Marxismo e nacionalismo (IV): Comunismo e terceiro-mundismo
Os fascismos sobreviveram no interior do terceiro-mundismo, onde se confundiram com as correntes comunistas cujo nacionalismo as levava a apoiar sem restrições aquele movimento. Por João Bernardo
Mostrei no primeiro artigo desta série que Engels e Marx, em muitas das suas análises políticas, transformaram a luta de classes numa luta entre blocos de nações e quiseram orientar neste sentido a Associação Internacional dos Trabalhadores. No segundo e terceiro artigos mostrei que em 1918 os dirigentes bolchevistas imprimiram um rumo nacional a um processo revolucionário de âmbito supranacional e que de então em diante a Internacional Comunista aplicou sistematicamente esta linha, com consequências especialmente trágicas na Alemanha.
As implicações da estratégia nacionalista do comunismo ficam mais claras se soubermos que a mobilização do movimento operário para incutir dinamismo e vitalidade social ao nacionalismo foi a operação geradora do fascismo. Em Itália, entre 1908 e 1910, o teórico e chefe político nacionalista Enrico Corradini propôs-se usar o radicalismo dos sindicalistas revolucionários, discípulos de Georges Sorel, para imprimir novo vigor a um nacionalismo que os conservadores haviam deixado estiolar. Tratava-se, por um lado, de desviar a classe trabalhadora da luta contra a burguesia italiana, indicando-lhe como principais inimigos os países mais ricos, que impediam o capitalismo italiano de atingir uma posição internacional de primeiro plano. Por outro lado, tratava-se de converter a vanguarda operária nascida nas lutas sociais numa nova elite e de alimentar com ela as depauperadas classes dominantes. Consoante o modelo exposto por Pareto, os sindicalistas constituíam uma elite em formação, capaz de derrubar o velho escol decadente e de revitalizar a nação. O génio de Corradini consistiu em, a partir da direita, ter entendido a necessidade de renová-la politicamente, usando o proletariado. Foi exactamente isto o fascismo. Mussolini haveria de trazer para o fascismo as massas de militantes, mas foi Corradini a provê-lo da formulação teórica básica e da principal orientação estratégica, até que em Março de 1923 a Associação Nacionalista Italiana, dirigida por Corradini, se integrou no Partido Nacional Fascista.
Enquanto isto se passava em Itália, do outro lado do mundo, no Japão, o socialista Kita Ikki lançava igualmente as bases do fascismo. Ao contrário do que sucedeu com os restantes socialistas, Kita apoiou a guerra de 1904 e 1905 contra a Rússia, e a partir de então evoluiu para um patriotismo cada vez mais extremo. Tanto nas obras que publicou como na sua actuação prática, Kita conjugou um nacionalismo agressivo com um programa de reformas prevendo uma ampla estatização da economia e numerosos direitos sociais para os trabalhadores, incluindo a regulamentação das relações de trabalho. Deste modo obter-se-ia o apoio do proletariado urbano e dos camponeses pobres para uma política que assegurasse a supremacia nipónica na Ásia.
A mobilização do movimento operário ao serviço do nacionalismo, transportando a luta entre classes para a luta entre nações, levou Corradini a formular o conceito de «nação proletária». «Há nações que estão numa situação de inferioridade relativamente a outras, tal como há classes que estão numa situação de inferioridade relativamente a outras classes», escreveu ele em Outubro de 1910. «A Itália é uma nação proletária; basta a emigração para o demonstrar. A Itália é a proletária do mundo». A palavra «proletariado» define uma classe social, pressupondo a cisão entre produtores e apropriadores de mais-valia no interior de cada país. Pelo contrário, designar como proletária uma nação equivalia a pensá-la enquanto colectividade predominantemente homogénea, negando a sua clivagem em grupos antagónicos. A passagem da oposição de classe para a solidariedade entre classes foi o resultado imediato daquela operação terminológica. Estas conjugações verbais assumiram novas virtualidades no caso de Kita Ikki, e na sequência dele em todo o fascismo japonês. Tanto a facção defensora de um programa radical de reformas internas como a facção internamente mais conservadora estavam de acordo com uma política externa que juntasse duas características: por um lado, assegurasse a inteira supremacia do Japão do leste asiático; por outro lado, promovesse as independências nacionais no interior da esfera de influência nipónica, de forma a expulsar definitivamente da região o imperialismo europeu e o norte-americano. Se Corradini concebera o seu país como uma «nação proletária» que pretendia deixar de sê-lo, Kita e, na sua sequência, o restante fascismo nipónico conceberam um paradoxal imperialismo anti-imperialista, ou seja, um imperialismo japonês que afastasse os imperialismos ocidentais.
