A atualidade de Errico Malatesta
Maurício Tragtenberg*
Há pouco mais de cinqüenta anos morria Errico Malatesta, um dos principais militantes e pensadores anarquistas, um dos raros exemplos contemporâneos de interação entre teoria e prática |
Errico Malatesta nasceu em 1853 e morreu em 1932, tendo assistido, assim, à criação e extinção da Primeira Internacional, à formação da Segunda Internacional – que teve como carro chefe o Partido Social Democrata Alemão –, à emergência da Revolução Russa e sua burocratização e, finalmente, a ascensão do fascismo na Itália.
Essa trajetória de vida de um filho a burguesia, que largou os estudos de Medicina no segundo ano, explica porque ao longo de sua obra está sempre presente uma grande temática, a reprodução do movimento real das classe na Itália entre 1853 e 1932: o socialismo libertário.
Da Primeira Internacional, apreende a noção e auto-organização do trabalhador e de sua ação direta, que serão os elementos fundantes de sua atuação social e política. Em relação à Segunda Internacional, assume uma atitude crítica, denunciando a confusão que se estabelecera entre participação (lema da social-democracia) e incorporação ao sistema capitalista. Verifica que os “participacionistas” se convertiam nos cães de guarda do sistema exploratório e opressivo – não era por acaso, pois, que, na fase monopolista do capitalismo, em suas áreas desenvolvidas, a repressão contra os trabalhadores passava a ser feita pela social-democracia, cujo exemplo maior foi a repressão à revolução alemã de 18, com o assassinato de Liebknecht e Rosa Luxembourg.
Em relação à Terceira Internacional, Malatesta mantém a crítica clássica à burocracia emergente após 18 na URSS – já delineada por Luigi Fabbri em “Ditadura e revolução” –, quando a revolução dos operários e camponeses é capturada pelos burocratas, e o socialismo começa a ser sinônimo de planismo estatal-burocrático, onde os gestores coletivamente detêm os meios de produção em nome dos produtores.
A Comuna de Paris
Mas, sem dúvida, é a proclamação da Comuna de Paris, em março de 1871, que influenciará Malatesta em suas propostas mais amplas: auto-organização dos trabalhadores, autogestão econômico-social e política, como sinônimo de um processo de socialização. Isso porque a Comuna de Paris – nunca suficientemente estudada – é a primeira grande revolução moderna, onde o proletariado tentou a extinção do poder político. Ela representou a prática da organização social e econômica pelas massas, eleição pela população dos intermediários políticos (representantes) e econômicos (administradores), a ausência de privilégios e revogabilidade universal dos eleitos.
Isso significou a constituição de um novo modo de produção constatado por Bakunin e Marx, – pois Comuna de Paris representava um poder político em extinção. Suas instituições criadas pelos produtores significava um ponto de partida para a estruturação de um novo modo de produção com a dominação do econômico pelo social (J. Bernardo), muito longe de um planejamento da produção dependente da distribuição via Estado, o que seria apenas uma reprodução do poder político. A Comuna de Paris tentava fundir o nível político no econômico, através da extinção da esfera política. Isso, numa proposta de uma sociedade auto-institucionalizada. É dessa prática social que Malatesta estruturará seus conceitos sobre a ação direta dos produtores, auto-organização dos assalariados e a rejeição do planismo burocrático como sinônimo de “socialismo”.
Após 1874, abate-se um período repressivo na história italiana, atingindo o movimento operário, e os “internacionais” – como eram chamados os adeptos da Primeira Internacional – operários na sua maioria, sofrem perseguições de todo tipo.
A repressão leva-o a emigrar, desenvolvendo sua atividade de militante operário em vários países europeus. É o período em que polemiza duramente com Andrea Costa, que aderira à social-democracia e ao socialismo parlamentar. Mostrava Malatesta que a melhor maneira de sujeitar um povo consiste em lhe dar a ilusão de que participa de decisões.
Na Argentina participa da formação da FORA (Federação Operária Regional Argentina), que influenciará os trabalhadores de origem européia até início do século 20. Na Europa, de volta da Argentina, participa do movimento operário na Espanha, Bélgica e França, insistindo na auto-organização do trabalhador a partir do local de trabalho, como elemento fundante de sua ação político-social. Tal postura se dá em relação ao individualismo fundado por Stirner, que ainda encontrava adeptos entre os militantes libertários da época.
Os operários integrados
É através de sua polêmica com a social-democracia italiana e os adeptos do socialismo parlamentar, que Malatesta define seu perfil político e sua crítica à instituição do partido político.
Após a repressão à Comuna de Paris por Thiers, utilizando as armas que Bismarck lhe cedera para isso, desenvolvem-se como verdadeira praga partidos “bem comportados” – são partidos “operários” que surgem dos partidos “plebeus”, que deviam sua organização às velhas associações populares, fraternais e religiosas.
Após as revoluções de 1848 esses velhos partidos plebeus cedem espaço a outras instituições. Entre 1848 e 1871 os sindicatos e os conselhos constituíam elementos organizadores do operariado nascente, donde a preocupação da Primeira Internacional em articular os trabalhadores a partir de suas lutas fabris, nos sindicatos de militantes que surgiam então.
