da vítima do distúrbio se achar realmente incapacitada, talvez até mais do que normalmente seria.

Na mesma linha, podemos ler a insistência de alguns convites a fazer, a se mexer, a se levantar ou a participar de algo que force o deprimido a sair do seu isolamento. O problema é que quando a doença é mais forte do que sua vontade, a capacidade de reação positiva cai abaixo de zero e, ao perceber que não consegue dar a volta por cima, o doente mergulha ainda mais nas malhas da depressão”.

- “Agora é que fiquei mais confuso ainda!”, prorrompe o secretário ao balançar a cabeça e empurrar os óculos contra a testa.

aliendepre42- “A depressão, meu caro, prende as pessoas nas armadilhas da própria mente – diz a coruja ao apoiar a asa no peito do ajudante. Por isso, ajudar um deprimido é bem mais complexo do que aparenta ser. Às vezes, a única maneira que temos de fazer isso é ficando por perto, compartilhando com ele o seu silêncio, uma xícara de chá, uma música, respeitando seu momento e até mesmo sua vontade de ser deixado em paz. Em breves palavras trata-se de fazer com que nossas atitudes, por simples e singelas que sejam, lhe façam sentir a presença de uma mão amiga, de alguém disposto a ouvir e dialogar com seus momentos, de um olhar que torce por sua recuperação, de um coração que comemora de pé qualquer pequeno sinal com o qual o colega consegue romper o seu silêncio e a sua solidão. Mais do que servir para dar conselhos (que, em geral, não passam de um pé no saco (7)), as palavras, os gestos ou a presença silenciosa devem ser discretos, desinteressados e, por isso mesmo, fortes quanto basta para que o deprimido perceba que a vida dele é importante para os seus colegas de trabalho. Parece incrível, mas o simples fato de saber que outras pessoas se preocupam com o que lhe acontece é, em si, suficiente para afetar profunda e positivamente as ações e o espírito de quem sofre desse transtorno.

O estabelecimento de relações mínimas de confiança não se dá por decreto ou por um ato unilateral da própria vontade, mas em práticas que, ao respeitar a situação do outro, não o tratam como criança, incapacitado ou coitadinho, mas apenas como amigo que precisa de ajuda e compreensão. Por este caminho, tanto o deprimido, como quem vive no isolamento ou na solidão proporcionadas por atitudes individualistas, pode recuperar aos poucos o interesse pela fala, ou seja, para colocar em palavras o que sente, sofre e faz ele se desequilibrar.

Às vezes, o prelúdio desse momento vem através do choro que, freqüentemente, indica a entrada da pessoa nos compartimentos mais profundos da emoção. Expressões como ‘Seja homem! Pare de chorar!’, ‘força, força, isso já vai passar’, ou ‘segure as lágrimas! Anime-se!’, não ajudam a fazer com que quem está chorando possa dar voz ao que está mais no fundo dele, a expressá-lo, e, via de regra, deixam claro que não estamos dispostos a ouvir. Como conversar sobre si mesmo é colocar a própria mente diante do julgamento do outro, é necessário que quem chora, e sobretudo ele, sinta que está sendo entendido em seu drama e não condenado, desqualificado ou reprovado pelo que está vivenciando. Por isso, uma frase como ‘se as suas lágrimas tivessem voz, o que estariam dizendo?’ ajudaria bem mais a vencer a dura tarefa de romper a barreira do silêncio. Ao colocar em palavras o que sente, até a vítima da depressão tem uma boa chance de melhorar o seu estado de espírito, de, ao falar, começar a dar o justo valor às coisas, a continuar articulando seus sentimentos. Se discursos sobre acontecimentos negativos são dolorosos, falar sobre o sofrimento concreto ajuda a aliviá-lo.

Passo a passo, a abertura que se estabelece com o deprimido deixa livre acesso a colocar em dúvida suas expressões categóricas como ‘sei que as coisas nunca vão mudar’, ‘não tem mais jeito de eu ficar bom’ ou ‘é sempre assim, hoje estou um pouco melhor, mas já sei que amanhã vai ser pior’. Se a confiança já abriu a porta da comunicação, o seu convite a dar um passo de cada vez, a resistir dando tempo ao tempo e o resgate das melhoras alcançadas pode ajudar a questionar o falso senso de desamparo, a dar o justo valor aos acontecimentos, a perceber que as coisas estão assim neste momento, mas não vai ser sempre assim, ou, ainda, a fazer a pessoa perceber que é a depressão que está falando através dela.

Como não há palavras mágicas que proporcionem o fim imediato dos pesados efeitos deste distúrbio, faz-se necessária a construção de uma relação adulta, capaz de perceber e valorizar, inclusive, o olhar mais aguçado que o deprimido tem da realidade, sua velocidade e essencialidade na hora de ir direto ao ponto, sem rodeios, sem meias palavras, sem ocultar aspectos verdadeiros que costumam ferir a sensibilidade alheia. Rejeitada pelo senso comum como ameaça à sua busca de segurança, esta visão pode ajudar a descobrir os caminhos pelos quais, ao apostar no companheirismo sincero podemos descobrir os elos perdidos de uma relação humana que sirva de base à reconstrução do sentimento de indignação com o qual o trabalhador coletivo pode reavivar sua rebeldia”.

Depressão, doença de rico?

- “E eu que acreditava que a depressão fosse frescura de rico, ou que desse pra resolver com algum texto de auto-ajuda…”.

- “Esse erro comum é parte do que continua levando colegas de trabalho a se afastarem um do outro por acreditarem que os transtornos depressivos não passam de fragilidade pessoal típica de quem não tem o que fazer e no que pensar. A realidade, porém, é bem diferente.

A depressão atravessa as barreiras das classes sociais, mas o seu tratamento não. ‘Isso significa que a maioria dos deprimidos pobres continua pobre e deprimida; na verdade, quanto mais tempo permanecem pobres e deprimidos, mais pobres e deprimidos se tornam. A pobreza é deprimente e a depressão é empobrecedora, levando à disfunção e ao isolamento. A humildade da pobreza marca uma relação passiva com o destino, uma condição que nas pessoas de maior poder econômico denuncia a necessidade de tratamento imediato. Os pobres deprimidos se percebem como extremamente desamparados, tão desamparados que não buscam nem aceitam apoio.

È relativamente fácil de reconhecer a depressão que atinge alguém de classe média. Você vive sua vida essencialmente boa e de repente começa a se sentir mal o tempo todo. Não tem vontade de ir trabalhar; não tem nenhuma sensação de controle sobre sua vida; tem a impressão de que jamais realizará algo e que a própria experiência é destituída de significado. À medida que você se torna crescentemente retraído, começa a atrair a atenção de amigos, colegas de trabalho e família, que não conseguem entender porque você esta desistindo tanto de tudo que sempre lhe deu prazer. Sua depressão é inconsistente com sua realidade pessoal e inexplicável com sua realidade pública.

No entanto, se você está no último degrau da escada social, os sinais podem ser menos imediatamente visíveis. Para os miseráveis e oprimidos, a vida sempre foi péssima, e eles jamais se sentiram ótimos; nunca conseguiram manter um emprego decente; nunca tiveram expectativa de realizar muita coisa; e certamente nunca lhes passou pela cabeça terem controle sobre o que lhes acontecia. A condição normal dessas pessoas é muito semelhante à depressão, sendo assim difícil de identificar seus sintomas. O que é sintomático? O que é racional e não sintomático? Há uma vasta diferença entre simplesmente ter uma vida difícil e ter uma alteração de humor, e embora seja comum pressupor que a depressão é o resultado natural de uma vida assim, a realidade é freqüentemente o inverso. Afligido pela depressão incapacitante, você deixa de fazer algo com sua vida e permanece ancorado no escalão mais baixo, esmagado pela própria idéia de se ajudar’. (8) Inclusive, esta é uma das razões pela quais, além da leviandade e da falta de comprovação científica do que é apontado em muitos textos de auto-ajuda, quando as dicas veiculadas são apresentadas a muitos deprimidos como possível saída de sua situação, elas não se tornam incentivo a dar a volta por cima, mas se transformam na pá-de-cal que alimenta sua autodestruição”.

Suicídio

- “Pelo que você disse no início do capítulo, só resta falar do suicídio!”, relembra a língua num tom típico de quem teria preferido esquecer dessa parte.

- “É verdade. Mas não há muito a ser dito no âmbito deste estudo. Deixando de lado os dados de uma velha prática pela qual acidentes de trabalho com mortes de clara responsabilidade da empresa, eram apresentados como suicídios de trabalhadores perturbados por transtornos mentais (9) e os que têm sido registrados após o processo de enxugamento e privatização dos bancos públicos, a apuração dos suicídios que ocorrem durante o andamento normal do processo produtivo tem se tornado cada vez mais difícil.