Os ideólogos e os propagandistas do fascismo apresentaram a segunda guerra mundial como um combate das «nações proletárias» contra as «nações plutocráticas», que no caso do Japão era igualmente uma afirmação do lema que pretendia «a Ásia para os asiáticos». A Esfera da Co-Prosperidade da Grande Ásia Oriental, ao mesmo tempo realidade e programa, devia incluir, além do Japão, da Manchúria e da China, as Índias Orientais holandesas, a Indochina francesa, as Filipinas sob administração norte-americana e a colónia portuguesa de Timor; e a sua expansão, através da Birmânia, visava a Índia britânica e mais longe ainda. Neste processo, a imposição da hegemonia política e económica japonesa no interior da Esfera da Co-Prosperidade era indissociável da promoção das independências nacionais. «Com a proclamação oficial das suas aspirações na Ásia, às quais se associaram os chefes fantoches dos povos subjugados, o Japão contava aumentar o apoio de que dispunha para travar batalhas que se anunciavam decisivas na guerra do Pacífico. Mas o aparelho organizativo empregue e mesmo alguns dos termos usados indicam que os japoneses procuravam sobretudo atingir um objectivo mais subtil», escrevia em 1945, antes do final do conflito, Robert S. Ward, antigo funcionário do consulado norte-americano em Hong Kong. «Esse objectivo é o prolongamento da luta política na Ásia para além do termo da guerra actual». E um francês que estivera internado num campo de prisioneiros na Indonésia observou que «os japoneses, se bem que, no sentido genérico da palavra, tivessem sido derrotados, “ganharam a guerra” neste canto da Ásia». É inviável no espaço limitado de um artigo traçar, ainda que muito resumidamente, a história das independências nacionais naquela área do globo. Basta aqui dizer que, enquanto administravam directamente como colónias a Manchúria e a Coreia, os invasores japoneses deram a independência ou asseguraram uma transição gradual para a independência às Filipinas, às Índias Orientais holandesas, que constituem a actual Indonésia, à Birmânia, ao Vietname e procuraram apressar a independência da Índia, assegurando apoio militar a Subhas Chandra Bose e aos seus seguidores, que formaram o Exército Nacional Indiano e ao lado das tropas japonesas combateram nas fronteiras da Índia. Em todos estes países e regiões o fascismo militar nipónico colocou no poder, quando possível, os seus correligionários locais. Mas quando isto se verificava impossível, preferiu recorrer à esquerda e até aos comunistas, como sucedeu no Vietname, se fosse esta a única maneira de garantir o afastamento definitivo dos imperialismos ocidentais.
