Da Alienação à Depressão – caminhos capitalistas da exploração do sofrimento (4ª Parte)
Ao ocultar a injustiça e inibir a capacidade de indignação o indivíduo não só passa a considerar natural e inevitável o que não é, como assimila as vivências propostas a ponto de aderir a uma servidão voluntária que vai levá-lo à sua destruição. A condição para que estas pressões realizem o que o capital deseja é que o sujeito esteja só, abandonado pelos demais, enfraquecido em sua capacidade de ver e resistir à injustiça… Por Emilio Gennari
4. Os mortos-vivos do trabalho
- “Aposto que isso tem a ver com o assédio moral!”, afirma o ajudante ao tentar demonstrar que está aprendendo a lição.
- “Sim e não”, responde enigmática a coruja.
- “Mas, Nádia, este é um tema tão atual que não há quem não fale dele! E depois há milhares de processos judiciais contra as empresas que não só condenam esta prática como cobram compensações em dinheiro pelos estragos!”, insiste o homem ao não se dar por vencido.
- “O seu problema, querido bípede de óculos, é que o ângulo a partir do qual você enxerga a realidade continua fechado demais. É verdade que sair do umbigo para ver o pé já é um avanço, mas ainda não basta para perceber o que está em jogo e, muito menos, para criar condições capazes de reverter os processos que descrevemos acima.
Para início de conversa, fique sabendo que não mais do que 10% dos que sofrem alguma injustiça no trabalho recorrem a um processo judicial e, destes, 6 fecham acordos bem inferiores aos próprios direitos, o que deixa os patrões numa situação extremamente confortável e com a clara sensação de que as vantagens da exploração do sofrimento vão propiciar aumentos consideráveis da eficiência e dos lucros ainda por muito tempo. Além disso, vale lembrar que a prática do assédio moral em suas mais variadas modalidades não é nova, mas tem sim a mesma idade do trabalho realizado para outrem em troca de pagamentos que possibilitem a própria sobrevivência. Chefes e patrões sempre perseguiram trabalhadores e trabalhadoras ora de forma aberta, ora disfarçada, com medidas autoritárias ou com tapinhas nas costas, gritarias ou repreensões paternalistas. Em todos os casos, o objetivo dos constrangimentos criados era sempre o mesmo: extrair mais trabalho, mais produção, mais lucro, enfim, melhorar as possibilidades e os ritmos da acumulação.
O que é novo, portanto, não é o assédio moral, mas a realidade que abre as portas a distúrbios psíquicos, físicos e psicossomáticos cuja ocorrência cresce dia-após-dia até mesmo em profissões nas quais o dispêndio de esforço físico ainda é superior ao grau de tensão nervosa que acompanha o desempenho individual das tarefas. Nas páginas anteriores, vimos como as formas de solidariedade e companheirismo foram sendo desestruturadas em suas bases humanas fundamentais pelo aperfeiçoamento dos mecanismos que levam a considerar o outro como um concorrente a ser derrotado. Ao ocultar a injustiça e inibir a capacidade de indignação o indivíduo não só passa a considerar natural e inevitável o que não é, como assimila as vivências propostas a ponto de aderir a uma servidão voluntária que vai levá-lo à sua destruição.
A condição para que estas pressões realizem o que o capital deseja é que o sujeito esteja só, abandonado pelos demais, enfraquecido em sua capacidade de ver e resistir à injustiça, incapaz de pronunciar o famoso ‘você me paga’ ou ‘você não perde por esperar’ com o qual a dignidade ferida dificulta a resignação, pressiona por algum tipo de reação e, ao reafirmar sua participação no grupo dos que não aceitam baixar a cabeça, renova os vínculos e a revolta dos demais que são vítimas da mesma situação. Por isso, mais que à fragilidade das pessoas, o avanço do assédio moral e das patologias a ele relacionadas é proporcional ao recuo da solidariedade e, com ele, da possibilidade de uma resposta que procure atingir diretamente as causas do sofrimento.
Mas isso não é tudo. Para que as pessoas falem de si mesmas, de seus anseios, angústias ou temores e para que se sintam livres para colocar em palavras seus sucessos, seus sonhos e frustrações de forma aberta e duradoura é necessário que haja um vínculo de confiança no seio do trabalhador coletivo. Sem este laço de reciprocidade é quase impossível se submeter à apreciação e ao julgamento do outro, vencer o medo de ser ignorado ou censurado, alimentar com idéias, valores e formas de comportamento a identidade coletiva de resistência, enfim, consolidar o chão sobre o qual se constrói a percepção comum da realidade e dos sentimentos de revolta perante a injustiça.
Sozinho e sem uma autêntica comunicação com os colegas, o sujeito torna-se alvo fácil das manobras de assédio que o desestabilizam cada vez mais na medida em que aumentam nele o medo de ser visto como fraco, frouxo, incompetente ou imprestável pela chefia e desacreditado pelos colegas. A partir disso, ele consente em calar, duvida da validade de sua experiência e percepção toda vez que esta se choca com a visão dominante, sente pesar ainda mais em suas costas os efeitos deletérios do trabalho e, sem perceber, começa a andar de ré em direção ao abismo. Ele dá início ao processo que o transforma em morto-vivo no dia em que os vínculos com os demais se desgastam a tal ponto de impossibilitar o compartilhamento real da experiência que o sujeito tem da realidade vivenciada por todos. Este vazio passa a ser preenchido pelo medo, pelo retraimento, pela necessidade de sustentar a suposta eficiência das barreiras que cada funcionário ergue para se defender, pelos ressentimentos em relação aos demais, pela sensação de aridez oriunda da falta de convívio com os colegas e pela agressividade com a qual ataca quem atua no sentido de acordá-lo da anestesia que melhora sua capacidade de tolerar o sofrimento”.
Burn out
- “E o resultado disso?”.
- “Resultado: distúrbios do sono, gastrites, úlcera, problemas cardíacos, hipertensão, doenças de origem psicossomática e, o que mais assusta, burn out, síndrome do pânico, depressão e até mesmo o suicídio”.
- “Burn… o que…?!?”, pede o secretário intrigado.