De um lado, é comum as empresas impedirem o acesso dos pesquisadores ao local alegando se tratar de casos em que há uma perícia e um inquérito policial em andamento, o que dificulta o acesso aos colegas e aos familiares da vítima; de outro, quem trabalhava com o suicida se nega a falar tanto por medo de represálias por parte da chefia e dos patrões como porque lembrar do acontecido é trazer à memória a possibilidade de que o desgaste provocado pelo trabalho no colega que se foi é uma ameaça real que pode levar mais alguém do grupo a percorrer o mesmo caminho; e o suicida, obviamente, não pode ser entrevistado. Estabelece-se, assim, um silêncio cúmplice no qual, por razões e interesses diferenciados, todos preferem atribuir a desajustes e fragilidades pessoais a razão de fundo que levou alguém a acabar com a própria vida.

Apesar disso, vários elementos apontam uma relação direta entre as mudanças que se instalam dentro e fora dos locais de trabalho e a elevação do número de suicídios. Entre os casos mais alarmantes está o da China. Nas três últimas décadas este país da Ásia passou por reformas econômicas profundas e um acelerado processo de industrialização. As mudanças desencadeadas pelas transformações ocorridas nas cidades e no campo fizeram com que a cultura do lucro abalasse a estrutura tradicional das famílias e dos clãs, causando uma comoção na sociedade e na psique dos chineses, sobretudo os que estão submetidos a elevados níveis de estresse. A desenfreada corrida para ganhar dinheiro provocou um incremento no individualismo e no espírito de competição entre as pessoas, fortes pressões no trabalho e sobre o filho único – cujos pais exigem que tenha êxito.

Em um país onde três e até quatro gerações vivem sob o mesmo teto, os vínculos familiares estão esfacelados. Os anciãos são abandonados – algo inconcebível anteriormente – enquanto milhões de pais no campo deixam seus filhos para ir trabalhar nas grandes cidades, onde sentem a falta de raízes.

Apesar das amplas e novas possibilidades de educação, viagens, divertimentos e, principalmente, de ascensão social, o angustiante sentimento de precariedade aumentou para muitos chineses. Anteriormente, o Partido Comunista regia suas vidas, e tudo era simples. O partido garantia um ‘prato de arroz’, sinônimo de emprego vitalício, moradia, cuidados médicos e educação. Nada disso existe mais. Por essa razão, muitos chineses sentem-se perdidos.

Com 250 mil a 300 mil suicídios por ano, segundo informado pelos especialistas, ou seja, um suicídio a cada dois minutos, a China representa a quarta parte dos suicídios no mundo, com aproximadamente a sexta parte da população.

De acordo com Huo Datong, o primeiro psicanalista a abrir um consultório na China, ‘com as reformas, a sociedade se tornou mais complicada, o individualismo mais forte, e os problemas psicóticos cada vez mais graves. (…) Nos hospitais psiquiátricos existem muitos pacientes por causa do desenvolvimento econômico que provocou uma dissolução das relações com os pais e a família, um isolamento dos outros’. A ruptura dos valores tradicionais, o acirramento do individualismo, os sonhos de consumo, a tensão e as pressões para ganhar dinheiro fragilizam sobretudo os grupos que ocupam os níveis mais baixos da pirâmide social da China capitalista. Neste país, não só o suicídio é a principal causa de morte entre os 15 e os 34 anos como o número de ocorrências nas áreas rurais é três vezes superior ao das cidades e, de acordo com as estatísticas disponíveis, esta é a única nação do planeta onde as mulheres cometem mais suicídio do que homens (58%). (10)

Ainda que a situação da China não possa ser generalizada, ela representa talvez a prova mais atual e contundente dos estragos provocados na saúde mental das pessoas pelo avanço da acumulação capitalista. Do mesmo modo, ela confirma que, mais do que em fragilidades estritamente individuais, a razão pelo aumento dos distúrbios psicóticos de vária ordem e gravidade deve ser procurada no caldo de cultura proporcionado pelo desenvolvimento da globalização nos países centrais e periféricos. Para bom entendedor, meia palavra basta”.

- “Caramba! Se as coisas estão assim, quer dizer que estamos ffffffritos!”, exclama o homem perplexo e assustado.

- “Eu não teria tanta certeza – rebate Nádia ao piscar os olhos. Ainda que nosso estudo sirva mais para definir o comportamento do vírus do que para apontar uma vacina eficiente, já é possível ao menos esboçar algumas pistas de reflexão que visualizem possíveis caminhos para o movimento sair do atoleiro em que se encontra. E como se trata de algo que não é tão simples quanto parece, é bom mesmo você se preparar para o nosso último capítulo que, longe de lapidar conclusões definitivas, se limita a rabiscar rumos e possibilidades numa pequena síntese que vamos chamar com o nome sugestivo de…”

5. Entre o prego e o martelo

Notas

(1) Dados publicados em HORNSTEIN, Luis. As depressões: afetos e humores do viver, Ed. Via Lettera/CEP, São Paulo, 2008, pág. 9.

(2) A citação de Einstein encontra-se em SOLOMON, Andrew. O demônio do meio-dia: uma anatomia da depressão, Ed. Objetiva, Rio de Janeiro, 2002, pág. 125.

(3) Idem, pág. 48.

(4) Idem, pág. 105.

(5) Idem, pág. 298.

(6) Idem, pág. 230.

(7) Não. Não se trata de uma citação ao pé da letra, mas sim de um pedido de desculpas por este ‘linguajar’ impróprio às corujas das melhores famílias. O problema é que Nádia não encontrou no Aurélio uma expressão equivalente.

(8) SOLOMON, Andrew. O demônio do meio-dia: uma anatomia da depressão, Ed. Objetiva, Rio de Janeiro, 2002, pág. 312.

(9) De acordo com depoimentos de dirigentes sindicais dos mineiros, em Nova Lima, região da Grande Belo Horizonte, toda vez que havia um acidente com morte nas minas da Morro Velho, a assistente social da empresa visitava a família da vítima oferecendo café e bolachas para o velório, além do caixão e uma coroa de flores. Transtornados pela perda do ente querido e confiando na boa fé da representante da empresa, os familiares acabavam assinando papéis em branco que deveriam supostamente servir para acelerar a liberação das verbas rescisórias e a eventual pensão da viúva. Tempos depois, ao receber bem menos do esperado, a esposa e os filhos da vítima acabavam descobrindo que suas assinaturas haviam sido usadas para atestar a existência de desequilíbrios mentais do falecido, apontados pela empresa como causa única do acidente.

(10) A citação e os dados foram extraídos de uma matéria produzida pela agência de notícia AFP sob o título “Reformas econômicas: saúde mental dos chineses expõe o elevado custo do progresso”, publicada pelo jornal Gazeta Mercantil em 17/12/2008.


http://passapalavra.info/?p=11191

(c) Copyleft: É livre a reprodução para fins não comerciais, desde que o autor e a fonte sejam citados e esta nota seja incluída

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Izvestia de Kronstadt em 16 de março de 1921

Izvestia de Kronstadt em 16 de março de 1921

(Publicação que acontece durante o movimento insurgente de Kronstadt)



“Ao fazer a Revolução de Outubro, os marinheiros, os soldados vermelhos, os operários e os camponeses derramaram seu sangue pelo poder dos Sovietes, pela edificação de uma República dos trabalhadores. O partido comunista anotou com exatidão as aspirações das massas. Tendo inscrito em sua bandeira slogans atraentes que entusiasmavam os trabalhadores, ele arrastou-os na luta e prometeu-lhes conduzi-los para o bom reino do socialismo que apenas os bolcheviques saberiam construir. Naturalmente, uma alegria infinita tomou conta dos operários e camponeses. ‘Enfim, a escravidão sob o jugo dos grandes proprietários e dos capitalistas entrará para o domínio das lendas’, pensaram eles. Parecia que havia chegado o tempo do livre trabalho nos campos, fábricas e manufaturas. Parecia que o poder iria passar às mãos dos trabalhadores.

Através de um propaganda hábil, os inexperientes do povo trabalhador foram atirados nas fileiras do partido, onde foram submetidos a uma disciplina rigorosa. Em seguida, sentindo-se fortes, os comunistas, progressivamente, eliminaram do poder os socialistas das outras tendências, após o que expulsaram de numerosos postos do Estado os operários e camponeses, continuando a governar em seu nome. Os comunistas substituíram assim do poder os socialistas das outras tendências, após o que expulsaram de numerosos postos do Estado os operários e camponeses, continuando a governar em seu nome. Os comunistas substituíram assim o poder que haviam usurpado pela tutela dos comissários com toda a arbitrariedade do poder pessoal. Contra toda a razão, e contrariamente à vontade dos trabalhadores, começaram então a construir obstinadamente um socialismo estatizante, com escravos, em vez de fundar uma sociedade baseada sobre o trabalho livre.

