quinta-feira, 30 de abril de 2009

Primeiro de Maio: dia de luta (e festa) ou dia de festa (e luta)?

Primeiro de Maio: dia de luta (e festa) ou dia de festa (e luta)?

30 de Abril de 2009

Por trás dos mitos fundadores do 1º de Maio, o caráter dúplice desta data - simultaneamente dia de luta e de festa - aparece desde suas origens, e não como “desvio” de um evento originalmente criado como dia de luta.

haymarketÉ sabido e consabido que o Primeiro de Maio é o Dia do Trabalhador, não o Dia do Trabalho como consta em nossos calendários de feriados; que a data surgiu do protesto da classe trabalhadora contra o Massacre de Haymarket, acontecido em 1886 em Chigago (EUA), no qual policiais abriram fogo contra uma multidão de manifestantes em resposta a uma bomba lançada contra a polícia; que por supostamente haver lançado a bomba foram condenados à morte Georg Engel, Adolf Fischer, Albert Parsons, Auguste Spies e Louis Lingg, sendo que este último se suicidou para não ser enforcado; que em resposta a estas execuções, os trabalhadores de todo o mundo resolveram paralisar suas atividades todos os anos no dia Primeiro de Maio etc. Mas, como em qualquer dia comemorativo, nem sempre o mito fundador reflete fielmente a história real. Mitos, afinal, são histórias fantasiosas que se contam de geração em geração para registrar um evento marcante ou os feitos de determinada figura histórica, para marcar a passagem do tempo ou explicar fenômenos da natureza, enquanto a história se contenta, mais humildemente, em explicar o que se passou para que não cometamos os mesmos erros do passado.

A história tradicional do Primeiro de Maio, tal como é contada por sucessivas gerações de militantes do movimento operário, mesmo obscurecida pelo tempo e pela ação daqueles que quiseram usar a data para seus próprios fins – desde os nazi-fascistas, que recuperaram o Dia do Trabalhador como Dia do Trabalho para abafar a memória das lutas; até os capitalistas de todas as matrizes, que ou bem mudam a data do Dia do Trabalho para evitar a agitação socialista, ou bem usam o dia para sortear carros, casas, dinheiro e prêmios para os operários-padrão – contém ainda elementos de mito, de lenda, que não contribuem para expor na própria gênese da data comemorativa elementos que depois vieram a ser qualificados como elementos de sua degeneração.

Deixemos, então, a mera narrativa dos fatos e acontecimentos para as Wikipédias. É preciso resgatar alguns elementos menos conhecidos do Primeiro de Maio, levantar hipóteses sobre sua origem para analisarmos melhor seu conteúdo e desenvolvimento histórico. Teremos, para isso, que recuar até muito antes de 1886. Surpreendentemente para um artigo aberto com a crítica das lendas e mitos, nos vemos obrigados a recuar até as origens de uma data comemorativa que os místicos conhecem bem – a Noite de Walpurgis.

I

1_maio_mastroO primeiro dia de maio, no Hemisfério Norte, cai quase exatamente entre um solstício e um equinócio, marcando a transição entre inverno e primavera; por este motivo, antigas religiões européias, cada uma por seu motivo (celtas homenageavam Beltane, o deus do fogo, enquanto vikings invocavam seus deuses da fertilidade), deixaram marcada na tradição esta data como a da Noite de Walpurgis, na qual se acendiam grandes fogueiras e dançava-se algo semelhante ao que se conhece no Brasil e em Portugal como a Festa do Mastro: um grande mastro com fitas era erguido para que jovens dançassem ao redor dele segurando cada um a ponta de uma das fitas, resultando que ao final da dança, com as fitas já bastante embaraçadas ao redor do poste, poderiam – quem sabe! – arrumar alguém com quem se amarrar…

Apesar de a tradição destas comemorações de maio manter-se viva na Alemanha, na Grécia, na Suécia, na Inglaterra e em alguns outros países do Hemisfério Norte através de fogueiras, da festa da Rainha de Maio, da Morris Dance e da “dança do mastro”, tanto a perseguição oficial – o Parlamento britânico chegou a declarar a festa ilegal em 1644 por força de sua “promiscuidade” – quanto a dessacralização do mundo promovida pelo capitalismo apagaram qualquer vestígio religioso da comemoração, que ficou restrita a um dia de celebração da fertilidade, hoje quase esquecido.

Tal como o Parlamento britânico muito depois, a Igreja Católica tentou eliminar os festejos sob o argumento de que esta festa seria, na verdade, o “aniversário do diabo” ou algum tipo de sabá; sendo infrutífera a estratégia, a Igreja incorporou a Noite de Walpurgis em seu calendário como celebração do martírio de santos, comemoração da descoberta de relíquias santas ou desculpas semelhantes; o mais curioso é o Dia de Santa Walburga (também conhecida como Walpurga), monja beneditina que teria vivido entre 710 e 779 e dirigido o convento de Heidenheim, na Alemanha. Além da evidente semelhança de nome entre a santa e a data comemorativa, celebrava-se sua memória queimando fogueiras contra os poderes malignos, tal como os “pagãos” acendiam fogueiras em homenagem a seus deuses…

II

Mas deixemos estas velharias para trás. Retornemos a 1886. Entremos brevemente na história da manifestação que desembocou no Massacre de Haymarket.

