quarta-feira, 9 de junho de 2010

Quinta semana de luta: novas táticas e intervenções

(Florianópolis) Quinta semana de luta: novas táticas e intervenções


O grau de amadurecimento para que o movimento caminha aponta a necessidade da construção de uma campanha de fôlego na cidade, que pressione o poder público a realizar mudanças efetivas no transporte coletivo. Por Passa Palavra

Acompanhe a cobertura completa da luta clicando aqui.

florianopolis-4Após 4 semanas de intensas mobilizações nas ruas da cidade contra o aumento nas tarifas do transporte coletivo, as arbitrariedades da Polícia Militar e o silêncio da Prefeitura impõem à resistência a necessidade de novas táticas e formas de intervenção, ampliando o horizonte da luta e das articulações políticas em torno dela.

Dia-a-dia a repressão ao movimento se dá com crescentes violências e abusos, chegando a um limite insuportável na semana passada, em dois episódios que demonstraram claramente o estado de exceção implantado na cidade para destruir o movimento e revelaram a verdadeira face da “democracia”.

Na noite de 31 de maio, um pequeno ato na frente do campus I da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc) foi alvo do cerco policial. Marcado por um clima de tensão, o cerco da polícia impediu que as pessoas pudessem andar pelas calçadas ou mesmo atravessar a rua, culminando na invasão pela Polícia Militar do espaço da universidade, marcada por intimidações, agressões violentas e a prisão de 4 manifestantes.

Na quarta-feira, 02 de junho, a orientação da polícia foi a mesma, e o ato marcado para ocorrer no centro foi cercado por um grande cordão de policiais que sumariamente isolou os manifestantes do restante da população que passava nas proximidades do Terminal do Centro (Ticen) e impediu que a manifestação pudesse seguir, apesar das tentativas de furar o cordão policial.

Em declaração dada à imprensa, o tenente-coronel da PM Newton Ramlow divulgou que nessa semana um relatório com as fotos dos “líderes” do movimento será entregue ao Ministério Público, seguindo a recomendação do promotor Alexandre Herculano Abreu.

florianopolis-1O recrudescimento da repressão às manifestações e a iminência de processos criminais contra alguns dos militantes da Frente de Luta pelo Transporte Público forçaram setores até então pouco envolvidos com a luta a se manifestar, ampliando o grau de articulação política do movimento, que agora conta com o apoio mais consistente de sindicatos, comunidade acadêmica e demais organizações. Além disso, um grupo de juristas populares foi formado para a defesa dos manifestantes e para a tomada das medidas legais contra os abusos cometidos pela polícia e pelo Ministério Público estadual.

Mas o mais importante é que nesse momento a discussão se amplia da luta contra o aumento da tarifa para a luta por um outro modelo de transporte público. O grau de amadurecimento para que o movimento caminha aponta a necessidade da construção de uma campanha de fôlego na cidade, que pressione o poder público a realizar mudanças efetivas no transporte coletivo, com propostas radicais como a da Tarifa Zero no transporte público.

Todas estas questões se apresentam em aberto, mas o que de fato podemos prever é uma imensa vitória, pois cada ciclo de lutas carrega dentro de si um grande processo pedagógico, que não se perde e se acumula, ampliando o debate e as reivindicações e ensinando àqueles que se envolvem na luta concreta, com seus erros e acertos, aquilo que não se pode viver nos livros nem nas elucubrações teóricas.

Saiba mais sobre esta luta:
http://lataofloripa.libertar.org/
http://tarifazero.org/

Ilustrações, estas e as outras, tiradas daqui.

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Nazismo e Natureza

Nazismo e Natureza

USP, São Paulo, 19 de Abril de 2007, 18 h.

I

Nazismo e Natureza

USP, São Paulo, 19 de Abril de 2007, 18 h.

I

A afirmação de que «o nacional-socialismo não é mais do que biologia aplicada» era corrente entre os nazis. Ela deve-se ao eugenista Fritz Lenz, que a formulou em 1931, e atingiu em seguida uma grande difusão, nomeadamente graças a Rudolf Hess. Mas a origem desta concepção remonta ao célebre biólogo Ernst Haeckel, que afirmou que «a política é biologia aplicada».

Esta definição de política correspondia exactamente aos anseios do eugenismo. «A história da nossa ciência está intimamente ligada à história alemã mais recente», escrevia durante o Terceiro Reich Otmar von Verschuer, um dos principais representantes do movimento eugenista, que em 1935 passou a chefiar o Instituto de Biologia Hereditária e de Higiene Racial da Universidade de Frankfurt e que assumiu em 1942 o comando científico da política racial. «O chefe do império étnico alemão é o primeiro homem de Estado a recorrer aos dados da biologia hereditária e da eugenia enquanto princípio orientador da direcção do Estado». E o facto de cerca de metade dos médicos do Terceiro Reich serem membros do partido nazi revela não só que Hitler dispunha de uma infra-estrutura científica suficientemente vasta para prosseguir o seu programa biológico como indica também até que ponto as preocupações eugenistas estavam difundidas entre os cientistas alemães e austríacos.

A Eugenia foi um disciplina académica criada nos regimes democráticos que contribuiu decisivamente para a formação do quadro ideológico do nazismo. Praticamente todos os que se dedicavam ao estudo da genética e da evolução defendiam os princípios da eugenia, tal como o faziam também numerosos médicos e outros especialistas da biologia. André Pichot: «Durante muito tempo não houve uma distinção nítida entre eugenia e genética humana». Edwin Black: «Originariamente, genética humana e eugenia eram uma única e a mesma coisa».

Directo continuador da obra de Darwin, o seu primo Francis Galton, fundador da eugenia, desenvolveu o racismo em dois aspectos que teriam grandes repercussões. Por um lado, ele considerou em termos biológicos não só as diferenças de situação entre os povos, mas ainda as diferenças sociais no interior de cada povo, de maneira que a elite da classe dominante seria superior aos seus concidadãos sob os pontos de vista físico e mental. Esta noção não era nova, mas Galton transpôs para o quadro científico fundado por Darwin as concepções rácicas de elite que outros autores haviam sustentado em termos míticos e nebulosos.

Galton procedeu a uma segunda inovação, mais importante ainda, defendendo uma estratégia de progresso biológico e apelando para a intervenção directa e sistemática dos governos na evolução biológica da humanidade. Com o objectivo de aperfeiçoar a raça, seria necessário orientar os matrimónios da elite e promover-lhes a fertilidade, e ao mesmo tempo tomar medidas para condenar à extinção as famílias de elementos social, moral e biologicamente indesejáveis. Parece que nos últimos anos de vida Galton considerou que as suas teses não estavam suficientemente comprovadas e exprimiu dúvidas sobre a possibilidade de regular os matrimónios, mas a esmagadora maioria dos discípulos, em vez de partilhar tais hesitações, deu ainda maior dimensão à estratégia que havia sido delineada pelo mestre.

Os eugenistas promoveram a adopção de medidas legais e a introdução de modificações nos serviços médicos e sanitários com o objectivo de condicionar os casamentos, estimular a reprodução dos indivíduos pertencentes ao escol, desencorajar a reprodução dos indivíduos julgados inferiores ou mesmo impedi-la através do aprisionamento ou da esterilização sexual, e regular o fluxo de imigrantes. Com esta engenharia biológica os eugenistas pretendiam não só reforçar globalmente a raça tida como superior, mas ainda consolidar a supremacia da elite no interior dessa raça. A futura política hitleriana ficava assim traçada nas suas linhas fundamentais.

O racismo recebeu a consagração no direito internacional em 1919, na conferência de Paris, quando as democracias vencedoras na primeira guerra mundial se recusaram a introduzir nos estatutos da Sociedade das Nações uma cláusula de igualdade racial proposta pelo Japão. Vinte anos antes, ao ser aprovada em Haia uma convenção sobre métodos de guerra, que pretendeu abolir as formas de combate mais cruéis e mais bárbaras, o Reino Unido, embora sem assinar o acordo, reconheceu que ele tinha uma certa autoridade moral nas lutas entre brancos, mas não nas expedições coloniais contra os povos nativos. Este ambiente não podia deixar de ser propício à acção das sociedades de eugenia, que proliferaram nos meios universitários e científicos.

Entre todos os países ocidentais, os Estados Unidos destacaram-se pela difusão conseguida pela eugenia, a ponto de haver quem considere como o verdadeiro fundador da eugenia Charles Davenport, chefe incontestado dos eugenistas norte-americanos durante quatro décadas. Muitos dos principais especialistas de genética dos Estados Unidos foram membros de longa data das associações eugenistas e o mesmo sucedeu com numerosíssimas outras figuras prestigiadas do meio académico, tanto nos departamentos de biologia e zoologia como nos de psicologia, ciências sociais e antropologia. Mas a influência alcançada pelos eugenistas norte-americanos resultou também do facto de beneficiarem do apoio de algumas grandes fortunas e de contarem com o beneplácito, quando não mesmo com o entusiasmo, de instituições governamentais, nomeadamente o Departamento da Agricultura, com a sua rede de estações agronómicas, as forças armadas, o Departamento do Trabalho, algumas agências do Departamento de Estado e o comité da Câmara dos Representantes encarregado das questões de imigração.

Para fazer com que prosperassem e proliferassem os elementos biologicamente superiores e com que se extinguissem os elementos inadequados o movimento eugenista norte-americano propunha um conjunto de medidas financeiras destinadas a estimular a reprodução da elite e a tornar economicamente insustentável a sobrevivência das famílias tidas como biologicamente inferiores. Mas como sabiam que a arma económica seria insuficiente, os eugenistas defendiam também a segregação compulsiva dos elementos nocivos durante o período da fertilidade, para os impedir de procriarem. Uma medida deste tipo implicaria necessariamente a formação de enormes campos de concentração, e aliás as reservas índias ofereciam nos Estados Unidos um modelo evidente. A segregação em massa, porém, suscitava vários problemas, por isso os eugenistas propunham ainda outros métodos para exterminar as pessoas atingidas pela inferioridade biológica. As vítimas seriam muito numerosas, porque se tratava de segregar ou de eliminar, além das pessoas consideradas moral, cultural ou fisicamente deficientes, também os demais membros das suas famílias. Com efeito, a redescoberta dos trabalhos de Mendel levara os eugenistas a considerar que mesmo indivíduos sãos podiam ser portadores de condições ancestrais de degenerescência transmissíveis aos descendentes, tornando-se necessário impedir a reprodução não só dos elementos afectados mas igualmente de todos os familiares.