Porém, com a formação da Segunda Internacional e a difusão dos partidos socialistas parlamentares pelo mundo, aparece uma tecnocracia na constituição desses partidos “operários” – que mantêm esse nome pelo fato de integrarem os trabalhadores em suas estruturas burocráticas. Não é por acaso que o estudo-modelo sobre partido burocrático tem como sujeito o Partido Social-Democrata Alemão, a obra de Michels intitulada “Os Partidos Políticos”.
Há uma razão para o Partido Social-Democrata Alemão ter sido o modelo de partido burocrático, altamente centralizado – é que a Alemanha era o país onde a tecnocracia era mais poderosa, se constituindo em força reprodutiva do sistema capitalista. Esses partidos social-democráticos mantêm a cisão entre o econômico e o político, não integrando-os como o fizera a Comuna de Paris, razão pela qual aparecerão sob o bolchevismo na forma de partido único. Eis que Lenin, embora classifique Kaustski de “renegado”, herdou dele a concepção de partido-vanguarda que faz a felicidade da burocracia partidária na URSS e no leste europeu.
Malatesta se diferenciava de outros teóricos do socialismo libertário – como Goodwin, Proudhon, Bakunin ou Kropotkin –, que procuravam fundamentar suas premissas socialistas na razão (Goodwin), nas leis do social (Proudhon) ou no determinismo evolucionista (Kropotkin). Ele buscou explicar a validade da proposta socialista libertária a partir do movimento real da sociedade e da ação da classe trabalhadora. É desta perspectiva que os bens econômicos aparecem como fruto da “ação coletiva” dos produtores, onde a solidariedade no processo produtivo é a base da solidariedade no social e político. Assim, igualdade, liberdade e solidariedade se constituem nos fundamentos ético-políticos da proposta de Malatesta. Nessa proposta o futuro é entendido como ultrapassagem do presente, e a liberdade é tomada como um processo de ruptura com as formas de servidão econômico-social e política.
O socialismo libertário
Para Malatesta a revolução não se constituía num golpe de Estado, onde um grupo toma o poder “em nome” dos trabalhadores. Para ele, a revolução se constituía num ato de libertação, fruto de uma “vontade” sintonizada com a compreensão da conjuntura histórica específica. A proposta socialista libertária, para Malatesta, era a tradução dos valores e motivações que permanecem no plano histórico, entendido como um processo em mudança contínua. A seu ver a única lei geral, era a lei do movimento, que demonstrava a importância e também a precariedade dos sistemas fechados – quanto mais “acabados”, mais precários.
Por isso Malatesta não se permitia perfilar entre os criadores de “sistemas”, é mais uma atitude ante o real histórico, onde a exigência da auto-organização dos interessados (povo), de igualdade e combate às hierarquias sociais opressivas colocam a exigência de uma igualdade que tenha a liberdade como fundamento – pressupondo que a liberdade sem igualdade é uma mistificação, a igualdade sem liberdade é uma nova escravidão.
Para ele, a quem relatividade e contingência marcam as concepções do social, conceitos como liberdade, igualdade e fraternidade não se constituíam em noções dogmáticas, mas sim em traduções do movimento real da sociedade, que apontava à hegemonia dos trabalhadores.
O ideal emancipatório
Porém o ideal emancipatório da humanidade trabalhadora não se esgotava ao se converter em patrimônio teórico de uma minoria ilustrada. Para Malatesta, a vitória da proposta libertária se daria no momento em que seus princípios básicos se convertessem em categorias do senso comum da massa trabalhadora. Não se tratava de plasmar ideologicamente a população – o que seria a demonstração de um estranho autoritarismo – mas, através da propaganda e da ação, conquistá-la para os princípios libertários.
É essa preocupação de Malatesta em traduzir os grandes princípios libertários para a linguagem do senso comum da população que explica a forma coloquial da maioria dos seus escritos, especialmente “Entre Camponeses”, “No Café” e “Nas Eleições”.
Malatesta participara da insurreição de Bolonha de 1874, do levante camponês de 1877 em Benevento, emigrando para Londres, onde durante quarenta anos sedia sua ação político-militante. Na Argentina, onde permanecerá quatro anos, propaga as idéias libertárias entre os trabalhadores de origem italiana. Volta à Itália e é preso em 1898. Participa em 1919 da “Semana Rossa”, onde o movimento sindical dirige um processo de greve geral na Itália – sem contar porém com o apoio da CGT, o movimento morre. Preso por Mussolini em 1921, estava com 70 anos e continuava a sobreviver exercendo a profissão de mecânico e eletricista, espantando a burguesia italiana, que tinha dificuldades em enxergar naquele operário idoso e gentil o “terrível” Malatesta. Morre em 1932 em plena vigência do fascismo.
De sua fidelidade aos seus princípios fala sua via, a ele aplica-se o julgamento de Robespierre pelos historiadores: nunca se atemorizou, nunca transigiu, não se corrompeu. É um exemplo de integração de teoria e prática, raro nos dias que correm.
* Maurício Tragtenberg é professor na Escola de Administração de Empresas a Fundação Getúlio Vargas e na Universidade Estadual de Campinas, autor de “Burocracia e Ideologia” e “Administração, Poder e Ideologia”.
Fonte: FOLHETIM, Folha de S. Paulo, 16.01.1983, PP. 06-07
Nenhum comentário:
Postar um comentário