Entretanto, num âmbito geográfico menos vasto e também com menos vigor do que os seus aliados japoneses, os nazis promoveram a emancipação dos povos árabes contra o colonialismo britânico. Durante a segunda guerra mundial, os políticos árabes, mesmo quando não se entusiasmavam pelo fascismo na ordem interna, inclinavam-se geralmente mais para o lado do Eixo do que para o dos Aliados. O lugar de destaque coube ao mufti de Jerusalém, Hadj Amin el-Husseini, que após os tumultos de 1929 havia emergido como o campeão da causa árabe na Palestina. Era ele quem mobilizava os apoios de que Hitler e Mussolini dispunham na região e quem tentava organizá-los numa acção comum, mas foi sobretudo graças à presença de tropas no Norte de África que os alemães e os italianos intervieram no processo de autodeterminação. Nas campanhas de 1941 e 1942, quando Rommel se aproximou do Egipto e os britânicos pareciam irremediavelmente derrotados, tanto o rei Faruq como as forças da oposição que depois se congregariam no movimento dos Oficiais Livres eram unânimes na disposição de vitoriar os nazis como libertadores. Também no Iraque os dirigentes do Terceiro Reich viram com muito bons olhos o golpe de Estado de 1 de Abril de 1941, pelo qual o primeiro-ministro Rashid Ali el-Ghalani e os coronéis seus aliados depuseram o regente e instauraram um regime antibritânico. As tropas do Eixo estavam demasiado longe e o apoio militar alemão foi escasso e tardio, o que permitiu aos britânicos reocupar o Iraque durante o mês de Maio, mas na memória da população manteve-se viva a relação entre o movimento de independência e o nacional-socialismo. Igualmente na Tunísia a presença dos exércitos alemães e italianos contribuiu para o processo de independência. Apesar das contradições entre as várias forças fascistas e independentistas presentes naquela colónia francesa, criando-se uma situação demasiado complicada para eu poder descrevê-la agora, o certo é que quando o avanço aliado forçou o Eixo a abandonar a Tunísia, em Maio de 1943, já a organização nacionalista se consolidara e pudera revolver de cima a baixo a política local. A independência da Tunísia, que o governo francês se viu na necessidade de conceder em 1956, começara uma dúzia de anos antes, na esfera do fascismo. Do mesmo modo, depois de os Aliados terem invadido a Argélia em Novembro de 1942 as autoridades nacionais-socialistas esforçaram-se por mobilizar os imigrantes argelinos em França e procuraram organizar redes clandestinas naquela colónia, capazes de iniciar a luta armada contra os novos ocupantes. Nestes termos o projecto revelou-se utópico, e aliás as aspirações dos povos do Maghreb à independência tinham raízes antigas, não sendo esta a sua vertente principal, mas o apoio prestado pelos nazis ao independentismo argelino deixou alguns traços duradouros.
A segunda guerra mundial terminou com a derrota militar dos fascismos, mas eles sobreviveram no interior do terceiro-mundismo, onde se confundiram de maneira perversa com as correntes comunistas cujo nacionalismo as levava também a apoiar sem restrições aquele movimento. Ba Maw, que chefiara o governo da Birmânia sob a colonização inglesa e conduziu depois o seu país à independência sob a tutela japonesa, observou nas suas memórias que sem a experiência prévia da Esfera da Co-Prosperidade teria sido impossível reunir em 1955 a Conferência de Bandung, que assinalou a maturidade política do terceiro-mundismo com a fundação do bloco dos países não-alinhados, ou seja, os países que durante a Guerra Fria mantiveram uma posição oscilante entre os norte-americanos e os soviéticos. O presidente indonésio, Sukarno, foi o principal promotor desta conferência, e nela participou igualmente o primeiro-ministro chinês, Chu En-lai. A colaboração entre estas duas figuras e entre os regimes que eles representavam sintetizou tudo o que escrevi nestes quatro artigos. Chu En-lai foi o mais hábil representante do centro nos dissídios internos do comunismo chinês, o perene fiel da balança. Quanto a Sukarno, convém saber que a sua fidelidade ao fascismo nipónico, que o colocara no poder e o ajudara a criar um aparelho governativo, era tão grande que nos últimos dias da guerra no Pacífico, já depois de as bombas atómicas norte-americanas terem liquidado quaisquer veleidades de resistência japonesa, ele se obstinava ainda em adiar a proclamação da independência, aguardando a presença de uma alta autoridade nipónica que lhe transmitisse formalmente o poder. Na Conferência de Bandung encontraram-se os comunistas que haviam convertido a luta de classe numa luta nacional e os nacionalistas que haviam sido promovidos pelo fascismo.