Eram ambições muito vastas, e para começar os eugenistas norte-americanos defendiam que a população do país, como aliás a dos outros países, possuía dez por cento de indivíduos que seria urgente eliminar. O processo não pararia ali, ou talvez nem parasse nunca, porque a saúde biológica da raça exigiria o extermínio progressivo de novos escalões inferiores, sempre calculados na proporção de dez por cento. Um comité especial da American Breeders Association criado em 1911, e que tinha como secretário Harry Laughlin, a segunda figura do movimento eugenista, definiu como objectivo a eliminação de dez grupos: os atrasados mentais, os miseráveis, os alcoólicos, os criminosos, incluindo pequenos criminosos, os epilépticos, os loucos, os fisicamente débeis, os predispostos a doenças específicas, os aleijados e, finalmente, os portadores de deficiências nos órgãos dos sentidos. Aliás, não existiam barreiras entre estas categorias, porque várias figuras prestigiadas no meio científico e universitário norte-americano consideravam que o pauperismo tinha raiz genética e era transmitido hereditariamente, ao mesmo tempo que se acreditava na existência de uma relação de ordem genética entre a epilepsia e a pobreza, bem como entre a epilepsia e a deficiência mental. E o mais notável dos oftalmologistas norte-americanos, Lucien Howe, com a ajuda de muitos dos seus colegas, prosseguiu uma incansável campanha visando a eliminação de todos aqueles que tivessem problemas de visão e dos seus familiares. Segundo os cálculos do comité animado por Laughlin, a primeira vaga de extermínio atingiria cerca de onze milhões de pessoas, o que equivalia então a mais de dez por cento da população do país, e a liquidação dos familiares representaria muitos milhões mais. Quando sabemos que os testes de inteligência concebidos por psicólogos eugenistas e aplicados oficialmente ás forças armadas dos Estados Unidos durante a participação na primeira guerra mundial revelaram entre os recrutas a espantosa percentagem de setenta por cento de atrasados mentais, podemos imaginar até que extremos deveria ser levado a purificação.

Não se tratava obrigatoriamente do assassinato em massa, embora tal solução não tivesse deixado de ser proposta. Já em 1900 um eugenista norte-americano defendera a câmara de gaz como o meio menos doloroso para impedir a reprodução dos indivíduos nocivos, e a aplicação deste método foi frequentemente discutida nas publicações eugenistas em língua inglesa. George Bernard Shaw sugeriu numa conferência proferida em Londres, em 1910, perante a Eugenics Education Society, «um uso extensivo da câmara letal». E acrescentou: « Teria de se pôr termo à vida de muitas e muitas pessoas, pela simples razão de que cuidar delas é um desperdício do tempo alheio». Madison Grant, presidente da Eugenics Research Association e da American Eugenics Society e um dos trustees do Museu Americano de História Natural, escreveu num livro publicado em 1916: «As leis da natureza requerem a obliteração dos inaptos, e a vida humana só é valiosa na medida em que for útil à comunidade ou à raça». Mesmo sem recorrerem às câmaras de gaz, que afinal só foram adoptadas nos Estados Unidos em 1921 para a execução de criminosos, algumas instituições públicas norte-americanas destinadas a acolher deficientes mentais, epilépticos e tuberculosos funcionavam de maneira deliberadamente mortífera, deixando os internados serem infectados com alimentos em mau estado ou com excrementos ou com picadas de insectos. No Terceiro Congresso Internacional de Eugenia, reunido em 1932 em Nova Iorque, Davenport declarou: «Podemos até encarar com satisfação a elevada taxa de mortalidade numa instituição destinada a atrasados mentais profundos, enquanto consideramos como um desastre nacional a perda de [...] uma criança gerada por pais de excepção». Mas foi sobretudo à esterilização sexual que os eugenistas recorreram com o objectivo de exterminar grupos biológicos e sociais. E se os resultados do programa posto em prática parecem hoje assustadores, não devemos esquecer que para os dirigentes do movimento eugenista eles ficaram então muitíssimo aquém do desejado.

Decerto contribuiu para a precocidade com que a esterilização sexual foi adoptada nos Estados Unidos o facto de existir aí uma tradição de castração dos implicados em crimes sexuais, iniciada por uma lei de 1855, no Kansas, que previa a aplicação desta pena aos negros e mestiços culpados da violação de mulheres brancas. Finalmente, depois de uma vigorosa campanha conduzida pelas associações eugenistas, o Supremo Tribunal Federal admitiu em 1927 a esterilização sexual dos criminosos e dos deficientes mentais. A partir de então a esterilização passou a constituir uma lei do país.

Não bastava, porém, limpar a raça no interior do país se ela estivesse exposta às contaminações provenientes do exterior. Assim, a promoção demográfica da elite e a esterilização sexual ou a liquidação dos elementos considerados nocivos deviam ser acompanhadas por um severo controlo racial da imigração. Os eugenistas norte-americanos consideravam geneticamente indesejável a maior parte das pessoas chegadas após 1890. A principal personalidade do movimento eugenista, Davenport, defendeu numa obra de 1911 que se continuassem a entrar imigrantes oriundos do sudeste europeu os Estados Unidos alterariam as suas características raciais e a população tornar-se-ia mais propensa ao crime e à imoralidade sexual. Na mesma obra Davenport opôs-se igualmente à imigração de judeus. Em 1917 o Congresso proibiu a imigração de deficientes mentais, epilépticos e outras pessoas portadoras de inferioridades psicopáticas constitucionais. Dois anos mais tarde a presidência do Comité da Câmara de Representantes para a Imigração e a Naturalização foi entregue a um eugenista convicto, unido por relações particularmente estreitas a Madison Grant, que aos seus outros cargos reunia o de vice-presidente da Immigration Restriction League. Laughlin, a segunda figura do movimento eugenista, recebeu funções oficiais naquele Comité, e a partir dali, com a ajuda do Secretário do Trabalho, teceu a rede que levaria o Congresso a aprovar em 1924 a National Origins Quota Law. Além de prever formas de selecção destinadas a afastar os portadores de deficiências hereditárias, esta lei estabelecia um limite máximo para o número de imigrantes aceite anualmente e, usando os resultados do recenseamento de 1890 como base para a definição de quotas, reduzia drasticamente a entrada de não nórdicos e procurava orientar a composição étnica da população. Na realidade as dificuldades práticas foram maiores do que os eugenistas haviam previsto, e os grupos étnicos interessados contestaram a validade dos dados do recenseamento de 1890. Depois de adiar o problema por vários anos, o Congresso recorreu em 1931 ao recenseamento de 1920 para fixar as quotas de imigrantes, consoante um sistema que se manteve em vigor até 1952.

Apesar de tudo, o governo dos Estados Unidos consagrara na lei a resolução de um problema social consoante um critério racial, e os eugenistas alemães aplaudiram. Hitler, em Mein Kampf: «Recusando liminarmente a imigração às pessoas não saudáveis e excluindo simplesmente da naturalização certas raças, ela manifesta o começo progressivo de uma perspectiva que é específica da concepção racista de Estado».

Durante as três décadas iniciais do século XX foram os norte-americanos quem encabeçou o movimento eugenista internacional, e eles influenciaram de maneira durável o desenvolvimento do racismo germânico. As relações entre os eugenistas de ambos os países mantiveram-se sempre muito estreitas, apesar da primeira guerra mundial. E assim como a Rockefeller Foundation contribuiu financeiramente para o movimento eugenista nos Estados Unidos, subsidiou também as pesquisas biológicas e raciais na Alemanha, continuando a fazê-lo entre 1933 e 1939.

Hitler deu provas de conhecer com certo detalhe as teorias e as realizações práticas dos eugenistas norte-americanos, não só em Mein Kampf como em conversas particulares. Nos primeiros anos da década de 1930 Hitler enviou uma carta elogiosa ao presidente da American Eugenics Society, Leon Whitney, e ao mesmo tempo enviou outra carta a Madison Grant, classificando como «a minha Bíblia» uma obra sua, traduzida e publicada na Alemanha em 1925, onde a primeira guerra mundial era interpretada como um conflito entre raças, em termos que influenciaram directamente a tipologia do racismo nazi.

As medidas eugenistas adoptadas pelo Terceiro Reich inseriram-se, portanto, num movimento muito amplo iniciado pelas democracias, e uma boa parte da literatura racista nazi só parecerá estranha a quem desconhecer os textos emanados das sociedades eugenistas dos outros países. Os eugenistas norte-americanos consideravam que da sua acção resultaria a criação de uma nova raça superior e em 1934 o Director de Ciências da Natureza da Rockefeller Foundation, Warren Weaver, perguntava «se será possível desenvolver uma genética tão extensiva e bem fundamentada que se possa esperar a criação, no futuro, de homens superiores?». Era esta precisamente a questão a que Hitler iria responder. Um artigo publicado no Eugenical News em 1943 invocava as pesquisas de Charles Davenport, o patriarca da eugenia norte-americana, para anunciar uma nova humanidade constituída por castas biológicas, com raças de senhores e raças de servidores.

Observa André Pichot que se definirmos o nacional-socialismo como a aplicação à política de critérios procedentes da biologia, então as leis eugenistas promulgadas pelos governos democráticos não foram menos hitlerianas.

As críticas que os eugenistas alemães faziam aos colegas norte-americanos não diziam respeito a questões gerais mas à maneira aleatória como as leis eram aplicadas nos Estados Unidos.

Em 1932 Charles Davenport abandonou a presidência da Federação Internacional das Organizações Eugenistas e para lhe suceder foi eleito Ernst Rüdin, que em 1936 assumiria a chefia do Instituto de Higiene Racial de Munique, um dos centros científicos cruciais para o programa rácico nacional-socialista. Nestas condições, os congressos eugenistas internacionais efectuados em 1934, 1935 e 1936 aprovaram a política seguida pelo Terceiro Reich. Mas de todos os países estrangeiros foi sobretudo nos Estados Unidos que as medidas raciais tomadas por Hitler beneficiaram da benevolência ou até do entusiasmo dos cientistas e dos vulgarizadores activos no movimento eugenista. Mesmo aqueles eugenistas norte-americanos que se opunham ao anti-semitismo de Hitler lhe elogiavam as disposições de esterilização compulsória. A partir de 1933 Laughlin assegurou que o Eugenics Record Office, a Eugenics Research Association e o Eugenical News mantivessem um apoio indefectível às medidas eugenistas e raciais implementadas no Terceiro Reich. De então em diante não houve ano nenhum em que as sociedades eugenistas dos Estados Unidos, o Eugenical News e outras publicações científicas influenciadas pelos eugenistas deixassem de proceder, muitas vezes em termos encomiásticos, à apologia do nacional-socialismo enquanto aplicação da doutrina eugenista. Só com a entrada dos Estados Unidos na guerra, em Dezembro de 1941, é que os aplausos públicos cessaram, embora com relutância, e em 1943 o Eugenical News começou a publicar também artigos críticos do nazismo.