Estando a indústria totalmente desorganizada, apesar do ‘controle operário’, os bolcheviques realizaram a ‘nacionalização das fábricas e manufaturas’. De escravo do capitalista, o operário foi transformado em escravo das empresas de Estado. Em breve isso não era mais suficiente. Projetou-se a aplicação do sistema Taylor. Toda a massa dos trabalhadores foi declarada inimiga do povo e destinada aos Kulaks. Bastante empreendedores, os comunistas aspiram arruinar os camponeses e a instaurar as explorações soviéticas, isto é, as propriedades do novo explorador agrário: o Estado. Isso foi tudo o que os camponeses obtiveram do socialismo bolchevique, em lugar do trabalho livre sobre a terra libertada que tinham esperado. Em troca do pão e do gado, quase que inteiramente requisitados, obteve-se as razias dos thcekistas e os fuzilamentos em massa. Bom sistema de trocas para um Estado dos trabalhadores: chumbo e baionetas no lugar de pão! A vida do cidadão tornou-se monótona e banal até a morte, regulada segundo as prescrições das autoridades. Em vez de uma vida animada pelo trabalho livre e pela evolução dos indivíduos, surgiu uma escravidão inaudita, inacreditável. Todo pensamento independente, toda a crítica justa sobre os atos dos governantes criminosos tornou-se um crime punido com a prisão e seguido pela morte. A pena de morte, essa vergonha da humanidade, desabrochou na ‘pátria socialista’. Tal é o bom reinado do socialismo para onde a ditadura do partido comunista nos conduziu.

Obtivemos o socialismo de Estado com os Sovietes de funcionários que votaram docilmente o que a autoridade e seus comissários infalíveis lhes ditam. A palavra de ordem ‘aquele que não trabalha não come’ foi modificada sob esse bom regime ‘dos Sovietes’: ‘Tudo para os comissários’. E quanto aos operários, camponeses e trabalhadores intelectuais, bem, eles só têm de realizar seu trabalho no ambiente de uma prisão. Isso tornou-se insuportável. A Kronstadt revolucionária quebrou as correntes e arrebentou as grades da prisão; luta pela verdadeira República Soviética dos trabalhadores, onde o próprio produtor será o senhor dos produtos de seu trabalho e disporá deles como quiser.”


No livro AVRON, Henri - A revolta de Kronstadt

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Da Alienação à Depressão - caminhos capitalistas da exploração do sofrimento (3ª Parte)

Da Alienação à Depressão - caminhos capitalistas da exploração do sofrimento (3ª Parte)

A condição para que o empregado realize o seu trabalho envolve quase sempre a transgressão das prescrições e das instruções recebidas dos superiores hierárquicos. Mas o sofrimento experimentado na hora de preencher a distância entre o trabalho prescrito e o real leva as pessoas a mergulharem num ativismo tanto mais intenso quanto mais este permite deixar de pensar, de refletir sobre a realidade e de fazer passar desapercebido o próprio sofrimento. Por Emílio Gennari

3. O trabalho entre prazer e sofrimento

Aproveitando do instante em que Nádia permanece silenciosamente pensativa, o secretário levanta e dá uma gostosa espreguiçada. Entre o incômodo da tendinite, a tensão provocada pelas descrições do relato e a curiosidade em relação a seu possível desfecho, o corpo parece se recusar a continuar o trabalho. Para quem já estava acostumado com a escuridão do não-saber, qualquer raio de sol ganha as feições de uma arma que, ao ferir a cegueira antiga, provoca a desagradável sensação de que tudo o que parecia sólido começa a derreter sob os próprios pés.

Ao perceber a tentação do seu ajudante, a coruja limpa a garganta para atrair a atenção e, ao dirigir para si os olhares titubeantes do homem corpulento que está diante dela, aponta a asa para os papéis e, com voz firme, ordena:

- “Já pra mesa!”.

Intimidadas, as mãos puxam a cadeira e as pernas se dobram para que o corpo possa se apoiar no desconfortável assento de madeira, cujo único mérito é o de evitar qualquer cochilo do seu usuário.

Em seguida, a ave faz um sinal de aprovação com a cabeça e, ao piscar os olhos, diz:

- “Por incrível que pareça, é no trabalho que os seres humanos passam os melhores anos de suas vidas envolvidos por sentimentos contrastantes que misturam angústia, felicidade, medo, sofrimento, esperanças e ilusões. É neste turbilhão de sensações que cada pessoa pensa a sua relação com o trabalho, interpreta as condições de sobrevivência que esta lhe proporciona, socializa sua leitura da realidade, reage ao que percebe como ameaça, organiza-se mental e fisicamente para dar conta do que lhe é exigido e intervém no processo de produção com formas de comportamento que retratam o sentido dado aos vínculos que estabelece com os colegas.

Este sentido é fortemente influenciado pela forma na qual a rotina do trabalho se encaixa e entra em sintonia com as experiências passadas, com as expectativas atuais ou, ao contrário, representa algo tão novo e inédito que questiona suas percepções anteriores e projeta para o futuro novos sonhos e anseios de afirmação pessoal. Lidando, ou não, com tarefas que proporcionam um sentimento de auto-realização, o sujeito tem no trabalho um elemento essencial na construção de sua personalidade e da identidade social na qual se insere pelas condições de vida possibilitadas pelo salário recebido.

A exploração da inteligência e da criatividade, individual e coletiva

Além da resposta à luta pela sobrevivência, do medo de vir a integrar as estatísticas do desemprego, da pressão da chefia, da convivência com os colegas e da realização dos próprios sonhos, trabalhar implica sempre em assumir responsabilidades não-previstas, em tomar decisões que, independentemente do cargo, são fonte de sofrimento pelas incertezas que projetam em cada empregado. Isso se deve ao fato de que há sempre certa distância entre o trabalho prescrito e o real. Ou seja, uma coisa são as seqüências, as tarefas e as normas ditadas pela empresa e outra, bem diferente, é a forma pela qual são praticadas, moldadas, adaptadas ou negadas no cotidiano dos processos produtivos para que os funcionários possam dar conta das metas exigidas.

aliendepre1A condição para que o empregado realize o seu trabalho envolve quase sempre a transgressão das prescrições e das instruções recebidas dos superiores hierárquicos. Prova disso é que, em praticamente todas as categorias profissionais, uma das formas de manifestar o próprio descontentamento é cumprindo à risca o que foi ordenado pela empresa. Em várias cidades do Brasil, por exemplo, já conhecemos protestos de motoristas de ônibus que foram realizados tendo como base apenas a não-violação do Código de Trânsito e até mesmo manifestações de descontentamento da própria polícia federal através da ‘operação padrão’ aplicada aos procedimentos de averiguação de passageiros no desembarque dos aeroportos. A paralisação das atividades, os atrasos e as situações de caos que resultaram do estrito respeito às normas prescritas são mais que suficientes para comprovar que ou o trabalhador coletivo usa as artimanhas, truques, macetes e quebra-galhos acumulados no exercício das tarefas e na lida diária com problemas inesperados ou o serviço pára, entra em pane, se torna inviável”.

- “Se é assim, quer dizer que a inteligência e a criatividade individuais e coletivas são mobilizadas a cada instante e isso pode até proporcionar um sentimento de satisfação e realização pessoal. Enfim, não vejo o que há de tão ruim nisso a ponto de causar sofrimento!”, afirma categórico o secretário ao fixar o olhar no rosto da coruja.

Ouvida a questão, Nádia se aproxima vagarosamente do seu ajudante, aponta a asa direita para os óculos e assumindo feições que mesclam provocação e reprovação retruca em tom irônico:

- “Se os cinco graus das lentes que cobrem seus olhos não servissem apenas para disfarçar sua feiúra, você já teria conseguido enxergar além do umbigo. De fato, é inegável que, sob a influência do medo da demissão e das demais pressões que tomam conta do local de trabalho, a maior parte das pessoas se revela capaz de mobilizar um verdadeiro arsenal de inventividade ora para cumprir as metas, ora para ficar em posição mais vantajosa em relação aos colegas.