Maurice Bardèche, um dos mais argutos fascistas radicais franceses, e que foi aliás uma personalidade significativa do fascismo europeu no pós-guerra, insistiu no carácter fascista do regime de Nasser, instaurado no Egipto na sequência do golpe militar de Julho de 1952, e o teórico neofascista italiano Adriano Romualdi, apesar de circunscrever o fascismo à Europa e de criticar Bardèche por ter classificado como fascismo vários terceiro-mundismos, afirmou: «O único fenómeno extra-europeu que, com um pouco de boa vontade, se poderia definir como “fascista” é o Egipto de Nasser, onde efectivamente se procurou enxertar uma mística da antiga cultura árabe sobre uma disciplina política revolucionária». Com uma corajosa coerência, durante a guerra pela independência da Argélia, Bardèche censurou aos neofascistas do seu país a reacção «sentimental» que os levava a lutar pela presença da metrópole no Norte de África, sem verem que estavam assim a defender também «os interesses da democracia plutocrática». «É preciso escolher as suas guerras», preveniu Bardèche, e em vez disso os neofascistas aceitavam todas. «Eles não examinaram se, na realidade, os nacionalistas argelinos não fazem parte dessas forças que querem estabelecer regimes novos e autoritários, independentes de Washington e de Moscovo». Implícita nos avisos de Bardèche estava a noção de que na guerra da Argélia o fascismo estava talvez do lado dos independentistas.
Não se tratava aqui somente − nem sobretudo − de uma questão de pessoas. É certo que Nasser sofrera a influência do Partido Nacional-Socialista Árabe, desarticulado pelos britânicos no início da segunda guerra mundial, e Anwar al-Sadat, que em 1970 sucederia a Nasser na presidência, mantivera relações com os serviços de espionagem nazis durante a primeira metade de 1942, até ser preso pela polícia britânica. Também entre os independentistas argelinos é instrutivo o percurso de Mohammad Said, que durante a segunda guerra mundial se oferecera para combater na frente leste contra os soviéticos como sargento de uma tropa fascista, a Legião dos Voluntários Franceses, e se pusera à disposição dos serviços secretos nazis para realizar operações de sabotagem na Argélia ocupada pelos Aliados. Depois da guerra, vêmo-lo ministro de Estado no governo provisório argelino no exílio e, conquistada a independência, titular de vários ministérios e membro do Conselho do Comando Revolucionário. Estes percursos individuais são significativos porque exprimem confluências políticas vastas e profundas. Trata-se antes de tudo de uma questão de regimes que em vez de assentarem apenas nas camadas sociais conservadoras não hesitam em mobilizar os trabalhadores, servindo-se deles para objectivos estritamente nacionalistas. Quando se conhece a influência exercida pelo nasserismo sobre os regimes árabes laicos da segunda metade do século XX, nomeadamente o vigente na Síria e o que vigorou no Iraque até à invasão norte-americana, percebemos as implicações da análise de Bardèche, curiosamente esquecidas ou ignoradas pela maior parte da esquerda.
O sucedido na Indonésia é o melhor − ou pior − exemplo dos resultados do nacionalismo comunista. O Partido Comunista indonésio era o terceiro maior, a seguir ao soviético e ao chinês, e em vez de prosseguir uma linha independente apostara sempre tudo no apoio a Sukarno, até que em 1965 o exército, dirigido por Suharto, afastou Sukarno do poder e lançou-se numa campanha anticomunista que resultou na chacina de entre meio milhão e um milhão de pessoas e no encarceramento de muitíssimas outras em campos de concentração. Esta catástrofe teve repercussões de vulto nas disputas internas do Partido Comunista chinês, ao qual os comunistas indonésios estavam estreitamente ligados, servindo à ala radical como mais um argumento contra a ala moderada. Foi para prosseguir esta campanha que Mao Tsé-tung apelou à iniciativa das bases contra a maioria da direcção do Partido, lançando a Revolução Cultural. Assim, houve uma relação directa entre o fracasso externo da política nacionalista do comunismo, confirmado tragicamente na Indonésia, e um dos mais importantes acontecimentos internos do comunismo chinês.
