quarta-feira, 24 de junho de 2009

A solução de Brecht

A solução de Brecht

Depois de reflectir sobre os acontecimentos de Junho de 1953, quando os operários da Alemanha de Leste se insurgiram contra o agravamento dos ritmos de trabalho e contra a burocracia do Partido Comunista, o poeta e genial dramaturgo comunista Bertolt Brecht escreveu A Solução:

«Após a insurreição de 17 de Junho
O secretário do Sindicato dos Escritores
Mandou distribuir panfletos na Avenida Stalin
Declarando que o povo
Se tornara indigno da confiança do governo
E só à custa de trabalho intenso
A poderia recuperar. Não seria
Mais simples então que o governo
Dissolvesse o povo e
Elegesse outro?»


quarta-feira, 17 de junho de 2009

terça-feira, 16 de junho de 2009

Marxismo e nacionalismo (IV): Comunismo e terceiro-mundismo

Marxismo e nacionalismo (IV): Comunismo e terceiro-mundismo

16 de Junho de 2009

Os fascismos sobreviveram no interior do terceiro-mundismo, onde se confundiram com as correntes comunistas cujo nacionalismo as levava a apoiar sem restrições aquele movimento. Por João Bernardo

Mostrei no primeiro artigo desta série que Engels e Marx, em muitas das suas análises políticas, transformaram a luta de classes numa luta entre blocos de nações e quiseram orientar neste sentido a Associação Internacional dos Trabalhadores. No segundo e terceiro artigos mostrei que em 1918 os dirigentes bolchevistas imprimiram um rumo nacional a um processo revolucionário de âmbito supranacional e que de então em diante a Internacional Comunista aplicou sistematicamente esta linha, com consequências especialmente trágicas na Alemanha.

artigo-iv-15

Enrico Corradini

As implicações da estratégia nacionalista do comunismo ficam mais claras se soubermos que a mobilização do movimento operário para incutir dinamismo e vitalidade social ao nacionalismo foi a operação geradora do fascismo. Em Itália, entre 1908 e 1910, o teórico e chefe político nacionalista Enrico Corradini propôs-se usar o radicalismo dos sindicalistas revolucionários, discípulos de Georges Sorel, para imprimir novo vigor a um nacionalismo que os conservadores haviam deixado estiolar. Tratava-se, por um lado, de desviar a classe trabalhadora da luta contra a burguesia italiana, indicando-lhe como principais inimigos os países mais ricos, que impediam o capitalismo italiano de atingir uma posição internacional de primeiro plano. Por outro lado, tratava-se de converter a vanguarda operária nascida nas lutas sociais numa nova elite e de alimentar com ela as depauperadas classes dominantes. Consoante o modelo exposto por Pareto, os sindicalistas constituíam uma elite em formação, capaz de derrubar o velho escol decadente e de revitalizar a nação. O génio de Corradini consistiu em, a partir da direita, ter entendido a necessidade de renová-la politicamente, usando o proletariado. Foi exactamente isto o fascismo. Mussolini haveria de trazer para o fascismo as massas de militantes, mas foi Corradini a provê-lo da formulação teórica básica e da principal orientação estratégica, até que em Março de 1923 a Associação Nacionalista Italiana, dirigida por Corradini, se integrou no Partido Nacional Fascista.

artigo-iv-1

Kita Ikki

Enquanto isto se passava em Itália, do outro lado do mundo, no Japão, o socialista Kita Ikki lançava igualmente as bases do fascismo. Ao contrário do que sucedeu com os restantes socialistas, Kita apoiou a guerra de 1904 e 1905 contra a Rússia, e a partir de então evoluiu para um patriotismo cada vez mais extremo. Tanto nas obras que publicou como na sua actuação prática, Kita conjugou um nacionalismo agressivo com um programa de reformas prevendo uma ampla estatização da economia e numerosos direitos sociais para os trabalhadores, incluindo a regulamentação das relações de trabalho. Deste modo obter-se-ia o apoio do proletariado urbano e dos camponeses pobres para uma política que assegurasse a supremacia nipónica na Ásia.

A mobilização do movimento operário ao serviço do nacionalismo, transportando a luta entre classes para a luta entre nações, levou Corradini a formular o conceito de «nação proletária». «Há nações que estão numa situação de inferioridade relativamente a outras, tal como há classes que estão numa situação de inferioridade relativamente a outras classes», escreveu ele em Outubro de 1910. «A Itália é uma nação proletária; basta a emigração para o demonstrar. A Itália é a proletária do mundo». A palavra «proletariado» define uma classe social, pressupondo a cisão entre produtores e apropriadores de mais-valia no interior de cada país. Pelo contrário, designar como proletária uma nação equivalia a pensá-la enquanto colectividade predominantemente homogénea, negando a sua clivagem em grupos antagónicos. A passagem da oposição de classe para a solidariedade entre classes foi o resultado imediato daquela operação terminológica. Estas conjugações verbais assumiram novas virtualidades no caso de Kita Ikki, e na sequência dele em todo o fascismo japonês. Tanto a facção defensora de um programa radical de reformas internas como a facção internamente mais conservadora estavam de acordo com uma política externa que juntasse duas características: por um lado, assegurasse a inteira supremacia do Japão do leste asiático; por outro lado, promovesse as independências nacionais no interior da esfera de influência nipónica, de forma a expulsar definitivamente da região o imperialismo europeu e o norte-americano. Se Corradini concebera o seu país como uma «nação proletária» que pretendia deixar de sê-lo, Kita e, na sua sequência, o restante fascismo nipónico conceberam um paradoxal imperialismo anti-imperialista, ou seja, um imperialismo japonês que afastasse os imperialismos ocidentais.

Chefes de Estado e de governo da Esfera da Co-Prosperidade num encontro com o primeiro-ministro japonês

Chefes de Estado e de governo da Esfera da Co-Prosperidade num encontro com o primeiro-ministro japonês

Os ideólogos e os propagandistas do fascismo apresentaram a segunda guerra mundial como um combate das «nações proletárias» contra as «nações plutocráticas», que no caso do Japão era igualmente uma afirmação do lema que pretendia «a Ásia para os asiáticos». A Esfera da Co-Prosperidade da Grande Ásia Oriental, ao mesmo tempo realidade e programa, devia incluir, além do Japão, da Manchúria e da China, as Índias Orientais holandesas, a Indochina francesa, as Filipinas sob administração norte-americana e a colónia portuguesa de Timor; e a sua expansão, através da Birmânia, visava a Índia britânica e mais longe ainda. Neste processo, a imposição da hegemonia política e económica japonesa no interior da Esfera da Co-Prosperidade era indissociável da promoção das independências nacionais. «Com a proclamação oficial das suas aspirações na Ásia, às quais se associaram os chefes fantoches dos povos subjugados, o Japão contava aumentar o apoio de que dispunha para travar batalhas que se anunciavam decisivas na guerra do Pacífico. Mas o aparelho organizativo empregue e mesmo alguns dos termos usados indicam que os japoneses procuravam sobretudo atingir um objectivo mais subtil», escrevia em 1945, antes do final do conflito, Robert S. Ward, antigo funcionário do consulado norte-americano em Hong Kong. «Esse objectivo é o prolongamento da luta política na Ásia para além do termo da guerra actual». E um francês que estivera internado num campo de prisioneiros na Indonésia observou que «os japoneses, se bem que, no sentido genérico da palavra, tivessem sido derrotados, “ganharam a guerra” neste canto da Ásia». É inviável no espaço limitado de um artigo traçar, ainda que muito resumidamente, a história das independências nacionais naquela área do globo. Basta aqui dizer que, enquanto administravam directamente como colónias a Manchúria e a Coreia, os invasores japoneses deram a independência ou asseguraram uma transição gradual para a independência às Filipinas, às Índias Orientais holandesas, que constituem a actual Indonésia, à Birmânia, ao Vietname e procuraram apressar a independência da Índia, assegurando apoio militar a Subhas Chandra Bose e aos seus seguidores, que formaram o Exército Nacional Indiano e ao lado das tropas japonesas combateram nas fronteiras da Índia. Em todos estes países e regiões o fascismo militar nipónico colocou no poder, quando possível, os seus correligionários locais. Mas quando isto se verificava impossível, preferiu recorrer à esquerda e até aos comunistas, como sucedeu no Vietname, se fosse esta a única maneira de garantir o afastamento definitivo dos imperialismos ocidentais.

Parece que conheço este que está a conversar com o mufti de Jerusalém

Parece que conheço este que está a conversar com o mufti de Jerusalém

Entretanto, num âmbito geográfico menos vasto e também com menos vigor do que os seus aliados japoneses, os nazis promoveram a emancipação dos povos árabes contra o colonialismo britânico. Durante a segunda guerra mundial, os políticos árabes, mesmo quando não se entusiasmavam pelo fascismo na ordem interna, inclinavam-se geralmente mais para o lado do Eixo do que para o dos Aliados. O lugar de destaque coube ao mufti de Jerusalém, Hadj Amin el-Husseini, que após os tumultos de 1929 havia emergido como o campeão da causa árabe na Palestina. Era ele quem mobilizava os apoios de que Hitler e Mussolini dispunham na região e quem tentava organizá-los numa acção comum, mas foi sobretudo graças à presença de tropas no Norte de África que os alemães e os italianos intervieram no processo de autodeterminação. Nas campanhas de 1941 e 1942, quando Rommel se aproximou do Egipto e os britânicos pareciam irremediavelmente derrotados, tanto o rei Faruq como as forças da oposição que depois se congregariam no movimento dos Oficiais Livres eram unânimes na disposição de vitoriar os nazis como libertadores. Também no Iraque os dirigentes do Terceiro Reich viram com muito bons olhos o golpe de Estado de 1 de Abril de 1941, pelo qual o primeiro-ministro Rashid Ali el-Ghalani e os coronéis seus aliados depuseram o regente e instauraram um regime antibritânico. As tropas do Eixo estavam demasiado longe e o apoio militar alemão foi escasso e tardio, o que permitiu aos britânicos reocupar o Iraque durante o mês de Maio, mas na memória da população manteve-se viva a relação entre o movimento de independência e o nacional-socialismo. Igualmente na Tunísia a presença dos exércitos alemães e italianos contribuiu para o processo de independência. Apesar das contradições entre as várias forças fascistas e independentistas presentes naquela colónia francesa, criando-se uma situação demasiado complicada para eu poder descrevê-la agora, o certo é que quando o avanço aliado forçou o Eixo a abandonar a Tunísia, em Maio de 1943, já a organização nacionalista se consolidara e pudera revolver de cima a baixo a política local. A independência da Tunísia, que o governo francês se viu na necessidade de conceder em 1956, começara uma dúzia de anos antes, na esfera do fascismo. Do mesmo modo, depois de os Aliados terem invadido a Argélia em Novembro de 1942 as autoridades nacionais-socialistas esforçaram-se por mobilizar os imigrantes argelinos em França e procuraram organizar redes clandestinas naquela colónia, capazes de iniciar a luta armada contra os novos ocupantes. Nestes termos o projecto revelou-se utópico, e aliás as aspirações dos povos do Maghreb à independência tinham raízes antigas, não sendo esta a sua vertente principal, mas o apoio prestado pelos nazis ao independentismo argelino deixou alguns traços duradouros.