O Primeiro de Maio resultou de um crescendo nas lutas pela jornada de oito horas nos Estados Unidos. Já em 1829, trabalhadores reivindicaram do legislativo de Nova Iorque a implementação da jornada normal de trabalho. O movimento operário estadunidense estava então dividido em algumas grandes federações sindicais e organizações similares, que disputavam os sindicatos com as piores táticas. Enquanto a National Labor Union (NLU) e os Industrial Congresses eram organizações criadas de cima para baixo por lideranças sindicais, organizações como os Knights of Labor surgiram posteriormente a partir da base como grupos secretos contra as listas negras e dedos-duros [denunciantes e provocadores]. A Federation of Organized Trades and Labor Unions (FOTLU) – organização que viria a se tornar em 1886 a toda-poderosa American Federation of Labor (AFL), e que já era desde 1881 presidida por Samuel Gompers – surgiu a partir da iniciativa de membros dos Knights of Labor descontentes com a organização, e muito breve, após sua transformação em American Federation of Labor, viria a suplantar sua supremacia no movimento operário. A disputa entre organizações não era limitada por qualquer forma de solidariedade de classe: os Knights of Labor, por exemplo, chegavam ao ponto de não apenas proibir seus membros de participar de greves e mobilizações puxadas pela FOTLU, mas também recomendavam-lhes oferecer-se como fura-greves em tais situações.

Em 1884, deliberou-se no quarto congresso da FOTLU por um ultimato: ou bem a jornada de oito horas seria implementada por lei, ou bem os trabalhadores estadunidenses entrariam em greve geral no dia 1.º de maio de 1886. Andrew Johnson, então presidente dos EUA, promulgou ainda em 1886 a Lei Ingersoll implementando a jornada reivindicada, mas como ela não passava de letra morta a FOTLU decidiu manter o ultimato e convocou a greve geral. O primeiro dia da greve contou com a participação de dez mil trabalhadores em Nova Iorque, onze mil em Detroit, cerca de dez mil em Milwaukee e, no país inteiro, entre trezentos a quinhentos mil trabalhadores conseguiram implementar a jornada de oito horas através da greve e de manifestações massivas, ou de sua simples ameaça.

Só em Chicago a situação ficou mais tensa. A greve, que contou com quarenta mil participantes no dia 1º de maio, durou mais dois dias. Fura-greves foram contratados, e os grevistas, cuja paralisação, comícios e passeatas seguiam bastante tranquilos e sem incidentes até o dia 3 de maio, foram atingidos pela fuzilaria da polícia na porta de uma fábrica, evento que resultou em seis mortes. Este fato foi o estopim [rastilho] para a convocação, para a noite de 4 de maio, de um comício gigantesco marcado para a Haymarket Square (“Praça do Mercado do Feno”) – não pela FOTLU, mas por uma organização anarquista chamada International Working People’s Association (IWPA) fundada e liderada por Albert Parsons.

O comício corria bem, e após a fala de diversos oradores não houve qualquer sinal de violência – mesmo o prefeito [presidente da Câmara], que havia parado para ver o comício, voltou para casa mais cedo, talvez acreditando que nada fosse acontecer – até que a polícia decidiu dispersar a multidão às 10h30min; alguém lançou uma bomba contra a formação policial que já marchava contra a multidão, e o que se seguiu foi uma fuzilaria descontrolada que durou cinco minutos e causou a morte de quatro trabalhadores e seis policiais, deixando feridos sessenta policiais e um número desconhecido de trabalhadores – poucos dentre os feridos “civis” buscaram cuidados médicos, pois temiam a prisão.

O resto é história: Georg Engel, Adolf Fischer, Albert Parsons, Auguste Spies e Louis Lingg, lideranças do movimento operário local, foram presos sob acusação de haverem planejado e executado o atentado a bomba, depois condenados à morte etc. Basta voltar ao primeiro parágrafo que está tudo lá, e quem quiser pode ir a qualquer fonte atrás de informações. Não obstante Samuel Gompers, presidente da FOTLU e depois da AFL, dizer que “embora os militantes de base mais equilibrados da AFL não concordem com os radicais, eles não podem abandoná-los ao inimigo comum”, ele não hesitava em dizer também que “divergiu por toda a vida com os métodos dos condenados”. Já Terence V. Powderly, líder dos Knights of Labour, diria que “os Knights of Labour não têm filiação, associação, simpatia ou respeito pelo bando de assassinos covardes, degoladores e ladrões conhecidos como anarquistas”.

Observem que coisa curiosa: o Massacre de Haymarket, fato que, segundo o mito fundador, dá origem ao Primeiro de Maio, na verdade aconteceu no dia 4 de maio. Para a posteridade ficou não a data do evento, mas a data determinada pela FOTLU para a paralisação inicial. Pior: nem a AFL – criada 17 dias após o Massacre de Haymarket – nem os Knights of Labour apoiaram os condenados.

III

ben_shahn_unemployment1938Trairagens [traições] à parte, como o Primeiro de Maio foi transformado na data internacional de luta dos trabalhadores?

Rosa Luxemburgo, no artigo Quais as origens do Primeiro de Maio? (publicado no jornal polonês Sprawa Robotnicza [Causa Operária] em 1894), afirma que a primeira tentativa de criar um “feriado proletário” como parte da luta pela jornada de oito horas surgiu na Austrália, em 1856; a data originalmente prevista pelos australianos não foi o Primeiro de Maio, mas o dia 21 de abril. Resgata que a ideia do “feriado proletário” fermentou mundo afora e que foi bastante discutida em 1889 no congresso de fundação da II Internacional, em julho de 1889:

“(…) o movimento operário na Europa havia se fortalecido e animado. A mais poderosa expressão deste movimento ocorreu no Congresso Internacional de Trabalhadores em 1889. Neste Congresso, assistido por quatrocentos delegados, foi decidido que a jornada de oito horas deveria ser a primeira reivindicação. Foi então que o delegado dos sindicatos franceses, o trabalhador [Raymond] Lavigne de Bordeaux, fez uma moção para que esta reivindicação fosse expressa em todos os países através de uma paralisação universal do trabalho. O delegado dos trabalhadores americanos [Hugh McGregor] chamou a atenção para a decisão de seus camaradas de fazer greve no dia 1.º de maio de 1890, e o Congresso deliberou que esta data seria de celebração proletária universal.”

