Mário Pedrosa: A revolução ativa de massa e a autogestão (1ª Parte)
Tal qual Gramsci nos anos 30, Pedrosa nos anos 40 tenta repensar a questão da revolução no neocapitalismo, incluindo a questão dos países subdesenvolvidos. Por Cláudio Nascimento
Em Mário Pedrosa vamos encontrar elementos fundamentais sobre o conceito gramsciano de «revolução ativa», em sua obra de 1966 A Opção Imperialista, mas que retoma ensaios da época em que estava exilado nos EUA. A Opção Imperialista traz um capítulo intitulado Reformas contra-revolucionárias. Nele, Mário assinala que «O fato decisivo, realmente, de toda essa época que se poderia chamar de nazi-rooseveltiana foi a transformação não somente política mas econômica por que passou o mundo. Não se pode compreender, na sua essência e na sua dinâmica, o complexo sócio-econômico capitalista ocidental de hoje sem a consciência clara e objetiva das transformações iniciadas com a grande depressão de 1929-30 e o Plano Marshall de 1947. Que se passou então? O capitalismo liberal, impotente para vencer a depressão e repor em marcha o mecanismo produtivo e econômico mundial, cedeu lugar a regimes transitórios e totalitários, cujo obscurantismo político, moral e cultural revelava profundo retrocesso da própria civilização ocidental. O terrível paradoxo foi que, no plano econômico e financeiro, aqueles regimes quebraram várias ortodoxias intocáveis do capitalismo clássico decadente. A época atual provém, em grande parte, daquele paradoxo. Conhecê-lo é indispensável à compreensão dos acontecimentos e de muito dos traços característicos de agora. É o que nos propomos demonstrar neste capítulo.
«A mais importante daquelas ortodoxias era a irremovibilidade do padrão ouro como fundamento sine qua non de todas as transações comerciais, financeiras do sistema capitalista dentro e fora das fronteiras nacionais dos países. Nos Estados Unidos, Roosevelt quebrou o padrão monetário do dólar, desligando-o do ouro, interveio nos bancos para controlá-los, lançou, segundo a receita keynesiana, vasto programa de obras públicas em pleno recesso, para absorver o desemprego em massa, enquanto na Alemanha Hitler, sem um tostão em ouro nos cofres do Tesouro Nacional, cria várias espécies de marcos, controla bancos, põe fábricas em funcionamento, mesmo sem levar em conta sua rentabilidade contábil e milhões de trabalhadores desempregados a abrir e pavimentar estradas para os futuros exércitos, contentando assim militares e oficiais ociosos e dando satisfação aos grandes magnatas do ferro e do aço, do carvão, da indústria química e da eletricidade que o financiaram e cuja febril atividade encheria o país de quartéis, depósitos, fábricas, minas, armamentos de toda sorte. A Alemanha sai da depressão, apresenta-se forte, com aparência de próspera. Hitler fez reformas, Mussolini fez reformas, mas essas reformas tinham socialmente, culturalmente, politicamente caráter anti-histórico e obscurantista: eram o que me permiti, então, chamar de “reformas contra-revolucionárias”».
Em nota de pé-de-página, Pedrosa acresce: «A ascensão da classe operária, que se fazia em nome dos direitos democráticos que ela ia conquistando, um a um, numa luta de sacrifícios durante mais de um século, deixou de ser sua obra, para o ser de um punhado de especialistas e funcionários, de burocratas que em nome dela decidiam de tudo, sem consultá-la. Ao contrário, mistificando-a. Eis a essência das reformas contra-revolucionárias da época. Eis aí porque fascistas e nazistas puderam organizar partidos de estrutura análoga a dos partidos comunistas e com tais métodos e instrumentos puderam fazer amplas incursões no seio do movimento operário, com os resultados que se sabe».
Para Pedrosa, as «reformas contra-revolucionárias» definiram toda uma época entre as duas guerras. Pedrosa define as alternativas políticas que surgiram nessa época, de um lado, «a solução fascista»: ela «consistiu precisamente em deformar a economia do mercado livre, mas ao preço da extirpação das instituições democráticas. Os fascistas criaram as moedas dirigidas, intervieram no mercado de trabalho para impedir as greves, controlaram os bancos e, finalmente, para repor em marcha a economia, entregaram-se ao surto armamentista que constituiu o grande mercado para as forças produtivas, inativas até então por falta de escoadouros. Essa foi a reforma contra-revolucionária dos países fascistas totalitários», conclui Mário.