- “Facilmente confundido com o estresse, o burn out é algo bem mais insidioso. Pressionado pelo trabalho, o indivíduo experimenta uma sensação de exaustão física e emocional, eleva sua irritação e agressividade diante de situações corriqueiras até perceber que seu corpo e sua capacidade de reação estão entrando em pane. Como o próprio termo inglês indica, o sujeito se sente como uma terra totalmente queimada, um solo sobre o qual passou um fogo abrasador que transformou em cinzas todas suas energias físicas e psíquicas abrindo caminhos para a ocorrência de distúrbios bem mais graves. Freqüentemente registrado entre professores, bancários, agentes penitenciários, executivos e trabalhadores que lidam diretamente com o público em geral, este distúrbio revela uma ligação direta com uma tensão emocional crônica que nasce do contato excessivo com os outros e, particularmente, dos que dependem ou exigem seus cuidados. As primeiras manifestações costumam se disfarçar de insônia, hipertensão, úlceras digestivas, lapsos de memória, impaciência com colegas e familiares, sensação de fadiga crônica e frustração, vontade de largar tudo, de se mandar ou de sentimentos de onipotência acompanhados de traços típicos do comportamento paranóico. Estes sintomas, via de regra, acabam sendo tratados por si só e raramente são vistos como sinais de algo profundo e devastador a ser corrigido com práticas que busquem restabelecer o equilíbrio entre a vida no trabalho e a vida pessoal, ética e familiar”.
Síndrome do pânico
- “E quanto à síndrome do pânico? Será que o trabalho chega a ser tão assustador a ponto de provocá-la?”, pergunta o homem entre a ironia e a desconfiança.
- “Dos estudos consultados, aprendi que o trabalho não é a única causa deste distúrbio, mas sempre que a vida profissional é a base do pânico, nos deparamos com antecedentes de situações de muito estresse, metas elevadas, prazos apertados, responsabilidades excessivas, longos períodos de trabalho sem intervalos suficientes para repor as energias, tédio, a presença de uma atmosfera ruim na empresa, relações pessoais desgastadas, fracasso em obter promoções, medo da demissão ou uma profunda sensação de frustração em relação ao acerto de contas imposto pela realidade entre a idealização do próprio trabalho (ou de seu papel, como é o caso, por exemplo, dos trabalhadores na educação e do judiciário) e os magros resultados obtidos apesar do elevado dispêndio de energias.
Associada aos elementos descritos nas páginas anteriores, a presença desses fatores pode levar a um descontrole do sistema de alarme do nosso corpo. Não sei se você sabe, mas toda vez que o cérebro detecta algum perigo, dispara uma série de reações químicas que nos deixam prontos para uma reação imediata. Nosso coração bate mais rápido e mais forte, a respiração se intensifica, os músculos se tendem, a temperatura do corpo sobe e a pele fica suada. Trata-se de algo normal que, ao ocorrer, prepara o organismo a enfrentar um perigo real.
Nos portadores da síndrome do pânico, este mecanismo está desregulado e desencadeia falsos alarmes diante de situações corriqueiras que não representam qualquer tipo de ameaça. É como se uma sirene disparasse sem razão aparente, sem que haja uma ameaça real. Isso não significa que o sentimento de pavor e de pânico dos portadores desta síndrome não sejam reais e que seus corpos não passem pela mesma sensação física experimentada por qualquer pessoa diante de um perigo iminente. Simplesmente, o que acontece é que o gatilho destinado a detonar a reação química funciona na hora errada, quando não há motivo para isso. Ao experimentar um sentimento de súbito terror e uma sensação de morte, a mente das vítimas do pânico dispara, o coração parece sair pela boca, o suor molha a roupa, dores no peito, falta de ar, tontura e a clara impressão de que todo o controle sobre as próprias ações será paralisado ou perdido leva-as ao desespero. Sem terem consciência disso, a crise de pânico instala nelas o medo do medo. Ou seja, começam a temer que novos ataques possam acontecer e passam a evitar pessoas, lugares e situações que, em sua concepção, podem desencadear o pânico. Inevitavelmente, as atitudes defensivas adotadas para fugir de um novo ataque acabam provocando sérios transtornos em todos os aspectos da vida profissional e social dos que são atingidos por esta síndrome.
Assim como o primeiro beijo a gente nunca esquece, o primeiro ataque de pânico marca profundamente a memória com uma sensação de ruína iminente que se auto-alimenta na medida em que suas vítimas deixam de prestar atenção naquilo que está em volta delas e passam a se concentrar diretamente sobre o que está dentro delas. Sentimentos, dores, sensações ou qualquer mudança nas reações do corpo, por simples que sejam, são percebidas como sinal de que algo pior está a caminho. Do medo de um infarto ao de estar enlouquecendo, da insegurança mais simples ao temor de certos pensamentos e sentimentos, o pânico provoca um círculo vicioso do qual é difícil sair sozinho. Ainda que o primeiro ataque tenha durado poucos minutos, a sensação é tão devastadora que sua recuperação não vai ocorrer da noite para o dia, mas sim num lento processo no qual é essencial que o portador da síndrome aprenda a não fugir diante do que teme, não procure expedientes para tentar evitar, prevenir ou reduzir o pânico, mas comece a enfrentar o medo e os ataques para perceber que ele consegue sobreviver a seus efeitos, que é mais forte do que eles e que o próprio ataque é totalmente seguro.
Entre os principais problemas para dar início a esta empreitada está a incapacidade do indivíduo perceber a relação que existe entre os ataques de pânico e as situações estressantes que foram se acumulando nos últimos doze meses e deixaram marcas profundas tornadas invisíveis pela sobreposição das terríveis sensações produzidas pela crise de pânico. Em geral, as pessoas acham que o primeiro ataque se deu em função de algo imediato, quando, na verdade, este é apenas o resultado visível de um descontrole ocorrido meses antes e que pode vir a se manifestar pela primeira vez em situações banais ou até mesmo no gozo de um período de férias, quando o afastamento do trabalho parece motivo suficiente para não procurar nele as causas da síndrome.