O problema, porém, é que, ao agir desta forma, o indivíduo não só pode criar situações constrangedoras para os demais, como se coloca à margem dos procedimentos oficiais e infringe os regulamentos e as ordens da empresa. Em outras palavras, usar a própria inteligência para lidar com o imprevisto, com o inusitado, com o que ainda não foi assimilado oficialmente como método leva o sujeito a uma ação semiclandestina pela qual a norma desrespeitada o coloca na incômoda posição de transgressor da lei. Até que nada acontece, a chefia faz vista grossa, pois tem plena consciência de que sem isso o trabalho não anda. Mas quando a apuração de falhas, erros, incidentes e acidentes são atribuídos a procedimentos espúrios e indesejados, os superiores hierárquicos não hesitam em denunciar o trabalhador envolvido como incompetente, desleixado, nada sério e incapaz.

Sem medo de errar, podemos afirmar que, de um lado, o quebra-galho é tolerado por qualquer patrão na medida em que contribui para atingir as metas estabelecidas, mas, de outro, a sua prática é uma ameaça que pende sobre a cabeça de cada empregado e pode cortá-la como uma guilhotina sempre e quando sua descoberta ‘oficial’ permite eximir a empresa de suas responsabilidades concretas em relação às condições reais nas quais o trabalho é realizado.

Resumindo, podemos dizer que a prática do quebra-galho e do macete levam o sujeito a correr dois riscos. O primeiro é o de ser apontado como único culpado quando de conseqüências nocivas para a segurança das instalações e dos demais funcionários. E, o segundo, é de assumir a incômoda condição de fora-da-lei, o que gera um estado de angústia permanente até mesmo quando o processo de trabalho flui sem problemas aparentes.

A situação que acabamos de descrever coloca o indivíduo num beco sem saída: se ele quebra as normas, corre o risco de ser punido; mas se não o faz, é acusado de falta de iniciativa, de fazer corpo mole, de ser incapaz de atingir metas que os demais costumam cumprir. Preso nesta engrenagem, o sujeito vivencia momentos de ansiedade, abre espaço a mal-entendidos, sonega informações, fecha-se sobre si mesmo e escancara a porta da desconfiança em relação à eficiência real de sua criatividade e à dos colegas. Esta postura acaba alimentando antagonismos e conflitos com outros profissionais ou equipes que desempenham tarefas parecidas e leva a vivenciar um sentimento de injustiça que nasce do não-reconhecimento aberto do próprio esforço e dos méritos pessoais por parte dos demais funcionários e da empresa.

A adoção de programas participativos de qualidade total ou das chamadas novas formas de gestão do capital humano não altera significativamente esta realidade. Em grau maior ou menor, há sempre certo período de tempo entre a descoberta do quebra-galho ou do macete e sua aprovação pela empresa. Isso se deve ao fato de que a aceitação das idéias apresentadas depende da comprovação de sua viabilidade e eficiência e, portanto, precisa de resultados concretos vindos da experimentação empírica que antecede a sua apresentação e na qual o funcionário acaba assumindo a responsabilidade de testar se o fruto de sua criatividade pode dar certo ou não.

Relação doença-trabalho: a individualização do sofrimento e a assepsia do contexto

A esta realidade corriqueira soma-se outra que costuma ser silenciada tanto pelos patrões como pelos sindicatos, mas que, nem por isso, deixa de ter um impacto profundo na carga de tensão que acompanha as horas despendidas na empresa. Ainda que haja uma percepção e um reconhecimento oficial dos riscos e dos fatores estressantes relacionados ao ambiente de trabalho, o discurso empresarial e sindical costuma não mencionar o perigo. A omissão dos efeitos que os riscos podem produzir no corpo do trabalhador é justificada pela suposta necessidade de não atemorizar desnecessariamente as pessoas ou é desprezada como algo distante, insólito e improvável de acontecer. Se, de um lado, isso reduz o estado de alerta do coletivo, de outro, esta opção é um dos elementos pelos quais a empresa escolhe que aspectos e que percepção do perigo pode ser descrita ou silenciada e que tipo de apresentação asséptica dos problemas relativos à saúde do trabalhador contribui para esconder ou minimizar a relação entre o risco e o perigo.

O fato de a hierarquia dificultar a reconstrução da relação doença-trabalho pela omissão de informações essenciais sobre os processos produtivos ou pelo menosprezo de seus perigos não implica na incapacidade do empregado perceber na saúde dos demais e na própria as marcas da dor deixada pelo desempenho diário de suas tarefas. Apesar de não saber expressar em palavras o que está acontecendo ou de não ter uma visão de conjunto unitária e coerente, a quase totalidade dos empregados deixa a entender que há algo errado ao reconhecer, por exemplo, que ‘aqui o sistema é bruto’, ‘naquele setor é jogo duro’ ou, ainda, ‘trabalhar nesta máquina é bicho feio’. O que parece normal, superficial e simplório encerra uma carga de angústia que, dia-após-dia, torna-se mais pesada e esmagadora na medida em que o aumento das exigências empresariais não é acompanhado pela melhora das condições em que estas vão se tornar realidade”.

- “Então, estamos diante de um sofrimento perante o qual trabalhadores e trabalhadoras devem se defender para continuar dando conta das tarefas exigidas e das metas impostas…”, balbuciam os lábios ao temer um desfecho inesperado.

- “Exatamente! Entre as formas de defesa mais comuns estão os comportamentos que levam o sujeito a se desvencilhar das responsabilidades, a se recusar a tomar qualquer iniciativa, a remeter toda decisão a uma posição oficial da chefia ou a se ater às normas que constam do regulamento. Neste caso, o funcionário viabiliza uma espécie de operação padrão solitária e intermitente na medida em que o fantasma da demissão ganha corpo diante das acusações de implicância e falta de compromisso com a empresa, o que desgasta sistematicamente a proteção com a qual procurava se cercar em caso de dificuldade.

Em sentido oposto, encontramos atitudes de fechamento numa autonomia máxima, de segredo, de silêncio diante dos superiores e dos próprios colegas. Apesar do caráter intrinsecamente coletivo do trabalho, nos deparamos aqui com empregados que fazem o impossível para evitar qualquer situação de confronto, de conversa, de discussão, de conflito, de envolvimento, a ponto de se recusar a cumprimentar os colegas. No lugar de almejar o encontro, o sujeito faz o impossível para privilegiar os momentos em que este é materialmente impossível e, no lugar de se confrontar com os demais, prefere se isolar num canto do refeitório, tomar café antes ou depois da turma, entrar e sair do vestiário quando este está mais vazio, se envolver em trabalhos que exigem esforço redobrado e tamanho grau de concentração que pensar em trocar idéias é algo simplesmente fora de lugar. Ao optar pelo ‘cada um por si’ (que não poucas vezes descamba para o ‘deixa correr frouxo para ver no que vai dar’), o indivíduo acaba dando sopa ao azar. Estou me referindo, por exemplo, à ocorrência de tonturas ou desmaios provocados por produtos químicos (e que acometem o empregado em lugares onde ele não pode contar com a ajuda de ninguém), ou ao não apontar o desgaste de ferramentas e de peças do maquinário onde trabalha e cuja ruptura pode se reverter contra ele mesmo já que é praticamente impossível controlar a priori o momento exato em que tais incidentes podem ocorrer. Além disso, esta orientação tende a bloquear a construção de qualquer sentimento de coletividade na medida em que leva a desconfiar seguidamente da postura e das afirmações dos próprios colegas ou a interpretar suas respostas como expressão de hostilidade contra o próprio jeito de trabalhar.

Outra forma de defesa bastante comum consiste em passar por cima do chefe imediato para se dirigir diretamente ao superior deste. O problema é que, ao ser deixado deliberadamente de lado e ao ser colocado, assim, numa posição desconfortável, o primeiro pode reagir de forma a colocar em maus lençóis o trabalhador que menosprezou o seu papel. Ao perceber esta possibilidade, a maior parte dos colegas prefere enfrentar em silêncio o próprio sofrimento ou expressá-lo só no consultório médico, quando ‘já não dá mais para agüentar’ os efeitos desse desgaste. Infelizmente, porém, são bem poucas as chances que os trabalhadores têm de encontrar profissionais que vão às causas remotas dos sintomas físicos que apresentam ou que, ao menos, se dão ao trabalho de perguntar, por exemplo: onde é que você trabalha? O que te deixa mais estressado na rotina das tarefas que você executa? Que produtos você manipula? Ou, ainda, se esta dor tivesse voz, que aspectos do seu trabalho apontaria como responsáveis?