Em relação à União Soviética, Pedrosa afirma: «Essas economias que prolificaram até a Segunda Grande Guerra tiveram a sua expressão mais acabada sob o fascismo italiano e o nacional-socialismo alemão. Não foram, contudo, liquidadas com a guerra. Dariam lugar a formações idênticas, embora em graus de acabamento diferentes e de origens às vezes opostas. Hoje temos, sob outras formas políticas e com outra ideologia, sistemas econômicos semelhantes. A economia mais acabada nesse sentido é a da própria União Soviética… Na Rússia, deu-se uma evolução no sentido da totalitarização da economia e da sociedade… O Estado tornou-se senhor de todos os meios de produção. Nesta base, uma nova casta dominante surgiu… Todas as formas de organização econômica e política perderam a sua autonomia, integradas no aparelho estatal. Não existe ali nenhum contrapeso de controle democrático. O estado dispõe ao mesmo tempo da totalidade do poder econômico e do poder político». (Mário Pedrosa, Os socialistas e a III Guerra Mundial, Rio, 1948).
Pedrosa analisa o resultado dessa situação, no campo teórico: «Nos partidos comunistas imperavam o monolitismo sáfaro e, no fundo, retrógrado do stalinismo, a mais terrível estreiteza teórica e uma combinação do oportunismo com um sectarismo organizatório do mais completo feitio totalitário. A União Soviética fazia então uma política de feroz realismo nacional russo nos países ocupados (amigos ou inimigos) e no jogo com as outras grandes potências de um oportunismo realmente digno delas. Os socialistas (ou comunistas) restantes pelo mundo, quando lúcidos, eram impotentes; quando carregando ainda poderosas massas trabalhadoras atrás deles, não tinham independência em face de seus respectivos governos nacionais e ainda mais rotineiros e sem princípios, no seu oportunismo visceral, que os stalinistas. Daí resultou a impotência teórica generalizada no mundo imenso do socialismo numa prática, consequentemente, inconsistente, contraditória, do mais baixo empirismo.
«Quanto à União Soviética, retomava sua política de intensificação da indústria pesada, tentando, aqui e acolá, conquistar novas posições no exterior, na base da mesma velha estratégia de antes da guerra e de velhas formulações teóricas num mundo que assistia ao desmentido mais acabado as perspectivas socialistas, comunistas, marxistas quanto ao futuro do capitalismo… O mundo está pagando caro essa impotência teórica».
Mário Pedrosa expôs, em detalhes, o que chama de «arsenal totalitário das reformas contra-revolucionárias». «Sob o regime das reformas contra-revolucionárias institucionalizadas, inclusive nos países democráticos ocidentais, a eficiência produtiva aumentou, a racionalidade econômica cresceu, a cultura chegou às “massas”, mas tudo em detrimento do homem, do homem com seus fins e aspirações contraditórias, substituíveis esses por jornadas de trabalho cada vez mais curtas mas infinitamente mais intensas e um dia cada vez mais cheio de mata-tempos, distrações e divertimentos organizados, sistemas de informações crescentes em quantidade e relativa diminuição do valor, propaganda das vantagens da melhor democracia, da melhor cerveja, do melhor calista, do melhor negócio, da melhor igreja, do melhor cinema, circo ou jogo, do melhor político, do melhor campeão, do melhor governo, do melhor trabalhador ou patrão, do melhor doutor, da melhor mãe, etc, etc. O melhor no pior também é objeto de admiração. Todas as manifestações culturais de nosso tempo participam desse otimismo, desse enfechamento sobre o presente - é o ópio do povo».
Conclui Pedrosa: «As categorias sociais desaparecem, o homem é atomizado; é o ideal da democracia, da boa, isto é, representativa. Esse ideal foi criado pelo fascismo. É o que impera nos Estados Unidos. Essa é a essência do neocapitalismo; neste contexto, qual o problema fundamental? Como repensar a estratégia revolucionária?»
Mário Pedrosa: um projeto nacional cultural
«O Poder Nacional não pode antecipar-se ao estado fluídico da própria sociedade, e só alcançará a plenitude de sua força e de sua coesão quando aquelas classes (as “classes oprimidas”) encontrarem, dentro do todo nacional, o seu lugar ao sol»
Mário Pedrosa
Diz-nos Mário Pedrosa: «Por vezes, de certos círculos inesperados vêm luminosas observações que ajudam a colocar o problema fundamental - de países subdesenvolvidos e massas trabalhadoras com suas aspirações sociais - em face do neocapitalismo, quer dizer, o problema da reforma ou revolução». Mário fala da obra de E. Staley, O Futuro dos Países Subdesenvolvidos (1963). Entretanto, será da obra de Myrdal, International Economy (1956), que Pedrosa extrairá elementos fundamentais. Assim, Myrdal situa a questão: «… mas, mesmo assim, as reformas não são provavelmente dadas às pobres massas populares só por causa da racionalidade e benevolência das classes privilegiadas; como sempre previamente na história, as reformas têm de ser conquistadas pela luta, vencendo a resistência tenaz da maioria dos que têm de aceitar sacrifícios. E sem diminuir a importância dos conselhos e da pressão de fora, como exemplificados pelos vários grupos das Nações Unidas, a luta decisiva tem de ser travada no terreno doméstico. As reformas terão de vir como resultado de um processo político de eficácia crescente». Comenta Pedrosa: «Assim, em lugar de condenar as lutas pelas reformas como um mal, o economista europeu socialmente consciente tende a considerá-las como inevitáveis e também fecundas. É que essas lutas, diz ele, acarretam em si mesmas uma preparação, um exercício educacional insubstituível na democracia. Myrdal, que não é marxista, aproxima-se aqui do velho Marx na sua maneira propedêutica de educar democraticamente os povos e os homens na ação e pela ação». «Esse processo», continua Mário Pedrosa, «é cumulativo em caráter e, do ponto de vista oposto, nada é mais apto a fortalecer a base para os frágeis começos da democracia política nos países não desenvolvidos do que embarcarem com sucesso nas reformas necessárias para quebrar as desigualdades sociais e econômicas».