A sobrecarga acumulada não tem hora marcada para disparar a sensação de terror que se experimenta e sua concretização se afasta no tempo. Com o ritmo lento das gotas que vão enchendo o pote, situações estressantes vivenciadas no trabalho estão entre os fatores que preparam silenciosamente o seu futuro transbordamento. Por esta razão, o que confunde ainda mais as pessoas que sofrem deste distúrbio é o fato delas se fixarem na gota d’água que fez o vaso derramar sem se dar conta de que isso só ocorreu porque ele estava cheio. Diante da ausência de fatos imediatamente visíveis, elas passam a acreditar que os distúrbios se devem a alguma doença grave do cérebro cujo ponto final é a morte ou a loucura.
O problema é que o medo do pânico mantém o pânico vivo e deturpa em suas vítimas a interpretação de tudo o que acontece em volta delas. Dias bons ou ruins são comuns à toda a humanidade, e para a maior parte da população até mesmo as situações desagradáveis acabarão ficando para trás na medida em que as pessoas deixam de pensar nelas. Para as vítimas do pânico, porém, um dia ruim é sinônimo de que tudo dá errado, por isso, elas ficam tensas o dia inteiro, sentem-se pesarosas, incomodadas e acabam alimentando o pavor de ter mais um ataque de pânico”.
- “Mas isso é complicado demais para que um colega de trabalho possa ser de alguma ajuda!”, afirma o secretário ao apoiar o queixo na palma da mão esquerda.
Alfinetada por esta conclusão, Nádia fixa o olhar no rosto do seu ajudante, cruza as asas na altura do peito e, batendo a pata direita na mesa, lança uma expressão de reprovação que sublinha o “Será mesmo?!?” que acaba de se espalhar pela sala em alto e bom som.
Com a cabeça dobrada sobre os papéis, os ouvidos humanos parecem se abrir humildemente ao inesperado. Mais alguns instantes de silêncio e, em tom sério, a coruja diz:
- “A primeira coisa que qualquer colega pode fazer é não piorar o que já está difícil, mas, para isso, ele precisa entender como os portadores deste distúrbio vêem o mundo. Ou seja, é necessário olhar para a realidade não com os próprios óculos, mas pelas lentes através das quais eles enxergam o que está em volta deles. O problema maior é que, aliada ao individualismo e à competição que marcam presença nos locais de trabalho, a falta de informação sobre estes distúrbios costuma ampliar os estragos existentes toda vez que as pessoas tentam ajudar à sua maneira, ou seja, pelas lentes através das quais elas vêem a vida e buscam lhe dar um sentido.
Pra início de conversa, ajudaria bastante se, na dúvida sobre o que fazer, quem convive com as vítimas do pânico parasse de considerar como frescura, falta de caráter, parafuso solto ou sinal de miolo mole as expressões que os portadores da síndrome deixam transparecer em meio a mil constrangimentos e temores. Gozações, brincadeiras, frases preconceituosas ou apelos a sanções disciplinares por parte da chefia servem apenas para alimentar o medo de ver a própria vida ir por água abaixo, abundantemente presente nas pessoas atingidas por esse distúrbio.
O que mais assusta é perceber como gente instruída ou considerada ‘de bem’ procura tirar proveito dos distúrbios alheios para afastar o colega e ter assim a chance inesperada de subir na carreira. Aparentemente inofensivos e lógicos, seus comentários contribuem para que o outro que sofre se torne invisível perante os demais (e só volte a aparecer na hora do escárnio) e mostram-se incapazes de perceber que a situação vivenciada pelo colega é, na verdade, um sinal de alerta em relação à possibilidade do trabalho vir a danificar do mesmo modo sua própria integridade física e mental.
O irônico disso tudo é que exatamente estas pessoas são as primeiras e mais agitadas na hora de dizer que ‘aqui ninguém ajuda’, ‘ninguém dá uma chance’ quando seus projetos de ascensão são borrados ou obstaculizados por situações simples e corriqueiras. Cegos de amor pelo capital e pela ética que este viabiliza, são incapazes de perceber que não são ‘os outros’ a se afastarem deles, mas, sim, são eles que atuam prioritariamente no sentido de desqualificar, derrotar e, portanto, colocar o outro bem longe de suas vidas e preocupações, impedindo assim um mínimo de vivência coletiva.
Segundo, mas não menos importante, seria bom se, na tentativa de ajudar, não empurrássemos o colega para mecanismos que atrasam e dificultam sua recuperação. Estou me referindo, por exemplo, aos convites à resignação, a se conformar com a própria sorte como se a síndrome do pânico fosse uma sina ou, pior ainda, um castigo de Deus. Na mesma linha, não é para oferecer remédios que ajudem a acalmar nem para confirmar as atitudes que levam a evitar as situações nas quais a vítima do pânico acredita vir a ter um novo ataque e nem mesmo convidar a ‘tomar uma branquinha’ pra esquecer. Por melhores que sejam as intenções, é muito bom que a solidariedade não se expresse no levantar o tapete debaixo do qual o portador da síndrome pretende esconder exatamente o que precisa enfrentar para trilhar o caminho da cura.
Ao lado do que não é bom praticar, vale a pena esboçar algumas atitudes simples que podem fazer a diferença. No lugar de ridicularizar ou menosprezar a sensação de terror, procure estar com o colega nos momentos em que a insegurança e o pânico começam a se manifestar. Não precisa ser psicólogo ou psiquiatra, mas apenas gente que mereça este nome, para sustentá-lo na hora em que sua leitura dos dias ruins tende a alimentar a convicção de que não vai conseguir sair dessa ou está voltando à estaca zero.
Parece paradoxal, mas na medida em que o atingido pela síndrome vai tendo melhoras, o medo de perder a sensação renovada de que a vida vale a pena ser vivida faz ele notar mais os dias ruins do que os bons. A memória do sofrimento padecido nos ataques passados age como um carrasco que, com sorriso maldoso, lembra que tudo volta à estaca zero, insinua que a recuperação nunca vai acontecer e que o pânico irá sempre mergulhá-lo na terrível espiral do medo. Nestes casos, agir positivamente não é apelar para o ‘pensamento positivo’, tão abstrato e irreal para o portador da síndrome a ponto de receber o convite como uma desconsideração de seus sofrimentos.