Neste contexto, apercebemo-nos de que não foi devido a qualquer crueldade gratuita, mas para prosseguirem certos debates teóricos e certas pesquisas práticas em curso entre os eugenistas, que vários médicos nazis martirizaram nos seus laboratórios os internados nos campos de concentração. O facto que mais nos choca nas experiências dos médicos nazis – que uma profissão cujo objectivo é curar em vez disso torture e mate, e que se usem as informações adquiridas profissionalmente para vitimar os pacientes – assinalara já num âmbito maciço a longa campanha promovida pelo emérito oftalmologista norte-americano Lucien Howe e pelos seus colegas para segregar ou esterilizar sexualmente as pessoas com problemas de visão e todos os membros das suas famílias, e em diversos países democráticos, mesmo antes de as leis o permitirem, era uma prática bastante frequente entre médicos de cadeias e de estabelecimentos para doentes mentais esterilizar ou castrar pessoas cuja saúde lhes fora confiada. Os médicos eugenistas tinham um duplo ponto de vista, consoante consideravam o paciente como um elemento da elite biológica ou um elemento inferior, e foi precisamente esta dualidade que justificou as experiências médicas nos campos de concentração.

II

O fundador da ciência ecológica foi o biólogo alemão Ernst Haeckel, que na sua Morfologia Geral dos Organismos, publicada em 1866, empregou pela primeira vez a palavra «ecologia» para designar a relação dos animais com o seu meio.

Haeckel reivindicou para a ciência da evolução biológica o carácter de uma ciência histórica. Para ele, isto correspondia a supor que a história da humanidade se regesse por mecanismos idênticos aos que ditavam a evolução das espécies. Numa das Trinta Teses sobre o Monismo, redigidas em 1904 e publicadas quatro anos depois, Haeckel insistiu na afirmação de que toda a natureza, tanto orgânica como inorgânica, estava sujeita a um processo de evolução único.

O tipo de história que Haeckel aplicava ao estudo da evolução caracterizava-se por confundir o geral e o individual. Segundo Haeckel, «a ontogénese [história da formação do indivíduo] é uma recapitulação resumida e condensada da filogénese [história da espécie], condicionada por leis de hereditariedade e de adaptação». A aplicação desta tese à sociedade tornou-se um lugar-comum através da concepção de que as fases do desenvolvimento do ser humano corresponderiam à evolução da humanidade, de modo que os povos considerados primitivos eram assimilados a crianças. Como observou ironicamente Ernst Mayr: «Se fosse verdade, seria um princípio heurístico realmente maravilhoso». Para aplicar à análise da sociedade um modelo histórico deste tipo é necessário pressupor uma perfeita concordância da formação dos indivíduos com o desenvolvimento do grupo social dominante. Política e pedagogia conservadoras.

Haeckel seguiu a vertente mais declaradamente racista do darwinismo. Foi ele o primeiro a usar a teoria da evolução para propor uma classificação hierárquica das raças humanas, situando os negros no nível inferior e colocando no estádio mais avançado os alemães, os anglo-saxónicos e os escandinavos. Adversário activo da mestiçagem, Haeckel foi um entusiasta da eugenia, tendo sido nomeado em 1904 presidente honorário da recém-fundada Sociedade de Higiene Racial.

André Pichot: «A Liga Monista, que Haeckel fundara para difundir a sua doutrina, é [...] considerada hoje como um dos laboratórios onde se formou aquilo que viria a ser a doutrina biológico-política nazi». E o facto de essa associação ter prosseguido a sua propaganda também no meio operário contribuiu para os cruzamentos ideológicos indispensáveis à constituição do fascismo.

Haeckel morreu em 1919, com oitenta e cinco anos, vociferando em termos anti-semitas contra a república dos conselhos bávara. E enquanto membro da Thule Gesellschaft, Haeckel situou-se no próprio centro gerador do nacional-socialismo. Associação esotérica de carácter estritamente racista, cujo nome se referia ao célebre mito hiperboreal, a Thule Gesellschaft atraiu várias figuras da alta sociedade de Munique e abriu as portas igualmente a alguns boémios da extrema-direita mais violentamente racista como Dietrich Eckart, Julius Streicher, artistas desempregados como Alfred Rosenberg e jovens estudantes como Rudolf Hess e Hans Frank. Convidados frequentes eram também Anton Drexler e Gottfried Feder, fundadores e provisórios chefes de um grupúsculo, o Partido Operário Alemão, que Hitler em breve viria a chefiar. Em 1919, quando a revolução alemã chegara ao auge e Munique se encontrava governada pelos conselhos de operários e soldados, a Thule Gesellschaft mantinha-se em estreito contacto com o corpo franco Oberland, cuja intervenção havia de ser decisiva para o massacre da república dos trabalhadores. A Thule Gesellschaft assinalava, portanto, boa parte dos contornos de um novo espaço político e ideológico, e ao morrer no exacto momento em que o hitlerismo se começava a formar, e no preciso meio em que ele se formava, Ernst Haeckel estabeleceu um elo ininterrupto de continuidade entre a ecologia científica e a política racista. Quando ele formulou a definição de que «a política é biologia aplicada», abriu o caminho que permitiu mais tarde aos seguidores de Hitler proclamarem que «o nacional-socialismo não é mais do que biologia aplicada».

Foi através da ecologia que os nacionais-socialistas inseriram o racismo num quadro ideológico e prático mais vasto. Quando sabemos que os eugenistas colocavam os métodos de aperfeiçoamento biológico da raça no mesmo plano das melhorias a introduzir na criação do gado e na cultura selectiva das plantas e quando recordamos que eram muito estreitos os contactos entre as associações de criadores de gado e as sociedades eugenistas, compreendemos a relação existente entre o racismo e a ecologia na doutrina hitleriana. O regime nazi levou a cabo um conjunto de medidas que qualquer ecologista dos nossos dias não deixaria de aprovar. As primeiras reservas naturais na Europa foram criadas pelos nacionais-socialistas, e em 1935, precisamente no mesmo ano em que eram promulgadas as chamadas Leis de Nuremberga, destinadas a assegurar a preservação e o desenvolvimento da raça nórdica, publicava-se um complexo legal visando a preservação da natureza, com um escopo sem precedentes. O apoio dos ambientalistas não se fez esperar. Em 1939 estavam inscritos no NSDAP 60% dos membros das principais associações de protecção da natureza que haviam existido durante a república de Weimar.

P. Staudenmaier: «Mal começava o século XIX, e já estava solidamente estabelecida a relação mortífera entre o amor à terra e o nacionalismo racista militante». «Já no seu início [...] a ecologia manteve uma relação íntima com um meio político veementemente reaccionário». «O aparecimento da ecologia moderna formou o último dos elos na cadeia fatídica que interligou o nacionalismo agressivo, o racismo de propensão mística e as preferências ambientais». «No ponto central deste complexo ideológico encontra-se a aplicação directa e sem mediações das categorias biológicas à esfera social».

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Subjacente às ideologias ecológicas está um axioma fundamental - o mito da natureza. Aliás, as contradições internas da sociedade são sistematicamente convertidas pelos ecologistas em contradições entre a sociedade e a natureza, ficando deste modo escamoteados o processo de exploração e todas as suas consequências.

Atribuir à natureza um estado originário de equilíbrio e remeter para ela os postulados genéricos de todos os demais equilíbrios é procurar aí a justificação de ilusórias harmonias sociais e, portanto, é alienar da sociedade os seus modos de funcionamento. A naturalização constitui a forma suprema de reificação. A partir do momento em que um dado padrão de ordem é apresentado como natural ele torna-se eterno e indiscutível. A aceitação do mito da natureza corresponde ao triunfo absoluto da tradição.

A todos os desequilíbrios inerentes à natureza devemos somar mais um, o da acção social, que, sendo sempre contraditória, só pode entender-se como um desequilíbrio determinante de desequilíbrios. Não existe natureza senão como objecto da acção humana.

Longa acção humana de interferência nas espécies vegetais e animais. A maior parte da «natureza» que hoje se vê não é natural; é um produto da história da humanidade.

Todas as tecnologias, enquanto materialização de dados sistemas de relacionamento social, surgiram não só para solucionar desequilíbrios humanos, criando desequilíbrios novos, mas igualmente para resolver desequilíbrios mais ou menos agudos resultantes da apropriação social da natureza, e para inaugurar formas diferentes de desequilíbrio. A civilização industrial limitou-se inicialmente a resolver os desequilíbrios insustentáveis que haviam resultado das tecnologias anteriores e das formas de exploração que a precederam, e a partir de então tem encontrado resposta aos desequilíbrios que ela própria criou, avançando para outras modalidades contraditórias, e por isso desequilibradas.

Nem sequer se deve julgar que a civilização industrial atingiu uma potencialidade destruidora superior, em termos relativos. Bem pelo contrário, pode definir-se como regra que quanto mais rudimentares forem os meios técnicos empregues por uma sociedade tanto mais vastas serão as repercussões da sua acção sobre a natureza, por comparação com os resultados obtidos no plano da produção material.

O capitalismo é o único modo de produção a exigir a instabilidade, quando todos os sistemas económicos anteriores procuraram garantir que as suas condições de funcionamento se conservassem inalteradas. Só o capitalismo não pode existir sem permanentes crises sectoriais e regionais, sem a ininterrupta adaptação a novas técnicas e novos sistemas organizativos, sem que estejam sempre a ser lançadas no desemprego multidões de trabalhadores enquanto outras são absorvidas por novos ramos de actividade, sem a contínua deslocação de volumes muito consideráveis de capital e a migração de enormes vagas humanas. Mas um modo de produção que, para assegurar a vitalidade dos seus fundamentos, não pára de pôr em causa as suas formas episódicas e de substituí-las por outras parece correr um risco grave. Será que os explorados, educados para considerarem a mutabilidade de todos os meios de vida e de todas as condições de existência, acabarão afinal por admitir a precaridade do próprio regime de exploração? Foi neste quadro que surgiu a necessidade do mito da estabilidade rural.