Essa visão de Mário Pedrosa está inspirada nos trabalhos de André Gorz, basicamente em Estratégia Operária e neocapitalismo (1964). «Num livro sob muitos aspectos novo e construtivo pela originalidade e sobretudo pela maneira de repor o problema capital da estratégia da revolução socialista em nossa época…». Vamos seguir o pensamento de Pedrosa: «O problema da revolução nos países subdesenvolvidos é diferente, sem dúvida, do da revolução nos países de alta industrialização. A diferença maior, quanto à forma, está em que a velha alternativa entre a luta pelas reformas e a insurreição armada deixou praticamente de existir, principalmente nos velhos países altamente industrializados do Ocidente». Mário fala do desenvolvimento tecnológico e das mudanças no que Marx chamava de «assalariados produtores».
Assim, «A revolução socialista opõe ao consumismo alienante do neocapitalismo outra concepção das necessidades. É uma gigantesca tarefa social, econômica, cultural, ética, desalienante…». «A reforma revolucionária nos países de neocapitalismo é a transformação deste, por dentro, em socialismo. Este se vai impondo e introduzindo na estrutura daquele até transformá-lo, fazendo dele o seu contrário. As nossas reformas são a revolução dos subdesenvolvidos - revolução mais ampla e menos definível, mais contraditória e complexa, mais impetuosa e mais plebéia, mais popular, isto é, menos homogênea socialmente… Ela também visa a dar às populações que vivem no interior de seu território um sentimento novo, o de uma participação coletiva num todo nacional cultural enfim acabado ou completo, capaz de falar, entender-se, comunicar-se com o mundo num acento que lhe é próprio».
«Só reformas dessas é que não são “contra-revolucionárias”, mas reformas “revolucionárias”. Para os subdesenvolvidos não há outras». Pedrosa afirma a «necessidade, a fecundidade da intervenção ativa do povo na efetivação das reformas verdadeiras, estruturais; sem essa intervenção não poderão elas vingar… A experiência histórica tem mostrado que ao concorrer para a melhor organização dos elementos de defesa e afirmação social das camadas populares e proletárias da sociedade vai a luta de classes perdendo em violência, em virulência, em explosões súbitas, como outrora, de rebeldes famintos, de escravos oprimidos, de negros perseguidos (nos EUA e na África, e outrora no Brasil, no Haiti) e a se desenrolar em processos de luta organizados, bem delimitados, viris mas disciplinados».
Adiante define que «As reformas de estrutura, de que tanto se fala, precisam de dois requisitos para assim serem definidas: participação direta, cooperação ativa na sua execução, do povo, das camadas de rendas baixas e médias, ao contribuírem para “controlar o consumo dos ricos”, e término da exploração das massas proletárias pelo imperialismo».
Aqui, Pedrosa aproxima-se da definição de hegemonia. Citando o «velho marxista Karl Kautsky», do Caminho do Poder (1909): a «revolução proletária seria dirigida - nos países de alto desenvolvimento naturalmente - por uma classe operária senhora de seus destinos, tendo o que perder, rica em quadros experimentados em todos os setores da vida social e cultural, forte de suas poderosas organizações sindicais, políticas, culturais, etc… A luta de classes, assim - e o pensamento vem direto de Marx e de Engels - não é necessariamente um processo de agravamento de violências e subversões, nem de caos, mas pode ser um processo de disciplinação, educação e criatividade das massas proletárias».
Retomando o livro de Mário Pedrosa, A Opção Imperialista, vemos que o autor volta a um texto de 1948 (Os Socialistas e a Guerra), em que analisa os fenômenos do nazi-fascismo, do americanismo-fordismo, do stalinismo, emprega o conceito de «reformas contra-revolucionárias», para chegar à definição das revoluções nos países do chamado «Terceiro Mundo». Vimos que este conceito tem afinidades com o gramsciano de “Revolução Passiva”, elaborado, sobretudo, no seu estudo sobre o americanismo, nos Quaderni del Carcere, Einaudi editore, Torino, 1975, número 22 (1934). Gramsci concebe o americanismo como uma das formas de revolução passiva e pensa o seu corolário: a revolução ativa socialista.
Tal qual Gramsci nos anos 30, Pedrosa nos anos 40 tenta repensar a questão da revolução no neocapitalismo, incluindo a questão dos países subdesenvolvidos. O velho debate Oriente contra Ocidente.
(continua)
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