Mas Rosa resumiu demais as coisas, como seria de se esperar num artigo jornalístico. Na verdade, a mesma American Federation of Labour cujo presidente buscava não se associar com a imagem dos “radicais”, alguns anos depois, já havia adotado o Primeiro de Maio como data oficial para suas manifestações. Ponto para o “golpe de gênio” de Samuel Gompers, que deu ordem direta para que a delegação da AFL ao congresso apresentasse a proposta de data. Nas palavras do próprio:

“Na medida em que os planos para a jornada de oito horas eram desenvolvidos, estávamos constantemente pensando em como alargar nossos objetivos. Como a data de realização do Congresso Internacional de Trabalhadores de Paris se aproximava, me veio a ideia de que poderíamos ajudar nosso movimento com uma moção de simpatia daquele congresso.”

Logo Gompers contatou Hugh McGregor para enviá-lo ao congresso, onde, mesmo enfrentando a oposição da delegação alemã – que incluía Wilhelm Liebknecht e August Bebel, líderes da poderosa social-democracia germânica –, fez aprovar a moção cujo texto original é este:

“Uma grande manifestação internacional deve ser organizada numa data fixa, de modo que os trabalhadores de todos os países e de todas as cidades possam, num dia determinado, dirigir simultaneamente às autoridades públicas uma reivindicação para fixar a jornada de trabalho em oito horas por dia e para colocar em prática as demais resoluções do Congresso Internacional de Paris. Tendo em vista o fato de que tal manifestação já foi deliberada pela American Federation of Labour na sua convenção de dezembro de 1888 em St. Louis para acontecer no dia 1.º de maio de 1890, este dia é aceito como o dia para a manifestação internacional. Os trabalhadores das várias nações devem organizar a demonstração de modo apropriado às condições de seus países.”

IV

1_maio_nightHá quem pergunte a esta altura: “que diabos têm a ver Primeiro de Maio, uma festa pagã perdida no tempo e essa trairagem toda?” Não pensem que a Igreja Católica é a única a fixar suas datas comemorativas com base em festas populares; o movimento operário, ou ao menos suas organizações mais ostensivas, também faz das suas. É tanta coincidência que não parece que esta data haja sido escolhida inocentemente pelo movimento operário para grandes paralisações.

É difícil saber, hoje, o que realmente se passou pela cabeça dos delegados aos congressos da FOTLU de 1884 e da AFL de 1888, mas é razoável supor que, no congresso de 1884, uma vez que os Estados Unidos são um dos países onde, ao menos no século XIX, a tradição das festas populares do Primeiro de Maio se mantinha, estes delegados hajam escolhido como dia de paralisação justamente um dia de festas populares para unir a propaganda e a ação militantes aos festejos – ou seja, unir o útil ao agradável. Em 1888, se esta hipótese estiver correta, o que a AFL fez foi ligar o Massacre de Haymarket ao Primeiro de Maio ao invés de rememorá-lo em sua data correta, pois assim, mais uma vez, a agitação poderia ser feita durante os festejos populares.

A hipótese é arriscada, mas não surge à-toa. Já em 1894 o poeta Walter Crane escrevera um poema chamado The Worker’s Maypole (O Mastro de Maio dos Trabalhadores), que ligou diretamente o Primeiro de Maio com a dança do mastro remanescente da antiga Noite de Walpurgis. (Maypole, que se traduz diretamente para o português como “mastro de maio”, é o nome inglês para o mastro usado na dança de mesmo nome, típica das festas de Primeiro de Maio no mundo anglo-saxão.) Além disso, não faltam registros de que, apesar de a Noite de Wapulrgis ser uma festa eminentemente anglo-saxã, germânica e nórdica, no início do século XX o Primeiro de Maio celebrava-se em regiões do mundo não afetadas por estas culturas não apenas com grandes comícios, mobilizações e paralisações – que invariavelmente encontravam violenta oposição das autoridades, especialmente da polícia e das forças armadas –, mas também com festas, piqueniques e outras atividades aparentemente menos “militantes”.

Se esta hipótese estiver correta, o duplo caráter do Primeiro de Maio – dia de festa e luta – não parece ser invenção recente, mas sim elemento constitutivo seu desde o princípio, embora tudo indique que, postos seus dois aspectos na balança, nesta época o prato da luta pesasse mais.

V

Apesar das trairagens de suas origens, o Primeiro de Maio foi vigorosamente adotado pelos trabalhadores de todo o mundo como seu dia de luta – e de festa. Não foram poucos os trabalhadores, nestes primeiros anos do Primeiro de Maio, a ter sua consciência social despertada a partir da história dos Mártires de Chicago e das ações militantes de todos os anos.

A simbologia do Primeiro de Maio, a bem da tranquilidade da exploração capitalista, precisava ser extinta, morta, soterrada por cem mentiras contadas pelo menos cem vezes. Vimos que tanto a AFL quanto os Knights of Labour já haviam tentado lançar uma pá de terra sobre a memória dos condenados; esta segunda pá de terra pretendia ser definitiva, pois não era lançada apenas sobre a memória dos condenados, mas sobre o caráter combativo do Primeiro de Maio. Surgiu, assim, uma longa fila de indivíduos, grupos e classes sociais dispostas a mistificar o significado do Primeiro de Maio e aproveitar a mobilização social provocada pela data em seu próprio favor.