A apologia da vida campestre tem sempre servido de adorno ideológico ao crescimento da grande produção fabril. São regimes promotores da industrialização, ou mesmo francamente tecnocráticos, a propor a pretensa harmonia rural como padrão de comportamento genérico. Enraizar a ordem e a obediência às hierarquias numa sociedade em mudança contínua, conseguir o milagre de enxertar a estabilidade dos modos de vida e de pensamento sem comprometer a necessária instabilidade da economia e os ritmos acelerados da produção - eis a ambição de quem promove o mito do campesinato e das suas raízes. As maiores companhias transnacionais sustentam hoje organizações não-governamentais destinadas a alertar a opinião pública acerca dos riscos da poluição e a promover outras causas ecológicas, e nada há de contraditório nesta conjugação, já que as mesmas empresas que poluem ou que destroem o meio ambiente ganham redobradamente, depois, a vender serviços de limpeza da poluição e a reconstituir o meio ambiente. O capitalismo assimilou a ecologia enquanto um dos elementos do seu dinamismo.

*

Os ecologistas pretendem policiar a natureza e a relação entre a humanidade e a natureza do mesmo modo que os eugenistas se haviam dedicado a policiar a reprodução biológica dos seres humanos. Em ambos os casos se trata de uma vasta campanha por parte de meios académicos para ultrapassar as instituições governamentais e adquirir um poder directo sobre a vida alheia, convertendo-se numa tecnocracia científico-administrativa. Enquanto seria de esperar a existência entre a população comum de um movimento de desconfiança pelo secretismo em que os cientistas prosseguem as pesquisas e pela obscuridade terminológica com que envolvem os seus resultados, passa-se exactamente o contrário, e os leigos nestas matérias delegam aos cientistas ecológicos a função de fiscalizar a restante actividade científica. Há já várias dezenas de anos, Ivan Illich soube prever e denunciar uma situação deste tipo: «Não está excluído de maneira nenhuma que, assustadas com os perigos que as ameaçam, as pessoas coloquem o seu destino nas mãos de tecnocratas que se encarregariam de manter o crescimento justo aquém do limite de destruição da vida. Este fascismo tecnocrático asseguraria igualmente a subordinação total dos homens aos instrumentos, enquanto produtores e consumidores».

Com o objectivo de estimular um ambiente de ansiedade propício à imposição de um controlo global, os ecologistas atribuem à sociedade uma função sistematicamente negativa e à natureza uma função positiva. É esclarecedor que num elevado número de casos os ecologistas se tenham oposto à implementação de medidas destinadas a solucionar os problemas que eles próprios consideram existir, com o pretexto de que tais medidas hão-de por sua vez trazer efeitos negativos, mas esquecendo-se de os comparar com os efeitos positivos. Os ecologistas, presos ao mito do bom selvagem, idealizam uma humanidade que só seria meritória se se confundisse com a natureza.

Parece-me indispensável a leitura do livro de Lomborg. Quando se trata da relação da sociedade com a natureza um grande número de profissionais do meio científico aceita com frequência teses sem verificar a exactidão das fontes, procede a extrapolações ilegítimas e usa as estatísticas de maneira abusiva ou errada, mesmo deliberadamente errada, com o objectivo de sustentar uma convicção em vez de verificar os seus fundamentos - e percebemos então que a ecologia não é tratada pelos seus promotores como uma ciência, mas como uma fé. Só porque a ciência adquiriu a hegemonia em todo o tipo de discursos é que a ecologia se reveste das formas aparentes do método científico. O carácter irracional da ecologia detecta-se quando constatamos que os seus representantes confundem sistematicamente as projecções com as previsões. Ao apresentarem as projecções como se fossem previsões e ao basearem-nas tantas vezes em dados falsos, ou até em dados nenhuns, os ecologistas ampliam à escala planetária o mito conservador da decadência civilizacional. Esta é a sua relação profunda com a extrema-direita.

Janet Biehl e Peter Staudenmaier (1995) Ecofascism. Lessons from the German Experience, Edimburgo e San Francisco: AK Press.

Edwin Black (2003) War Against the Weak. Eugenics and America’s Campaign to Create a Master Race, Nova Iorque e Londres: Four Walls Eight Windows.

Bjørn Lomborg (2001) The Skeptical Environmentalist. Measuring the Real State of the World, Cambridge: Cambridge University Press.

André Pichot (2000) La Société Pure. De Darwin à Hitler, Paris: Flammarion.

segunda-feira, 31 de maio de 2010

Jovem operário é torturado pela polícia na periferia de Franca (São Paulo)

Jovem operário é torturado pela polícia na periferia de Franca (São Paulo)

Os policiais o fizeram entrar no camburão, o levaram para um ponto deserto do bairro, onde o espancaram por mais de duas horas. Agressões que não deixaram marcas físicas aparentes. Após saciarem suas frustrações, o liberaram. Por Suvarine

[Na seção Movimentos Em Luta temos reproduzido os comunicados da Rede Contra a Violência e das Mães de Maio denunciando a brutalidade policial, os espancamentos, as torturas e os assassinatos. Agora publicamos, enviado por um leitor, o relato de mais um desses casos. É urgente alertar para o que se passa e nos unirmos para colocar fim à impunidade policial. Passa Palavra]

suvarine-2Na última sexta-feira, dia 29 de maio de 2010, recebi um telefonema, por volta das 22h30. Do outro lado da linha estava uma mãe aos prantos e precisando desabafar. Seu filho havia saído de casa às 20h para buscar a namorada e acabara de chegar, após mais de duas horas de agonia da namorada e da mãe, preocupadas com o sumiço dele; não dera notícias e não atendia o celular [telemóvel]: teria sofrido um acidente? Haviam ligado para os amigos, pedido informações à vizinhança, andado pelas ruas adjacentes, mas não encontraram nenhum sinal dele.

O rapaz é um jovem operário com cerca de 21 anos, trabalhador de um dos curtumes do município paulista conhecido internacionalmente pela fabricação de calçados masculinos de couro. Os curtumes são fábricas de couros caracterizadas pelo trabalho predominante braçal, pesado e sob condições insalubre. O jovem em questão exerce a profissão de curtumeiro desde os 17 anos de idade. Cumpre uma jornada de trabalho que se estende de segunda a quinta-feira das sete horas da manhã até às oito e meia da noite. Os serões, como são conhecidos, são uma estratégia recorrente dessas fábricas para aumentar a produção.

Às sextas-feiras sai no horário normal, 17h00, isso porque costuma trabalhar durante todo o dia de sábado. Nessa sexta, chegara em casa cansado da dura lida, tomou um banho, abriu uma latinha de cerveja e bebeu para relaxar. A namorada lhe telefonou e ele foi buscá-la. No meio do caminho passou por uma blitz [operação stop] policial que o parou. Para a polícia era um típico suspeito: jovem morador da periferia, vestindo roupas típicas do movimento Hip-Hop e pilotando uma moto. Apresentou os documentos e foi revistado, tendo a polícia encontrado um baseado [cigarro de maconha, marijuana, muito comum] sob sua posse.

Os policiais o fizeram entrar no camburão [viatura para transportar presos]. Iriam autuá-lo? Mas apenas por uma baseado? Não. Possuíam outros planos. O levaram para um ponto deserto do bairro, onde o espancaram por mais de duas horas com o objetivo de obterem informações sobre o traficante que lhe vendera o baseado: tapas na cara, safanões, socos na boca do estômago e xingamentos [insultos]. Agressões que não deixaram marcas físicas aparentes. Após saciarem suas frustrações e seu sadismo, o liberaram. Não fora a primeira vez que levara uma geral, mas foi a primeira vez que foi vítima de espancamento. Chegou em casa pálido, aos prantos, com fortes dores e vômitos.

Ao ouvir seu relato pelo telefone, minha reação imediata foi dizer que deveria registrar uma queixa. Mas a resposta que recebi foi mais do que esperada: recusou-se. E sua justificativa foi objetiva: “Não vai acontecer nada com os policiais; eu vou ficar marcado e da próxima vez que me pegarem eles me matam.” O que dizer frente a uma realidade tão cruel?

Soube que na manhã seguinte o jovem operário se levantou, após a noite mal dormida e ainda com dores pelo corpo, além do grande trauma. Era sábado, mas vestiu seu uniforme, colocou a mochila nas costas e foi cumprir mais uma jornada extraordinária de trabalho. Afinal a produção não pode parar, o patrão precisa de seus funcionários para que possa continuar a aumentar sua bela coleção de carros, cuidadosamente estacionados em um galpão [armazém] de sua fábrica.

Infelizmente, casos como esse não são novidade para mais ninguém, ocorrem diariamente nas periferias de nossas cidades; mas até quando vamos permitir que continuem a ocorrer? O que podemos fazer frente à certeza da impunidade e à ameaça da represália? Nos conformar? Espero que não. Me veio à mente um trecho de uma música ouvida por esse jovem:

“Tá na hora de parar de mofar no presídio, de estar no necrotério
Com uma par de tiros, de ser o analfabeto comendo resto viciado que
O denarc manda pro inferno.”
(Discurso ou Revólver. Facção Central)

quarta-feira, 26 de maio de 2010

Florianópolis: atos descentralizados dão novo fôlego à resistência

Florianópolis: atos descentralizados dão novo fôlego à resistência

Após duas semanas intensas, a luta contra o aumento das tarifas do transporte coletivo em Florianópolis se apresenta renovada em suas táticas e disposta a resistir o quanto for preciso. Por Passa Palavra

Acompanhe a cobertura completa da luta clicando aqui.

Na sequência do último grande ato, que reuniu milhares de pessoas nas ruas de Florianópolis na quinta-feira, 20 de maio, novas manifestações têm ocorrido de forma espontânea e descentralizada pela cidade.

florianopolis-1No dia 21 de maio, sexta-feira, mesmo com a chuva que caiu no final da tarde, manifestantes se reuniram mais uma vez no centro para chamar a população para a luta. Quando a polícia já não acreditava mais na possibilidade de que um ato de rua pudesse ser organizado, o pequeno número de pessoas que se encontrava concentrado ali resolveu sair em protesto.

Depois de fechar a entrada dos ônibus no terminal por cerca de 15 minutos, até que o Grupo de Resposta Tática (GRT) da Polícia Militar aparecesse, sendo prontamente despistado com um grande “olééé!” dos manifestantes, o ato seguiu pela Felipe Schmidt, ganhando no terminal e nas ruas a participação da população. Com cerca de 250 pessoas, o que dava rapidez e mobilidade para o ato, e aproveitando a ausência da polícia, que não havia organizado seu efetivo para segurar a manifestação, o protesto seguiu passando pela Praça XV e fechando cruzamentos importantes na Rua Hercílio Luz e na Avenida Mauro Ramos.

Já na Mauro Ramos, o descontrole e despreparo da Polícia Militar transformaram a manifestação, que seguia tranquila e animada, em mais um triste capítulo de violência, brutalidade e arbitrariedade da força policial. O que vivemos foi mais uma perseguição covarde, agressões físicas e ameaças gratuitas da PM.