Alguns chefes de Estado e de governo presentes na Conferência de Bandung jantando na Embaixada chinesa

Alguns chefes de Estado e de governo presentes na Conferência de Bandung jantando na Embaixada chinesa

A segunda guerra mundial terminou com a derrota militar dos fascismos, mas eles sobreviveram no interior do terceiro-mundismo, onde se confundiram de maneira perversa com as correntes comunistas cujo nacionalismo as levava também a apoiar sem restrições aquele movimento. Ba Maw, que chefiara o governo da Birmânia sob a colonização inglesa e conduziu depois o seu país à independência sob a tutela japonesa, observou nas suas memórias que sem a experiência prévia da Esfera da Co-Prosperidade teria sido impossível reunir em 1955 a Conferência de Bandung, que assinalou a maturidade política do terceiro-mundismo com a fundação do bloco dos países não-alinhados, ou seja, os países que durante a Guerra Fria mantiveram uma posição oscilante entre os norte-americanos e os soviéticos. O presidente indonésio, Sukarno, foi o principal promotor desta conferência, e nela participou igualmente o primeiro-ministro chinês, Chu En-lai. A colaboração entre estas duas figuras e entre os regimes que eles representavam sintetizou tudo o que escrevi nestes quatro artigos. Chu En-lai foi o mais hábil representante do centro nos dissídios internos do comunismo chinês, o perene fiel da balança. Quanto a Sukarno, convém saber que a sua fidelidade ao fascismo nipónico, que o colocara no poder e o ajudara a criar um aparelho governativo, era tão grande que nos últimos dias da guerra no Pacífico, já depois de as bombas atómicas norte-americanas terem liquidado quaisquer veleidades de resistência japonesa, ele se obstinava ainda em adiar a proclamação da independência, aguardando a presença de uma alta autoridade nipónica que lhe transmitisse formalmente o poder. Na Conferência de Bandung encontraram-se os comunistas que haviam convertido a luta de classe numa luta nacional e os nacionalistas que haviam sido promovidos pelo fascismo.

Maurice Bardèche, um dos mais argutos fascistas radicais franceses, e que foi aliás uma personalidade significativa do fascismo europeu no pós-guerra, insistiu no carácter fascista do regime de Nasser, instaurado no Egipto na sequência do golpe militar de Julho de 1952, e o teórico neofascista italiano Adriano Romualdi, apesar de circunscrever o fascismo à Europa e de criticar Bardèche por ter classificado como fascismo vários terceiro-mundismos, afirmou: «O único fenómeno extra-europeu que, com um pouco de boa vontade, se poderia definir como “fascista” é o Egipto de Nasser, onde efectivamente se procurou enxertar uma mística da antiga cultura árabe sobre uma disciplina política revolucionária». Com uma corajosa coerência, durante a guerra pela independência da Argélia, Bardèche censurou aos neofascistas do seu país a reacção «sentimental» que os levava a lutar pela presença da metrópole no Norte de África, sem verem que estavam assim a defender também «os interesses da democracia plutocrática». «É preciso escolher as suas guerras», preveniu Bardèche, e em vez disso os neofascistas aceitavam todas. «Eles não examinaram se, na realidade, os nacionalistas argelinos não fazem parte dessas forças que querem estabelecer regimes novos e autoritários, independentes de Washington e de Moscovo». Implícita nos avisos de Bardèche estava a noção de que na guerra da Argélia o fascismo estava talvez do lado dos independentistas.

Não se tratava aqui somente − nem sobretudo − de uma questão de pessoas. É certo que Nasser sofrera a influência do Partido Nacional-Socialista Árabe, desarticulado pelos britânicos no início da segunda guerra mundial, e Anwar al-Sadat, que em 1970 sucederia a Nasser na presidência, mantivera relações com os serviços de espionagem nazis durante a primeira metade de 1942, até ser preso pela polícia britânica. Também entre os independentistas argelinos é instrutivo o percurso de Mohammad Said, que durante a segunda guerra mundial se oferecera para combater na frente leste contra os soviéticos como sargento de uma tropa fascista, a Legião dos Voluntários Franceses, e se pusera à disposição dos serviços secretos nazis para realizar operações de sabotagem na Argélia ocupada pelos Aliados. Depois da guerra, vêmo-lo ministro de Estado no governo provisório argelino no exílio e, conquistada a independência, titular de vários ministérios e membro do Conselho do Comando Revolucionário. Estes percursos individuais são significativos porque exprimem confluências políticas vastas e profundas. Trata-se antes de tudo de uma questão de regimes que em vez de assentarem apenas nas camadas sociais conservadoras não hesitam em mobilizar os trabalhadores, servindo-se deles para objectivos estritamente nacionalistas. Quando se conhece a influência exercida pelo nasserismo sobre os regimes árabes laicos da segunda metade do século XX, nomeadamente o vigente na Síria e o que vigorou no Iraque até à invasão norte-americana, percebemos as implicações da análise de Bardèche, curiosamente esquecidas ou ignoradas pela maior parte da esquerda.

Militares indonésios durante a caça aos comunistas

Militares indonésios durante a caça aos comunistas

O sucedido na Indonésia é o melhor − ou pior − exemplo dos resultados do nacionalismo comunista. O Partido Comunista indonésio era o terceiro maior, a seguir ao soviético e ao chinês, e em vez de prosseguir uma linha independente apostara sempre tudo no apoio a Sukarno, até que em 1965 o exército, dirigido por Suharto, afastou Sukarno do poder e lançou-se numa campanha anticomunista que resultou na chacina de entre meio milhão e um milhão de pessoas e no encarceramento de muitíssimas outras em campos de concentração. Esta catástrofe teve repercussões de vulto nas disputas internas do Partido Comunista chinês, ao qual os comunistas indonésios estavam estreitamente ligados, servindo à ala radical como mais um argumento contra a ala moderada. Foi para prosseguir esta campanha que Mao Tsé-tung apelou à iniciativa das bases contra a maioria da direcção do Partido, lançando a Revolução Cultural. Assim, houve uma relação directa entre o fracasso externo da política nacionalista do comunismo, confirmado tragicamente na Indonésia, e um dos mais importantes acontecimentos internos do comunismo chinês.

A Revolução Cultural ultrapassou muito depressa os limites em que Mao a pretendera inserir e, não se contentando com a campanha política contra a ala moderada do partido, iniciou uma campanha social contra os herdeiros do mandarinato, que continuavam a deter os postos de direcção nas empresas, nas universidades e no Estado. A mesma subordinação dos trabalhadores às classes dominantes autóctones, que conduzira à catástrofe na Indonésia, passara a ser criticada na China. A Revolução Cultural pretendeu prosseguir a luta de classes num país em que o Partido Comunista governava e em que os principais meios de produção eram propriedade do Estado, e para isso tentou disputar aos gestores o monopólio da cultura e do conhecimento técnico. Nesta fase inicial a ala mais extrema da Revolução Cultural propunha-se desmantelar o aparelho governativo e reorganizar a China segundo o modelo da Comuna de Paris, transformando-a numa federação de comunas. Mao Tsé-tung, porém, não estava disposto a permitir que a base política da burocracia comunista fosse posta em causa, e apelou para a intervenção do exército, tendo ocorrido por vezes verdadeiras batalhas campais entre os militares e a ala radical da Revolução Cultural. O triunfo do exército levou a um extensivo enquadramento militar da juventude, naqueles desfiles de milhares e milhares de jovens alinhados a régua e esquadro e brandindo o livrinho vermelho, que no imaginário actual resumem erradamente um processo muito diversificado. Restabelecida a ordem, a facção de Mao Tsé-tung viu-se sem base de apoio, porque a extrema-esquerda havia sido derrotada e, de qualquer modo, perdera a confiança em Mao, e porque os moderados nunca lhe perdoaram o apelo que ele fizera à intervenção das massas nas questões internas do partido. A situação actual da China resulta dos ziguezagues de um processo que o colapso do comunismo nacionalista na Indonésia contribuiu para desencadear, restabelecendo-se no final o predomínio da geopolítica, com um sistema misto de capitalismo de Estado e de empresas privadas, organizado num quadro estritamente nacionalista e visando a expansão internacional através, não das lutas sociais, mas dos mecanismos do mercado.

O nacionalismo dos partidos comunistas oficiais liquidou o comunismo enquanto expressão da luta de classe e, ao mesmo tempo, atenuou a linha de demarcação com os herdeiros do fascismo. Desde então os partidos comunistas ou desapareceram ou subsistiram como aliados menores de regimes nacionalistas. Especialmente sugestivo é o caso da África, onde a internacionalização do capital desagregara os impérios coloniais, pois os capitais oriundos de uma metrópole não haviam conseguido impedir a penetração dos capitais exteriores a cada espaço colonial. Ora, mesmo neste contexto, com uma dinâmica ditada pela internacionalização da economia e com Estados sem qualquer base cultural própria, datando da Conferência de Berlim de 1884-1885, os comunistas optaram por se confundir com os restantes nacionalistas e deram o aval às elites autóctones. Paradoxalmente, as independências africanas representaram um avanço da internacionalização do capital, o que ajuda a compreender o seu completo fracasso, que arrastou o fracasso dos comunistas. E na África do Sul, o único país africano onde o Partido Comunista tem peso, a sua colagem ao ANC retirou-lhe qualquer expressão própria.

artigo-iv-13A América Latina ilustra outro caso em que o comunismo se diluiu no nacionalismo a ponto de perder a identidade ideológica ou mesmo organizativa, e também aqui o proteccionismo económico de pendor marxista se articulou com uma certa tradição fascista. Após a segunda guerra mundial, o resultado mais significativo desta convergência foi a Comissão Económica para a América Latina, CEPAL, animada por Raúl Prebisch e Celso Furtado, entre outros. É-me impossível no espaço de um artigo ampliar esta perspectiva de análise, e registo-a aqui sobretudo para estimular os leitores que queiram prossegui-la por conta própria a começar pelo estudo da ideologia desenvolvimentista da CEPAL. Tornar-se-á assim mais fácil compreender que nos dias de hoje, em toda a América central e do sul, os temas do crescimento económico, do nacionalismo e do marxismo continuem a soprepor-se. No Brasil as raízes do problema são ainda mais fundas, porque o tenentismo, na sua vocação modernizadora da sociedade e da economia brasileiras, constituiu o quadro em que se geraram tanto o fascismo de Getúlio Vargas como o comunismo de Prestes. Desenvolvimentismo, fascismo e comunismo nasceram como gémeos no Brasil, e até hoje a extrema-esquerda brasileira, mesmo a que se pretende internacionalista, não conseguiu sacudir a pesada herança.

No terceiro mundo os partidos comunistas puderam ser úteis durante a luta pela independência e na fase da construção do Estado nacional, mas quando se revelaram dispensáveis as burguesias e tecnocracias nacionais não hesitaram em os desmantelar e em matar ou prender os seus membros. E no entanto, os partidos comunistas insistem em adoptar uma orientação nacionalista. Historicamente, quando um erro se repete isto significa que não é um erro e que corresponde a interesses sociais. Aqueles muitos que continuam hoje a confundir a luta contra a opressão externa de que é vítima um dado povo com o apoio aos dirigentes políticos reaccionários que procuram controlar internamente esse povo transportam, uma vez mais, a luta de classe para o plano nacional. Fazem-no igualmente quando apoiam qualquer regime que se oponha ao governo dos Estados Unidos, mesmo que esses regimes pratiquem a repressão contra os trabalhadores e tenham chacinado os comunistas locais. É certo que há os desatentos, os iludidos e os mal-informados. Mas é necessária muita distracção para não juntar a com b e para esquecer tão sistematicamente as lições da história. Os defensores do comunismo nacionalista pretendem, muito simplesmente, desviar os trabalhadores da luta de classe e edificar um Estado que congregue a totalidade das classes dominantes do país − e onde haja sobretudo lugar para eles.