Em primeiro lugar na fila dos mistificadores vieram os capitalistas. Os Knights of Labor, conhecidos por sua postura colaboracionista frente aos empresários com quem negociavam, inauguraram a tradição de um “dia do trabalho” fazendo passeatas e manifestações na primeira segunda-feira de setembro a partir de 1882; esta data foi decretada Dia do Trabalho nos EUA pelo presidente Grover Cleveland, que pretendia, explicitamente, evitar qualquer forma de agitação socialista fundada no Massacre de Haymarket. Em 1958, no auge da Guerra Fria, o Congresso estadunidense decretou que o 1º de maio seria não o Dia do Trabalhador ou do Trabalho, mas sim o Dia da Lealdade: um dia “dedicado à reafirmação da lealdade aos EUA e ao reconhecimento da herança da liberdade americana”, segundo o texto da lei que o instituiu. Mais modestamente, Pio XII tentaria em 1955 enfiar pela goela dos católicos um certo “Dia de São José Operário” para substituir o Primeiro de Maio, com menos sucesso.

Em segundo lugar na fila dos mistificadores vieram os burocratas da União Soviética. Já em 1918 o 1º de maio havia sido transformado em assunto de Estado; segundo um decreto de 12 de abril de 1918, as estátuas em homenagem aos czares e seus servos já deveriam ter sido retiradas nesta data, e outras novas, criadas por uma comissão da diretoria do Departamento de Belas-Artes do Comissariado para a Educação, deveriam ser inauguradas durante o evento. A mesma comissão teria o dever de “organizar a decoração da cidade para o 1º de maio e substituir inscrições, emblemas, nomes de ruas, brasões etc. por outros novos que reflitam as ideias e o sentimento da Rússia revolucionária e operária”. Anatoly Lunacharsky, um dos signatários deste decreto, registraria em seu diário a respeito do 1º de maio em Petrogrado:

“Sim, a celebração do Primeiro de Maio foi tornada oficial. Foi celebrada pelo Estado. A força do Estado ficou evidente de várias maneiras. Mas não é inebriante pensar que o Estado, até recentemente nosso pior inimigo, agora nos pertence e celebrou o Primeiro de Maio como seu grande festival? Ainda assim, (…), se este festival fosse meramente oficial, não teria produzido nada além de frieza e vacuidade. Mas não, as massas do povo, a Marinha, o Exército Vermelho, todos os trabalhadores sinceros direcionaram seus esforços para ele. Podemos dizer, portanto, que este festival do trabalho nunca foi tão bonito.”

Daí para as grandes paradas e marchas sob Stalin não faltou muito.

Em terceiro lugar na fila dos mistificadores vieram os fascistas italianos. As massivas paradas fascistas tinham como modelo nada mais, nada menos que as comemorações do 1º de maio na União Soviética sob o stalinismo. O dia foi incorporado às comemorações fascistas, dada a origem sindicalista de sua militância.

Em quarto lugar na fila dos mistificadores vieram os nazistas. O Primeiro de Maio na Alemanha sob o nazismo foi transformado, como outros eventos, num palanque para os inflamados discursos de Adolf Hitler perante milhares de nazistas enfileirados sob gigantescas suásticas desfraldadas. Além disso, os responsáveis pela propaganda e arquitetura nazistas trataram de resgatar a tradição nórdica da Noite de Walpurgis – era comum encontrar “Mastros de Maio” em meio às torres com suásticas, tal como no bombástico festival do 1º de maio de 1934 testemunhado por James D. Mooney – executivo da General Motors que, mesmerizado, entraria no gabinete de Hitler no dia seguinte ensaiando um desajeitado sieg heil e facilitaria as relações entre a Opel (subsidiária da GM) e o governo alemão – ou no 1º de maio de 1936, realizado no Lustgarten berlinense.

Estas quatro formas de mistificação do caráter de luta do Primeiro de Maio frutificaram mundo afora, a leste e a oeste, em países capitalistas ou “socialistas”. Nâo é à-toa que Getúlio Vargas cooptou a data durante o Estado Novo e transformou-a em Dia do Trabalho, uma festa repleta do culto à personalidade de “Gegê, o pai dos pobres” na qual os dirigentes sindicais que contavam com a aprovação do Ministério do Trabalho eram chamados a bajulá-lo. Salazar, ditador de menos sorte neste aspecto, bem que tentou seguir o caminho americano e transformar o Primeiro de Maio no dia de São José Operário – coisa tão estapafúrdia que a proibição pura e simples de qualquer comemoração do Primeiro de Maio pareceu-lhe mais adequada.

Mas há um porém. O que fazem estes mistificadores além de tomar em mãos a balança onde fragilmente se equilibram os aspectos combativo e festivo do Primeiro de Maio e lançar mais pesos no prato das festividades? O dia de São José Operário e o Dia da Lealdade são, sim, artificialidades, mas por acaso os soviéticos inventaram alguma coisa nas comemorações do Primeiro de Maio além da gigantesca ornamentação para a festa? Os fascistas italianos, o que fizeram além de amplificar à exaustão as comemorações sindicais já existentes e submetê-las a seu controle direto? Os nazistas inventaram, sim, a mise en scène e a parafernália propagandística por trás dos discursos hitlerianos, mas por acaso inventaram Walpurgis ou o mastro de maio?