Choques elétricos, golpes de cassetetes, chutes e tentativas de atropelamento provocaram dor e medo nos manifestantes, que seguiam como podiam de volta para o Ticen (Terminal do Centro). As viaturas da polícia passavam a toda velocidade, tentando passar por cima das pessoas e desferindo gritos de xingamentos [insultos] e ameaças de prisão. De forma aleatória e arbitrária, dois manifestantes acabaram presos, sofrendo agressões antes e depois de estarem algemados.

florianopolis-7Nem mesmo a grande mídia, que acompanhava o ato, escapou: um jornalista também foi arbitrariamente preso, um fotógrafo teve parte de sua câmera quebrada por um policial e um outro jornalista quase foi atropelado por uma das viaturas da polícia.

As arbitrariedades continuaram na Delegacia, deixando evidente a disposição do Comando da PM de tentar acabar com a luta através do medo e da criminalização. Somente depois de 7 horas de espera os dois manifestantes puderam prestar depoimento, e só foram liberados após o pagamento de fiança no valor de R$ 400,00 cada um, sofrendo acusações de desacato, além do absurdo de “depredação do patrimônio público”, acusação forjada com fotos de pichações e de lixeiras quebradas dias antes, como se fosse deles a responsabilidade por tais danos.

A estratégia dos poderosos que estava sendo traçada, de criminalização e de inviabilizar financeiramente o movimento com a cobrança de fianças, não contou com um importante elemento: a opinião pública da cidade. O erro cometido, de agredir e prender jornalistas da grande mídia, acabou jogando um grande peso nas costas da Polícia Militar, que se viu deslegitimada e pressionada a mudar sua postura. Foi o que se viu nos atos ocorridos nesta segunda-feira, 24 de maio.

No centro da cidade, um ato de denúncia da agressão policial foi organizado, com a apresentação de um teatro de rua para a população que se dirigia para o Ticen. Após a apresentação do teatro o grupo, que contava com cerca de 150 pessoas, saiu em caminhada pelo centro, recebendo a notícia de que naquele mesmo momento manifestantes fechavam a Avenida Madre Benvenuta, nas proximidades da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc). A notícia deu novo ânimo aos militantes, que decidiram seguir para a Avenida Mauro Ramos, fechando as duas pistas por vários minutos e mais uma vez trancando a entrada dos ônibus na volta ao Ticen. Após o ato ser finalizado, boa parte dos manifestantes seguiu ao encontro da outra manifestação.

florianopolis-5O ato na Avenida Madre Benvenuta, organizado de surpresa, seguiu em direção ao Shopping Iguatemi e ali ocupou a Avenida Beira Mar Norte, até o Terminal da Trindade (Titri). No Titri os manifestantes decidiram retornar na direção do shopping, seguindo pela Rua Lauro Linhares até a rótula (rotatória) no acesso principal à Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Nesse momento o protesto começa a ganhar a adesão de vários estudantes da UFSC, mantendo a rótula fechada por um longo período de tempo, o que causou filas enormes de carros e ônibus.

Depois de trancar a rótula, a decisão foi de voltar para a Avenida Beira Mar Norte, tomando as duas pistas da avenida até o Titri, que foi ocupado pelos manifestantes já por volta das 23h. Um princípio de tumulto ocorreu quando algumas pessoas tentaram fechar uma das entradas do terminal; porém, foi rapidamente resolvido e depois de uma pequena assembléia os manifestantes retornaram para casa sem pagar as passagens, uma vez que já haviam ocupado o terminal.

Todo o ato foi acompanhado mais ou menos de longe por algumas viaturas da polícia e bem de perto por diversos repórteres da grande mídia.

Grandes atos estão marcados para ocorrer durante toda semana, mas certamente serão as manifestações-surpresa que deverão dar a tônica no processo.

ATUALIZAÇÃO

Depois de um dia de trégua, em que a polícia atuou sem truculência contra os manifestantes, na tarde desta terça-feira, 25 de maio, a orientação da PM mais uma vez foi de reprimir de forma arbitrária e violenta o protesto. A manifestação, que seguia de forma pacífica e tranquila pelas ruas do centro, atingindo a Avenida Mauro Ramos, foi atacada pelo Grupo de Resposta Tática da PM, que prendeu sem qualquer justificativa 3 pessoas, uma delas abordada de forma violenta por um P2 (policial à paisana) que após imobilizá-la a entregou para um de seus colegas fardados.

Fotografias de Hans Denis Schneider.


fonte:http://passapalavra.info/?p=24322

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Universidades: burocratização, mercantilização e mediocridade (2ª Parte)

Universidades: burocratização, mercantilização e mediocridade (2ª Parte)


As crescentes burocratização e mercantilização do mundo acadêmico são facilitadas pelo fato de os objetos de conhecimento e os ambientes de trabalho predominantes de várias das ciências sociais terem sempre sido o Estado e o mercado capitalista e não os movimentos sociais e suas organizações. Por Marcelo Lopes de Souza [*]

[Pode ser lida aqui a primeira parte deste artigo.]

goya-9A burocratização e a mercantilização têm propiciado as condições ideais para que os “inovadores” se vejam, cada vez mais, acuados por “burocratas” e “(micro)empresários”. Ao mesmo tempo, a impressão que se tem é de que cresce a quantidade destes em comparação com a quantidade de “inovadores” e mesmo de bons “disseminadores”. Na realidade, o que ocorre é que se multiplicam as recompensas para “inovadores” que, candidatos a “caciques”, aceitem absorver algumas das técnicas e artimanhas de “burocratas” e “(micro)empresários”.

Em tempo, para evitar um mal-entendido: “inovador” não é sinônimo de “gênio”. Não se parte do pressuposto delirante de que, para atuar e ser reconhecido por seus pares como um “inovador”, cada professor universitário deve revolucionar sua área de conhecimento, ter livros traduzidos para uma dúzia de línguas estrangeiras ou colecionar prêmios nacionais e internacionais – da mesma forma como não se deve imaginar que, para disseminar competentemente o saber e comunicar-se bem com os pares, os estudantes e o público leigo, seja preciso que o professor possua um incomum talento retórico e uma vocação para “celebridade” midiática. A única premissa é aquela que, inclusive, está embutida nas exigências institucionais mais corriqueiras: que o professor universitário seja, também, um pesquisador, e que, do mesmo modo como se espera que ele, enquanto docente, ministre boas aulas, possa ele, na qualidade de pesquisador, gerar (criar) conhecimento novo.

Ademais, não é o caso de, hipocritamente, negar que é geralmente muito bom que um ou outro colega com talento e capacidade administrativos revele interesse em assumir cargos na administração acadêmica. O princípio da administração da universidade por ela própria, tão deformado no Brasil (porque, ao mesmo tempo em que falta uma genuína autonomia, escasseia a infraestrutura de suporte), implica que as funções de direção, nos diversos níveis, devem ser exercidas por quadros docentes, e não por funcionários que nada tenham a ver diretamente com o ensino e a pesquisa. Além disso, quando as condições materiais e institucionais propiciam o respeito e a cooperação necessários, a administração acadêmica pode, inclusive, assumir traços de atividade de formulador de políticas e estratégias acadêmico-institucionais, exigindo do ocupante do cargo qualidades como arrojo, senso de oportunidade (o que é diferente de oportunismo), vontade de inovação, etc. Nessas condições, exercer um cargo acadêmico pode ser, até mesmo do ponto de vista intelectual (para não falar no “prestígio”, nos marcos de uma sociedade heterônoma que reproduz hierarquias), algo compensador. Não é à toa que, nos institutos e departamentos daquelas que são consideradas as melhores universidades do mundo, os cargos de direção mais diretamente vinculados ao quotidiano dos institutos e departamentos geralmente não são confiados a alguém por conta de sua capacidade meramente burocrática; exige-se uma certa “representatividade”, um certo prestígio acadêmico para estar à frente, formalmente, como um “primeiro entre pares”. (Nem é preciso dizer que há, sem dúvida, “panelinhas” e interesses extra-acadêmicos em jogo mesmo nos ambientes acadêmicos de melhor nível. Apenas trata-se de reconhecer, aqui, o grande peso dos fatores propriamente vinculados à referida “representatividade”.) Não é isto, lamentavelmente, que o processo de burocratização nas condições de um país semiperiférico como o Brasil costuma engendrar como resultado. Pelo contrário: enquanto cargos de direção são geralmente evitados pela maioria por serem um fardo pouco ou nada compensador em matéria de reconhecimento público, há os que se “especializam” em fazer desses cargos o seu “nicho ecológico” básico, sem que, entretanto, necessariamente tenham a capacidade ou mesmo a vontade de inovar administrativamente ou nem sequer reformar o que quer que seja de modo consistente.

goya-7Dificilmente um “burocrata” ou um “disseminador” se transforma, de estalo, em um “inovador”. Torna-se cada vez mais provável, entretanto, que “inovadores”, exaustos ou desapontados com a escassez de estímulos materiais e imateriais, joguem cada vez mais cedo a toalha no ringue – mesmo que isso se dê sob a forma de um processo gradual, e não subitamente –, convertendo-se em “burocratas” ou “disseminadores” (ou, em alguns casos, em “(micro)empresários”). Do ponto de vista das relações de poder, particularmente grave é quando os “caciques” tornam-se “caciques” em grande parte por seu poder de influência como “burocratas” ou “(micro)empresários” (ou “disseminadores”), sendo o seu papel como “inovadores” pequeno ou inconsistente.

Os “caciques”, a propósito, são uma “espécie” politicamente crucial, ao mesmo tempo em que possui traços muito peculiares. Ao ingressar na carreira acadêmica, o jovem docente demonstrará, não raro desde o princípio, se seu perfil fundamental é o de um “inovador”, de um “disseminador” ou de um “burocrata”. O estabelecimento como um “(micro)empresário”, ao menos por enquanto, é coisa que exige mais tempo (uma vez que se leva algum tempo até poder mobilizar os recursos necessários à atuação como consultor – prestígio, contatos, formação de equipe etc.), e mais tempo ainda se requer para que se atinja a condição de “cacique”. Se, em condições “ideais”, seria de esperar que um “cacique”, por ser muitas vezes uma figura pública influente, ou mesmo uma “estrela”, deveria chegar a essa condição com base em seus méritos e em sua contribuição sobretudo (ainda que não exclusivamente) como “inovador”, o que se observa no Brasil é que isso cada vez menos parece corresponder à realidade.