Referências

A passagem do artigo de Corradini de Outubro de 1910 encontra-se em Zeev Sternhell, Mario Sznajder e Maia Asheri, The Birth of Fascist Ideology. From Cultural Rebellion to Political Revolution, Princeton, Nova Jersey: Princeton University Press, 1994, pág. 10. O trecho de Robert S. Ward está transcrito em Joyce C. Lebra (org.) Japan’s Greater East Asia Co-Prosperity Sphere in World War II. Selected Readings and Documents, Kuala Lumpur: Oxford University Press, 1975, pág. 154. As observações de um francês vêm mencionadas em R. Holland, «Anti-Imperialism», em I. C. B. Dear e M. R. D. Foot (orgs.) The Oxford Companion to the Second World War, Oxford e Nova Iorque: Oxford University Press, 1995, pág. 39. A observação de Ba Maw acerca da Conferência de Bandung encontra-se nas suas memórias, Breakthrough in Burma. Memoirs of a Revolution, 1939-1946, New Haven e Londres: Yale University Press, 1968, pág. 339. A passagem de Romualdi acerca do nasserismo vem citada em Francesco Germinario, Estranei alla Democrazia. Negazionismo e antisemitismo nella Destra Radicale Italiana, Pisa: Biblioteca Franco Serantini, 2001, pág. 45. As observações de Bardèche a respeito da guerra da Argélia encontram-se no seu livro Qu’Est-ce que le Fascisme?, Paris: Les Sept Couleurs, 1961, págs. 116 e 119.


fonte: http://passapalavra.info/?p=6275

(c) Copyleft: É livre a reprodução para fins não comerciais, desde que o autor e a fonte sejam citados e esta nota seja incluída.

quarta-feira, 10 de junho de 2009

A atualidade de Errico Malatesta

A atualidade de Errico Malatesta


Maurício Tragtenberg*

Há pouco mais de cinqüenta anos morria Errico Malatesta, um dos principais militantes e pensadores anarquistas, um dos raros exemplos contemporâneos de interação entre teoria e prática

Errico Malatesta nasceu em 1853 e morreu em 1932, tendo assistido, assim, à criação e extinção da Primeira Internacional, à formação da Segunda Internacional – que teve como carro chefe o Partido Social Democrata Alemão –, à emergência da Revolução Russa e sua burocratização e, finalmente, a ascensão do fascismo na Itália.

Essa trajetória de vida de um filho a burguesia, que largou os estudos de Medicina no segundo ano, explica porque ao longo de sua obra está sempre presente uma grande temática, a reprodução do movimento real das classe na Itália entre 1853 e 1932: o socialismo libertário.

Da Primeira Internacional, apreende a noção e auto-organização do trabalhador e de sua ação direta, que serão os elementos fundantes de sua atuação social e política. Em relação à Segunda Internacional, assume uma atitude crítica, denunciando a confusão que se estabelecera entre participação (lema da social-democracia) e incorporação ao sistema capitalista. Verifica que os “participacionistas” se convertiam nos cães de guarda do sistema exploratório e opressivo – não era por acaso, pois, que, na fase monopolista do capitalismo, em suas áreas desenvolvidas, a repressão contra os trabalhadores passava a ser feita pela social-democracia, cujo exemplo maior foi a repressão à revolução alemã de 18, com o assassinato de Liebknecht e Rosa Luxembourg.

Em relação à Terceira Internacional, Malatesta mantém a crítica clássica à burocracia emergente após 18 na URSS – já delineada por Luigi Fabbri em “Ditadura e revolução” –, quando a revolução dos operários e camponeses é capturada pelos burocratas, e o socialismo começa a ser sinônimo de planismo estatal-burocrático, onde os gestores coletivamente detêm os meios de produção em nome dos produtores.

A Comuna de Paris

Mas, sem dúvida, é a proclamação da Comuna de Paris, em março de 1871, que influenciará Malatesta em suas propostas mais amplas: auto-organização dos trabalhadores, autogestão econômico-social e política, como sinônimo de um processo de socialização. Isso porque a Comuna de Paris – nunca suficientemente estudada – é a primeira grande revolução moderna, onde o proletariado tentou a extinção do poder político. Ela representou a prática da organização social e econômica pelas massas, eleição pela população dos intermediários políticos (representantes) e econômicos (administradores), a ausência de privilégios e revogabilidade universal dos eleitos.

Isso significou a constituição de um novo modo de produção constatado por Bakunin e Marx, – pois Comuna de Paris representava um poder político em extinção. Suas instituições criadas pelos produtores significava um ponto de partida para a estruturação de um novo modo de produção com a dominação do econômico pelo social (J. Bernardo), muito longe de um planejamento da produção dependente da distribuição via Estado, o que seria apenas uma reprodução do poder político. A Comuna de Paris tentava fundir o nível político no econômico, através da extinção da esfera política. Isso, numa proposta de uma sociedade auto-institucionalizada. É dessa prática social que Malatesta estruturará seus conceitos sobre a ação direta dos produtores, auto-organização dos assalariados e a rejeição do planismo burocrático como sinônimo de “socialismo”.

Após 1874, abate-se um período repressivo na história italiana, atingindo o movimento operário, e os “internacionais” – como eram chamados os adeptos da Primeira Internacional – operários na sua maioria, sofrem perseguições de todo tipo.

A repressão leva-o a emigrar, desenvolvendo sua atividade de militante operário em vários países europeus. É o período em que polemiza duramente com Andrea Costa, que aderira à social-democracia e ao socialismo parlamentar. Mostrava Malatesta que a melhor maneira de sujeitar um povo consiste em lhe dar a ilusão de que participa de decisões.

Na Argentina participa da formação da FORA (Federação Operária Regional Argentina), que influenciará os trabalhadores de origem européia até início do século 20. Na Europa, de volta da Argentina, participa do movimento operário na Espanha, Bélgica e França, insistindo na auto-organização do trabalhador a partir do local de trabalho, como elemento fundante de sua ação político-social. Tal postura se dá em relação ao individualismo fundado por Stirner, que ainda encontrava adeptos entre os militantes libertários da época.

Os operários integrados

É através de sua polêmica com a social-democracia italiana e os adeptos do socialismo parlamentar, que Malatesta define seu perfil político e sua crítica à instituição do partido político.

Após a repressão à Comuna de Paris por Thiers, utilizando as armas que Bismarck lhe cedera para isso, desenvolvem-se como verdadeira praga partidos “bem comportados” – são partidos “operários” que surgem dos partidos “plebeus”, que deviam sua organização às velhas associações populares, fraternais e religiosas.

Após as revoluções de 1848 esses velhos partidos plebeus cedem espaço a outras instituições. Entre 1848 e 1871 os sindicatos e os conselhos constituíam elementos organizadores do operariado nascente, donde a preocupação da Primeira Internacional em articular os trabalhadores a partir de suas lutas fabris, nos sindicatos de militantes que surgiam então.

Porém, com a formação da Segunda Internacional e a difusão dos partidos socialistas parlamentares pelo mundo, aparece uma tecnocracia na constituição desses partidos “operários” – que mantêm esse nome pelo fato de integrarem os trabalhadores em suas estruturas burocráticas. Não é por acaso que o estudo-modelo sobre partido burocrático tem como sujeito o Partido Social-Democrata Alemão, a obra de Michels intitulada “Os Partidos Políticos”.

Há uma razão para o Partido Social-Democrata Alemão ter sido o modelo de partido burocrático, altamente centralizado – é que a Alemanha era o país onde a tecnocracia era mais poderosa, se constituindo em força reprodutiva do sistema capitalista. Esses partidos social-democráticos mantêm a cisão entre o econômico e o político, não integrando-os como o fizera a Comuna de Paris, razão pela qual aparecerão sob o bolchevismo na forma de partido único. Eis que Lenin, embora classifique Kaustski de “renegado”, herdou dele a concepção de partido-vanguarda que faz a felicidade da burocracia partidária na URSS e no leste europeu.

Malatesta se diferenciava de outros teóricos do socialismo libertário – como Goodwin, Proudhon, Bakunin ou Kropotkin –, que procuravam fundamentar suas premissas socialistas na razão (Goodwin), nas leis do social (Proudhon) ou no determinismo evolucionista (Kropotkin). Ele buscou explicar a validade da proposta socialista libertária a partir do movimento real da sociedade e da ação da classe trabalhadora. É desta perspectiva que os bens econômicos aparecem como fruto da “ação coletiva” dos produtores, onde a solidariedade no processo produtivo é a base da solidariedade no social e político. Assim, igualdade, liberdade e solidariedade se constituem nos fundamentos ético-políticos da proposta de Malatesta. Nessa proposta o futuro é entendido como ultrapassagem do presente, e a liberdade é tomada como um processo de ruptura com as formas de servidão econômico-social e política.

O socialismo libertário

Para Malatesta a revolução não se constituía num golpe de Estado, onde um grupo toma o poder “em nome” dos trabalhadores. Para ele, a revolução se constituía num ato de libertação, fruto de uma “vontade” sintonizada com a compreensão da conjuntura histórica específica. A proposta socialista libertária, para Malatesta, era a tradução dos valores e motivações que permanecem no plano histórico, entendido como um processo em mudança contínua. A seu ver a única lei geral, era a lei do movimento, que demonstrava a importância e também a precariedade dos sistemas fechados – quanto mais “acabados”, mais precários.

Por isso Malatesta não se permitia perfilar entre os criadores de “sistemas”, é mais uma atitude ante o real histórico, onde a exigência da auto-organização dos interessados (povo), de igualdade e combate às hierarquias sociais opressivas colocam a exigência de uma igualdade que tenha a liberdade como fundamento – pressupondo que a liberdade sem igualdade é uma mistificação, a igualdade sem liberdade é uma nova escravidão.

Para ele, a quem relatividade e contingência marcam as concepções do social, conceitos como liberdade, igualdade e fraternidade não se constituíam em noções dogmáticas, mas sim em traduções do movimento real da sociedade, que apontava à hegemonia dos trabalhadores.

O ideal emancipatório

Porém o ideal emancipatório da humanidade trabalhadora não se esgotava ao se converter em patrimônio teórico de uma minoria ilustrada. Para Malatesta, a vitória da proposta libertária se daria no momento em que seus princípios básicos se convertessem em categorias do senso comum da massa trabalhadora. Não se tratava de plasmar ideologicamente a população – o que seria a demonstração de um estranho autoritarismo – mas, através da propaganda e da ação, conquistá-la para os princípios libertários.

É essa preocupação de Malatesta em traduzir os grandes princípios libertários para a linguagem do senso comum da população que explica a forma coloquial da maioria dos seus escritos, especialmente “Entre Camponeses”, “No Café” e “Nas Eleições”.

Malatesta participara da insurreição de Bolonha de 1874, do levante camponês de 1877 em Benevento, emigrando para Londres, onde durante quarenta anos sedia sua ação político-militante. Na Argentina, onde permanecerá quatro anos, propaga as idéias libertárias entre os trabalhadores de origem italiana. Volta à Itália e é preso em 1898. Participa em 1919 da “Semana Rossa”, onde o movimento sindical dirige um processo de greve geral na Itália – sem contar porém com o apoio da CGT, o movimento morre. Preso por Mussolini em 1921, estava com 70 anos e continuava a sobreviver exercendo a profissão de mecânico e eletricista, espantando a burguesia italiana, que tinha dificuldades em enxergar naquele operário idoso e gentil o “terrível” Malatesta. Morre em 1932 em plena vigência do fascismo.

De sua fidelidade aos seus princípios fala sua via, a ele aplica-se o julgamento de Robespierre pelos historiadores: nunca se atemorizou, nunca transigiu, não se corrompeu. É um exemplo de integração de teoria e prática, raro nos dias que correm.



* Maurício Tragtenberg é professor na Escola de Administração de Empresas a Fundação Getúlio Vargas e na Universidade Estadual de Campinas, autor de “Burocracia e Ideologia” e “Administração, Poder e Ideologia”.