Daí a provocação: o que fazem os sindicatos de hoje com seus mega-espetáculos, seus sorteios de carros e casas, suas comemorações anódinas, o que fazem eles além de seguir a mesma trilha de seus antecessores no esforço hercúleo de ressaltar o caráter festivo do Primeiro de Maio em detrimento de seu caráter combativo?

VI

Um corte abrupto – e, convenhamos, estranho – para as Olimpíadas de 1984. Vinte minutos após a primeira colocada, Gabriela Andersen-Schiess, 39 anos, maratonista suíça, entra no estádio, para o horror da platéia. A insolação e a desidratação faziam dela a mais pálida imagem de uma atleta, ou mesmo de um ser humano. Semi-desmaiada, o tronco recurvado e a força da gravidade a empurrá-la para a frente, quase desabando a cada passo, tentava evitar a desclassificação afastando todas as equipes médicas que vinham atendê-la; ocasionalmente, parava e segurava a cabeça com o braço direito – o esquerdo pendulava desorientadamente, rijo de cãibra – enquanto os quatrocentos metros da reta final pareciam-lhe cada vez mais longos. Quase seis torturantes minutos após sua entrada, cruzou a linha de chegada e desmaiou, exausta, nos braços dos médicos. Apesar de seu fracasso competitivo, seu tempo de 2h48min45s teria-lhe valido a medalha de ouro nas cinco primeiras maratonas olímpicas. Por que não abandonou a prova antes? Quis terminar o percurso porque, segundo contou a jornalistas, devido a sua idade aquela talvez fosse sua primeira e última chance de concorrer numa Olimpíada - e seguiu seu objetivo até muito além do limite de suas forças.

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Primeiro de Maio na Coréia do Norte

O Primeiro de Maio vem quase no mesmo passo. Apropriado para os fins mais diversos por capitalistas, nazistas, fascistas, burocratas e toda escroqueria correlata; amplamente superado como dia de luta por eventos como os Dias de Ação Global, o Grito dos Excluídos, a Outra Campanha, o Abril Vermelho e outras datas menos vetustas; solidamente incorporado aos calendários oficiais de diversos países como feriado; sua origem de luta resta hoje drástica e irremediavelmente desfigurada; seu aspecto festivo serve apenas para engordar o bolso dos artistas que cobram altos cachês nos shows organizados por sindicatos e para alimentar a ilusão dos trabalhadores que a eles comparecem sonhando com o carro cujo sorteio em tais eventos é tão certo quanto a mais-valia nossa de cada dia. Por que dar-lhe ainda crédito como data de mobilizações, cento e treze anos após sua controversa origem?

Mesmo sob os regimes mais autoritários, mesmo sob a mistificação mais cerrada, a celebração do Primeiro de Maio é tradição tão arraigada que não há data mais propícia para mobilizações massivas, ou mesmo atos isolados de resistência – os eventos de 1962 em Portugal e de 1968 no Brasil bem o testemunham. Além disso, não há movimento social autônomo que não o recupere em suas atividades de formação política – que o digam o Movimento de Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), o Movimento de Sem-Teto da Bahia (MSTB), o Movimento de Pequenos Agricultores (MPA), o Movimento de Atingidos por Barragens (MAB), o Movimento de Trabalhadores Desempregados (MTD), a Liga de Camponeses Pobres (LCP) e tantos outros – ou em suas ações militantes – que o digam os autonomen alemães, os piqueteros argentinos, os ativistas que participam do MayDay e tantos outros.

Combalido, enxovalhado, trôpego, o Primeiro de Maio chegou até nós, que vivemos num mar de trabalhadores cada vez mais precarizados a cercar ilhas de hiper-qualificação laboral praticamente inatingíveis e também postos de trabalho formal, com direitos garantidos, que se disputam a unhas e dentes. A instabilidade e a fragmentação são traços marcantes deste momento vivido pela classe trabalhadora. Será possível pormos mais peso na balança do aspecto combativo do Primeiro de Maio para reequilibrá-lo com seu aspecto festivo? Como fazê-lo? Com quem? E para quando? Ou tentá-lo servirá, hoje, apenas para recolocar aos olhos do público o mesmo espetáculo da maratonista suíça de vinte e cinco anos atrás – uma demonstração de esforço sobre-humano, de gana e perseverança, fadada, entretanto, ao mais absoluto fracasso? Passa Palavra

FONTES (classificadas por ano)

Terence. V. Powderly. (1890) Anarchy and the Knights.

Eleanor Marx. (1890) Speech at First May Day at Hyde Park.

Rosa Luxemburg. (1894) What are the origins of May Day?

Samuel Gompers. (1925) Seventy years of labor.

Victor Serge. (1930) O ano I da Revolução Russa.

Alexander Trachtenberg. (1932) The history of May Day.

Edward Hallett Carr. (1950-1978) Historia de la Rusia Soviética.

Aziz Simão. (1966) Sindicato e Estado: suas relações na formação do proletariado de São Paulo.

Boris Koval. (1968) História do proletariado brasileiro.

Francisco Foot Hardman. (1983) Nem pátria, nem patrão! Memória operária, cultura e literatura no Brasil.

Eduardo Colombo e outros. (2004) História do movimento operário revolucionário.

Arquivo Marxista na Internet. Dossiê Primeiro de Maio. (http://www.marxists.org/subject/mayday/index.htm)

c) Copyleft: É livre a reprodução para fins não comerciais, desde que o autor e a fonte sejam citados e esta nota seja incluída.

Tempos e espaços, do capital e da luta

Tempos e espaços, do capital e da luta

30 de Abril de 2009

Emanam dos movimentos sociais e populares práticas renovadas de sociabilidades e de resistência nos tempos livres, que vem construindo uma cultura de luta, ampliando os caminhos para que a estética e o social se conjuguem, para que os de baixo permaneçam como produtores e não sejam convertidos em meros consumidores.