Trata-se, isso sim, de ajudar a memória a agir no sentido inverso, ou seja, de resgatar as situações e as dificuldades já superadas, de recuperar os progressos já conseguidos, de cutucar a situação de choque e abalo temporário com a percepção de que não há cura milagrosa que faça o pânico desaparecer da noite pro dia, mas sim um caminho gradual no qual as crises se tornam mais espaçadas no tempo e menos intensas. Enfim, ajude a lembrar das pequenas melhoras conseguidas como prova material de que épocas boas são novamente possíveis, de que se continuar observando e fazendo o que já deu algum resultado ele poderá atravessar esta fase e consolidar sua recuperação que, no momento, parece colocada em dúvida por uma recaída temporária.
As palavras terão efeito multiplicado quando blindadas por atitudes concretas que procuram transformar em gesto de solidariedade a presença amiga revelada pelo que dizemos. Basta pouco: ajude o colega a evitar algumas situações que acirram a tensão no trabalho ao mesmo tempo em que apontam que não é ele que está ficando louco, mas é o trabalho que serve todas as doses diárias de veneno que, em vez de ajudar a reagir, mergulham as pessoas no isolamento, no sentimento de culpa, na insegurança causada pela ameaça de ‘ser o próximo a dançar’, enfim, numa ansiedade desgastante e desesperadora. Se não dá pra transformar um portador da síndrome do pânico em militante sindical, é possível agir no sentido de deixar marcos que, individual ou coletivamente, podem vir a questionar as certezas do senso comum e visualizar na prática que as coisas podem e devem ser diferentes.
Não se trata de algo extraordinário, mas sim de atitudes simples, simplesmente humanas, que ao ampliar a percepção da realidade ajudam a visualizar possíveis caminhos de mudança e, sobretudo, a colocar na ordem do dia a necessidade do envolvimento e da responsabilidade individual na solução dos problemas coletivos”.
Depressão
- “Agora, com a depressão as coisas devem ser mais complexas…”, comenta o homem em tom de desculpa.
- “É verdade – reconhece a ave em meio a um longo suspiro. Mas o tamanho do problema e o grau de dificuldade que impõe não são razões suficientes para desistirmos de buscar respostas. Ainda que não haja uma depressão igual à outra, que esta tenha origens diferenciadas ou se manifeste em graus e profundidades que variam de pessoa a pessoa, que vitime o trabalhador e o arraste por caminhos tortuosos cuja superação envolve uma releitura do passado e do presente que só um especialista pode ajudar a realizar, quem procura organizar o local de trabalho não pode se limitar a constatar ou denunciar os possíveis vínculos desse transtorno com as relações de produção. Ele precisa entender seus mecanismos e efeitos sobre as pessoas atingidas para que suas ações o aproximem de quem retorna ao posto após passar por abalos depressivos e sua conduta sirva de crítica real (atenção: eu disse real, não verbal) dos elementos que fazem do sofrimento humano um dos combustíveis destinados a aumentar a produtividade e os lucros”.
- “Mas será que dá mesmo para percebermos como o deprimido vê o mundo?”.
- “A sua pergunta faz sentido não só em relação ao debate sobre os elementos que permitem enfrentar os novos desafios da atuação na base, mas também pelo fato da própria Organização Mundial da Saúde apontar os distúrbios depressivos como responsáveis pela quarta causa de morte e incapacidade em escala mundial com uma clara tendência a ocuparem o segundo lugar até 2020 logo atrás das doenças do coração. (1)
Em breves palavras, as depressões não são uma realidade passageira, mas sim algo que as mudanças em andamento dentro e fora das empresas tendem a tornar cada vez mais presente no cotidiano da história, na medida em que o enfraquecimento dos laços sociais apaga as dimensões essenciais da vida coletiva e fortalece o isolamento do indivíduo. Chamado a enfrentar sozinhos os traumas, as alegrias, as angústias, os sucessos e os fracassos de sua tensão para o reconhecimento, sem vivências coletivas que permitam sustentar e dar sentido ao sofrimento que é chamado a enfrentar, constantemente pressionado pelas ameaças de vir a ser um ‘sem futuro’ e pelos seus próprios sonhos de consumo, o sujeito tende a se aniquilar na exata medida em que a busca do ‘ter’ para compensar a falta de ‘ser’ o transforma numa ilha sacudida pela tempestade. Viver o individualismo dos novos tempos, como dizia Einstein, ‘é estar trabalhando sob o delírio apático pelo qual cada um é separado do outro, do resto do mundo material, do universo, quando na verdade somos todos partes inteiramente conectadas do próprio universo’. (2)
O impacto destes mecanismos nas vítimas da depressão leva-as a experimentarem uma perda de energia, de interesse e de satisfação na rotina do cotidiano acompanhada, em geral, por sentimentos de culpa, dificuldade de concentração, sentimentos de impotência e de fracasso, incapacidade de experimentar prazer (intelectual, estético, alimentar e sexual), irritabilidade, uma profunda sensação de que a existência deixou de ter sentido e pensamentos de morte ou de suicídio. Esta situação de abatimento pode se expressar através de frases que apontam a ausência de qualquer perspectiva futura e de força para reagir ou pelo reconhecimento explícito de que não se tem mais valor algum.
A percepção negativa que o depressivo tem da própria vida se reforça diariamente com as distorções que acompanham sua leitura da realidade. No ambíguo turbilhão da cotidianidade onde se confundem sentimentos e sensações opostas, as vítimas deste transtorno extraem lições negativas de situações que, numa condição de equilíbrio emocional, não apontariam neste sentido; retiram detalhes de seu contexto, superestimam sua importância e interpretam unilateralmente toda a sua experiência à luz do fragmento escolhido; generalizam facilmente conclusões precipitadas a partir de casos específicos e isolados; tendem ora a supervalorizar, ora a subestimar ou minimizar atributos pessoais, acontecimentos ou possibilidades futuras; relacionam consigo mesmos fatos ou reações alheias mesmo quando não há elementos para isso e colocam suas vivências em categorias opostas, o que faz com que tudo vire oito ou oitenta.