Fonte: FOLHETIM, Folha de S. Paulo, 16.01.1983, PP. 06-07

terça-feira, 9 de junho de 2009

Marxismo e nacionalismo (III): O Partido Comunista alemão e a extrema-direita nacionalista

Marxismo e nacionalismo (III): O Partido Comunista alemão e a extrema-direita nacionalista

O Partido Comunista alemão, ao mesmo tempo que tentou ultrapassar a social-democracia pela esquerda, tentou ultrapassar os nazis pela direita. Por João Bernardo

Operários armados

Operários armados

No início, a figura de referência dos comunistas alemães era Rosa Luxemburg, intransigente defensora do internacionalis-mo da luta de classe, contra todas as alianças de carácter nacionalista. Escreveu ela em 1918, pouco antes de ser assassinada: «Os bolchevis-tas tiveram de aprender, para seu profundo mal e para mal da revolução, que sob a hegemonia do capitalismo não existe autodeterminação dos povos, que numa sociedade de classes cada classe da nação esforça-se por se “autodeterminar” à sua maneira e que, para as classes burguesas, a questão da liberdade nacional está inteiramente subordinada à da hegemonia de classe». Onde Rosa Luxemburg se enganou foi em julgar que os bolchevistas poderiam ter aprendido a lição, porque para eles, já naquela época, eram os interesses do Estado nacional e as estratégias geopolíticas que haviam passado a prevalecer. Após a morte de Rosa, sucedeu-lhe na direcção do Partido Paul Levi, que se demitiu em 1921 e foi expulso. A partir de então, e por acção directa dos representantes da III Internacional, os temas ideológicos e organizativos herdados de Rosa Luxemburg foram eliminados e substituídos pelo leninismo.

Ora, depois de ter recebido no final de 1920 a adesão da ala esquerda do Partido Social-Democrata Independente, o Partido Comunista alemão depressa se tornou o segundo maior, logo após o soviético. E como a economia alemã era uma das mais desenvolvidas, tudo o que sucedesse entre os comunistas alemães tinha imediatamente uma repercussão mundial.

Karl Radek, depois de ter trocado a pistola pelo cachimbo

Karl Radek, depois de ter trocado a pistola pelo cachimbo

Em Janeiro de 1923 o Ruhr, uma das províncias alemãs mais industrializadas, foi submetido à ocupação militar franco-belga, com o objectivo de obrigar o país exaurido ao pagamento das reparações de guerra em atraso, que haviam sido impostas pelo Tratado de Versailles. Tornou-se necessária a aceitação de um plano norte-americano pelo governo alemão, em Agosto de 1924, para que as tropas invasoras saíssem em Julho e Agosto de 1925. Se a assinatura do Tratado de Versailles fora considerada pela extrema-direita alemã uma desonra nacional, e pela extrema-esquerda uma submissão ao imperialismo francês, estes sentimentos foram levados ao auge com a ocupação do Ruhr. Quatro dias antes da entrada dos exércitos estrangeiros, uma conferência dos partidos comunistas da Alemanha, da França, da Bélgica, da Itália, da Holanda e da Checoslováquia decidira apelar à resistência; mas esta proclamação internacionalista, que parecia anunciar uma luta de classe por cima das fronteiras, deu afinal lugar a uma actuação estritamente nacionalista, uma aliança de classe dentro do país. A data decisiva nesta viragem, com repercussões tão profundas no comunismo mundial que ainda hoje se fazem sentir, foi o discurso pronunciado em 20 de Junho de 1923 por Radek, perante o comité executivo da Internacional Comunista, em homenagem a Leo Schlageter, um activista de extrema-direita que as tropas ocupantes do Ruhr haviam fuzilado no mês anterior.

Tchitcherin, o diplomata

Tchitcherin, o diplomata

Karl Radek é hoje conhecido apenas pelos historiadores especializados naquele período, mas ele teve uma importância enorme na expansão mundial da influência soviética. A diplomacia oficial do jovem Estado ficara a cargo de Tchitcherin, diplomata de carreira e bolchevista, e de Karakhan, que Curzio Malaparte considerava o homem mais belo da Rússia, opinião superada pela da esposa do embaixador alemão em Moscovo, que o tinha como o mais belo de toda a Europa. Mas na diplomacia secreta da Internacional Comunista o primeiro lugar até à morte de Lenin coube a Radek. Bruce Lockhart, um dos principais agentes secretos britânicos activos na Rússia durante a revolução, descreveu Radek de maneira pitoresca como um misto de professor de instrução primária e bandido das estradas, sempre com um enorme revólver enfiado no cinto e carregando livros debaixo do braço.

Karakhan, o belo

Karakhan, o belo

Em 25 de Março de 1923 o principal órgão do Partido Comunista alemão publicou um artigo de Radek onde os comunistas alemães eram censurados pelo facto de se terem esquecido de lutar «em nome de todo o povo», especialmente em nome daqueles que, apesar de não pertencerem ao proletariado, sofriam com a grave crise económica. Tratava-se de propor que os comunistas concorressem com a extrema-direita na mobilização das camadas empobrecidas exteriores à classe trabalhadora, e esta orientação foi adoptada em Maio daquele ano pelo comité executivo da III Internacional, que declarou: «O Partido Comunista alemão deve mostrar claramente às massas nacionalistas da pequena burguesia e dos intelectuais que só a classe operária, depois de ter alcançado a vitória, conseguirá defender o território alemão, os tesouros da cultura alemã e o futuro da nação». A instância suprema do comunismo mundial decretava que os comunistas se pusessem à frente da entidade nacional e dos valores nacionais, e poucos dias depois o comité central do Partido Comunista alemão repetiu o tema, até que em 12 de Junho, numa reunião alargada do comité executivo da III Internacional, Radek se congratulou pelo facto de a direita nacionalista ter passado a ver um aliado no Partido Comunista alemão: «É significativo que um jornal nazi tenha atacado violentamente as suspeitas que habitualmente envolvem os comunistas; ele diz que os comunistas são um partido combativo, que cada vez mais se está a tornar nacional-bolchevista». Com a desenvoltura que lhe era costumeira, Radek explicou que o «nacional-bolchevismo» que ele criticara três anos antes era ótimo agora. «Em 1920 o nacional-bolchevismo representava uma orientação favorável a certos generais. Hoje, ele expressa o sentimento unânime de que a salvação reside nas mãos do Partido Comunista. Nós somos os únicos a poder encontrar uma saída para a situação em que a Alemanha actualmente se encontra. Colocar a nação em primeiro lugar significa, na Alemanha tal como nas colónias, proceder a um acto revolucionário». Comentando apreciativamente este discurso, Zinoviev, que era então a figura cimeira da III Internacional, elogiou o Partido Comunista alemão pelo facto de não interpretar «o seu carácter de classe num sentido corporativista», o que significa, se as palavras querem dizer alguma coisa, que o carácter de classe se tornara excelente quando deixara de ser de classe. Três dias depois, a 15 de Junho, ainda perante o comité executivo da Internacional Comunista, Radek insistiu na vocação nacional-bolchevista do proletariado alemão ao afirmar que «só a classe operária pode salvar a nação».

Leo Schlageter, «o viajante do nada»

Leo Schlageter, «o viajante do nada»

Finalmente, cinco dias mais tarde, Karl Radek pronunciou na mesma assembleia o discurso que se tornou célebre, em homenagem a Leo Schlageter. Este militante da extrema-direita teria sido «o viajante do nada» se os seus companheiros dos corpos francos e das organizações civis fascistas não começassem a dar um sentido social positivo às aspirações nacionalistas, abandonando a hostilidade à União Soviética para enfrentarem exclusivamente o imperialismo ocidental, e apoiando-se na classe operária em vez de esmagarem as greves e as revoltas ao serviço dos grandes capitalistas. Tratava-se, em suma, de atrair os fascistas para o campo soviético. Radek formulou estas teses com bastante prudência, insinuando que deveria estabelecer-se uma frente unida não só contra o capital britânico e francês mas ainda contra o capital germânico. Mas as implicações das suas palavras eram iniludíveis e ficara marcado o espaço que seria depois preenchido por uma das convicções mais arreigadas da ortodoxia moscovita, já que o orador não encontrava para o grande capital alemão qualquer base nacional e o apresentava como se fosse inteiramente sustentado pelo estrangeiro. Esta peculiar concepção de imperialismo, que descrevia os maiores capitalistas como um corpo alheio ao país e confundia com a classe trabalhadora os demais estratos sociais dominantes, foi o quadro teórico necessário para dissolver a luta de classe numa afirmação de orgulho patriótico. Os últimos apelos do discurso de Radek desfiguraram o internacionalismo numa «família de povos lutando pela emancipação», convertendo-o numa soma de nacionalismos. Nestes termos o proletariado alemão defenderia não a sua autonomia enquanto classe, mas a coesão de todo o povo, confundindo o comunismo e a nação.

Enquanto esta transformação da luta de classe em luta nacional ocorria no âmbito do Partido Comunista e por instigação da Internacional Comunista, noutro plano encetava-se a aliança entre o governo soviético e o estado-maior do exército alemão. Limitadas pelo Tratado de Versailles a um efectivo de cem mil homens, proibidas de possuir artilharia pesada, aviação militar e submarinos e tendo a artilharia ligeira reduzida a menos de trezentas peças, as forças armadas alemãs usaram a União Soviética para fabricar armamento e proceder a exercícios.

Desde o final de 1919 ou o começo do ano seguinte o chefe do exército alemão, o general von Seeckt, compreendeu que apenas o apoio soviético permitiria ultrapassar as restrições impostas pelos vencedores em Versailles. Ao defender que um acordo económico e político com Moscovo de modo algum comprometeria a luta contra os comunistas no interior do país, von Seeckt demonstrou um entendimento muitíssimo claro da evolução operada pelo bolchevismo. Preso em Berlim em 1919, em virtude das suas actividades junto aos comunistas alemães, Radek começou a ser visitado na cadeia por oficiais partidários da orientação diplomática para leste, a ponto de se alojar durante algumas semanas em casa de um deles, depois de ter sido libertado. Não se sabe se foi então abordada a questão do apoio desejado pelo estado-maior. O certo é que Trotsky recordou que «o início das concessões alemãs na Rússia soviética ocorreu na época em que eu estava ainda ocupado com a guerra civil», o que situa a iniciativa antes de 1921. Note-se que, na Alemanha, tanto o Partido Social-Democrata como o Ministério dos Negócios Estrangeiros e o próprio presidente da República, também um social-democrata, foram mantidos na ignorância dos contactos entre o exército alemão e as autoridades militares soviéticas, e mesmo o chanceler só foi informado no Outono de 1921, o que significa que as conversações eram travadas directamente entre os dirigentes soviéticos e os representantes dos sectores mais reaccionários e nacionalistas da sociedade alemã. «[...] a casta dos oficiais da Reichswehr [as forças armadas alemãs], apesar da sua hostilidade política ao comunismo, considerava necessária uma colaboração diplomática e militar com a República Soviética», explicou Trotsky mais tarde.