0001dgdMais uma vez, as maiores centrais sindicais do país irão promover grandes festas pelo dia mundial do trabalho, com shows de cantores famosos e sorteios de casas e carros, por vezes patrocinados por empresas privadas, em que se gasta mais de R$ 2 milhões por festa. No caso da cidade de São Paulo um fato chama a atenção, pois no dia após o feriado, a prefeitura [câmara municipal] irá promover a já tradicional “Virada Cultural”, oficialmente “24 horas de festa de música, cultura e arte”. Seria a prefeitura a prolongar o ato do sindicato, ou o sindicato a adiantar a festa da prefeitura?

Uma das características do capitalismo foi fazer com que o tempo de trabalho não fosse mais controlado pelo trabalhador, transformando ambos em mercadoria, alienando o produtor do seu próprio fazer, isto é, das formas do seu fazer e da obra do seu fazer.

Assim, o trabalhador perceberia a princípio, o seu tempo de labor apenas como um meio para garantir sua existência e desfrutar de outros fins – em seus tempos livres. Contudo, como o capitalismo não é somente uma forma econômica, mas também política, cultural e social, conseqüentemente ética e estética, também o tempo livre não pode ser pensado como um tempo fora do processo de alienação.

Como vem insistindo João Bernardo, até uma data bastante recente os lazeres eram exteriores ao capitalismo. O consumo efetuado durante as horas de lazer decorria em pequenos comércios de âmbito familiar.

Atualmente o lazer passou a ser não somente um momento de recuperação necessário da força de trabalho para a jornada do dia seguinte, mas um veículo de aprimoramento dos trabalhadores para suas atividades laborais. Além de se caracterizar como momento do consumo de ideologias e mercadorias. Os lazeres, então, não correspondem apenas a um processo de produção física da força de trabalho, já que neles trabalhadores também se adestram e adquirem infinitas qualificações essenciais à vida contemporânea.

Isto significa que, hoje, tanto as horas de trabalho como as horas de lazer são passadas no interior do capitalismo, ou seja, os ócios tornaram-se um dos produtos do processo geral de produção.

Das creches às universidades, e nos mais variados recintos de diversão como restaurantes, bares, cinemas etc., funcionam princípiosocio-consumo estritamente capitalistas, onde se asseguram os múltiplos aspectos da produção dos trabalhadores. A estes é dada a possibilidade de escolherem, em seus tempos livres, entre uma miríade de possibilidades idênticas. A isto se resume a liberdade dentro do capitalismo: poder consumir um caleidoscópio de imagens repetidas.

O lazer, já reificado e transformado num dos principais signos de consumo, é realizado nos shoppings center, nas viagens com roteiros padronizados e homogeneizados, nos idênticos filmes - que quando muito, mudam os atores e as fotografias - nas mesmas telenovelas, nos restaurantes e fast foods, nos jogos esportivos e de videogames, enfim, nas formas de entretenimento que banalizam o conteúdo e impedem o desenvolvimento crítico dos sujeitos, mas que são completamente funcionais ao sistema dominante. Neste mesmo ócio que impede o alçar do vôo de Minerva, os trabalhadores alegremente consomem uma modernidade fútil e se auto-adestram adquirindo habilidades que os tornam mais produtivos. Tanto o conteúdo ideológico dos lazeres sustenta o status quo, como as suas formas se constituem em parte essencial dos mecanismos de mais-valia. De uma ou outra maneira o ócio não se constitui como fuga à exploração.

Neste quadro, a autoridade exercida pelas empresas não se restringe à jornada de trabalho, mas abarca, inclusive, camadas populacionais cada vez mais amplas, pelo longo das vinte e quatro horas do dia e dos sete dias da semana [1]. Apresentando, portanto, uma situação paradoxal do tempo e do trabalho, pois quando não estão a consumir no tempo “liberado” do trabalho, os desempregados ou empregados precários e temporários passam boa parte do seu tempo “livre” exatamente a procurar emprego, e os trabalhadores em empregos estáveis a adquirir mais habilidades que os mantenham em suas ocupações.

Essas configurações do capitalismo atual, como resposta ante a insubordinação da classe trabalhadora, amplia o âmbito da dominação e modifica suas formas de expressão, incorporando esferas outras da vida social que não somente a tradicional concepção do processo produtivo.

Claro que essas transformações trazem consigo implicações tanto na esfera subjetiva quanto material do trabalhador e da trabalhadora.

Tendo os lazeres sido apropriados como espaço-tempo de domínio do capital, as formas de resistências a este domínio têm um valor considerável para as lutas sociais, pois representam um esforço persistente contra a mercantilização de todos os espaços da sociedade. Mesmo assim, dentro da esquerda não é habitual a discussão das maneiras de usufruir o ócio, muito provavelmente porque não haja práticas generalizadas de oposições às dominantes.

Como também parece ser um problema a ser “jogado para debaixo do tapete”, ou tratado de maneira individual, o alto índice de alcoolismo, suicídio e depressão num meio mais libertário. Claro que este não é um problema que se resume à esquerda, mas assola quase toda a população, demonstrado pelo aumento de igrejas e seitas que buscam dar um sentido à existência, aos remédios que anulam os incômodos sentimentos provocados por uma realidade angustiante [http://passapalavra.info/?p=2075].

