sábado, 15 de agosto de 2009

Estado Restrito: O mediador entre reestruturações produtivas e reestruturações educacionais.

Estado Restrito: O mediador entre reestruturações produtivas e reestruturações educacionais.

Aender Luis Guimarães[1]

O Presente texto foi apresentado no IV EBEM - Encontro Brasileiro de Educação e Marxismo – onde rendeu interessantes reações/sugestões, as sugestões pertinentes foram apropriadas e futuramente, em outros trabalhos, devem ser objetivadas. Todavia, nesta versão aqui apresentada o texto segue sem retificações. Comentários/críticas são bem vindas.

O presente trabalho nasceu de questionamentos suscitados no decorrer de uma pesquisa que ainda está em andamento. Investigando o setor calçadista de Franca-SP, percebemos a coexistência de diferentes níveis técnicos dos meios de produção que proporcionam conseqüências às disposições educacionais e culturais dos operários.

Destarte, nossa análise, no presente trabalho é pensar o sistema educacional por um prisma que considere as empresas e o Estado como agentes capazes de formar certo tipo de trabalhador. Esse tipo ideal de trabalhador é condizente com demandas capitalistas específicas alinhadas a reestruturação produtiva em curso.

Dentro do atual quadro da exploração capitalista, o toyotismo, que tem no uso da componente intelectual do trabalho seu sustentáculo, exige um deslocamento das habilidades e uma re-qualificação de seus trabalhadores. Tais habilidades e re-qualificações têm seu correspondente na educação por dois vieses distintos. Por um prisma é necessário atender demandas de setores específicos da economia com trabalhadores, que realizem atividades crescentemente mais complexas, que trabalham no âmbito da mais-valia relativa[2], o que acarreta um acréscimo de qualificação na busca por maior produtividade, esta

parte da força de trabalho é recrutada de maneira estável, e como se destina a ser plenamente explorada nas suas capacidades intelectuais, recebe cursos periódicos de treinamento e de atualização e assegura a produtividade das firmas em que labora”. (BERNARDO, 2004, p. 129)

Já pelo outro viés, exige-se uma redução dos custos e do tempo de formação de uma outra mão de obra. Estes são os trabalhadores que operam no âmbito de tecnologias convencionais, obsoletas ou em esferas complementares de outras tecnologias mais avançadas. Em outras palavras, são os trabalhadores que operam primordialmente no âmbito da mais-valia absoluta[3]. (BRUNO, apud – BERNARDO, 1998, p. VIII)

O trabalhador não é possuidor de uma capacidade laborativa, independente se física ou intelectual, livre para ser comercializado em condições iguais de compra e venda com os donos dos meios de produção pois

a apropriação da força de trabalho não resulta de uma relação entre um capitalista particular e um proletário particular, mas de uma relação entre classes globalizadas, só eventualmente mediatizada pelo mercado enquanto instrumento de repartição da força de trabalho entre os capitalistas. (BERNARDO, 1985, p. 91)

Essa mediação do mercado entre capitalistas e trabalhadores tem intrínseca relação como sistema educacional estatal, já que este último se incumbe de preparar a mão de obra da forma mais desejável aos capitalistas com recursos públicos.

Pelo referencial analítico aqui adotado, que faz usos de conceitos e interpretações do teórico Português João Bernardo, o próprio conceito de Estado e empresa deve ser revisto a luz da materialidade histórica nas relações sociais de produção contemporânea. Tal autor conceitua o Estado e as empresas de duas formas:

O Estado Restrito é aquele que inclui todas as configurações organizadas do poder de forma “oficial”, seja por meio de instituições ou dispositivos que num primeiro momento são responsáveis pela criação e manutenção das melhores Condições Gerais de Produção[4] possíveis.

Em uma outra vertente o Estado Amplo é uma referência ao funcionamento das empresas enquanto aparelho de poder. Nas empresas os patrões podem exercer uma forma de “poder legislativo” pela escolha do modelo de administração da empresa. É possível, também o exercício de um “poder executivo” pela aplicação das metas e formas administrativas, seja pela persuasão ou mesmo coação. E por fim um “poder judiciário” ao avaliarem o desempenho dos empregados, remunerando-os ou punindo-os de acordo com critérios específicos. (BERNARDO, 1998, p. 42)

A atual transnacionalização da economia e a conseqüente primazia do Estado Amplo permite ao capitalismo contemporâneo uma enorme capacidade de organização dos processos de produção e de disciplinamento da força de trabalho. A tecnologia eletrônica possibilitou que as operações econômicas das empresas já não se distingam de suas operações políticas e ideológicas.