Corpos francos, as milícias do exército

Corpos francos, as milícias do exército

Depois de uma visita que peritos alemães efectuaram no Verão de 1921 às instalações fabris soviéticas e na sequência de vários contactos discretos prosseguidos no Outono e no Inverno desse ano tanto em Moscovo como em Berlim, Radek chegou à capital alemã em Janeiro de 1922 e no mês seguinte encontrou-se com o general von Seeckt, a quem propôs que os alemães ajudassem a reconstruir a indústria militar russa e instruíssem os oficiais soviéticos. Para compreendermos estas conversações na sua devida dimensão é conveniente não esquecer que Radek, além das funções diplomáticas que assumia oficiosamente, era então o principal orientador e chefe político do Partido Comunista alemão. Na versão levada ao conhecimento público, o tratado entre a União Soviética e a Alemanha, assinado em Rapallo em Abril de 1922, limitava-se a restaurar as relações diplomáticas entre os dois países e a enunciar cláusulas de carácter comercial. Todavia, o aspecto mais importante dos acordos mantinha-se secreto e consistia na cooperação de ambos os exércitos. Em Maio desse ano iniciaram-se negociações entre o general von Hasse, que em breve estaria à frente do que era de facto o estado-maior, e Krestinsky, que desde Outubro do ano anterior era o representante soviético em Berlim, para tratar da participação directa dos grandes industriais do Ruhr no estabelecimento de uma indústria de guerra germânica na União Soviética. Aliás, antes de se iniciar a produção de material bélico já muitos pilotos alemães se treinavam nos céus soviéticos. As negociações prosseguiram em Berlim ao longo do ano, e em Dezembro Radek avistou-se de novo com von Seeckt, que assumira o comando-chefe da Reichswehr, fixando-se os termos da futura cooperação entre as duas forças armadas. Graças a um contrato assinado pelo governo soviético e pela empresa Junkers, seriam fabricados aviões de guerra e motores de avião, e também a Fokker estabeleceria em território soviético várias linhas de produção de aviões de guerra, a mais importante entrando em funcionamento em 1925. Por seu lado, a Dornier fabricaria hidroaviões militares em Kronstadt, onde outra empresa montaria modelos de submarinos. Sob direcção germânica seriam ainda criadas várias escolas de pilotagem militar, destinadas tanto a alemães como a soviéticos. Em diversas instalações industriais seriam produzidas munições sob a orientação de técnicos da Krupp, destinando-se uma parte da produção ao Exército Vermelho, enquanto o restante seria exportado para a Alemanha. E, já que as potências vencedoras haviam interdito também à Alemanha o uso de blindados, seria fundada uma fábrica de tanques de guerra, parece que igualmente sob direcção da Krupp, dispondo de um campo de manobras para treinar os militares dos dois países. Seria também constituída uma companhia mista germano-soviética com o objectivo de produzir gases venenosos, outro tipo de arma proibido em Versailles, mas não parece que haja acordo entre os historiadores para saber se esta fábrica chegou a funcionar.

Os generais alemães, enquanto reprimiam o operariado e o chacinavam por ocasião das suas tentativas insurreccionias, recebiam o apoio material e logístico das autoridades soviéticas. Nada podia revelar melhor que era a geopolítica nacionalista e não a luta de classe a interessar Moscovo. As consequências foram trágicas, porque ao contribuir para armar e treinar as forças armadas alemãs, o governo soviético fortaleceu aquele que viria a ser um dos mais fortes sustentáculos iniciais do Terceiro Reich.

Ruth Fischer: «Abatam os capitalistas judeus!»

Ruth Fischer: «Abatam os capitalistas judeus!»

O discurso de Radek anunciou publicamente o novo rumo. Mátyás Rákosi, dirigente comunista húngaro que era, ou fora, um dos representantes da III Internacional junto aos comunistas alemães, escreveu num artigo que «um partido comunista [...] deve levar em conta a questão nacional do seu país. [...] O partido alemão conseguiu-o com muito êxito. [...] Está em vias de fazer com que os fascistas alemães percam a arma nacionalista». A história haveria de mostrar, pelo contrário, que a nova orientação entregara às manipulações dos fascistas a arma comunista. As sucessivas crises na direcção soviética após a morte de Lenin, o afastamento de Radek e as frequentes mudanças nos órgãos dirigentes do Partido Comunista alemão consolidaram a orientação nacionalista. É certo que ela deparou com algumas resistências, que preferiam o estabelecimento de uma frente comum com a social-democracia, representativa da unidade da classe operária, em vez de acordos com a extrema-direita. Mas a Internacional Comunista pressionava em sentido contrário, e mesmo Brandler e Thalheimer, que dirigiam o Partido depois do afastamento de Levi e se identificavam com a política de frente comum com a social-democracia, passaram a defender o carácter nacional da resistência ao Tratado de Versailles e à ocupação do Ruhr e afirmaram que a burguesia alemã podia, ainda que provisoriamente, desempenhar um papel revolucionário, desde que os comunistas se pusessem à frente do movimento e encabeçassem resolutamente a luta nacional. A imprensa oficial do Partido Comunista alemão abriu então as suas páginas a alguns dos intelectuais mais eminentes da extrema-direita, como Moeller van den Bruck, ou até a figuras como o conde Reventlow, destacado anti-semita e membro activo da ala populista do nacional-socialismo. Ruth Fischer, que dentro do Partido encabeçava a ala oposta Brandler e Thalheimer e defendia um empenhamento ainda maior na abertura à extrema-direita, chegou ao ponto de considerar o anti-semitismo como uma componente do anticapitalismo. «Quem luta contra o capital judaico [...] é já um combatente de classe, mesmo que o não saiba», proclamou ela num discurso. «Abatam os capitalistas judeus, enforquem-nos nos candeeiros, esmaguem-nos!». A geopolítica substituíra francamente a luta de classes. «O imperialismo francês é agora o maior perigo mundial. A França é o país da reacção», dizia Ruth Fischer. «Só ligado à Rússia [...] o povo alemão pode expulsar o capitalismo francês da bacia do Ruhr». E apercebemo-nos de toda a dimensão desta catastrófica degenerescência do comunismo ao sabermos que a facção que procurava o apoio da extrema-direita numa plataforma nacionalista se apresentava como alternativa «de esquerda» à orientação supostamente «de direita» que consistia em restaurar a unidade de acção do operariado através de um acordo com a social-democracia.

Paul Levi: «Um fedor nacionalista-comunista»

Paul Levi: «Um fedor nacionalista-comunista»

Dando mais uma vez provas da sua notável inteligência política, Paul Levi, que depois de ter saído do Partido Comunista passara a animar uma corrente de extrema-esquerda no Partido Social-Democrata, escreveu no final de 1923 que «em vez de uma forte força proletária no final da guerra no Ruhr, o que houve foi um fedor nacionalista-comunista que deixou envenenada a Alemanha inteira. Os nacionais-socialistas reivindicam o mesmo direito que os comunistas proclamam, o de serem os herdeiros da Alemanha moribunda: uns apresentam-se como nacionais-comunistas e os outros como comunistas-nacionalistas, e assim, no fundo, ambos são iguais». Havia ainda quem, como Pfemfert com a sua revista Die Aktion, na extrema-esquerda do expressionismo, lançando a ponte entre conselhistas e anarco-sindicalistas, previsse os funestos resultados deste pendor nacionalista. A lição estava dada, Rosa Luxemburg já a tinha enunciado cinco anos antes, só que os comunistas não aprenderam com ela.

Em Abril de 1924, no 9º Congresso dos comunistas alemães, a facção de Ruth Fischer afastou Brandler e Thalheimer e assumiu a direcção. Um interveniente no congresso denunciou a existência de correntes hostis aos judeus no interior do Partido e nesta ocasião Clara Zetkin observou lucidamente que a nova maioria simpatizava tanto com o esquerdismo contrário à actividade parlamentar como com o fascismo anti-semita. Mas a velha amiga de Rosa Luxemburg fora afastada de qualquer influência partidária e era mantida em Moscovo como uma figura decorativa. Os avisos, estes e outros, foram em vão. Os novos dirigentes do Partido Comunista alemão não só encerraram quaisquer veleidades de se estabelecer uma frente única com a social-democracia, como apresentaram enquanto tarefa principal a liquidação completa do Partido Social-Democrata.

Foi então que Zinoviev, à frente da III Internacional, decretou que a social-democracia constituía um «social-fascismo» e que todo o perigo do fascismo vinha dos partidos sociais-democratas. Classificar a social-democracia como «social-fascismo» foi a condição ideológica necessária para que os comunistas seguissem uma estratégia nacional-bolchevista. Estes dois duplos conceitos aberrantes justificavam-se mutuamente, e os partidos comunistas, ao mesmo tempo que tentavam ultrapassar a social-democracia pela esquerda, tentavam também ultrapassar o fascismo pela direita, proclamando-se eles como os verdadeiros nacionalistas. Esta orientação não se restringiu à Alemanha e aplicou-se a todo o mundo. Até nos Estados Unidos o minúsculo Partido Comunista combatia denodadamente, ou seja, à paulada na rua, o cordato Partido Socialista. Em França não foram poucos os comunistas a simpatizar com certas acções de rua das milícias fascistas, enquanto a direcção do Partido se recusava a qualquer unidade de acção com os socialistas. A actuação dos partidos comunistas facilitou a ascensão dos fascismos em todo o mundo, mas foi na Alemanha que teve consequências mais catastróficas.

Em meados de 1925 precipitou-se nova crise na direcção do Partido Comunista alemão e em Julho reuniu-se o 10º Congresso. No entanto, o afastamento de Ruth Fischer, no Outono desse ano, não alterou a ala hegemónica do partido, pois a maioria da nova direcção continuou a caber aos antigos partidários de Ruth Fischer, ocupando o lugar cimeiro Ernst Thälmann, que fora o braço direito da chefe excluída. Desde então até ao final de 1928 os comunistas alemães atravessaram uma fase de indefinição estratégica, que, todavia, não impediu o 11º Congresso, realizado em 1927, de denunciar «pontos de contacto» entre o fascismo e a social-democracia, quando na realidade eram os comunistas quem multiplicava esses contactos num comum acordo contra o Partido Social-Democrata. A política e a linguagem clarificaram-se no 12º Congresso, efectuado em Junho de 1929, que considerou a social-democracia como a vanguarda do fascismo, o principal factor do seu desenvolvimento e a sua modalidade mais perigosa e agressiva, tanto internamente como na política estrangeira.

Quem iriam eles combater?

Quem iriam eles combater?

Também o relatório inicial da 10ª reunião plenária do comité executivo da Interna-cional Comunista, realizada em Julho de 1929, assinalou o «social-fascismo» co-mo a modalidade de fascismo que devia ser combatida com maior urgência e, passados dois anos, a 11ª reunião plenária deu a primazia à luta contra as teses que supunham a existên-cia «de uma contra-dição entre o fascis-mo e a democracia burguesa, bem como entre as formas parlamentares e as formas abertamente fascistas de ditadura da burguesia [...]». Como declarou no final de 1931 o representante da Internacional junto ao Partido Comunista alemão, «só se pode lutar contra o fascismo conduzindo uma luta mortal contra a social-democracia». Nesta perspectiva, em Agosto e Setembro de 1932, precisamente quando o Partido Nacional-Socialista obtivera um número de votos superior à soma dos votos comunistas e sociais-democratas, a 12ª reunião plenária do comité executivo da Internacional Comunista persistiu na denúncia do Partido Social-Democrata como inimigo principal. À medida que os nazis se aproximavam do poder, os dirigentes comunistas descobriram que eles representavam uma forma de capitalismo mais avançada do que a social-democracia, e por conseguinte, em nome da dialéctica marxista e das leis do progresso social, que o radicalismo nazi devia ser apoiado contra o reformismo social-democrata. Este colossal erro de estratégia decorria de um erro, não menos impressionante, na avaliação da dinâmica do capitalismo.

Num discurso pronunciado em Fevereiro de 1932 perante o comité central do seu partido, Ernst Thälmann declarou: «A nossa estratégia consiste em dirigir o principal ataque contra a social-democracia, sem com isto enfraquecer a luta contra o fascismo de Hitler; é precisamente ao dirigir o principal ataque contra a social-democracia que a nossa estratégia cria as condições prévias de uma efectiva oposição ao fascismo de Hitler. [...] A aplicação prática desta estratégia na Alemanha exige que o principal ataque seja desferido contra a social-democracia. Com as suas sucursais esquerdistas, ela fornece os instrumentos mais perigosos aos inimigos da revolução. Ela constitui a principal base social da burguesia, é o factor mais activo da transformação fascista [...] e, ao mesmo tempo, enquanto “ala moderada do fascismo”, ela sabe empregar as manobras mais enganadoras e mais perigosas de maneira a atrair as massas para a ditadura da burguesia e para os seus métodos fascistas».