A Revolução Cultural ultrapassou muito depressa os limites em que Mao a pretendera inserir e, não se contentando com a campanha política contra a ala moderada do partido, iniciou uma campanha social contra os herdeiros do mandarinato, que continuavam a deter os postos de direcção nas empresas, nas universidades e no Estado. A mesma subordinação dos trabalhadores às classes dominantes autóctones, que conduzira à catástrofe na Indonésia, passara a ser criticada na China. A Revolução Cultural pretendeu prosseguir a luta de classes num país em que o Partido Comunista governava e em que os principais meios de produção eram propriedade do Estado, e para isso tentou disputar aos gestores o monopólio da cultura e do conhecimento técnico. Nesta fase inicial a ala mais extrema da Revolução Cultural propunha-se desmantelar o aparelho governativo e reorganizar a China segundo o modelo da Comuna de Paris, transformando-a numa federação de comunas. Mao Tsé-tung, porém, não estava disposto a permitir que a base política da burocracia comunista fosse posta em causa, e apelou para a intervenção do exército, tendo ocorrido por vezes verdadeiras batalhas campais entre os militares e a ala radical da Revolução Cultural. O triunfo do exército levou a um extensivo enquadramento militar da juventude, naqueles desfiles de milhares e milhares de jovens alinhados a régua e esquadro e brandindo o livrinho vermelho, que no imaginário actual resumem erradamente um processo muito diversificado. Restabelecida a ordem, a facção de Mao Tsé-tung viu-se sem base de apoio, porque a extrema-esquerda havia sido derrotada e, de qualquer modo, perdera a confiança em Mao, e porque os moderados nunca lhe perdoaram o apelo que ele fizera à intervenção das massas nas questões internas do partido. A situação actual da China resulta dos ziguezagues de um processo que o colapso do comunismo nacionalista na Indonésia contribuiu para desencadear, restabelecendo-se no final o predomínio da geopolítica, com um sistema misto de capitalismo de Estado e de empresas privadas, organizado num quadro estritamente nacionalista e visando a expansão internacional através, não das lutas sociais, mas dos mecanismos do mercado.
O nacionalismo dos partidos comunistas oficiais liquidou o comunismo enquanto expressão da luta de classe e, ao mesmo tempo, atenuou a linha de demarcação com os herdeiros do fascismo. Desde então os partidos comunistas ou desapareceram ou subsistiram como aliados menores de regimes nacionalistas. Especialmente sugestivo é o caso da África, onde a internacionalização do capital desagregara os impérios coloniais, pois os capitais oriundos de uma metrópole não haviam conseguido impedir a penetração dos capitais exteriores a cada espaço colonial. Ora, mesmo neste contexto, com uma dinâmica ditada pela internacionalização da economia e com Estados sem qualquer base cultural própria, datando da Conferência de Berlim de 1884-1885, os comunistas optaram por se confundir com os restantes nacionalistas e deram o aval às elites autóctones. Paradoxalmente, as independências africanas representaram um avanço da internacionalização do capital, o que ajuda a compreender o seu completo fracasso, que arrastou o fracasso dos comunistas. E na África do Sul, o único país africano onde o Partido Comunista tem peso, a sua colagem ao ANC retirou-lhe qualquer expressão própria.