A conexão estabelecida entre os vários tipos de ideologia, publicidade, lazer e vigilância, não são misturados, mas hierarquizada consoante às categorias e grupos sociais a que se destinam. Formando mentalidades, aptidões e homogeneização supranacional de comportamentos, aspirações e padrões de consumo, bem ao ritmo da economia transnacional liderada pelo Estado Amplo. (BERNARDO, 2004, P. 67)

Temos, ainda, o papel desempenhado pelas instituições educativas do Estado Restrito, que inevitavelmente, na nossa sociedade, tem suas políticas educacionais geridas e ditadas pelo capital ou no mínimo à serviço dele e assim sendo:

É na preparação de tipos diferenciados de subjetividade, de acordo com as diferentes classes sociais, que a escola participa na formação e consolidação da ordem social. Para isto é decisiva a transmissão e inculcação diferenciada de certas idéias, valores, modos de percepção, estilos de vida, em geral sintetizados na noção de ideologia. (SILVA, 1992, p. 15)

Não podemos deixar de focalizar que o processo de formação das classes sociais menos abastadas, direcionadas para o trabalho manual, acontece mais por negligência do que por imposição ativa:

Com a privação de credenciais, à qual ela está obviamente conectada [à escola], está na raiz da divisão mental/manual do trabalho... A escola cria o trabalhador manual não tanto ao ensinar habilidades manuais num sentido positivo, mas, ao invés, ao definir o manual em oposição a apropriação do conhecimento que caracteriza o trabalho mental. (SILVA, 1992 p. 135)

No modelo de Bowles e Gintis é, sobretudo, a vivência no sistema educacional que permite a introjeção de atitudes e valores de um homem condizente com as divisões existentes na produção capitalista. Temos, ainda, os diversos níveis incomunicáveis do sistema escolar, que efetivaria uma separação entre as classes, bem como suas respectivas qualificações e valores a serem assimiladas como nos dizem Baudelot e Establet. (BAUDELOT & ESTABLET, apud, SILVA, 1992, p.16)

Althusser prenuncia a materialidade da escola, dizendo que essa pode propiciar certos tipos de vivências que são ausentes às crianças no seio familiar. Tais como a convivência em amplos lugares, desenvolvendo a competitividade o universalismo e a especificidade. (ALTHUSSER, apud – SILVA, 1992, p. 81).

Por fim, é necessário o deciframento do código dominante, habilidade básica para que este novo homem alcance sucesso no sistema de méritos escolar como Bourdieu e Passeron anunciam. (BOURDIEU & PASSERON, apud, SILVA, 1992, p. 18). Tal código – cultura, educação, maneiras, etc - deve ser encarado como bens simbólicos que são eleitos conforme a posse de bens materiais/econômicos. Tais bens materiais/econômicos garantem que os bens simbólicos se tornem frutos dos primeiros de forma mais naturalizada possível em uma sociedade como a nossa, que prevalece a relação entre dominantes e dominados. (BOURDIEU & PASSERON, apud, Silva, 1992, p. 32).

O ambiente escolar por si só já efetiva uma separação em seus níveis que reflete a divisão entre o trabalho intelectual e o trabalho braçal. Ele também é responsável por propiciar relações sociais semelhantes às de uma empresa, sendo estas relações diferentes em diversos tipos de escola, efetivando aqui também, a formação de subjetividades dotadas de traços atitudinais em harmonia com a economia (SILVA, 1992, p. 34).

Neste ponto é importante perceber que a transmissão diferenciada de valores é feita pelos níveis do sistema de ensino. Para as classes dominantes a educação é mais horizontal, privilegiando a autonomia e auto controle. A educação propiciada as classes trabalhadoras é uma educação mais “condizente” com as condições subordinadas na organização produtiva e política da sociedade a qual essa classe vai, muito provavelmente, se inserir. Essa educação privilegia o conformismo e a submissão, ideal para aqueles que trabalham no chão de fábrica, principalmente no âmbito da mais-valia absoluta.