É certo que tanto as memórias escritas por algumas pessoas que viveram por dentro estes acontecimentos como as análises de certos historiadores confirmam a existência de uma forte oposição de muitos militantes à orientação decretada pela III Internacional e seguida pela direcção do Partido, e houve organizações comunistas de base que se comprometeram com os sociais-democratas em acções comuns contra os nazis. Mas quando isto sucedeu elas foram severamente repreendidas pela direcção do Partido. Seis meses antes da chegada de Hitler ao poder o secretariado do comité central do Partido Comunista alemão declarou numa circular que o Partido Social-Democrata continuava a ser o «principal apoio da burguesia» e que qualquer acordo entre as direcções dos dois partidos a respeito de manifestações e de acções comuns era «inadmissível».

Uma capa de «Die Aktion»: corrida ente o Partido Social-Democrata e o Partido Comunista numa pista de suásticas

Uma capa de «Die Aktion»: o Partido Social-Democrata e o Partido Comunista numa pista de suásticas

Em 1931 e 1932 as milícias comunistas juntaram-se muitas vezes às milícias nazis para destroçar à paulada ou a tiro os comícios sociais-democratas, o que aliás não as impedia de se combaterem umas às outras quando o inimigo comum não servia de pretexto de união. Compreende-se que nestas circunstâncias a organização operária do Partido Nacional-Socialista tivesse apoiado a greve dos metalúrgicos de Berlim, desencadeada pelos comunistas em Outubro de 1930, e que ao longo dos dois anos seguintes os comunistas se tivessem esforçado por atrair um movimento camponês conotado com a extrema-direita. Em troca, o Partido Comunista juntou em Agosto de 1931 os seus votos aos do Partido Nacional-Socialista e de outra organização de extrema-direita num referendo contra a social-democracia na Prússia, consoante as directivas emanadas do comité executivo da Internacional. Thälmann justificou esta atitude em Fevereiro de 1932 − exactamente um ano antes de Hitler ser nomeado chanceler − declarando que o governo social-democrata da Prússia, juntamente com a central sindical socialista, «confirmam de maneira plena e completa que a social-democracia é o factor mais activo na transformação fascista da Alemanha». Assim, os comunistas unir-se-iam aos nacionais-socialistas para combater o fascismo! Esta aproximação culminou na votação conjunta dos deputados comunistas e dos deputados nazis destinada a derrubar o governo de von Papen, na sessão parlamentar de 12 de Setembro de 1932. Durante o pouco tempo que lhe restaria o Partido Comunista alemão recorreu a um nacionalismo exacerbado para tentar cativar a extrema-direita. A greve dos transportes públicos de Berlim, que os comunistas iniciaram a 3 de Novembro de 1932 em oposição aos sindicatos sociais-democratas, contou com a colaboração activa dos nazis e os dois partidos organizaram piquetes comuns. Não faltaram então, na esquerda internacionalista, vozes a prevenir que o Partido Comunista estava apenas a ajudar o nacional-socialismo, mas se os avisos de Rosa Luxemburg, de Paul Levi, de Pfemfert, de Clara Zetkin e de tantos outros haviam sido inúteis, estes foram-no também. Em 1934, com os nazis no poder há mais de um ano e com as prisões alemãs cheias tanto de comunistas como de sociais-democratas, a 13ª reunião plenária do comité executivo da Internacional Comunista decretou, numa das suas resoluções, que «a social-democracia continua a desempenhar a função de principal apoio social da burguesia mesmo nos países em que vigora declaradamente uma ditadura fascista».

Só o 7º Congresso da Internacional Comunista, em meados de 1935, inverteria esta orientação e iniciaria a fase das frentes comuns com a social-democracia. Mas para a Alemanha era tarde demais. O nacionalismo, neste caso ultranacionalismo, da III Internacional e especialmente do Partido Comunista alemão havia já liquidado a segunda maior organização comunista e destroçado completamente aquela que fora a vanguarda mais aguerrida do operariado mundial.

Referências

A citação de Rosa Luxemburg de 1918 é extraída do seu ensaio póstumo acerca da revolução russa e pode ser encontrada em http://www.marxists.org/archive/luxemburg/1918/russian-revolution/ch03.htm Acerca da beleza de Karakhan ver Curzio Malaparte, Le Bal au Kremlin, Paris: Denoël, 2005, pág. 33. A descrição de Radek com revólver e livros está em Bruce Lockhart, Memoirs of a British Agent, Londres: Folio, 2003, págs. 183-184. A citação do artigo de Radek de 25 de Março de 1923, a declaração do comité executivo da III Internacional de Maio de 1923, o discurso de Radek de 12 de Junho de 1923, o comentário de Zinoviev e a alocução de Radek em 15 de Junho de 1923 estão em Pierre Broué, The German Revolution, 1917-1923, Londres: The Merlin Press, 2006, págs. 723, 725 e 726. O discurso de Karl Radek, «Leo Schlageter: Der Wanderer ins Nichts», publicado em Die Rote Fahne, 26 de Junho de 1923, está antologiado em Anton Kaes, Martin Jay e Edward Dimenberg (orgs.) The Weimar Republic Sourcebook, Berkeley, Los Angeles e Londres: University of California Press, 1995, págs. 312-314. O artigo de Leon Trotsky a respeito dos acordos militares germano-soviéticos, «Vyshinsky’s Tactics Forecast», publicado em The New York Times, 5 de Março de 1938, vem reproduzido em George Breitman e Evelyn Reed (orgs.) Writings of Leon Trotsky (1937-38), Nova Iorque: Pathfinder, 1970, págs. 131-132. O artigo de Rákosi está citado em Ossip K. Flechtheim, Le Parti Communiste Allemand (K. P. D.) sous la République de Weimar, Paris: François Maspero, 1972, pág. 118. As delirantes declarações de Ruth Fischer encontram-se em id., ibid., pág. 119 e, parcialmente, em Broué, pág. 729 n. 92 e em Ernst Nolte, Nazionalsocialismo e Bolcevismo. La Guerra Civile Europea, 1917-1945, Florença: Sansoni, 1989, pág. 99. O artigo de Paul Levi de 1923 está citado em Broué, 905. A citação relativa ao 11º Congresso do Partido Comunista alemão vem em Flechtheim, pág. 182. As discussões travadas na 11ª reunião plenária do comité executivo da Internacional Comunista estão referidas em João Arsénio Nunes, «Da Política “Classe contra Classe” às Origens da Estratégia Antifascista: Aspectos da Internacional Comunista entre o VI e o VII Congressos (1928-1935)», em O Fascismo em Portugal. Actas do Colóquio Realizado na Faculdade de Letras de Lisboa em Março de 1980, Lisboa: A Regra do Jogo, 1982, pág. 49. As declarações proferidas no final de 1931 pelo representante da III Internacional junto ao Partido Comunista alemão encontram-se em Hermann Weber, «Postface», em Flechtheim, pág. 318 e Hermann Weber, La Trasformazione del Comunismo Tedesco. La Stalinizzazione della KPD nella Repubblica di Weimar, Milão: Feltrinelli, 1979, pág. 249. O discurso de Ernst Thälmann em Fevereiro de 1932 está citado em Kaes et al., págs. 327 e 328. A circular do comité central do Partido Comunista alemão, de finais de 1932, vem mencionada em Weber, «Postface», em Flechtheim, págs. 320-321. A passagem citada do discurso de Thälmann em Fevereiro de 1932 está em Kaes et al., pág. 328. A resolução da 13ª reunião plenária do comité executivo da Internacional Comunista encontra-se mencionada no artigo de Leon Trotsky, «Are there no Limits to the Fall? A Summary of the Thirteenth Plenum of the Executive Committee of the Communist International», publicado em The Militant, 10 de Março de 1934, e reproduzido em George Breitman e Bev Scott (orgs.) Writings of Leon Trotsky (1933-34), Nova Iorque: Pathfinder, 1972, pág. 211.


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domingo, 7 de junho de 2009

O anzol (8)

O anzol (8)



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terça-feira, 2 de junho de 2009

Marxismo e nacionalismo (II): Os comunistas russos e a questão nacional

Marxismo e nacionalismo (II): Os comunistas russos e a questão nacional

2 de Junho de 2009

As revoluções ocorridas na Rússia em 1917 constituíram a expressão de um movimento que atravessara a maior parte da Europa, mas esta luta de classe supranacional foi desviada para a edificação de um Estado revolucionário nacional. Por João Bernardo

Os discípulos de Marx e de Engels enfrentaram um duplo problema. Por um lado, receberam uma herança ideológica carregada pelo peso da enorme contradição entre uma análise teórica concebida em termos de classe e uma estratégia política conduzida em termos de blocos nacionais. Por outro lado, verificaram que a questão das nacionalidades se tornava cada vez mais urgente, porque os povos colonizados e semicolonizados começavam a reclamar a emancipação, mesmo sem cumprirem as condições de viabilidade económica e de tradição estatista que Marx e Engels haviam postulado.

Assim, e contrariamente ao que pretenderam várias ortodoxias posteriores, na II Internacional quem seguia a verdadeira tradição de Marx e de Engels eram os defensores de uma espécie de imperialismo esclarecido, paternalista, benévolo, que pouco a pouco ajudasse os povos colonizados a evoluir até um nível considerado superior. O problema surgiu quando esses povos não se revelaram dispostos a esperar. A noção de um imperialismo socialista foi derrubada com mais vigor pela irrupção dos povos colonizados do que pela crítica teórica proveniente da ala esquerda do marxismo, mas ficava por resolver uma grande questão. A emancipação das colónias resultaria de uma luta conduzida exclusivamente pelo proletariado e pelo campesinato pobre, num plano de internacionalismo que ultrapassasse e deixasse sem efeito as reivindicações especificamente nacionais? Ou seria necessário adquirir primeiro a independência política e construir um Estado nacional, no interior do qual o proletariado autóctone se desenvolveria e reforçaria?

A questão começara a ser debatida ainda em vida dos fundadores do marxismo, quando a perspectiva que eles haviam adoptado deparou com a oposição de alguns socialistas polacos, para quem a opressão nacional só poderia ser superada por uma revolução proletária internacional. Fundado em 1882, o primeiro partido socialista polaco, o Partido Social-Revolucionário do Proletariado, inspirava-se no marxismo para atribuir a prioridade aos conflitos sociais, rejeitando o patriotismo e a luta pela independência e proclamando o carácter internacional da luta de classe. Perante este desafio, Engels manteve as suas posições de sempre, dando prioridade à questão nacional, e numa carta endereçada a Karl Kautsky, em Fevereiro de 1882, escreveu que os socialistas polacos devem «colocar a libertação do seu país na primeira linha do seu programa» e que «a independência é a base de qualquer acção internacional comum». Enquanto infamava os socialistas internacionalistas polacos, que algum tempo depois haveriam de encontrar em Rosa Luxemburg a sua melhor intérprete, Engels dava o aval à tendência nacionalista do socialismo, que dez anos mais tarde iria ser encabeçada por Piłsudski e que se situa na origem da extrema-direita polaca.