A soma desses mecanismos faz com que a depressão degrade o ‘eu’ da pessoa, eclipse sua capacidade de dar ou receber afeição, destrua a conexão com os demais, aniquile a capacidade de estar apaziguadamente apenas consigo mesmo e faz com que tudo o que está acontecendo no presente não passe de uma antecipação da dor futura, tão forte e tão intensa a ponto de apagar o passado e o presente. ‘Tornar-se deprimido é como ficar cego, a escuridão no início gradual acaba englobando tudo; é como ficar surdo, ouvindo cada vez menos até que um silêncio terrível o envolve, até que você mesmo não pode fazer qualquer som para penetrar o silêncio. É como sentir sua roupa se transformando lentamente em madeira, uma rigidez nos cotovelos e joelhos progredindo para um terrível peso e uma isolante imobilidade que o atrofiará e, dentro de algum tempo, o destruirá’. (3) Na depressão, as coisas mais simples exigem um dispêndio colossal de energia. Atender ao telefone pede um esforço sobre-humano, pois o braço pesa tanto quanto um elefante. Descer da cama, trocar de roupa, tomar banho, raspar a barba são atividades impossíveis para quem sente estar precisando de um guincho só para levantar a perna e fazê-la tocar o piso.
Além disso, ‘quando você está deprimido, precisa do amor de outras pessoas e, no entanto, a depressão provoca ações que destroem esse amor. Os deprimidos, geralmente enfiam alfinetes em seus botes salva-vidas’. (4) Pouco a pouco, ‘eles se tornam invisíveis porque sua própria doença faz com que cortem os contatos e as ligações humanas. A reação das pessoas ao encontrar alguém que sofre desse distúrbio é de rejeição e desconforto. Os que não estão afligidos pela doença não gostam de vê-la porque a visão do que ela produz os enche de insegurança e provoca ansiedade’. (5)
Nos casos mais graves, ‘a existência se torna um inferno tão insuportável que o temor da vida pode superar em peso o temor da morte e abrir as portas para o suicídio’. (6). Ou seja, se o comum é as pessoas não conseguirem pensar o mundo sem a sua presença, o deprimido pode chegar à conclusão de que o mundo seria um lugar melhor sem ele”.
- “O que ainda não consigo entender – diz o ajudante ao coçar a cabeça – é como alguém pode chegar a esse ponto sem se dar conta do que está acontecendo…”.
- “Simples, querido bípede de óculos. Via de regra, qualquer um de nós se comporta como uma castanheira centenária que, do alto de sua copa viçosa vê brotar uma pequena trepadeira na base do seu tronco. Para quem já enfrentou ventos, tempestades, frio, calor, secas e enchentes, o pequeno parasita parece algo totalmente insignificante ou que, com certeza, não pode ser visto como uma ameaça a quem, do alto de sua força e solidez, já atravessou os séculos. O problema é que aquele broto vai crescendo, não com uma velocidade assustadora ou efeitos imediatamente devastadores, mas sim devagarzinho, como quem busca um simples abrigo, uma chance para crescer ou um ponto de apoio para sair do chão e conquistar novas alturas. Trata-se de um processo lento, feito de idas e vindas, aparentemente inofensivo e perante o qual a castanheira sempre se ressegura com a certeza de que ela é maior, de que, afinal, o incômodo gerado pelo parasita não é tão grande e que os braços que agarram seu tronco dão até um colorido diferente que a distingue das demais árvores da floresta. Estação após estação, a trepadeira cresce a tal ponto que a árvore se sente sufocada, perde sua capacidade de respirar e articular as funções que proporcionam sua estabilidade e crescimento. Mas agora é tarde. A experiente castanheira mergulha de cabeça no pior dos mundos, ou seja, tem a morte como única perspectiva concreta de futuro imediato.
Neste momento, ela lança um grito de dor que, não poucas vezes, ganha a forma de um profundo silêncio ou da mais terrível solidão diante das árvores que, a um passo dela, continuam povoando a floresta. Sozinha ela não pode fazer nada. Faz-se necessária e urgente a intervenção de uma ajuda especializada que desbaste a trepadeira e envenene suas raízes. A terapia e os antidepressivos são a foice e o veneno que serão usados na árdua tarefa de matar o parasita e salvar a castanheira. Como ela, o deprimido sente quando a trepadeira murcha e cai, mas, ao mesmo tempo, percebe que lhe restam poucas folhas para apostar na recuperação e que suas raízes estão ainda muito frágeis.
O que é necessário para a estrita sobrevivência continua presente, mas não é nada agradável viver assim. Não é possível a castanheira se sentir forte, bela, sólida e resistente desta maneira. Qualquer brisa torna-se uma ameaça às poucas folhas que restam e, agora mais do que nunca, ela precisa se concentrar sobre si própria e poder contar com o apoio e a presença desinteressada das demais árvores da floresta, cujos troncos, ramos e folhas podem reduzir o impacto das intempéries e facilitar sua recuperação. Se é verdade que cabe à castanheira reunir as lembranças que a depressão afasta e protegê-las para o futuro, assimilar o alimento mesmo quando causa repugnância, movimentar seus ramos até quando cada folha parece pesar uma tonelada, bloquear os terríveis pensamentos que lhe inundam a mente, ter a coragem de superar a vergonha de continuar tomando os remédios, ouvir as árvores que torcem por sua recuperação e acreditar que vale a pena viver por elas mesmo quando, no fundo, não acredita nisso, é verdade que também a floresta tem que fazer a sua parte”.
- “Por exemplo…?”
- “Ora, um bom começo seria se as manifestações de abatimento próprias da depressão não fossem recebidas com ações que tendem a agravá-las. Refiro-me, por exemplo, às advertências da chefia, sanções disciplinares, ridicularização dos colegas, acusações gratuitas de falta de motivação, insinuações de que ‘o cara é esperto e está fazendo corpo mole para os outros se ferrarem’, marginalização ou exclusão do grupo, avaliações de desempenho ou julgamentos éticos pelos quais o colega deprimido sente estar cedendo em sua fragilidade diante do que os demais parecem suportar sem grandes problemas. Se para a empresa só vale quem produz e dá o sangue para o lucro, para quem busca reconstruir vínculos de amizade e confiança capazes de alterar a percepção do trabalhador coletivo sobre o sentido do trabalho, as atenções devem ser centradas em comportamentos que revelam traços de autêntica humanidade, inteligência, lealdade e coragem para dar o nome aos bois ou colocar o dedo nas feridas.