O problema não é somente o de que “caciques” nem sempre são “inovadores” consistentes, sendo, isso sim, algumas vezes, “pseudoinovadores”: ou seja, alguém que, vítima em certos casos de autoengano, pensa que está verdadeiramente inovando, mas está, na realidade, reinventando a roda (tornando-se, com isso, apenas um tipo sofisticado de “disseminador”). Em um ambiente em que nem sempre se conhece e acompanha direito a literatura de sua área como seria desejável (nem mesmo aquela em português, o que dirá aquela em línguas estrangeiras), esse tipo de deformação é um importante e constante risco. O problema é ainda mais sério quando a capacidade de falar o idioma do poder acadêmico-burocrático prepondera nitidamente, como fonte de prestígio, sobre a capacidade de criar e transmitir ideias. Nessas circunstâncias, está-se diante de um “paradoxo astronômico”: o “cacique” é uma “estrela” que brilha… sem possuir luz própria.

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As crescentes burocratização do mundo acadêmico e mercantilização da produção intelectual são grandemente facilitadas pelo fato de que os “loci de referência discursiva” (= os objetos reais com referência aos quais se definem e constroem os objetos de conhecimento) e os “loci de construção discursiva” (= os ambientes concretos nos e a partir dos quais o trabalho intelectual é elaborado) predominantes de várias das ciências sociais sempre foram o Estado e o mercado capitalista, e não os movimentos sociais e suas organizações. Quanto a isso, os casos mais “didáticos” têm sido, provavelmente, a Economia e a Ciência Política, mas a Geografia Humana também deve ser lembrada – por exemplo, por conta de seu envolvimento, que frequentemente passa ao largo de qualquer senso crítico, com o planejamento urbano e regional promovido pelo Estado.

goya-4É uma triste e preocupante realidade, além disso, que a burocratização não implica somente o aumento da população daqueles que são, acima de tudo, “burocratas”. Praticamente todos os pesquisadores têm sido submetidos a diferentes pressões “burocratizantes” (por parte de agências de fomento, das universidades, etc.), as quais têm levado a que se gaste cada vez mais tempo elaborando e avaliando projetos, havendo, por outro lado, cada vez menos tempo e tranqüilidade para gerar conhecimento novo.

Diante de todo esse quadro, quem mais se vê comprometido com o risco de incoerência são os docentes e pesquisadores que, à luz de suas biografias e autodefinições, representariam alguma modalidade de pensamento socialmente crítico. O “olhar de longe e do alto” nas ciências sociais, bastante típico da Economia e da Ciência Política, mas também da Geografia Humana, pode, eventualmente, até ser considerado como perfeitamente legítimo do ângulo do pensamento crítico, em uma circunstância: caso seja realizado com a finalidade de se ganhar visão de conjunto e apreender fenômenos somente apreensíveis nas escalas de representação dos grandes espaços, e não por distanciamento em relação aos “mundos da vida”, ao quotidiano dos atores sociais concretos. Mas, se for valorizado com exclusividade ou nítida prioridade, será uma “visão de sobrevôo” similar àquela que é própria do Estado, a qual serve à classificação e ao controle sociais. Essa “visão de sobrevôo” hipervalorizada pode ser compatível ou compatibilizável com a burocratização do mundo acadêmico e a mercantilização da produção intelectual. Entretanto, a disposição de abraçar ou manter um compromisso ético-político com a mudança sócio-espacial vai sendo minada ou dificultada no longo prazo pela burocratização e pela mercantilização, que levam a uma tendência de distanciamento crescente dos ambientes acadêmicos relativamente às circunstâncias espaço-temporais em que é possível observar as contradições e os conflitos sociais “de perto” e mesmo “de dentro” (o que pressupõe incorporar a perspectiva do insider, do “mundo da vida”).

[*] Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro.


fonte: http://passapalavra.info/?p=23469

sexta-feira, 21 de maio de 2010

Florianópolis: tensão e possibilidades de vitória


Reunindo mais uma vez milhares de pessoas, o ato dessa quinta-feira, dia 20 de maio, mostrou que a população de Florianópolis mantém-se ativa e disposta a resistir. Por Passa Palavra

Acompanhe a cobertura completa da luta clicando aqui.

florianopolis-4É difícil dizer quantas mil pessoas participaram da manifestação: 2, 3, 4 ou 5 mil? Mas o que é possível dizer é que em certos momentos da manifestação a sensação de estar no meio de uma multidão, olhar para trás e ver que a manifestação parece não ter fim dá a noção de que o ato realmente foi grandioso.

A saída em manifestação obedeceu a um ritmo muito acelerado, subindo pela Rua Jerônimo Coelho rumo à Avenida Osmar Cunha, com o intuito de chegar à Avenida Beira-Mar. Mas, mesmo com toda nossa vontade e determinação, a orientação do Comando da Polícia Militar de Santa Catarina era de impedir a qualquer custo que o ato alcançasse aquele objetivo, mobilizando um imenso efetivo policial para dar conta da tarefa.

A partir de então, o que sucedeu foi uma série de impasses e tentativas dos manifestantes de furar o bloqueio da PM. Mesmo usando de muita força, não foi possível concretizar o objetivo, o que gerou grandes momentos de espera até que se decidisse o que fazer e como prosseguir com a manifestação. O primeiro momento, mais tenso e breve, ocorreu no início da Av. Osmar Cunha, e após diversas tentativas, frustradas pela brutalidade e violência da polícia, só se resolveu com uma negociação que permitiu que o ato avançasse na avenida até o cruzamento com a Rio Branco.

florianopolis-8A intenção da polícia era que o ato seguisse pela Rio Branco para a Avenida Mauro Ramos, trajeto que não contemplava as expectativas e objetivos dos manifestantes. Muitos e muitos minutos se passaram e o efetivo policial posicionado em frente aos manifestantes, incluindo a Cavalaria e o Grupo de Resistência Tática, demonstrava que não havia força suficiente da manifestação para seguir até à Avenida Beira-Mar.

Uma assembléia bastante tensa foi organizada e diversas propostas de como dar rumo ao ato foram apresentadas. A proposta vencedora foi de voltarmos ao Ticen (Terminal do Centro), entrando na Rio Branco e dali forçando a entrada por alguma rua do centro, descartando o trajeto proposto pela polícia de seguir até à Mauro Ramos.

A estratégia deu certo, mas exigiu dos manifestantes que avançassem metro por metro, empurrando o cordão formado pela PM. A tensão que tomou conta de todo ato, apesar da empolgação dos manifestantes, teve um de seus pontos altos nessa batalha para conquistar cada metro possível de avançar.

Dois manifestantes foram presos durante o trajeto, sem que qualquer policial soubesse explicar o motivo das prisões. Felizmente, ambos foram liberados alguns minutos depois.

florianopolis-2A marcha pelo centro, de volta ao Ticen, prosseguiu e, após uma manobra efetuada pela parte de trás do ato, trocamos o trajeto pela Paulo Fontes para seguir pela Conselheiro Mafra, rua tradicional do centro e do comércio da cidade. Ali, sem tanto policiamento, manifestantes puderam “enfeitar” paredes com mensagens contra o preço da tarifa e o sistema de transporte da cidade, além de descontar um pouco da raiva da polícia em portas de ferro de grandes lojas. Na volta ao Ticen um novo tumulto provoca mais duas prisões.

Após alguns tensionamentos, uma nova assembléia é realizada e a proposta de fazer um Grande Ato nesta sexta-feira, dia 21 de maio, às 17h, foi aprovada por unanimidade.

Após duas semanas intensas de atividades e grandes manifestações, o povo de Florianópolis demonstra disposição para manter a luta até a tarifa cair. Com a conquista do apoio popular, sabemos que agora o maior inimigo é o nosso próprio cansaço. Mas se o movimento mantiver suas forças nesta sexta-feira e durante a próxima semana, as possibilidades efetivas de uma vitória estarão colocadas mais uma vez nesta cidade.

Estas fotografias e muitas outras encontram-se aqui e ali.


fonte:http://passapalavra.info/?p=24065

quarta-feira, 19 de maio de 2010

A população que passa por baixo

A população que passa por baixo


Os usuários lidam de variadas maneiras com o custo do transporte, e a algumas o poder público insiste em chamar de fraudes. Esta subversão diária feita pelo usuários tem a mesma razão que a luta do Movimento Passe Livre e da população que toma as ruas novamente em Florianópolis. Por Passa Palavra

Os usuários [utentes] do transporte público lidam de variadas maneiras com o custo do transporte, buscando sempre diminuir esta despesa, que chega ser a segunda mais alta das famílias brasileiras. Relato aqui algumas experiências que o poder público insiste em chamar de fraudes.

catraca-1A primeira alternativa que vem à minha mente quando penso em maneiras a que nós, os usuários de transporte coletivo, recorremos para baratear nosso custo com deslocamentos é a prática de passar por baixo da catraca [*] e não pagar a passagem. Esta tática esbarra em alguns empecilhos. Primeiro, a negociação com o cobrador [funcionário que vende os bilhetes e controla o torniquete], que precisa autorizar você a fazer isto, o que é mais comum em ônibus [autocarros] que circulam nas regiões periféricas da cidade, uma vez que nestas o número de fiscais é menor e por vezes a relação entre o cobrador e os passageiros é mais próxima. Segundo problema é de disponibilidade física. É necessária uma certa maleabilidade e destreza para passar por baixo da catraca. Nos tempos em que eu era menino ainda era mais simples, pois as catracas eram menores e não iam até próximo do chão como as atuais, adotadas justamente para inibir este tipo de prática. Agora para passar por baixo e não se sujar é necessário o aprimoramento de uma técnica que requer bastante flexibilidade, além da situação de humilhação de se raspar no chão para não pagar a passagem. Neste sentido de transposição da catraca existe uma outra maneira menos humilhante, que requer um pouco menos de habilidade, que é pular a catraca. Esta geralmente tem mais resistência do cobrador e só consegue ser feita em situações em que o um grupo de passageiros tem força suficiente para garantir isto coletivamente, como em idas a jogos de futebol. Mas com o fretamento de ônibus para jogos e a elitização dos estádios estes momentos estão cada vez mais raros.

Na perspectiva individual existe também a tentativa de pagar com notas muito altas, que impossibilitam o troco e permitem que o usuário desça pela frente [nos autocarros, entre a entrada da frente e a catraca existem alguns lugares destinados as passageiros que, por lei, estejam dispensados de pagar bilhete]. O problema é que para tal é necessário ter uma nota de alto valor que não se precisa gastar para comer e outras necessidades diárias, por isso esta tática é geralmente utilizada por usuários que recebem uma quantidade alta de dinheiro para carregar o cartão ou comprar passe, e utilizam esta nota algumas vezes para andar de graça antes que encontrem algum cobrador com troco.