Isso significa que, longe de poder contar com uma ajuda mais abrangente, a individualização do sofrimento e a leitura asséptica que dispensa a compreensão do contexto em que o sofrimento se manifesta, oferecem como resposta a absurda recomendação de se acalmar, não ficar nervoso, procurar dormir oito horas de sono restaurador, comer na hora certa, como se isso dependesse unicamente da vontade do sujeito. No máximo, para mostrar que a consulta valeu a pena, o consolo vem através de uma receita cujo conteúdo, na melhor das hipóteses visa reduzir a dor física e estabilizar a capacidade de segurar o tranco. E aqui quando não há despreparo dos médicos há, pelo menos, certa dose de conivência com uma realidade que se prefere desconhecer ou que, ao ser revelada nas consultas, não passa do segredo entre médico e paciente sem ter assim a menor chance de virar base para um diagnóstico mais completo até mesmo nos casos que teimam em se repetir com freqüência assustadora.

Outra reação igualmente comum entre os empregados consiste em se desfazer de trabalhos particularmente penosos repassando-os para os novatos ou para os terceirizados cuja inexperiência ou rotatividade facilitam à empresa a tarefa de apagar os vestígios das doenças profissionais ou dos acidentes mais graves. A esperteza de alguns, passa a ser paga por todos na medida em que o sistema de comunicação empresarial não enfrenta críticas consistentes na hora de falsear os dados sobre as ocorrências e o perigo representado pelo desempenho de determinadas tarefas nas condições próprias do processo de trabalho.

A soma destes elementos aponta a normalidade do aparecimento de atitudes defensivas que ganham formas diferenciadas a depender da personalidade e do histórico profissional de cada funcionário e que, não poucas vezes, resvalam em acusações gratuitas de incompetência ou em expressões de agressividade próprias de inimigos jurados e não de colegas de trabalho.

aliendepre2Em geral, o sofrimento experimentado na hora de preencher a distância entre o trabalho prescrito e o real, quando respondido pelas formas de defesa que apresentamos acima, leva as pessoas a mergulharem num ativismo tanto mais intenso quanto mais este permite deixar de pensar, de refletir sobre a realidade e de fazer passar desapercebido o próprio sofrimento. Trata-se de vencer a ansiedade e a tensão com a fadiga física. Quanto mais horas e mais rápido se trabalha, mais o tempo passa depressa, mais se garante a aproximação dos próprios sonhos, menos se discute, menos se lembra do perigo existente, menor o esforço para esquecer dos desgostos e das situações desgastantes que permeiam o cotidiano”.

Anestesia do sofrimento

- “Mas além de alívio, isso pode vir a ser um tiro no pé”, prorrompe o homem ao perceber a ambigüidade das formas pelas quais trabalhadores e trabalhadoras buscam se proteger do sofrimento.

- “Na mosca!”, confirma Nádia com um gesto que parece unir as peças do quebra-cabeça num conjunto que esboça uma imagem ainda fragmentada e nebulosa. “De fato, ao mesmo tempo em que as estratégias defensivas buscam fortalecer as condições que permitem a um indivíduo ou grupo de resistir aos efeitos prejudiciais do sofrimento sobre o seu equilíbrio mental, ela pode funcionar como uma armadilha na qual as pessoas são anestesiadas e se tornam insensíveis a tudo aquilo que as faz sofrer. Ao proporcionar certo grau de adaptação ás pressões que vêm de todos os lados e estabilizar a relação entre o empregado e a organização do trabalho, as estratégias de defesa acabam alimentando uma resistência à mudança tanto maior quanto mais delicada, difícil e psicologicamente sofrida foi a construção destas mesmas estratégias. Ou seja, quando trabalhadores e trabalhadoras conseguem estruturar e sustentar suas formas de reação ao sofrimento, eles e elas não só hesitam em questioná-las como buscam transformar sua manutenção em objetivo a ser conquistado a qualquer preço e não titubeiam em direcionar seus esforços para afastar quem ameaça desestabilizá-las.

Mas isso não é tudo. Ao aplanar o caminho para que o sujeito se acostume aos desafios do trabalho, as reações que descrevemos acima o levam a se adaptar aos riscos, a deixar de perceber a gravidade dos perigos que o cercam e a impedir, ao menos parcialmente, que ele tome consciência da exploração. Neste contexto, as denúncias sindicais produzidas sem o devido conhecimento da realidade e de como esta é apropriada pelos empregados, com uma linguagem agressiva ou incompreensível a quem não integra qualquer organização e com baixíssimo envolvimento da base diretamente interessada, pode produzir o efeito oposto ao desejado ou, quando isso não acontece, um fortalecimento dos próprios mecanismos de defesa.

Esta reação aparentemente contraditória dos empregados torna-se compreensível na medida em que sua postura defensiva leva-os a interpretar o sofrimento não mais como fruto da exploração do trabalho, mas sim como resultado do enfraquecimento das estratégias com as quais pretendem enfrentá-lo. Na medida em que vai se apagando a percepção desta relação com o processo produtivo, cresce, contraditoriamente, a defesa dos mecanismos de proteção contra o sofrimento que passam a ser vistos como promessa de alívio imediato e seguro. Dobrado sobre si mesmo, o empregado experimenta uma gostosa sensação de afastamento da realidade e de relaxamento tão sensivelmente eficaz que o faz se sentir bem consigo mesmo. Em função disso, ele passa a estruturar suas ações, sonhos e desejos em volta de algo que nasceu para defendê-lo de uma realidade que precisa ser eliminada e não para que cessem as ameaças, os desconfortos, as dores e as frustrações que vem dela e lhe proporcionam uma constante sensação de insegurança.

Ao servir-se dos mecanismos de defesa para se adaptarem às pressões do trabalho e ao defendê-los de espada na mão, homens e mulheres desqualificam, afastam e até mesmo agridem aqueles que questionam estes mecanismos ou se mostram reticentes em adotar as posturas assumidas pelos demais. Neutralizados os elementos contrastantes, as estratégias de defesa deixam aberto o caminho para a auto-aceleração do ritmo de trabalho por parte dos indivíduos e das equipes envolvidas (o que favorece as políticas de produtividade das empresas), para a elevação das pressões de cumprimento das metas e, por sua vez, para um ulterior fortalecimento dos mecanismos de defesa como forma de suportar o peso das novas demandas.

Trocado em miúdos, podemos afirmar que esta forma de reação espontânea diante do sofrimento leva pessoas e equipes a levantar uma barreira protetora. Esta cerca, porém, ao proporcionar uma aparente defesa individual ou coletiva conduz a uma adaptação às ameaças e aos desafios do trabalho. Graças aos mecanismos e às relações que se desenvolvem, trabalhadores e trabalhadoras começam a não ver claramente a exploração que pesa em seus ombros e a gravidade das formas pelas quais esta se manifesta. Anestesiados por suas reações espontâneas, chegam a acreditar piamente que o jeito é reforçar a cerca e não lutar contra a realidade em função da qual foi erguida. Esta é a razão pela qual entram em choque com quem questiona e enfraquece a impressão de alívio e segurança que os mecanismos de defesa proporcionam. Empenhados nesta tarefa de exorcizar o retorno da ansiedade e da insegurança, os empregados não percebem que o patamar de adaptação ao trabalho assim atingido torna-se ponto de partida de um novo aperto por parte da empresa cujas relações aprimorarão as possibilidades de explorar em benefício próprio o que os empregados construíram para se proteger do sofrimento vivenciado no cotidiano do trabalho”.

- “O que não consigo entender – diz o ajudante ao coçar a cabeça – é porque as pessoas não conseguem se dar conta disso…”.

- “Pela mesma razão pela qual o burro, após apanhar do dono, olha para a cenoura e apressa o passo toda vez que este faz o chicote assobiar no ar. Para evitar a dor no seu lombo, ele acelera o seu caminhar, ainda que esteja estafado. Isso não quer dizer que ele pode continuar assim indefinidamente. Mas o próprio dono sabe que, esgotado um burro, é sempre possível substituí-lo por outro sem grandes dificuldades”.

- “E a cenoura?!?”.

- “Ora! A cenoura é dada por outro mecanismo tão importante neste processo quanto a presença do chicote:

O reconhecimento.

Nas páginas anteriores, vimos como este fator põe em movimento atitudes e formas de comportamento do indivíduo perante a sociedade. Na empresa, porém, as relações que se gestam ao redor deste elemento ganham características diferenciadas e, às vezes, opostas. Em primeiro lugar, podemos dizer que é no reconhecimento da qualidade do seu trabalho que o funcionário não encontra apenas um sentido para seus esforços, suas angústias, dúvidas, sucessos ou decepções, como é através dele que se torna capaz de estabilizar e estruturar sua identidade e personalidade.