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Henk Sneevliet

As teses de Rosa Luxemburg a este respeito estão ao alcance de todos os que as quiserem ler, já que a partir da década de 1960 aquela notável marxista começou a sair do esquecimento a que o comunismo de inspiração soviética a havia votado. Muitíssimo menos conhecida é a figura de Henk Sneevliet, um marxista holandês que além da sua actividade partidária militava também no sindicato dos ferroviários. Tendo entrado em conflito com a facção moderada, que controlava o partido e a maioria dos sindicatos, Sneevliet partiu em 1913 para as Índias Orientais, a actual Indonésia, que eram então uma colónia holandesa, onde participou na fundação da Associação Social-Democrata das Índias − os partidos marxistas denominavam-se então social-democratas − cujos membros eram tanto holandeses como indonésios. A Associação defendia uma orientação estrita de classe, lutando ao mesmo tempo contra o colonialismo e contra as elites autóctones. Entretanto, Sneevliet começou a militar no sindicato ferroviário, o único nas Índias Orientais a juntar holandeses e nativos, e conseguiu imprimir-lhe uma orientação radical, a ponto que ele haveria mais tarde de ser o embrião do movimento comunista naquela colónia. Não é aqui ocasião para referir o percurso posterior de Sneevliet, os seus conflitos com a maioria da direcção do Partido Comunista holandês, a sua participação na luta anticolonial na III Internacional, a sua oposição à política seguida pela União Soviética, a fundação do Partido Revolucionário Socialista em 1927, a sua discordância com o sectarismo de Trotsky, a sua luta clandestina contra os ocupantes nazis durante a segunda guerra mundial, até à sua prisão e execução em 1942. O que importa aqui sublinhar é que para Sneevliet e os demais marxistas que defendiam a mesma orientação, a luta contra o colonialismo era inseparável da luta contra as classes dominantes nativas. A emancipação dos povos não era considerada como um objectivo específico nem como uma fase prévia de um processo, e a luta de classes dos explorados não era desviada para a construção de Estados nacionais. Esta estratégia culminou durante a segunda guerra mundial. Nas difíceis condições da clandestinidade, numa Holanda ocupada pelas tropas nazis, Sneevliet orientou o seu partido para a rejeição de todas as burguesias e burocracias, qualquer fosse o lado em que se encontrassem no conflito, e opôs-lhes uma «terceira frente», a da classe trabalhadora internacional.

Da guerra à revolução

Da guerra à revolução

Mas voltemos à época que aqui me interessa. Aqueles que na II Internacional defendiam uma orientação internacionalista acolheram entusiasticamente as insurreições militares e depois as greves operárias e os levantamentos camponeses que entre 1916 e 1918, desde as trincheiras da França até às estepes russas, passando pela Alemanha, pela Itália, pela Bulgária e pelo Império Austro-Húngaro, se opuseram à carnificina da primeira guerra mundial. As revoluções ocorridas na Rússia em 1917 constituíram a expressão vitoriosa de um movimento muitíssimo mais amplo, que atravessara a maior parte da Europa. Poderia esperar-se, então, que o recém-implantado regime soviético prosseguisse a estratégia de desagregação interna das nações e dos nacionalismos mediante a internacionalização da luta da classe trabalhadora e dos camponeses miseráveis dos espaços coloniais, mas não foi o que sucedeu. Pelo contrário, a luta de classe supranacional, com que os soldados e os trabalhadores se opunham à guerra, foi desviada para a edificação de um Estado revolucionário nacional.

A data decisiva deste processo foi o tratado de paz que o governo soviético assinou em Março de 1918, em Brest-Litovsk, com as Potências Centrais, ou seja, a Alemanha, o Império Austro-Húngaro e o Império Otomano. Reforçando a posição das Potências Centrais e entregando-lhes a Ucrânia, o Tratado de Brest-Litovsk implicava que o jovem poder soviético desse a prioridade à edificação do Estado relativamente à internacionalização da insurreição. No início das conversações de Brest-Litovsk, Trotsky distribuíra panfletos aos soldados das Potências Centrais que formavam a guarda de honra, incitando-os à revolução, mas no 5º Congresso dos Sovietes, reunido em Julho de 1918, ele apresentou e fez aprovar um decreto que não só condenava à prisão quem quer que conduzisse acções de agitação contra as autoridades alemãs e austro-húngaras ocupantes da Ucrânia, mas ainda ameaçava de fuzilamento os que insistissem em participar em guerrilhas contra os exércitos das Potências Centrais. E na medida em que aliviava a pressão militar sobre as Potências Centrais, o Tratado de Brest-Litovsk dificultava os movimentos insurreccionais dos soldados alemães e austro-húngaros e os movimentos de greve em ambos os países. As consequências deste Tratado para o interior do Estado soviético não foram menos graves do que os seus efeitos externos. A ala esquerda do Partido Comunista opusera-se vigorosamente ao rumo que as conversações de paz estavam a tomar, sendo aliás derrotada por uma margem muito estreita, e o Partido Socialista-Revolucionário de Esquerda, que formava governo juntamente com os comunistas, opusera-se também. Com a assinatura do Tratado os socialistas-revolucionários de esquerda abandonaram o governo e lançaram-se na luta contra Lenin e os seus apoiantes, recorrendo inclusivamente ao terrorismo, e as medidas repressivas então encetadas pela direcção do Partido Comunista assinalam o estabelecimento do regime de partido único e da ditadura de partido, com resultados bem conhecidos.

Trotsky na delegação soviética a Brest-Litovsk

Trotsky na delegação soviética a Brest-Litovsk

De então em diante o Partido Comunista soviético colocou sistematicamente os interesses do seu Estado à frente dos interesses revolucionários dos trabalhadores dos outros países. Um panfleto publicado em 1918 pelos bolchevistas em defesa do Tratado de Brest-Litovsk, depois de afirmar que «ao sustentarmos o poder soviético estamos a apoiar da melhor e mais eficaz das maneiras o proletariado de todos os países» e que «não podia ocorrer agora um pior insucesso para a causa do socialismo do que o colapso do poder soviético na Rússia», extraía a conclusão lógica. «Somos “defensistas”. Desde o dia 25 de Outubro de 1917 que conquistámos o direito de defender a pátria [...] estamos a defender a pátria contra os imperialistas [...] proclamamos que os interesses do socialismo, os interesses do socialismo mundial, são superiores aos interesses nacionais, superiores aos interesses do Estado. Somos “defensistas” da pátria socialista». Graças a este perverso jogo verbal, em que os termos passaram a significar o seu exacto contrário, o internacionalismo ficou identificado com o patriotismo soviético.

Os actos corresponderam às palavras. «A supressão da diplomacia secreta é a condição prévia de uma política estrangeira honesta, popular e autenticamente democrática», escreveu Trotsky quando o governo soviético decidiu publicar os tratados secretos do czar. Mas passados poucos meses, perante a intervenção militar do Reino Unido e da França na guerra civil russa, foi precisamente à diplomacia secreta que os dirigentes bolchevistas recorreram. Em 1 de Agosto de 1918 o comissário do povo para os Negócios Estrangeiros, Tchitcherin, propôs ao embaixador alemão que as tropas germânicas, apoiadas pelo exército finlandês que dois meses e meio antes acabara de esmagar os comunistas do seu país numa sangrenta guerra civil, penetrassem no território russo para ajudar os soviéticos a combater os britânicos. A proposta teve efeito. A versão pública de um dos acordos assinados com o governo alemão em 27 de Agosto de 1918 anunciou que o governo soviético renunciava aos direitos de soberania sobre a Estónia e a Letónia e reconhecia a independência da Geórgia, transformada então num protectorado germânico. Mas uma troca secreta de notas diplomáticas estabelecia que a Rússia soviética se comprometia a «empregar todos os meios à sua disposição para expulsar as forças da Entente», na prática, a aliança franco-britânica, «dos territórios do norte da Rússia, em cumprimento do seu estatuto de neutralidade»; se não conseguisse fazê-lo, a Alemanha «ver-se-ia obrigada a empreender essa acção, se necessário com a ajuda de tropas finlandesas», e a Rússia «não encararia esta intervenção como um acto hostil». Chegara a tal grau de degenerescência nacionalista uma revolução iniciada no âmbito internacional. Ao apresentar os acordos públicos de 27 de Agosto para ratificação no Comité Executivo Central Panrusso dos Sovietes, Tchitcherin mencionou a «coabitação pacífica» dos dois Estados, antecipando uma terminologia que teria um vasto uso. Mas como os alemães estavam numa situação militar catastrófica e impossibilitados de novas aventuras, não aproveitaram a boa disposição do governo soviético.

Naquela época Trotsky, ao lado de Lenin, imprimia um carácter nacionalista à política externa soviética. Num livro publicado em 1920 e que constituía uma réplica a um dos mais ilustres teóricos da social-democracia germânica, Trotsky escreveu: «Foi no Outono de 1918, depois da derrocada dos exércitos alemães, que atravessámos o momento mais crítico da nossa situação internacional. Em vez de dois campos poderosos, que se neutralizavam mais ou menos um ao outro, tínhamos perante nós a Entente vitoriosa, no auge do seu poder mundial, e a Alemanha esmagada [...]». Os dirigentes bolchevistas, que antes haviam invocado o atraso da revolução alemã para justificar a capitulação em Brest-Litovsk, lastimaram-se depois pelo facto de a revolução alemã de Outubro e Novembro de 1918 ter posto em risco a segurança do Estado soviético ao destruir o equilíbrio das potências. A política externa assente na expansão dos processos insurreccionais fora substituída pela velha diplomacia, que consistia em manobrar entre blocos imperialistas rivais.

Nos primeiros meses de 1920, quando parecia definitivamente encerrada a guerra civil, o governo soviético repetiu em todos os tons o desejo de coexistência pacífica com os Estados capitalistas, e esta orientação não foi ditada por qualquer apatia do movimento operário nos outros países, visto que eram então cada vez mais numerosas e mais eficazes as acções prosseguidas pelos trabalhadores europeus em apoio ao regime bolchevista. A política externa de Moscovo não só deixara de depender do processo revolucionário internacional como lhe podia ser francamente adversa, e a orientação seguida no Ocidente reproduzia-se a Leste. A 4 de Junho de 1920, Trotsky, comissário do povo para a Guerra, enviou a seguinte nota secreta a Tchitcherin, com cópias para Lenin, Kamenev, Krestinsky e Bukharin: «Todas as informações sobre a situação em Khiva, na Pérsia, no Bukhara e no Afeganistão confirmam o facto de que uma revolução soviética nestes países causar-nos-ia no momento presente as maiores dificuldades [...] Até a situação a ocidente estar estabilizada e até melhorarem as nossas indústrias e transportes, uma expansão soviética para leste poder-se-á revelar não menos perigosa do que uma guerra a ocidente [...] uma revolução soviética potencial a leste é-nos hoje vantajosa principalmente como um elemento importante nas relações diplomáticas com a Inglaterra. Daqui se conclui que: 1) a leste devemos dedicar-nos ao trabalho político e educativo [...] e ao mesmo tempo aconselhar toda a prudência possível quanto a acções calculadas para exigir o nosso apoio militar, ou capazes de exigi-lo; 2) temos de continuar por todas as formas a insistir através de todos os canais possíveis na nossa disposição de chegar a um entendimento com a Inglaterra quanto ao leste». Concepções deste tipo eram comuns entre os orientadores da política externa soviética. O anarquista norte-americano Alexander Berkman, que junto com outros revolucionários havia sido deportado para a União Soviética, anotou no seu diário, em 24 de Fevereiro de 1920, uma conversa com Karakhan em que o então vice-comissário do povo para os Negócios Estrangeiros lhe disse que na Índia «o movimento era revolucionário, se bem que, em sua opinião, tivesse um carácter nacionalista, e podia ser explorado para colocar a Inglaterra em xeque». Vemos aqui, em poucas palavras, como interessava ao Estado soviético que a luta de classes nos territórios colonizados se convertesse numa luta nacional.