Ainda existe nas estações de trem [comboio] a possibilidade de chegar à plataforma pela via. Podemos encontrar diversos buracos nos muros ao redor do trilho [carris], que permitem o usuário ir andando pela via até chegar à estação e daí subir na plataforma ou diretamente no trem (pela janela). Estas tentativas dependem tanto do vigor físico do usuário, para escalar um muro, subir na plataforma ou ainda entrar no trem pela janela, quanto da ausência de guardas nas estações. Em Jandira, na Grande São Paulo, a CPTM resolveu o problema do grande número de usuários que entrava na estação pelos meios não convencionais pondo um rotveiler [raça de cães de guarda] para cuidar da via. Vale lembrar que esta tática enfrenta o risco de ser atropelado por um trem.

Saindo das alternativas individuais e indo para as coletivas, nos aparecem algumas outras táticas usadas, inicialmente por amigos e familiares. Temos no metrô a tática do deixar a catraca, ou seja, compramos nós dois um bilhete e o primeiro passa com ele com o corpo meio de lado, possibilitando que a catraca retorne ao lugar sem que gire, podendo o seguinte passar pela catraca. Esta tática pode ser utilizada por diversos usuários em sequência, mas precisa ser feita rapidamente para não ter problemas com a fiscalização e o tempo do bilhete não expirar. Requer extrema perícia para movimentar o corpo de forma que a catraca volte ao seu lugar, e é de fato geralmente praticada por adolescentes.

catraca-2Outra prática protagonizada por jovens, mas repartida com toda a família, é a socialização do passe estudantil. Nas cidades em que os estudantes têm meia passagem é comum emprestarem seus cartões ou doarem seus passes para o pai, a mãe ou o irmão, contribuindo assim com a renda da casa. No Rio de Janeiro, antes da implementação do Rio Card, era comum observar várias pessoas mais velhas utilizando camisetas [T shirts] de escola pública para andar gratuitamente nos ônibus. Outro direito que por vezes é repartido com a família é o dos idosos; estes emprestam seus cartões e bilhetes para filhos e netos andarem de graça no transporte, e afinal estes o utilizam muito mais do que eles, que por outros fatores excludentes da sociedade costumam ficar mais restritos ao espaço privado. Em São Paulo, com o intuito de inviabilizar esta prática, a Prefeitura agora obriga o cobrador a verificar o bilhete do idoso e da pessoa com necessidades especiais.

Temos ainda um exemplo de solidariedade de classe ocorrido diariamente em São Paulo. Os usuários que descem na estação Cidade Universitária da CPTM e na Vila Madalena do Metrô têm direito a pegar [tomar] a Ponte Orca (uma van [miniautocarro] que faz a integração entre as duas estações). Os usuários do transporte compartilham então seus bilhetes, aqueles que descem em uma das estações e não vão utilizar a integração pegam o bilhete e dão para os outros usuários; já os que utilizaram a van mas não vão entrar na estação dão os bilhetes para aqueles que querem pegar o trem. E assim, diariamente, algumas centenas de pessoas utilizam o transporte gratuitamente.

Podemos perceber a partir destas experiências algumas brechas no sistemas de transporte coletivo tarifado no Brasil e como estas são utilizadas pelos usuários para aliviar os custos do transporte. Existe entre os usuários a percepção de que a tarifa é excludente, e no caso da Ponte Orca esta constatação se reverte em uma ação prática que garante a outros – entre pessoas que só têm em comum a utilização do transporte coletivo (e provavelmente a classe social) – o acesso ao transporte.

Esta subversão diária feita pelos usuários tem a mesma razão e inspiração que a luta feita pelos militantes do Movimento Passe Livre e também pela população que toma as ruas novamente em Florianópolis.

catraca-4[*] Nota para os leitores portugueses. A catraca dos autocarros é um torniquete que o cobrador, sentado em frente, manobra com os joelhos, permitindo ou impedindo a passagem.


fonte: http://passapalavra.info/?p=23835


Universidades: burocratização, mercantilização e mediocridade (1ª Parte)


No Brasil e em todo o mundo, as universidades vão-se adaptando às necessidades do capitalismo que as sustenta. Burocratizaçao e mercantilização condicionam a sua vocação de crítica e de criação de novos conhecimentos. Por Marcelo Lopes de Souza [*]

goya-8A finalidade deste artigo é convidar à reflexão em torno do avanço da burocratização e da mediocridade no universo acadêmico. Burocratização e mediocridade essas que, no fundo, constituem realidades complementares e interdependentes, as quais produzem, como resultado, mais burocratização e mais mediocridade, em uma espiral ascendente em cujo contexto a dimensão qualitativa subjacente à ideia normativa da universidade como locus, entre outras coisas, de produção de conhecimento novo, é cada vez mais subjugada e engolida pela realidade da “lógica” burocrática. O resultado é, nos planos formal e informal, cada vez mais uma “caquistocracia” acadêmica, ou seja, um “governo dos piores” no interior das universidades.

Não se está a falar apenas do Brasil. O problema em questão não é exclusividade de nenhum país e de nenhum campo do conhecimento (“disciplinas” ou “campos interdisciplinares”). A burocratização do mundo universitário, atravessada e agravada por processos como a galopante mercantilização do saber acadêmico e as diversas formas e modalidades de “privatização” das universidades (que vão desde a pressão para o financiamento privado das pesquisas até a venda de serviços de consultoria e cursos para o universo empresarial como estratégia de complementação salarial), é algo observável em escala mundial. Entretanto, diferentes países e campos do conhecimento sofrem essa experiência de maneiras e com intensidades distintas.

Parece evidente que diversas características do capitalismo contemporâneo (de)formam o ambiente universitário, cada vez mais, de modo a transformar alunos e orientandos em “clientes”; docentes e pesquisadores em “prestadores de serviços intelectuais”; e o conhecimento gerado e transmitido em “produtos”, cuja medida de valor deve ser estabelecida pelo e por meio do mercado. É o mundo da mercadoria corrompendo e modelando o quotidiano dos ambientes de geração de saber que, por muito tempo, e não inteiramente sem razão, puderam ser considerados, mesmo por intelectuais críticos, como espaços criativos e de inovação, ainda que via de regra elitizados e altamente hierárquicos.

Não se deseja, com isso, parecer simplista, mas somente chamar a atenção para o fato de que juízos puramente morais não fornecem um padrão explicativo inteiramente válido do quadro que temos diante de nós. É seguro que isso não autoriza um enfoque “economicista”, o qual negligencie que um fator poderoso (e que não é simplesmente derivável de determinações econômicas) são as mudanças no plano simbólico-cultural, com o enfraquecimento de determinados valores e “freios morais” – fator esse que, no Brasil, tem sido farta e constantemente alimentado pelos “maus exemplos” dados por tantos e tantos agentes públicos, detentores de postos de mando no aparelho de Estado. Apenas sugere-se, com base na percepção de condicionantes dessa magnitude, que sermões e apelos à moralidade e aos brios constituem terapia insuficiente e, no limite, ingênua e tola (mas, do ângulo sistêmico, uma astuciosa e conveniente manobra diversionista).

Ocorre que, devido a tradições mais solidamente estabelecidas e a exigências e padrões de julgamento qualitativo do conhecimento mais bem assentados, em alguns países (geralmente os países centrais) a burocratização e a mercantilização não chegam a produzir como resultado uma mediocridade acachapante. É bem verdade que também neles, sem dúvida, o “produtivismo”, que é a concretização da máxima publish or perish (= publique ou pereça) levada ao paroxismo, cada vez mais gera uma quantidade de “produtos” (livros, artigos etc.) desproporcionalmente grande em comparação com a qualidade intelectual daí decorrente ou aí embutida. Entretanto, uma vez que o exemplo mais evidente de “produtivismo” científico no mundo de hoje, o ambiente acadêmico anglo-americano, possui a vantagem de uma incrível “economia de escala”, ali, “no atacado” [por grosso], o problema acaba tendo menor gravidade, valendo em parte o princípio de que “a quantidade gera qualidade”. Além disso, uma mescla de tradições e excelência gestorial (em sentido capitalista, precisamente) faz com que, apesar dos muitos (e crescentemente predominantes) “produtos intelectuais descartáveis” gerados nesse ambiente, parcela expressiva do que aí se faz tenha, de fato, ao menos algum mérito em matéria de inovação ou reflexão. Mesmo que essa qualidade engendrada em meio ao gigantesco aparato burocrático-capitalista de produção de “produtos de conhecimento” (publicações, congressos, periódicos, etc.) do mundo anglo-saxônico seja parcialmente ilusória ou muito discutível – e não só pela desproporção em relação à quantidade mas, também, intrinsecamente, enquanto inovação muitas vezes mais aparente que real, mais superficial que profunda –, o fato é que ela não é apenas ou inteiramente ilusória. A proliferação de cursos de MBA ditos de “altíssimo nível” (leia-se, em sentido capitalista: capazes de duplicar ou triplicar os salários dos portadores dos respectivos diplomas) ou a quantidade de ganhadores do Prêmio Nobel de que uma universidade pode gabar-se ter em seus quadros são critérios político-filosoficamente e eticamente muito contestáveis, é certo, quando a perspectiva é a de uma crítica da sociedade existente; no entanto, de um ponto de vista que é, precisamente, o do capitalismo e seus valores (da competição ao “desenvolvimento econômico”), muitas universidades norte-americanas e inglesas são espaços privilegiados de produção de “conhecimento útil”, isto é, com “valor de mercado”.

goya-6Em resumo, no contexto da rarefação político-intelectual do mundo contemporâneo (e que se reflete na usual falta de densidade das ciências sociais e da Filosofia), pode-se e deve-se, sem sombra de dúvida, questionar a originalidade e a profundidade da maior parte do que se publica mesmo nos melhores periódicos “internacionais” (que são, na verdade, em primeiríssimo lugar, periódicos em língua inglesa e editados por editoras norte-americanas ou inglesas, com tudo o que isso implica em matéria de vieses etnocêntricos). Todavia, ao mesmo tempo, há de se conceder que existe, no mínimo, uma substancial diferença de grau entre um ambiente universitário que produz predominantemente ideias conformistas ou não-arrojadas e um outro quase completamente estéril, que cada vez menos produz qualquer ideia original que seja. No Brasil, em que as universidades públicas são solapadas a partir de fora (deterioração ou estagnação em patamares baixos da remuneração de docentes e funcionários, obsolescência e degradação de equipamentos e infraestrutura, ausência de planos de carreira consistentes, falta de uma verdadeira autonomia universitária) e a partir de dentro (corporativismos, tradições “oligárquicas” incompatíveis com uma apreciação minimamente adequada de critérios de merecimento intelectual), a presença cada vez maior do conformismo e da falta de verdadeira originalidade chega quase a ser eclipsada pelo problema ainda mais grave que é a acelerada erosão da capacidade de produzir ideias consistentes, sejam elas conservadoras ou anticonservadoras. (Uma ressalva sobre o “a partir de fora” e o “a partir de dentro”: eles se acham, indiscutivelmente, entrelaçados, com aquilo que é exógeno condicionando e reforçando aquilo que é ou parece endógeno – e às vezes também vice-versa. Sem contar o fato de que, no plano individual e do grupo, comportamentos são afetados pelo meio social geral do capitalismo fin-de-siècle – estribado no consumismo desenfreado e na extremada competitividade interindividual e, por conseguinte, crescentemente indutor de alienação, despolitização e atitudes oportunistas.)