Trocado em miúdos, isso significa que devemos evitar, por exemplo, constatações tais como ‘ele está pra baixo porque não tem Deus no coração’. Algumas concepções e seitas religiosas tornam muita gente incapaz de ver que, como doença, a depressão, e não a falta de religião (que, por sinal, costuma ser prática corrente de um bom número de deprimidos), faz com que os olhos sejam cobertos por um véu cinzento através do qual o mundo e a vida passam a não ter cor. Isso significa que, como doença, a depressão se deposita esmagadoramente por cima da personalidade. Quanto mais o deprimido procura juntar os cacos dele mesmo, mais esse transtorno se encarrega de mostrar-lhe que ele vai continuar desmoronando e se fragmentando cada vez mais.
Por isso, além de não ter nenhum contato privilegiado com o céu, quem julga um doente com base na fé é tão cego que sequer consegue perceber que está condenando alguém que já vive o inferno na terra em nome do mesmo Deus em quem diz acreditar e que, por sinal, ordena a qualquer homem de fé que ele deveria ser o primeiro a estender gratuita e desinteressadamente a mão a quem está se esforçando para sair do abismo. O preconceito baseado numa errônea interpretação religiosa da vida e dos acontecimentos faz com que algumas pessoas sintam a sensação do dever cumprindo mesmo quando acabam de jogar uma bigorna de ferreiro para alguém que, ao estar se afogando, pede uma mão, um galho, um pedaço de corda, enfim, algo ao qual se agarrar para não afundar de vez.
Um segundo elemento, tão prejudicial quanto o anterior, se expressa através de um convite nefasto que ganha as feições de um conselho de amigo: ‘no seu lugar, eu jogaria fora esses remédios. São eles que te deixam lerdo e bobo’. As pessoas não percebem que esta amostra típica do senso comum não só aumenta a vergonha do deprimido de ter que depender de uma medicação forte para manter um equilíbrio emocional que, às vezes, permanece instável por anos a fio, como é tão absurda quanto aconselhar alguém que está no meio de um tiroteio a se livrar do colete à prova de bala pelo simples fato de que este o faz suar ou está completamente fora de moda.
Mas há algo aparentemente inofensivo que é igualmente prejudicial. Se, normalmente, um bom café ajuda a ‘pegar no tranco’, no deprimido, aquela xícara fumegante de líquido preto serve apenas para devorar as poucas energias com as quais conta e estimula respostas que tem a ansiedade como fator predominante. Algo bem parecido ocorre com o guaraná em pó ou com bebidas estimulantes que acabam jogando gasolina no fogo das sensações que ajudam o deprimido a mergulhar mais em seus piores sentimentos. As coisas não são diferentes em relação ao álcool e às drogas. Além de cortar o efeito da medicação e desgastar ainda mais o organismo debilitado, deixam o portador desse transtorno com dois problemas: a depressão e as drogas.
Não é difícil que haja também situações nas quais, sem perceber, corremos o risco de transformar no seu contrário uma atitude honesta de sincero companheirismo. Sensibilizadas com a situação dos colegas, há pessoas que passam a tratá-los como se fossem totalmente incapacitados sem perceber que a depressão pode agir exatamente no sentido da vítima do distúrbio se achar realmente incapacitada, talvez até mais do que normalmente seria.
Na mesma linha, podemos ler a insistência de alguns convites a fazer, a se mexer, a se levantar ou a participar de algo que force o deprimido a sair do seu isolamento. O problema é que quando a doença é mais forte do que sua vontade, a capacidade de reação positiva cai abaixo de zero e, ao perceber que não consegue dar a volta por cima, o doente mergulha ainda mais nas malhas da depressão”.
- “Agora é que fiquei mais confuso ainda!”, prorrompe o secretário ao balançar a cabeça e empurrar os óculos contra a testa.
- “A depressão, meu caro, prende as pessoas nas armadilhas da própria mente – diz a coruja ao apoiar a asa no peito do ajudante. Por isso, ajudar um deprimido é bem mais complexo do que aparenta ser. Às vezes, a única maneira que temos de fazer isso é ficando por perto, compartilhando com ele o seu silêncio, uma xícara de chá, uma música, respeitando seu momento e até mesmo sua vontade de ser deixado em paz. Em breves palavras trata-se de fazer com que nossas atitudes, por simples e singelas que sejam, lhe façam sentir a presença de uma mão amiga, de alguém disposto a ouvir e dialogar com seus momentos, de um olhar que torce por sua recuperação, de um coração que comemora de pé qualquer pequeno sinal com o qual o colega consegue romper o seu silêncio e a sua solidão. Mais do que servir para dar conselhos (que, em geral, não passam de um pé no saco (7)), as palavras, os gestos ou a presença silenciosa devem ser discretos, desinteressados e, por isso mesmo, fortes quanto basta para que o deprimido perceba que a vida dele é importante para os seus colegas de trabalho. Parece incrível, mas o simples fato de saber que outras pessoas se preocupam com o que lhe acontece é, em si, suficiente para afetar profunda e positivamente as ações e o espírito de quem sofre desse transtorno.
O estabelecimento de relações mínimas de confiança não se dá por decreto ou por um ato unilateral da própria vontade, mas em práticas que, ao respeitar a situação do outro, não o tratam como criança, incapacitado ou coitadinho, mas apenas como amigo que precisa de ajuda e compreensão. Por este caminho, tanto o deprimido, como quem vive no isolamento ou na solidão proporcionadas por atitudes individualistas, pode recuperar aos poucos o interesse pela fala, ou seja, para colocar em palavras o que sente, sofre e faz ele se desequilibrar.
Às vezes, o prelúdio desse momento vem através do choro que, freqüentemente, indica a entrada da pessoa nos compartimentos mais profundos da emoção. Expressões como ‘Seja homem! Pare de chorar!’, ‘força, força, isso já vai passar’, ou ‘segure as lágrimas! Anime-se!’, não ajudam a fazer com que quem está chorando possa dar voz ao que está mais no fundo dele, a expressá-lo, e, via de regra, deixam claro que não estamos dispostos a ouvir. Como conversar sobre si mesmo é colocar a própria mente diante do julgamento do outro, é necessário que quem chora, e sobretudo ele, sinta que está sendo entendido em seu drama e não condenado, desqualificado ou reprovado pelo que está vivenciando. Por isso, uma frase como ‘se as suas lágrimas tivessem voz, o que estariam dizendo?’ ajudaria bem mais a vencer a dura tarefa de romper a barreira do silêncio. Ao colocar em palavras o que sente, até a vítima da depressão tem uma boa chance de melhorar o seu estado de espírito, de, ao falar, começar a dar o justo valor às coisas, a continuar articulando seus sentimentos. Se discursos sobre acontecimentos negativos são dolorosos, falar sobre o sofrimento concreto ajuda a aliviá-lo.