Nesse sentido, a estratificação do conhecimento é operacionalizada por meio de uma segmentação da transmissão dos conteúdos escolares para os diferentes níveis do sistema escolar. Esse problema se agrava, ao ser levado em consideração que, em nosso país os níveis mais elevados só são atingidos pela parcela dominante da população, ossificando assim, por meio da segmentação escolar a estratificação do conhecimento e das oportunidades sociais e econômicas. (SILVA, 1992, p. 62)

Portanto, a educação institucionalizada, de massa e estatalmente controlada é impelida inevitavelmente, em função do papel secundário que o Estado Restrito assumiu na sociedade de classes contemporânea, a produzir certos resultados. Resultados esses que buscam a modelagem de comportamento para a consolidação e perpetuação da democracia e do consumo. Democracia essa fundamentada em uma meritocracia que privilegia aqueles que obtêm sucesso no sistema escolar e/ou financeiro.

Assim, o Estado restrito promove duas formas de ensino. Uma educação restrita de alta qualidade, por exemplo, os cursos superiores em instituições públicas de ensino, que por meio de um processo eliminatório/classificatório segregacionistas, preparam a elite destinada a gestoriar[5] outros trabalhadores. E uma educação oferecida para a população na sua totalidade, uma educação ampla, atualmente sucateada que busca anular as desvantagens sociais advindas do nascimento e proporcionar competências para trabalhadores, para estes últimos se inserirem minimamente na esfera do consumo e da produção de bens em âmbitos interconectados de mais-valia absoluta e relativa. Em outras palavras estes trabalhadores:

Podem não saber ler nem escrever, mas são ágeis no que diz respeito à vida urbana, tem uma apreensão perfeita e rápida da comunicação audiovisual, são atentos às modas e ao primeiro sinal mudam de uma para outra, em suma, são suficientemente fúteis para não causarem nenhum perigo e suficientemente modernos para oferecerem uma imagem pública às empresas de bens de consumo que prosperam precisamente com a venda dos ícones da modernidade superficial. (BERNARDO, 2004, p. 135)

Em resumo, nesta dialética entre mais-valia absoluta e relativa o Estado Restrito, em nossa proposição, funciona como um mediador que se coloca entre as necessidades do mercado capitalista, o Estado Amplo, e a formação dos trabalhadores. Oferecendo ao mercado de trabalho pessoas com formação/qualificação para gerir e/ou trabalhar no âmbito da mais-valia relativa e pessoas “qualificadas” para trabalhar no chão de fabrica, principalmente no âmbito da mais-valia absoluta.



[1] Mestrando em História e Cultura na Faculdade de História, Direito e Serviço Social - Unesp-Franca.

[2] A mais-valia relativa pode ser resumidamente pensada como um trabalho mais complexo e mais qualificado, portanto mais produtivo.

[3] “Constitui uma forma rudimentar de exploração... Para aumentar a extorsão de mais-valia absoluta basta prolongar a jornada ou reduzir a remuneração, o que a curto prazo deteriora as capacidades do trabalhador e lhe diminui a utilidade enquanto objeto de exploração”. (BERNARDO, 2004, P. 123)

[4] As Condições Gerais de Produção incluem, em suma, todo o conjunto das infra-estruturas materiais, tecnológicas, sanitárias, sociais, culturais e repressivas indispensáveis à organização geral do capitalismo e ao seu progresso...(BERNARDO, 1998, p. 30)

[5] Gestores neste trabalho são classificados como uma classe que vive do controle do trabalho alheio, por isso mesmo exploradores, no mesmo patamar que burgueses.

3 comentários:

  1. Bom texto Aender, é importante que fique claro para as pessoas que a educação não salva ninguem, ou ela embrutece ou ela forma homens adaptados às mais delicadas máquinas. Não há saída dentro da educação enclausurada pelas regras do jogo capitalista, no estado e na iniciativa privada.

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  2. Parabéns Aender pelo texto. Deve realmente ter incomodado muitas pessoas no encontro principalmente porque, como disse o cabeça, a educação não salva ninguém e boa parte dos educadores entendem ela como a única via que nos levará ao paraíso.

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