Quando isso ocorre, o sujeito não ganha somente momentos de alívio para o seu sofrimento, mas sim uma mola propulsora que leva a transformar este mesmo sofrimento em estímulo para a contínua busca de soluções capazes de responder ao desafio de aproximar o trabalho prescrito do real e em prazer de usar o próprio talento nesta empreitada. O médico que no meio de uma cirurgia se vê obrigado a usar um procedimento não-convencional para salvar o paciente vivencia profundos momentos de angústia e de tensão. Se o doente se salva, o assumir os riscos daquela decisão tende a ganhar o sorriso, a aprovação e a admiração não só do paciente, como de seus familiares e da própria equipe de trabalho. Mas, se o resultado for outro, o cirurgião, provavelmente, será processado, recriminado pelos colegas, julgado incompetente pela direção do hospital, podendo vir a perder o emprego e o registro de médico. Ele fez o impossível para salvar uma vida, mas fracassou. A falta de reconhecimento do seu esforço tende a transformar o seu sofrimento em algo absurdo e alimenta um círculo vicioso de sensações que podem desestruturá-lo.

Do mesmo modo, por exemplo, inúmeros mecânicos de manutenção vivenciam diariamente uma situação parecida. Na falta de peças de reposição, são obrigados pelas pressões da chefia a ‘dar um jeito’, a ajustar o impossível para prolongar a vida útil daquele mecanismo, mas, ao fazer isso, sabem estar se colocando na corda bamba. Como no caso do médico, seu esforço e sua criatividade serão reconhecidos se tudo der certo, mas eles mesmos acabarão execrados e desqualificados perante todos se algum acidente vier a ocorrer em função do mau funcionamento do equipamento em questão.

Em graus e formas que diferem a depender da função e da responsabilidade do cargo, podemos dizer que quem trabalha é chamado a tolerar este sofrimento até que o caminho encontrado para superar os obstáculos tenha sido analisado, aceito e incorporado como prática corrente pelos setores responsáveis. Neste processo, o reconhecimento torna-se peça-chave para que o indivíduo continue tentando, experimentando, mantendo seu talento voltado à busca constante de novas saídas para a plena realização das tarefas exigidas.

Ao vencer este desafio, o sujeito se transforma e, de certa forma, torna-se alguém mais inteligente, mais hábil e mais competente do que era antes. Ou seja, trabalhar não é apenas produzir e ganhar a vida, mas sim entrar de corpo e alma num processo que vai construindo a própria personalidade. Nele, a identidade do indivíduo não se ergue apenas a partir de sua relação com o trabalho, mas da confirmação e da aprovação que vêm do olhar do outro pelo reconhecimento do esforço despendido na solução dos problemas deixados em aberto pela organização dos processos produtivos. Nas empresas, esta aprovação se expressa ora através de prêmios em dinheiro, viagens, elogios públicos à utilidade social, econômica ou técnica do trabalho realizado, exposição da foto do ‘funcionário do mês’, ora através de simples expressões informais tais como ‘você fez um belo trabalho’, ‘o que você conseguiu fazer vai fazer a diferença aqui dentro’ e assim por diante, mas sempre focalizada ao que foi realizado e não ao seu autor para que os colegas de profissão não recebam o julgamento positivo de alguém que conhecem como uma injustiça contra si próprios, sentindo-se menosprezados em seu próprio esforço.

Além de manter elevado o entusiasmo pessoal na cooperação com a empresa, o reconhecimento que vem das chefias estimula o orgulho de pertencer à organização, fortalece a auto-estima, eleva a capacidade de tolerar o sofrimento, reforça os vínculos com uma cultura ou filosofia gerencial que, pouco a pouco, passa a guiar o indivíduo até nos projetos e momentos fora do ambiente de trabalho, alterando substancialmente as convicções e os critérios de análise a partir dos quais realiza sua inserção na sociedade e faz a leitura de tudo o que está em volta dele. Ou seja, apesar de ter sua raiz no âmbito dos processos produtivos, os efeitos do reconhecimento invadem os demais espaços de vivência diária e levam o sujeito a se entregar corpo e alma a quem deu sentido a seu sofrimento, apostou em sua capacidade e reconheceu suas realizações. Quando concretizado com coerência e sutileza, este investimento empresarial tende a moldar um funcionário mais confiável, disposto a dar sua contribuição pessoal não apenas suando a camisa, mas sim lutando ao lado da empresa como um verdadeiro militante do capital”.

- “Mas não há nada que possa azedar isso tudo?”, pergunta incomodado o homem ao mexer nervosamente o corpo na cadeira.

Entre a dignidade e a rebeldia, a cooperação solidária

- “Sim, querido secretário. Esta possibilidade existe, mas para se concretizar precisa de um elemento que anda escasso no seio do trabalhador coletivo: a cooperação. O entendimento do trabalho e de suas relações nunca pode ser limitado ao vínculo que se estabelece entre o indivíduo e as tarefas que lhe são designadas. Mesmo sem sair do perímetro da empresa, trabalha-se sempre para alguém, com alguém ou subordinado a alguém. Por isso, o sofrimento só pode ser rejeitado ou enfrentado coletivamente quando há confiança e cooperação entre as pessoas que passam a desenvolver seus macetes e quebra-galhos numa ótica diferente daquela que, via de regra, é assumida por quem embarcou na lógica da competição individual e vê o outro como concorrente que precisa ser derrotado em nome dos próprios sonhos, necessidades e aspirações.

No passado, o caminho das lutas que se desenvolveram no interior dos locais de trabalho não foi construído apenas aproximando um ladrilho de dignidade a outro de rebeldia, mas cada uma dessas peças só dava liga na medida em que relações de confiança, de amizade e de solidariedade constituíam a base sobre a qual assentar o descontentamento e a revolta coletiva. Neste contexto, o macete, o quebra-galho, enfim, o fruto do saber prático, não serviam apenas para uma eventual promoção, para não ter problemas com as metas ou para ganhar momentos de descanso no ritmo frenético da linha de produção, mas para se tornar a base concreta capaz de dar cor e forma a expressões do tipo ‘esse chefe vai me pagar’ ou ‘nosso patrão não perde por esperar’ que, ao externar a revolta diante do sofrimento diário, revelavam a ebulição da indignação diante da percepção da injustiça.

O problema é que esse tipo de cooperação não cai do céu. Ela é sempre uma construção difícil e precária na medida em que supõe boas doses de compromisso com o coletivo, desprendimento, gratuidade, disponibilidade para atender às necessidades do outro, confiança, cumplicidade e coragem para assumir com os demais os riscos de enfrentar o que gera sofrimento e nega a vida coletiva. Nestas condições, o sofrimento não é negado, mas sim afirmado e denunciado e o silêncio que marca longos períodos de calmaria nada mais é a não ser o tempo de gestação de uma resposta que busca frear o avanço da exploração.

Assim como num coral não é fácil harmonizar as vozes e transformá-las num único som, pois isso exige que cada componente controle seu poder vocal, a construção do sentimento de coletividade no interior do local de trabalho demanda uma disponibilidade igualmente complexa. Além da rotatividade dos funcionários que, sem pedir licença, altera a identidade que se estabelece em seu meio, e da complexa relação entre experientes e novatos, quem se dispõe a organizar a base precisa ter paciência e jogo de cintura suficientes para ouvir, para dialogar com as mais diferentes posições, para ajudar a evidenciar até que ponto sonhos e desejos não passam de ilusões e em que medida aquilo que o indivíduo considera um valor não passa de algo que atende interesses de classes bem distantes dos seus.

aliendepre5Para que a relação dê os frutos desejados, não basta ter idéias, a disposição de não julgar como fútil o que, no momento, faz a vida do colega, mas é preciso também ter capacidade e preparo para inserir as demandas individuais num contexto mais amplo, coerência de vida e de princípios, sensibilidade para saber escolher o momento certo de intervir, tato para manter sempre aberto um canal de comunicação com os colegas de trabalho, coragem para mostrar abertamente possibilidades, limites e conseqüências de cada escolha, maturidade para saber apostar no envolvimento do coletivo e uma honestidade de fundo que os demais vão reconhecer não nas palavras, mas sim nas ações. Agora, este conjunto de atitudes, mesmo quando presente nos organizadores, tem cada vez mais dificuldades de penetrar no indivíduo se este, como já vimos, optar por vencer sozinho, se realizar sozinho, enfim, tiver as pupilas grudadas no próprio umbigo, pois sua resistência a se deixar questionar, seus sonhos de consumo e seu espírito de adaptação às exigências da empresa tendem a mantê-lo isolado e a mergulhá-lo numa espiral que o sufoca na exata medida com a qual se entrega a ela em busca do que chama de ‘aproveitar a vida’ou de auto-realização”.