Passo a passo, a abertura que se estabelece com o deprimido deixa livre acesso a colocar em dúvida suas expressões categóricas como ‘sei que as coisas nunca vão mudar’, ‘não tem mais jeito de eu ficar bom’ ou ‘é sempre assim, hoje estou um pouco melhor, mas já sei que amanhã vai ser pior’. Se a confiança já abriu a porta da comunicação, o seu convite a dar um passo de cada vez, a resistir dando tempo ao tempo e o resgate das melhoras alcançadas pode ajudar a questionar o falso senso de desamparo, a dar o justo valor aos acontecimentos, a perceber que as coisas estão assim neste momento, mas não vai ser sempre assim, ou, ainda, a fazer a pessoa perceber que é a depressão que está falando através dela.
Como não há palavras mágicas que proporcionem o fim imediato dos pesados efeitos deste distúrbio, faz-se necessária a construção de uma relação adulta, capaz de perceber e valorizar, inclusive, o olhar mais aguçado que o deprimido tem da realidade, sua velocidade e essencialidade na hora de ir direto ao ponto, sem rodeios, sem meias palavras, sem ocultar aspectos verdadeiros que costumam ferir a sensibilidade alheia. Rejeitada pelo senso comum como ameaça à sua busca de segurança, esta visão pode ajudar a descobrir os caminhos pelos quais, ao apostar no companheirismo sincero podemos descobrir os elos perdidos de uma relação humana que sirva de base à reconstrução do sentimento de indignação com o qual o trabalhador coletivo pode reavivar sua rebeldia”.
Depressão, doença de rico?
- “E eu que acreditava que a depressão fosse frescura de rico, ou que desse pra resolver com algum texto de auto-ajuda…”.
- “Esse erro comum é parte do que continua levando colegas de trabalho a se afastarem um do outro por acreditarem que os transtornos depressivos não passam de fragilidade pessoal típica de quem não tem o que fazer e no que pensar. A realidade, porém, é bem diferente.
A depressão atravessa as barreiras das classes sociais, mas o seu tratamento não. ‘Isso significa que a maioria dos deprimidos pobres continua pobre e deprimida; na verdade, quanto mais tempo permanecem pobres e deprimidos, mais pobres e deprimidos se tornam. A pobreza é deprimente e a depressão é empobrecedora, levando à disfunção e ao isolamento. A humildade da pobreza marca uma relação passiva com o destino, uma condição que nas pessoas de maior poder econômico denuncia a necessidade de tratamento imediato. Os pobres deprimidos se percebem como extremamente desamparados, tão desamparados que não buscam nem aceitam apoio.
È relativamente fácil de reconhecer a depressão que atinge alguém de classe média. Você vive sua vida essencialmente boa e de repente começa a se sentir mal o tempo todo. Não tem vontade de ir trabalhar; não tem nenhuma sensação de controle sobre sua vida; tem a impressão de que jamais realizará algo e que a própria experiência é destituída de significado. À medida que você se torna crescentemente retraído, começa a atrair a atenção de amigos, colegas de trabalho e família, que não conseguem entender porque você esta desistindo tanto de tudo que sempre lhe deu prazer. Sua depressão é inconsistente com sua realidade pessoal e inexplicável com sua realidade pública.
No entanto, se você está no último degrau da escada social, os sinais podem ser menos imediatamente visíveis. Para os miseráveis e oprimidos, a vida sempre foi péssima, e eles jamais se sentiram ótimos; nunca conseguiram manter um emprego decente; nunca tiveram expectativa de realizar muita coisa; e certamente nunca lhes passou pela cabeça terem controle sobre o que lhes acontecia. A condição normal dessas pessoas é muito semelhante à depressão, sendo assim difícil de identificar seus sintomas. O que é sintomático? O que é racional e não sintomático? Há uma vasta diferença entre simplesmente ter uma vida difícil e ter uma alteração de humor, e embora seja comum pressupor que a depressão é o resultado natural de uma vida assim, a realidade é freqüentemente o inverso. Afligido pela depressão incapacitante, você deixa de fazer algo com sua vida e permanece ancorado no escalão mais baixo, esmagado pela própria idéia de se ajudar’. (8) Inclusive, esta é uma das razões pela quais, além da leviandade e da falta de comprovação científica do que é apontado em muitos textos de auto-ajuda, quando as dicas veiculadas são apresentadas a muitos deprimidos como possível saída de sua situação, elas não se tornam incentivo a dar a volta por cima, mas se transformam na pá-de-cal que alimenta sua autodestruição”.
Suicídio
- “Pelo que você disse no início do capítulo, só resta falar do suicídio!”, relembra a língua num tom típico de quem teria preferido esquecer dessa parte.
- “É verdade. Mas não há muito a ser dito no âmbito deste estudo. Deixando de lado os dados de uma velha prática pela qual acidentes de trabalho com mortes de clara responsabilidade da empresa, eram apresentados como suicídios de trabalhadores perturbados por transtornos mentais (9) e os que têm sido registrados após o processo de enxugamento e privatização dos bancos públicos, a apuração dos suicídios que ocorrem durante o andamento normal do processo produtivo tem se tornado cada vez mais difícil.
De um lado, é comum as empresas impedirem o acesso dos pesquisadores ao local alegando se tratar de casos em que há uma perícia e um inquérito policial em andamento, o que dificulta o acesso aos colegas e aos familiares da vítima; de outro, quem trabalhava com o suicida se nega a falar tanto por medo de represálias por parte da chefia e dos patrões como porque lembrar do acontecido é trazer à memória a possibilidade de que o desgaste provocado pelo trabalho no colega que se foi é uma ameaça real que pode levar mais alguém do grupo a percorrer o mesmo caminho; e o suicida, obviamente, não pode ser entrevistado. Estabelece-se, assim, um silêncio cúmplice no qual, por razões e interesses diferenciados, todos preferem atribuir a desajustes e fragilidades pessoais a razão de fundo que levou alguém a acabar com a própria vida.