Os efeitos conjugados da burocratização e da mercantilização sobre o nível e a densidade intelectuais também variam bastante de acordo com a área do conhecimento a que estejamos nos referindo. Para as ciências naturais e as áreas tecnológicas, adaptar-se a esse quadro parece ser algo bem menos doloroso que para as ciências humanas e sociais. (A despeito dos altos graus de exploração e submissão individuais dos cientistas, em especial dos jovens pesquisadores mormente em uma época de “[hiper]precarização do mundo do trabalho”). Uma razão é o próprio padrão de financiamento: recursos são abundantemente direcionados para os campos capazes de gerar conhecimentos diretamente aplicáveis e úteis do ponto de vista da produção de novos produtos (processos produtivos, armamentos, artigos de consumo, etc.), e é óbvio que não se vai esperar que, mesmo remotamente, a mesma magnitude de suporte flanqueie a produção de conhecimentos referentes, muitas vezes, à crítica do sistema.

Não que o sistema não financie seus críticos, eventualmente tirando um razoável e multifacetado proveito disso; contudo, trata-se de uma prioridade concernente a outra ordem de grandeza. Para especialistas em engenharia genética, telemática ou química fina, cujos salários são excelentes, cujos laboratórios são moderníssimos, cujos alunos são comumente motivados (a começar pelas perspectivas de altos salários e “reconhecimento social”…) e para os quais, enfim, os recursos não são escassos (o que, evidentemente, varia bastante de país para país), muitas vezes pouco ou nada importa de onde vem o dinheiro para os projetos e que convênios ou acordos são necessários para obtê-lo. Não apenas por isso, mas também pelo fato de que, em meio à burocratização e à mercantilização ascendentes, são justamente os critérios e padrões de julgamento do valor acadêmico típicos das ciências naturais e das engenharias (mais facilmente amalgamáveis com o critério-base, de um ponto de vista capitalista, que é a perspectiva de um valor de troca significativo para o conhecimento gerado) que são tomados como modelares e impostos às ciências humanas e sociais para fins de avaliação de desempenho (e decidir sobre que projetos, candidatos a bolsistas, periódicos, programas de graduação e pós-graduação, etc., etc. apoiar), que os campos voltados para a geração de conhecimento reflexivo e crítico sobre a própria sociedade tendem a perder cada vez mais prestígio e relevância. E, em parte por isso, tendem, também, no longo prazo, a reproduzir de maneira ampliada a mediocridade e a irrelevância – a despeito da presença de algumas ilhas de excelência e resistência. Pesquisadores deficientemente formados serão mais cedo ou mais tarde responsáveis, enquanto docentes e orientadores de graduação e pós-graduação, pela formação de novos pesquisadores, os quais apresentarão, geralmente, deficiências ainda maiores do que eles, analogamente à perda de definição e qualidade ao comparar-se uma cópia xerox com o original, a cópia da cópia com a cópia, a cópia da cópia da cópia com a cópia da cópia, e por aí vai…

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Diversas “espécies” constituem, em qualquer país e relativamente a qualquer campo do conhecimento, a “fauna acadêmica” que povoa as universidades. Várias dessas “espécies” são, por circunstâncias históricas, úteis, e não somente uma. Mas é justamente uma delas, e aquela que mais diretamente contribui para que as universidades sejam e se mantenham como ambientes produtores de inovação, que se acha, atualmente, muitas vezes acuada ou mesmo em processo de encolhimento, em especial nas ciências humanas e sociais (tendência que, no Brasil de hoje, tem comparecido de maneira superlativa): aquela que denominarei de os “inovadores”, que são os pesquisadores verdadeiramente criativos. Os verdadeiros intelectuais, e muito particularmente os intelectuais críticos (ou seja, que refletem criticamente sobre a sociedade e não se furtam a assumir posições publicamente), são um subconjunto dos “inovadores”.

goya-1Quanto às outras “espécies”, não tentarei nomeá-las todas. Buscarei identificar sistematicamente, a seguir, apenas aquelas “espécies” da nossa “fauna acadêmica” que, para os fins da presente exposição, são especialmente relevantes.

Os “disseminadores” são aqueles que, geralmente, não primam por gerar ideias novas, restringindo-se a, com maior ou menor competência, manejar, interpretar e repercutir o pensamento de outrem. Conquanto não sejam pesquisadores destacados, podem ser, eventualmente, excelentes professores, inspirados e inspiradores, prestando importante contribuição para a formação de novos pesquisadores e de novos profissionais em geral. Lamentavelmente, nos dias que correm, a tendência não parece ser a da ampliação do número desses “disseminadores” realmente inspirados e inspiradores, mas sim a hipertrofia do grupo daqueles que muito pobremente (e, cada vez mais, até mesmo plagiariamente) administram e reproduzem ideias alheias. São, em analogia com os corretores de imóveis, “corretores de ideias”. De qualquer forma, em meio às “mudanças ambientais” em curso, a espécie dos “disseminadores” se encontra, enquanto tal, menos ameaçada (e são provavelmente mais adaptáveis) que os “inovadores”.

Os “burocratas” são uma espécie particularmente em ascensão. Sua expertise básica não é a da geração de conhecimento novo, e muito menos de conhecimento socialmente crítico, nem tampouco a da disseminação competente do conhecimento científico disponível. Sua expertise básica refere-se ao domínio dos jogos de poder concernentes ao interior da máquina burocrático-acadêmica e às relações dessa máquina com o seu entorno (governos, agências de fomento, etc.). A linguagem dos “burocratas” é a do poder, e sua especialidade é conquistar, manter, traficar e barganhar influência. (Sem contar, obviamente, as formas semilegais ou mesmo ilegais de obter dinheiro utilizando-se da infraestrutura de instituições teoricamente públicas. “Teoricamente”, esclareça-se, porque universidades largamente elitistas e elitizadas jamais podem ser, a rigor, consideradas sem ressalvas como públicas, já que o acesso é tão restrito.) Os “burocratas” são, enfim, especialistas na reprodução (ampliada) do fisiologismo que se difunde a passos largos no capitalismo fin-de-siècle, sobretudo em sua (semi)periferia.

Os “(micro)empresários” são outra espécie em ascensão, ao menos em algumas áreas de conhecimento. Por convicção ou conveniência, para eles a universidade pública é um ambiente decrépito em meio ao qual, para sobreviver, é necessário introduzir formas e parâmetros “gerenciais” que mimetizem aqueles das empresas privadas. Entretanto, os arremedos de “parcerias público-privadas” por eles patrocinados costumam ser, analogamente às “parcerias público-privadas” do ambiente exterior à universidade, relacionamentos assimétricos, em que o “público” entra com o grosso dos custos e o “privado” absorve os maiores benefícios. Assim é que bolsas de estudo e de pesquisa (de iniciação científica, de mestrado e doutorado, etc.) e uma infraestrutura (espaço construído e utilizável, energia elétrica, equipamentos, etc.) financiadas pelos contribuintes pagadores de impostos são colocadas, mais e mais, a serviço de trabalhos privados de consultoria e projetos elaborados por encomenda de firmas privadas ou órgãos estatais – não raro em detrimento da dedicação à atividade docente e mesmo à atividade de pesquisa em sentido forte.

goya-3Os “caciques”, por fim, são aqueles que exercem um papel de liderança política. São os “medalhões”, aqueles em torno dos quais formam-se menos ou mais numerosos grupos de admiradores, seguidores e “disseminadores”. Dominam o idioma do poder, mas o utilizam de maneira não necessariamente semelhante à dos “burocratas”: enquanto que o típico “simples burocrata” pouco ou nada brilha, muitas vezes permanecendo todo ou quase todo o tempo na obscuridade, o “cacique”, que é uma figura de renome, empolga e arrebata plateias, influencia os debates e o tratamento de questões institucionais em sua área. Ou, pelo menos, costumava ser assim, já que, cada vez mais, testemunhamos a ação de “caciques” de reduzido talento oratório e pouca vocação para escrever e publicar coisas realmente importantes, mas que, em contrapartida, se mostram hábeis em agenciar o trabalho alheio (na base da superexploração de orientandos, por exemplo), assimilando alguns dos piores cacoetes de “burocratas” e “(micro)empresários”. Este assunto será retomado um pouco mais à frente.

As metáforas ecológicas acima empregadas (“fauna”, “espécies”, “mudanças ambientais”) foram escolhidas por permitirem a construção de uma imagem forte: a do risco de “extinção” ou, menos dramaticamente, de redução drástica da “população” de pesquisadores orientados e motivados para inovar e criar, para desafiar o conhecimento herdado. Utilizadas com o propósito de facilitar a comunicação (que é o propósito, aliás, de toda metáfora), essas metáforas merecem, a esta altura, um reparo crucial. Diferentemente de espécies biológicas, as “espécies” de que ora se trata constituem não tipos exclusivos, mas, isso sim, características básicas. Não necessariamente um indivíduo acadêmico concreto é apenas um “burocrata” ou um “inovador”; na esmagadora maioria dos casos de indivíduos acadêmicos concretos, diferentes características básicas se combinam – até mesmo porque cada um é obrigado ou encorajado a desenvolver, minimamente que seja, um certo conjunto variado de habilidades: saber pesquisar, saber ministrar boas aulas, saber lidar com a burocracia de seus próprios projetos de pesquisa (e, eventualmente, exercer, ainda que sem apetite para tal, cargos administrativos), e por aí vai. Por conseguinte, o que faz um indivíduo pertencer a uma determinada “espécie acadêmica” não é o fato de ele apresentar as características dessa “espécie” de modo exclusivo, mas sim de modo predominante e distintivo.

[*] Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

goya-10Ilustrações: gravuras de Goya.


fonte: http://passapalavra.info/?p=23461