A ativa servidão voluntária

- “Se é assim, quais são os mecanismos que permitem explorar o sofrimento e as defesas individuais para elevar a produtividade e, de conseqüência, os lucros?”.

Satisfeita com o interesse do seu ajudante, Nádia franze as plumas do rosto e, ao balançar o corpo, se prepara a responder com a atitude de quem está disposto a ampliar a visão do ouvinte e a torná-lo atento à manifestação de processos tão simples e corriqueiros quanto carregados de novos desafios. Sem pressa, apóia as costas na pilha de livros e, após alguns instantes de silêncio, diz:

- “Além de todos os aspectos levantados nas páginas anteriores há um que costuma passar desapercebido aos olhos pouco atentos dos humanos, mas que, somado ao medo do desemprego e da frustração dos próprios sonhos, constitui uma forma de coação tão sutil e eficiente que o indivíduo passa a usá-la como parâmetro para medir a si próprio: a inversão de valores pela qual a virilidade é transformada em coragem, a submissão em virtude e a cegueira em capacidade única de enxergar a realidade”.

- “Você poderia ser um pouco mais clara…?”, pede o homem ao empurrar os óculos contra a testa.

- “Então vamos por partes – sugere a coruja ao espetar o ar à sua frente com a ponta da asa esquerda.

Para que pessoas de bem, dotadas de senso moral aceitem fazer algo sujo ou assumam uma ativa servidão voluntária diante das demandas da empresa não é suficiente que haja pressões externas via medo do desemprego ou a simples possibilidade de ver seus sonhos pessoais irem por água abaixo. É necessário, isso sim, que elas acreditem estar fazendo o que é melhor tendo como base alguns valores, pouco importa se próprios ou adquiridos, em função dos quais se dispõem a controlar não só as respostas às solicitações do trabalho, mas também as próprias emoções e reações corporais que passam a ser submetidas a uma disciplina férrea que o sujeito impõe a si mesmo. Um exemplo vai ajudar a entender melhor o funcionamento deste mecanismo.

Imagine uma situação na qual um exército tenha invadido o território de um país vizinho. Em sua marcha rumo à capital, colheitas foram destruídas, pessoas foram massacradas pelos soldados e parte considerável do que antes servia à sobrevivência da população ou foi confiscada pelas tropas de ocupação ou acabou perdida nos bombardeios. A fome reina soberana e, com ela, o desespero de milhares de seres humanos, todos eles civis desarmados.

Ao saber que o sentimento de revolta contra os abusos sofridos está empurrando o povo a reagir contra o vencedor, o general reúne seus homens. Saudados os soldados com discursos patrióticos que enaltecem a coragem e a bravura demonstradas nos combates, ele usa seu prestígio para dizer: ‘Está na hora de prestarmos mais um serviço à pátria, de realizarmos mais um ato de coragem que freie com nossas armas as forças que ameaçam a implantação dos valores que abriram caminho nas linhas inimigas e aqui nos trouxeram para realizar o destino histórico da nossa nação’.

Qualquer soldado que ouve este discurso com dois gramas de cérebro funcionando tem consciência de que o alto graduado do seu exército lhe pede para atirar em homens, mulheres, crianças e anciãos desarmados e inocentes que, por sinal, têm toda razão de se revoltar. Ao saber disso, você, como soldado, pediria para ser dispensado da chacina anunciada ou participaria dela controlando todas suas reações físicas e emocionais para executar de maneira eficiente a missão que lhe foi entregue atribuindo ao general toda responsabilidade pelos seus atos?”

- “Bom, numa situação como esta não é fácil decidir… Mas, com certeza, seria quase impossível dar pra trás diante dos colegas de armas. Deixar as fileiras significaria abandoná-los, confessar-se fraco ou covarde… Enfim, enfrentar a atitude de apoio da maioria com um não, implicaria em desmoralizar-se diante de todos e, com certeza, virar objeto de chacota, gozação e execração pública… Acho que seria difícil não ir com os demais…”.

- “Veja bem. Ainda que cenas como esta se repitam em, praticamente, todas as guerras, o exemplo terrível que apresentei retrata justamente a inversão de valores da qual estava falando. O medo de ser desprezado e de perder a sensação de pertencer àquele coletivo, as preocupações relativas ao sofrimento de uma condenação pública e à aparente perda da própria identidade de soldado a serviço da nação levariam a maioria a participar da chacina, não a se recusar e, menos ainda, a usar a própria arma para atirar num sujeito que apela a valores patrióticos para justificar a participação coletiva num ato ignóbil e desprezível.

O que seria um gesto de coragem (a recusa ou o tiro disparado contra o oficial) é visto como o seu oposto, ou seja, como uma postura covarde, no exato momento em que covardia é empunhar as armas e atirar contra gente indefesa e inocente cheia de razão em suas manifestações de descontentamento. Ao participar do massacre, o soldado comete o mal por motivos estritamente pessoais (não quer parecer frouxo ou covarde), mas, ao cometê-lo em nome do seu trabalho, faz esta atitude passar por desprendimento em relação a si próprio ou, até mesmo, por dedicação á causa, à nação, a um suposto bem-comum.

O ingrediente principal que possibilita esta opção não é a coragem, mas sim algo bem mais simples e nefasto: a virilidade. É ela a fazer com que a pessoa não hesite em infligir dor e sofrimento aos demais em nome do exercício, da demonstração ou do restabelecimento do seu domínio sobre todos os valores éticos. Ao contrário da coragem (que não precisa de demonstrações espalhafatosas e pode ser até mesmo realizada no silêncio, na discrição e tem a própria consciência como único juiz), a virilidade demanda do indivíduo seguidas provas de visibilidade, de seu compromisso com o ambiente circunstante, precisa do reconhecimento alheio e está sempre disposta a chamar de fraco, frouxo, florzinha, bunda mole, mulherzinha, ruim de serviço, boiola, incompetente, covarde, medroso e assim por diante todos aqueles que resistem às suas exigências. E, como você sabe, ninguém gosta de ser visto como incapaz e sem coragem, ou seja, sem aquela que, por sinal, é considerada a virtude por excelência.

Para o senso comum, a virilidade torna-se um valor na medida em que as pessoas a associam erroneamente a uma imagem de solidez, de sucesso, de capacidade de expressar e fazer valer a própria posição de poder, sem perceber que ela está essencialmente associada ao medo e à luta do indivíduo contra o seu medo. É por esta razão que o sujeito não hesita em lançar mão, inclusive, do exercício da força, da agressividade, da violência gratuita, cujas manifestações, ao serem analisadas detalhadamente pelo próprio indivíduo, se apresentam a ele como sinal patente de covardia, de algo repugnante, hediondo, diante do qual dá vontade de se afastar. Mas, ao se dar conta disso, o desejo de responder com a recusa ou a fuga diante do que é assumido coletivamente traz de volta a sensação de covardia, de falta de coragem.

Neste emaranhado de percepções e sentimentos, o sujeito dificilmente percebe o erro grosseiro no qual está caindo: ele pode fugir de uma situação que considera odiosa e insuportável sem sentir nenhum medo pela punição ou pela própria vida. O problema é que a equação recusa-fuga-por-medo igual à falta de virilidade (ou de coragem, de acordo com as expressões corriqueiras do homem-massa) está tão arraigada em nossa cultura que as pessoas chegam a condenar sistemática e serenamente todos aqueles que ‘fogem da raia’. Por isso, não são poucos os que, ao dizer não, e, de conseqüência, se auto-excluírem do grupo ou acabarem marginalizados pelos demais, sentem-se tão humilhados e fracassados a ponto de caminharem em direção a atitudes de autodestruição. A inversão de valores faz com que o aplaudido e homenageado seja aquele que faz o mal sem sentimentos de culpa, sem perder a virilidade e o reconhecimento que esta lhe promete.

No ambiente de trabalho, longe de atacar a causa do sofrimento, este mesmo mecanismo leva o melhor das energias físicas e psíquicas a ser usado, como já vimos, para fortalecer as defesas individuais e coletivas contra o sofrimento e não a lutar pela sua eliminação. Passo a passo, as pessoas se convencem de que, no fundo, trata-se de um trabalho como qualquer outro, que precisam se focar nele, que devem controlar o próprio corpo, silenciar suas emoções, aprender a correr riscos, a serem ousadas, a suportar a dor sem se queixar, a agüentar o tranco, a se superar, enfim, a fazer o que ouvimos todos os dias: a ter, veja só, ‘coragem pra trabalhar’.