A América Latina ilustra outro caso em que o comunismo se diluiu no nacionalismo a ponto de perder a identidade ideológica ou mesmo organizativa, e também aqui o proteccionismo económico de pendor marxista se articulou com uma certa tradição fascista. Após a segunda guerra mundial, o resultado mais significativo desta convergência foi a Comissão Económica para a América Latina, CEPAL, animada por Raúl Prebisch e Celso Furtado, entre outros. É-me impossível no espaço de um artigo ampliar esta perspectiva de análise, e registo-a aqui sobretudo para estimular os leitores que queiram prossegui-la por conta própria a começar pelo estudo da ideologia desenvolvimentista da CEPAL. Tornar-se-á assim mais fácil compreender que nos dias de hoje, em toda a América central e do sul, os temas do crescimento económico, do nacionalismo e do marxismo continuem a soprepor-se. No Brasil as raízes do problema são ainda mais fundas, porque o tenentismo, na sua vocação modernizadora da sociedade e da economia brasileiras, constituiu o quadro em que se geraram tanto o fascismo de Getúlio Vargas como o comunismo de Prestes. Desenvolvimentismo, fascismo e comunismo nasceram como gémeos no Brasil, e até hoje a extrema-esquerda brasileira, mesmo a que se pretende internacionalista, não conseguiu sacudir a pesada herança.
No terceiro mundo os partidos comunistas puderam ser úteis durante a luta pela independência e na fase da construção do Estado nacional, mas quando se revelaram dispensáveis as burguesias e tecnocracias nacionais não hesitaram em os desmantelar e em matar ou prender os seus membros. E no entanto, os partidos comunistas insistem em adoptar uma orientação nacionalista. Historicamente, quando um erro se repete isto significa que não é um erro e que corresponde a interesses sociais. Aqueles muitos que continuam hoje a confundir a luta contra a opressão externa de que é vítima um dado povo com o apoio aos dirigentes políticos reaccionários que procuram controlar internamente esse povo transportam, uma vez mais, a luta de classe para o plano nacional. Fazem-no igualmente quando apoiam qualquer regime que se oponha ao governo dos Estados Unidos, mesmo que esses regimes pratiquem a repressão contra os trabalhadores e tenham chacinado os comunistas locais. É certo que há os desatentos, os iludidos e os mal-informados. Mas é necessária muita distracção para não juntar a com b e para esquecer tão sistematicamente as lições da história. Os defensores do comunismo nacionalista pretendem, muito simplesmente, desviar os trabalhadores da luta de classe e edificar um Estado que congregue a totalidade das classes dominantes do país − e onde haja sobretudo lugar para eles.
Referências
A passagem do artigo de Corradini de Outubro de 1910 encontra-se em Zeev Sternhell, Mario Sznajder e Maia Asheri, The Birth of Fascist Ideology. From Cultural Rebellion to Political Revolution, Princeton, Nova Jersey: Princeton University Press, 1994, pág. 10. O trecho de Robert S. Ward está transcrito em Joyce C. Lebra (org.) Japan’s Greater East Asia Co-Prosperity Sphere in World War II. Selected Readings and Documents, Kuala Lumpur: Oxford University Press, 1975, pág. 154. As observações de um francês vêm mencionadas em R. Holland, «Anti-Imperialism», em I. C. B. Dear e M. R. D. Foot (orgs.) The Oxford Companion to the Second World War, Oxford e Nova Iorque: Oxford University Press, 1995, pág. 39. A observação de Ba Maw acerca da Conferência de Bandung encontra-se nas suas memórias, Breakthrough in Burma. Memoirs of a Revolution, 1939-1946, New Haven e Londres: Yale University Press, 1968, pág. 339. A passagem de Romualdi acerca do nasserismo vem citada em Francesco Germinario, Estranei alla Democrazia. Negazionismo e antisemitismo nella Destra Radicale Italiana, Pisa: Biblioteca Franco Serantini, 2001, pág. 45. As observações de Bardèche a respeito da guerra da Argélia encontram-se no seu livro Qu’Est-ce que le Fascisme?, Paris: Les Sept Couleurs, 1961, págs. 116 e 119.
fonte: http://passapalavra.info/?p=6275
(c) Copyleft: É livre a reprodução para fins não comerciais, desde que o autor e a fonte sejam citados e esta nota seja incluída.
Nenhum comentário:
Postar um comentário