Kuchik Khan
Kuchik Khan

Esta política teve efeitos catastróficos para o proletariado das colónias e dos países semicolonizados. Limitar-me-ei ao sucedido na Pérsia e na Turquia. Inicialmente o governo bolchevista apoiara o embrionário movimento comunista persa e na Primavera de 1920 prestou auxílio militar ao nacionalista revolucionário Kuchik Khan e ajudou-o a criar uma república soviética independente na província de Gilan, no norte do país, onde ele gozava de grande popularidade. No Outono daquele ano, porém, as relações de Moscovo com Teerão melhoraram consideravelmente e, embora continuassem a apoiar a república de Gilan, os dirigentes bolchevistas decidiram limitar as actividades do pequeno Partido Comunista persa e deram-lhe instruções para declarar que a revolução naquele país só se tornaria possível depois de ter sido levada até ao fim a fase burguesa das transformações socioeconómicas.

Convém recordar que fora precisamente essa questão a dividir os bolchevistas e os menchevistas. Até 1917 estas duas facções do marxismo russo estavam de acordo em considerar que o atraso das forças produtivas no país impunha à revolução um carácter burguês. Mas enquanto os menchevistas afirmavam que uma revolução de carácter burguês teria de ser conduzida pela burguesia, Lenin sustentava que, dada a debilidade social e política da burguesia russa, só o proletariado seria capaz de conduzir o processo revolucionário. Assim, para os bolchevistas a missão do proletariado russo era dirigir uma revolução de carácter burguês. Só Trotsky e o pequeno grupo que o rodeava defendiam, antes de 1917, uma opinião diferente, considerando que, pelo facto de o proletariado tomar a iniciativa, a revolução burguesa adquiriria rapidamente um carácter socialista. Mas vemos que passados poucos anos eram as teses menchevistas que os chefes bolchevistas, e Trostky com eles, pretendiam impor aos comunistas persas. Com efeito, essas teses implicavam uma aliança entre o proletariado e a burguesia do país, convertendo portanto a luta de classe num movimento nacionalista.

Blumkin
Blumkin

Em Fevereiro de 1921 um golpe de Estado estabeleceu em Teerão uma ditadura nacionalista e modernizadora, e o facto de o novo regime ser ferozmente anticomunista e proceder a uma perseguição sistemática da extrema-esquerda não impediu o governo soviético de assinar com ele um tratado que reconhecia a Moscovo o direito de intervir militarmente na Pérsia se a Grã-Bretanha invadisse aquele país com intenções hostis aos soviéticos e se o governo persa não fosse, por si só, capaz de evitar esta agressão. Os equilíbrios geopolíticos haviam passado a prevalecer sobre os processos revolucionários, o que levou os dirigentes soviéticos a suspender o apoio prestado aos comunistas persas e aos nacionalistas radicais da república de Gilan. Aliás, como as tropas britânicas abandonaram a Pérsia em Maio de 1921, os soviéticos, segundo o tratado que haviam acabado de assinar, ficavam obrigados a retirar as forças militares que protegiam Gilan. No Verão desse ano Kuchik tentou marchar sobre Teerão, contando ainda com o auxílio de algumas personalidades soviéticas, mas a expedição foi um fiasco e em Setembro Moscovo cancelou-lhe o aval político e chamou as suas tropas. No mês seguinte o regime de Teerão, com a aprovação soviética, ocupou militarmente Gilan e enforcou Kuchik. Passados anos, Victor Serge, que fora amigo de Blumkin, revolucionário com uma curta vida recheada de aventuras e peripécias extraordinárias, recordou o que ele lhe contara acerca destes acontecimentos. «A minha história na Pérsia? Éramos algumas centenas de russos andrajosos [...] Um dia recebemos um telegrama do comité central: Parem tudo, já não há revolução no Irão [...] Se não fosse isso, tínhamos entrado em Teerão». «Se não fosse isso», mas por detrás daquele telegrama estava uma longa história.

A orientação da luta de classe para objectivos limitadamente nacionalistas inspirou também a política soviética relativamente à Turquia. Depois de ter aproveitado habilmente um movimento camponês que em 1919 e 1920 levara à formação de um exército próprio e à criação de inúmeros sovietes locais, Mustafa Kemal conseguiu no final de 1920 e no começo de 1921 desarticular esse movimento, liquidar ou dispersar os chefes principais e assimilar o que restava das suas bases sociais de apoio. Logo em seguida ele desencadeou a repressão contra as organizações comunistas que, embora pequenas, eram vigorosas, e em Janeiro de 1921 enviou agentes ao território soviético para assassinarem uma das figuras mais conhecidas do comunismo turco, Mustafa Suphi, juntamente com dezasseis dos seus camaradas. Nada disto esfriou a simpatia que os dirigentes bolchevistas haviam passado a nutrir por Kemal e pelo seu regime, e o preâmbulo do tratado soviético-turco, assinado em Março de 1921, sublinhava a solidariedade dos dois países «na luta contra o imperialismo» e um dos artigos proclamava a existência de uma «afinidade mútua entre o movimento de libertação nacional dos povos do Oriente e a luta dos trabalhadores da Rússia por uma nova ordem social». No caso do regime de Mustaka Kemal o anti-imperialismo consistia numa política antibritânica, já que ele não era menos imperialista para as pequenas nacionalidades periféricas e para os outros povos sujeitos ao domínio turco. Mas a convergência de interesses geopolíticos era suficiente para que Moscovo fechasse os olhos ao subimperialismo turco e ao assassinato e encarceramento de comunistas.

Mustafa Kemal, chefe do «bastião avançado do Oriente revolucionário»
Mustafa Kemal, chefe do «bastião avançado do Oriente revolucionário»

Alguns meses depois da assinatura do tratado o governo turco informou Moscovo de que decidira libertar os comunistas presos e entregar à justiça os responsáveis pelo assassinato de Suphi. Os soviéticos apoiaram militarmente a Turquia numa fase já adiantada da guerra contra a Grécia em 1921 e 1922, e em consequência disto, e também devido à ajuda prestada pela diplomacia soviética por ocasião da conferência de Génova, o Partido Comunista turco pôde gozar de oito meses de actividade legal, depois de mais de um ano de intensa perseguição. Mas em Outubro de 1922, derrotados os gregos, quando lhe interessava aproximar-se da Grã-Bretanha e deixara de necessitar do auxílio de Moscovo, Kemal recomeçou a caça aos comunistas. Em Novembro desse ano, numa das sessões do 4º Congresso da III Internacional, o chefe da delegação turca lastimou que o seu partido continuasse a ser vítima da repressão, apesar de ter obedecido às indicações do 2º Congresso e ter apoiado o governo de Kemal. Mas os dirigentes da Internacional Comunista mantiveram-se inflexíveis e Karl Radek, a figura mais influente nos bastidores desta organização, recordou aos camaradas turcos as instruções que lhes haviam sido dadas. «A vossa primeira tarefa, logo que se tiverem organizado como partido autónomo, consiste em apoiar o movimento pela liberdade nacional na Turquia». No mesmo congresso Bukharin colocou a questão nos termos de um princípio geral, declarando que a União Soviética podia «estabelecer alianças militares com um país burguês a fim de enfrentar outro país burguês». O que sucedia, porém, quando os chefes do «movimento pela liberdade nacional» dispensavam de maneira truculenta o apoio dos comunistas locais? Sem se embaraçar com estes detalhes, o congresso erigiu a Turquia em «bastião avançado do Oriente revolucionário». E no 12º Congresso do Partido Comunista Russo, em Abril de 1923, Bukharin considerou que a Turquia, «apesar das perseguições aos comunistas, desempenha um papel revolucionário devido ao facto de ser um instrumento destrutivo relativamente ao sistema imperialista considerado como um todo». Segundo esta admirável dialéctica, um regime podia ser classificado como revolucionário por considerações estritamente geopolíticas, quando a sua orientação externa era favorável ao Estado soviético no confronto com outras potências, sem que em nada parecesse importar o seu carácter contra-revolucionário no plano social interno, o único em que tais questões deviam ser aferidas.

O confronto entre a orientação nacionalista e a orientação de classe atravessou o interior dos partidos comunistas. Formou-se assim uma ala esquerda, que defendia a luta não só contra as grandes potências imperialistas mas igualmente contra as classes dominantes locais, e uma ala apoiada pela III Internacional, que atribuía a prioridade à luta contra o imperialismo estrangeiro e para isso apoiava a burguesia nacional e a tecnocracia modernizadora. À medida que a evolução da base social dos partidos comunistas, agravada pela repressão local e pelas interferências de Moscovo, contribuiu para a marginalização e depois para a expulsão das alas esquerdas, esses partidos foram-se transformando em câmaras de eco do nacionalismo junto à classe trabalhadora. A luta de classe foi substituída pela geopolítica.

Referências

A carta de Engels para Kautsky, de Fevereiro de 1882, acerca da questão polaca vem em Paul W. Blackstock e Bert F. Hoselitz (orgs.) The Russian Menace to Europe, by Karl Marx and Friedrich Engels, Glencoe: Free Press, 1952, pág. 117. O decreto apresentado por Trotsky ao 5º Congresso dos Sovietes encontra-se em Isaac Deutscher, Trotsky. I: Le Prophète Armé (1879-1921), Paris: Julliard e Union Générale d’Éditions (10/18), 1972, vol. II, págs. 244-245 e em Parti des Socialistes-Révolutionnaires de Gauche (Internationalistes), La Russie Socialiste (Événements de Juillet 1918), Genebra: Reggiani, 1918 (reprodução fac-simile em Les Socialistes-Révolutionnaires de Gauche dans la Révolution Russe. Une Lutte Méconnue, Paris: Spartacus, 1983), págs. 59-60. O panfleto defensista de 1918 pode ler-se em Edward Hallett Carr, A History of Soviet Russia. The Bolshevik Revolution, 1917-1923, Harmondsworth: Penguin, 1966, vol. III, pág. 67. As considerações de Trotsky acerca da supressão da diplomacia secreta encontram-se em Deutscher, vol. II, pág. 163. Os termos do acordo de 27 de Agosto de 1918 e as palavras empregues por Tchitcherin a respeito deste acordo e dos outros assinados na mesma data estão em Carr, vol. III, págs. 94 e 95. A passagem de Leon Trotsky, considerando que a revolução alemã pusera em risco o Estado soviético, encontra-se na sua obra Terrorisme et Communisme (L’Anti-Kautsky), Paris: Union Générale d’Éditions (10/18), 1963, pág. 191. A nota de Trotsky de 4 de Junho de 1920 está reproduzida em Jan M. Meijer (org.) The Trotsky Papers, 1917-1922, Londres, Haia e Paris: Mouton, 1964-1971, vol. II, pág. 209. As declarações de Karakhan a respeito da revolução na Índia estão registadas em Alexandre Berkman, Le Mythe Bolchevik, Baye: La Digitale - Calligrammes, 1987, pág. 60. As recordações de Blumkin encontram-se em Jean Rière e Jil Silberstein (orgs.) Victor Serge. Mémoires d’un Révolutionnaire et autres Écrits Politiques. 1908-1947, Paris: Robert Laffont, 2001, pág. 711. As citações do preâmbulo do tratado soviético-turco, de Março de 1921, e as declarações de Radek acerca da Turquia no 4º Congresso da III Internacional estão em Carr, vol. III, págs. 303 e 476. As declarações de Bukharin no mesmo congresso vêm em Stephen F. Cohen, Bukharin. Uma Biografia Política, 1888-1938, São Paulo: Paz e Terra, 1990, pág. 174. A frase das decisões tomadas por esse congresso relativamente à Turquia e as declarações de Bukharin no 12º Congresso do Partido Comunista Russo encontram-se em Carr, vol. III, págs. 478 e 479.


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