Via de regra, elas tendem a fazer estas afirmações mais com orgulho do que com pesar ou com sentimentos explícitos de resignação. De um lado, isso se deve à necessidade de exorcizar toda atitude e pensamento que representem uma crítica ao núcleo de convicções e vivências que construíram para si próprias e uma ameaça a trazer de volta o sentimento de culpa quanto à sua responsabilidade individual na manutenção do sofrimento coletivo. De outro, porém, não são poucos os funcionários para os quais um bom trabalhador é como um combatente destemido, aquele cuja conduta mostra ter assimilado as qualidades e os valores da organização e, portanto, é capaz de mobilizar todo o seu saber e criatividade para alcançar as metas propostas que, não poucas vezes, chega a ver como estímulo ao aperfeiçoamento pessoal e à superação de seus limites.

Em breves palavras, a virilidade é assumida como virtude, no lugar da coragem, em nome das necessidades inerentes ao trabalho. Esta não é fruto de um processo espontâneo ou natural, mas sim da sucessão de elementos que permitem banalizar a injustiça e apresentar como normal e saudável toda justificação dos meios pelos fins proposta pelo capital”.

- “Mas isso é demoníaco!”, explode o secretário num átimo de fúria.

- “Nada disso – rebate a ave ao balançar a cabeça. O que acabo de apresentar não passa de uma abundante colher de queijo na macarronada fumegante que acompanha o frango domingueiro: realça o sabor e estimula o apetite. Mas este mesmo queijo não faz sentido sem o macarrão e o frango que já estão prontos, ou seja, sem as demais condições que empurram o trabalhador coletivo a caminhar em direção ao matadouro justo quando acredita estar sendo convidado a um banquete”.

- “Então…”.

- “Então isso quer dizer que, contraditoriamente, ao buscar sua realização pela adesão ativa à lógica da empresa o sujeito eleva o grau de risco contra si próprio e contra os demais, corrói sua identidade, desgasta os valores coletivos que dão sentido à vida em sociedade e caminha, passo a passo, em direção à sua destruição.

Ainda que haja situações diferenciadas de empresa a empresa, de setor a setor, ou formas e complexidades que variam a depender da categoria, da dificuldade de reposição da força de trabalho, do grau de estudo e da função exercida, este processo percorre etapas quase simultâneas que impedem às pessoas de saírem do círculo vicioso no qual mergulharam.

O envolvimento com as metas traçadas pela organização leva o empregado a se dedicar corpo e alma ao ‘seu’ trabalho. O fato de ele compensar parcialmente o esforço físico e mental despendido com o reconhecimento dos colegas e superiores, ou com a realização de sonhos de consumo, não neutraliza os efeitos do progressivo isolamento em relação aos demais, nem o sofrimento que, com o tempo, o alerta quanto ao seu próprio processo de adoecimento. Ao perceber esta realidade nua e crua, e temendo se tornar um elemento dissonante com o contexto da produção, o sujeito começa a travar uma luta ferrenha contra tudo o que o coloca frente a frente com as marcas que o trabalho deixa no seu corpo. Aceitar que está adoecendo é reconhecer a possibilidade de ser o próximo a ser posto para fora da empresa, ou seja, de vir a integrar o grupo dos ‘sem futuro’ ou de ser forçado a reduzir o nível de vida conseguido até o momento.

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Invisibilizar as causas

Longe de enfrentar a causa, via de regra, as pessoas se concentram no sintoma e em tudo o que teima em fazê-lo aparecer. Se o refletir sobre a própria condição eleva ainda mais a sensação de insegurança, o jeito, então, é anestesiar o pensar e o sentir, pois, de um lado, há um rechaço da realidade e, de outro, em direção oposta, há a percepção do perigo que esta representa. O indivíduo sabe, mas prefere não saber. Por isso, uma das saídas iniciais diante dos primeiros sinais de alerta do corpo e de sua estrutura psíquica é a de não dar bola a eles apelando para a capacidade de ‘segurar o rojão’ comprovada nas situações vivenciadas no passado e fantasiada de maneira excessiva justo na hora em que alarmes evidentes indicam um nível de desgaste preocupante.

O esforço de esconder o próprio sofrimento e a crença do sujeito de que, à diferença dos demais, nada ruim vai acontecer com ele se ele ‘segurar o tranco’ passam a ser sustentados pelo aumento voluntário do ritmo de trabalho. Produzir mais não é apenas uma forma de pensar menos nos sofrimentos já experimentados, mas a pedra angular com a qual o trabalhador procura demonstrar a si próprio que ele não é um fraco, que não vai ficar chorando pelos cantos e que a dor não vai derrubá-lo. Do mesmo modo em que, ao superar o exame de direção, o motorista novato acelera para provar que se sente seguro em relação à sua capacidade de guiar o carro, e depois acaba batendo exatamente por não conseguir controlar sua potência e reações na estrada, a elevação do ritmo agrava as condições de saúde física e mental na exata proporção em que o sujeito se esforça para exorcizar esta possibilidade. Isso ocorre porque, no lugar de pisar no freio após chegar aos 80 por hora, ele bota os dois pés no acelerador. O ronco do motor avisa que ele está prestes a passar dos limites, mas quanto mais o barulho fica estranho, mais o empregado se convence da necessidade de não recuar, de continuar negando que as coisas estão se tornando insustentáveis.

Ao perceber que os novos patamares de produção, tão caros e desejados pelos lucros empresariais, não bastam para vencer o sentimento de insegurança que volta a ameaçar o frágil equilíbrio de corpo e mente, o trabalhador não apenas silencia o que está sentindo, como passa a negar o sofrimento manifestado pelos colegas. Ele não tolera quem rompe a barreira do silêncio para expressar o que sente justamente porque vê em suas palavras e gestos o convite a reconhecer e partilhar uma realidade que aumenta a sensação de ameaça de aniquilamento, de angústia, de desintegração dos próprios sonhos e da sua personalidade. Por isso, não hesita em chamar estes colegas de frouxos, a se isolar, a negar o que está sentindo, a atribuir o sofrimento dos demais a fragilidades estritamente pessoais das quais ele não partilha por ser forte, capaz de se superar e, obviamente, por não lhe ‘faltar coragem pra trabalhar’.

Ao mobilizar nesta direção todos os recursos disponíveis, o empregado torna-se literalmente incapaz de recusar-se a submeter sua vida a um trabalho que o destrói ao mesmo tempo em que continua vendo a empresa como âncora de salvação, como porto seguro diante da tempestade que se aproxima.

A situação precipita quando a doença chega com tamanha força que impossibilita a realização das tarefas que faziam e davam sentido aos melhores anos de sua existência como ser humano. O trabalho que amava e ao qual sacrificava todas as energias na certeza de que lhe daria sempre o reconhecimento almejado, a proteção desejada, a sua realização profissional e humana, além da possibilidade de fazer seus sonhos virarem realidade acaba de decretar que ele já não serve aos seus propósitos. Seus atestados são vistos como algo que prejudica o desempenho financeiro da instituição, seu pouco interesse e baixo ritmo de produção como frescura a ser punida com medidas disciplinares. A carta de demissão ou as pressões para pedir a conta são justificadas perante os demais funcionários como a necessidade de se livrar de um peso, de uma carga inútil que estorva o sucesso dos colegas e impede que a organização atinja seus objetivos. O sofrimento físico e mental que, por semanas, meses e anos, havia garantido à empresa a possibilidade de ampliar as metas, elevar a produtividade e o lucro, acaba de se transformar no seu contrário e, por isso mesmo, a peça estragada precisa ser colocada de lado com a mesma naturalidade com a qual parece justo, lógico, normal e inteligente se livrar de uma mala sem alças.

Posto de lado como um pneu careca, o sujeito percebe que o ‘nós’ pronunciado pelos superiores hierárquicos toda vez que o coletivo precisava assumir as demandas vindas de cima não existe mais. Em seu lugar, para ele, sobra apenas um refugo de ‘eu’ à beira da desintegração. A sensação de morte, de fim de linha, de ponto final para todos os sonhos de afirmação pessoal abre as portas para o que os especialistas chamam de ‘doenças da solidão’ em função da causa que está na sua origem”.

- “Doenças da solidão…?!?”, repete o homem entre a pergunta e a afirmação.

- “Exatamente, querido secretário. Trata-se de um conjunto de distúrbios que, no local de trabalho, ganha corpo e se agrava na medida em que o capital vem implementado as idéias e as práticas que analisamos desde o início deste trabalho. Diante delas, as empresas revelam alguma preocupação somente quando as vítimas fazem elas registrarem perdas financeiras ou prejuízos em termos de imagem pública. Por se tratar de um tema complexo, vou delineá-lo com mais calma no próximo capítulo ao tratar de…

4. Os mortos-vivos do trabalho.”

fonte: http://passapalavra.info/?p=10576

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