Apesar disso, vários elementos apontam uma relação direta entre as mudanças que se instalam dentro e fora dos locais de trabalho e a elevação do número de suicídios. Entre os casos mais alarmantes está o da China. Nas três últimas décadas este país da Ásia passou por reformas econômicas profundas e um acelerado processo de industrialização. As mudanças desencadeadas pelas transformações ocorridas nas cidades e no campo fizeram com que a cultura do lucro abalasse a estrutura tradicional das famílias e dos clãs, causando uma comoção na sociedade e na psique dos chineses, sobretudo os que estão submetidos a elevados níveis de estresse. A desenfreada corrida para ganhar dinheiro provocou um incremento no individualismo e no espírito de competição entre as pessoas, fortes pressões no trabalho e sobre o filho único – cujos pais exigem que tenha êxito.
Em um país onde três e até quatro gerações vivem sob o mesmo teto, os vínculos familiares estão esfacelados. Os anciãos são abandonados – algo inconcebível anteriormente – enquanto milhões de pais no campo deixam seus filhos para ir trabalhar nas grandes cidades, onde sentem a falta de raízes.
Apesar das amplas e novas possibilidades de educação, viagens, divertimentos e, principalmente, de ascensão social, o angustiante sentimento de precariedade aumentou para muitos chineses. Anteriormente, o Partido Comunista regia suas vidas, e tudo era simples. O partido garantia um ‘prato de arroz’, sinônimo de emprego vitalício, moradia, cuidados médicos e educação. Nada disso existe mais. Por essa razão, muitos chineses sentem-se perdidos.
Com 250 mil a 300 mil suicídios por ano, segundo informado pelos especialistas, ou seja, um suicídio a cada dois minutos, a China representa a quarta parte dos suicídios no mundo, com aproximadamente a sexta parte da população.
De acordo com Huo Datong, o primeiro psicanalista a abrir um consultório na China, ‘com as reformas, a sociedade se tornou mais complicada, o individualismo mais forte, e os problemas psicóticos cada vez mais graves. (…) Nos hospitais psiquiátricos existem muitos pacientes por causa do desenvolvimento econômico que provocou uma dissolução das relações com os pais e a família, um isolamento dos outros’. A ruptura dos valores tradicionais, o acirramento do individualismo, os sonhos de consumo, a tensão e as pressões para ganhar dinheiro fragilizam sobretudo os grupos que ocupam os níveis mais baixos da pirâmide social da China capitalista. Neste país, não só o suicídio é a principal causa de morte entre os 15 e os 34 anos como o número de ocorrências nas áreas rurais é três vezes superior ao das cidades e, de acordo com as estatísticas disponíveis, esta é a única nação do planeta onde as mulheres cometem mais suicídio do que homens (58%). (10)
Ainda que a situação da China não possa ser generalizada, ela representa talvez a prova mais atual e contundente dos estragos provocados na saúde mental das pessoas pelo avanço da acumulação capitalista. Do mesmo modo, ela confirma que, mais do que em fragilidades estritamente individuais, a razão pelo aumento dos distúrbios psicóticos de vária ordem e gravidade deve ser procurada no caldo de cultura proporcionado pelo desenvolvimento da globalização nos países centrais e periféricos. Para bom entendedor, meia palavra basta”.
- “Caramba! Se as coisas estão assim, quer dizer que estamos ffffffritos!”, exclama o homem perplexo e assustado.
- “Eu não teria tanta certeza – rebate Nádia ao piscar os olhos. Ainda que nosso estudo sirva mais para definir o comportamento do vírus do que para apontar uma vacina eficiente, já é possível ao menos esboçar algumas pistas de reflexão que visualizem possíveis caminhos para o movimento sair do atoleiro em que se encontra. E como se trata de algo que não é tão simples quanto parece, é bom mesmo você se preparar para o nosso último capítulo que, longe de lapidar conclusões definitivas, se limita a rabiscar rumos e possibilidades numa pequena síntese que vamos chamar com o nome sugestivo de…”
5. Entre o prego e o martelo
Notas
(1) Dados publicados em HORNSTEIN, Luis. As depressões: afetos e humores do viver, Ed. Via Lettera/CEP, São Paulo, 2008, pág. 9.
(2) A citação de Einstein encontra-se em SOLOMON, Andrew. O demônio do meio-dia: uma anatomia da depressão, Ed. Objetiva, Rio de Janeiro, 2002, pág. 125.
(3) Idem, pág. 48.
(4) Idem, pág. 105.
(5) Idem, pág. 298.
(6) Idem, pág. 230.
(7) Não. Não se trata de uma citação ao pé da letra, mas sim de um pedido de desculpas por este ‘linguajar’ impróprio às corujas das melhores famílias. O problema é que Nádia não encontrou no Aurélio uma expressão equivalente.
(8) SOLOMON, Andrew. O demônio do meio-dia: uma anatomia da depressão, Ed. Objetiva, Rio de Janeiro, 2002, pág. 312.
(9) De acordo com depoimentos de dirigentes sindicais dos mineiros, em Nova Lima, região da Grande Belo Horizonte, toda vez que havia um acidente com morte nas minas da Morro Velho, a assistente social da empresa visitava a família da vítima oferecendo café e bolachas para o velório, além do caixão e uma coroa de flores. Transtornados pela perda do ente querido e confiando na boa fé da representante da empresa, os familiares acabavam assinando papéis em branco que deveriam supostamente servir para acelerar a liberação das verbas rescisórias e a eventual pensão da viúva. Tempos depois, ao receber bem menos do esperado, a esposa e os filhos da vítima acabavam descobrindo que suas assinaturas haviam sido usadas para atestar a existência de desequilíbrios mentais do falecido, apontados pela empresa como causa única do acidente.
(10) A citação e os dados foram extraídos de uma matéria produzida pela agência de notícia AFP sob o título “Reformas econômicas: saúde mental dos chineses expõe o elevado custo do progresso”, publicada pelo jornal Gazeta Mercantil em 17/12/2008.
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