Mesmo os que se encontram em um espectro mais radical de confrontação social não escapam de viver neste momento histórico – com maiores ou menores problemas, incluso os de sobrevivência – mas querem construir esse caminho de criação de outro mundo mais digno. Sendo assim, não podemos separar estritamente a militância pela construção por um mundo melhor – nossa causa política – das nossas causas pessoais, pois no próprio processo de luta construímos a nós mesmos. Ao mesmo tempo, não há saídas individuais, pois esse projeto político abarca todo um novo mundo e é, portanto, um projeto de classe. Então, cobra relevância, alguma resposta à pergunta de como conjugar esses dois projetos ou tempos, o pessoal e o político. Ainda que tenhamos de “comer o pão que o diabo-capital amassou” em nossas horas de trabalho, como usufruir os tempos de ócio não se integrando completamente à lógica do capital e não separando a vida pessoal do projeto político? Como encontrar o equilíbrio entre esse processo político e o espaço do indivíduo?

tempos-livres-2Restringindo a discussão apenas às formas de viver os “tempos livres”, é sintomático que boa parte da esquerda, ao menos no Brasil, não invista em bens culturais que possibilitem a ampliação de suas potencialidades, percepções e sentidos da realidade. O que pode ser exemplificado pela pouca quantidade de livros nas estantes de lares ou escritórios (muitas vezes apenas de especialização da área na qual trabalham ou estudam), nas poucas idas a peças de teatro ou concertos, na falta de conhecimento de filmes e músicas alternativas, na quase inexistência de publicações expressivas e de acesso popular no âmbito da esquerda. Nas festas universitárias, onde, ainda que com viés político, assiste-se às mesmas práticas de qualquer outra festa, sem que se saia dela com algum conhecimento acumulado sequer sobre a causa que pretensamente a originou. Nas passeatas [manifestações], em sua maioria comandada pelos sindicatos, nas quais se percebe a mesma fragmentação de classe, com as pessoas a marchar pelas ruas pré-determinadas atrás de trios elétricos [colossais carros de som] e a entoar cantos, mas sem se comunicarem, sem estreitarem os laços e contatos, então o que deveria passar como símbolo de força e solidariedade, por vezes demonstra a fraqueza atual.

Ora, num momento em que o ócio e o tempo livre são apropriados pelo capital, em que existe uma quase total integração dos lazeres no capitalismo, seja pelo mercado de consumo com sua indústria de produção de lazeres, seja pelo adestramento mental propiciado pelos computadores e meios eletrônicos, é significativo que boa parte das ações de protesto, no espaço e no tempo, se dê fora do lugar de trabalho, sobretudo nos países em que existe grande número de desempregados e uma importância maior da economia paralela. Pois, os piquetes, as ocupações e os boicotes urbanos tentam superar as dificuldades de ação no interior das empresas, ainda mais quando esses atos são realizados por desempregados e empregados, trabalhadores rurais e urbanos. Deve-se atentar, pois, para as novas formas, tempos e espaços de luta da classe trabalhadora, não inseridas nas relações de trabalho estáveis, bem como as redes de solidariedade e de ação que daí possa advir, de forma que se unam as ações de protesto nos locais e tempos de trabalho e fora deles.

Em relação às formas de tempos pretensamente livres, enquanto a indústria cultural se apropria das criativas formas artísticas populares e as converte em ritmos sedutores para as elites, estilizando-as em espetáculos midiáticos pela indústria cultural transnacional na perspectiva de desagregação, ocorrem manifestações de luta a esse processo de mercantilização.

Emanam, exatamente dos movimentos sociais e populares, práticas renovadas de sociabilidades e de resistência nos tempos livres, que vem construindo uma cultura de luta, ampliando os caminhos para que a estética e o social se conjuguem, para que os de baixo permaneçam como produtores e não sejam convertidos em meros consumidores.

É contra esta lógica que estes movimentos se posicionam na sociedade, ao defenderem uma cultura que é própria da classe trabalhadora, para que a criação artística não se transforme em espetáculo. Há já quatro anos, o MST (Movimento dos Sem-Terra) vem resgatando o carnaval de rua como processo de difusão da cultura popular através do bloco carnavalesco Unidos da Lona Preta (da regional na Grande São Paulo) [a lona preta são os plásticos pretos com que se cobrem os barracos nas ocupações], tendo por propósito, além da formação política dos militantes, a capacitação na área musical, afirmando a política por meio da cultura, tecendo identidades coletivas, tanto entre os militantes como com a sociedade de forma mais ampla. Nas diversas instâncias do MST se fazem presentes setores de arte e cultura, de comunicação etc.

tempos-livresEssa luta, por meio da linguagem artística, também está presente nos territórios rebeldes zapatistas. Como afirma o Subcomandante Marcos, citando por sua vez Emma Goldman, “se na tua revolução não puder bailar, não me convide para ela”. De fato, nos encontros e eventos zapatistas, todos os dias são encerrados com um longo baile, de onde normalmente se vê a lua se despedir beijando o sol; ainda que, quase surpreendentemente para os atuais padrões de consumo culturais de divertimento movidos pelas “horas felizes”, seja proibida qualquer forma de entorpecentes nas comunidades sobre controle dos insurgentes, do lícito álcool à qualquer outra droga ilícita [2]. Os zapatistas também produzem uma vasta obra literária e artística, resgatando e ressignificando a própria cultura mexicana desde baixo, dos populares e indígenas [http://passapalavra.info/?p=2677].

No Movimento dos Trabalhadores Desempregados da Argentina, a possibilidade de “tempo livre” forçado pela falta de emprego levou a outra forma de relacionamento comunitário, com preocupações no tocante ao tempo dedicado ao bairro, aos vizinhos e aos familiares, impulsionando inclusive a discussão sobre a função do trabalho, sendo que alguns grupos reivindicam o trabalho “digno” em contraposição ao “genuíno” [3]. Também entre eles são comuns os grupos de música, de comunicação alternativa, de produção de vídeos.

Estes movimentos, através de uma opção política pela arte, estão a produzir novos valores de solidariedade que reconstituem os laços interpessoais e as dimensões existenciais das pessoas, resultando numa identidade forjada e fortalecida na e pela luta, recheada por valores humanitários e de construção de um mundo novo, menos injusto e desigual. Criam, deste modo, redes de solidariedade que são tecidas nos pueblos, nos territórios, nos bairros, que é ao mesmo tempo local de residência e de trabalho, de lazer e de resistência.

É visível que, neles, as atividades culturais têm uma relevância vital, não apenas como premissa e apoio da luta, mas como um modo de convivência comunitária que se constitui também como objetivo da luta, nos permitindo visualizar o despontar de outros modos de sociabilidade.

Para além desses movimentos sociais e da possibilidade de se unir a eles em suas lutas e lazeres, e entendendo que não basta fazer parte de grupos radicais de bares e discussões, quais as possibilidades a serem vivenciadas dentro do quadro de escolhas dos sujeitos nos seus tempos de lazer?

tempos-livres4Levando-se em conta que o consumo de massas não diz respeito apenas às formas e ao que é consumido, mas ao fato do próprio sujeito ser considerado como objeto, as respostas podem ser várias, como em São Paulo as possibilidades de shows e eventos enquanto espaço de politização e publicização das lutas, das discussões nos cineclubes, dos Saraus de esquerda, do Samba da Lona Preta do MST, do Intercultural (o último ocorreu no MST de Cajamar); da Batucada do MPL, das cervejadas das rádios livres etc. Mas, todos esses exemplos levam em comum um fato – e do contrário não conseguirão romper o ciclo global de mais-valia que se apropria tanto do tempo do trabalho como do tempo pretensamente livre –, os espaços livres só podem se constituir na luta contra o capital. Portanto, só são livres os tempos de luta.

Ainda que nos diversos espaços e tempos haja a luta em potencialidade, da forma individual e passiva até maneiras coletivas e ativas, a contradição entre a apropriação passiva e o usufruto livre do tempo está sempre presente. Se por um lado as formas dadas pelo sistema de enquadrar o tempo é um modo de controlar as pessoas e reforçar o papel das estruturas administrativas (inclusive minando os grupos que pretendem desenvolver algo diverso), por outro lado esses eventos podem levar a transgressões a pequenas normas e leis, permitir a construção e/ou o fortalecimento de laços de solidariedade, gerar o sentimento de retomada dos espaços (não à toa, nas festas públicas o contingente de policiais é muito maior).

É certa a necessidade de se ter paciência com o “tempo” vivido e experimentado por cada pessoa, mas como já afirmava Rosa Luxemburg em 1917, “é preciso ter paciência com a história […] não uma paciência inativa, cômoda, fatalista, mas [a] que emprega todas as energias, que não desanima quando parece momentaneamente bater no granito, e que nunca esquece que a brava toupeira da história cava sem descanso, dia e noite, até chegar à luz”.

Diante de uma conjuntura de descenso das lutas de esquerda e na qual os trabalhadores resistem para assemelharem-se a situação de escravos, buscando a fixação a um único patrão [http://passapalavra.info/?p=2998], esta empreitada se torna mais gigantesca. E apesar de todas as dificuldades que nos afogam, do tempo que não dispomos e de sermos constantemente constrangidos a fragmentação para garantir nossa subsistência, ou nadamos contra a corrente, ou seremos tragados pela correnteza. Passa Palavra

Notas:

[1] Um documentário interessante que retrata o poder exercido contemporaneamente pelas transnacionais é o canadense The Corporation.

[2] A proibição do consumo de qualquer droga, incluída o álcool, em comunidades zapatistas, longe de ser um imperativo moral, atende a especificidades de seu processo de luta. A proibição do uso do álcool se deu por exigência das mulheres zapatistas, pois, antes do levante, era comum nas comunidades indígenas que o patrão no dia de pagamento embriagasse os homens e lhes pagasse um salário menor do que o combinado, os indígenas retornavam para casa e “descontavam” essa situação e outras frustrações com violências físicas e psíquicas às mulheres. Também existem relatos de mulheres indígenas que eram vendidas em troca de bebidas alcoólicas. Além da necessidade de modificar essa situação de violência às mulheres, por se tratar de um exército insurgente e guerrilheiro, se fazia essencial que nenhum tipo de informação vazasse para os não zapatistas, coisa um tanto comum quando se trata de bares e embriaguez. A polícia militar, nos anos iniciais do MST, se utilizou de estratégias de embriagar os camponeses para tentar conseguir algum tipo de informação. Aliás, o bar como local de sociabilidades é um elemento fundamental, não à toa [não por acaso] as “horas felizes” se constituem como forma institucional de “aliviar” o duro tempo de trabalho e garantir um mínimo de sociabilidade sem criticidade. De forma inversa, o bar também pode servir como local de sociabilidade e articulação dos trabalhadores. Logo após o momento de repressão mais violenta em Oaxaca, em 2006, só era quase possível conversar com alguém sobre o assunto nos bares alternativos, pois o medo geral de delações e novas repressões era muito grande.

[3] O “trabalho genuíno” remete a empregos fixos nas fábricas ou em setores de serviço público. Já o “trabalho digno”, se refere ao desenvolvimento de práticas autogestionárias de trabalho, de relações horizontais e igualitárias, que o trabalho seja executado em decorrência das necessidades concretas da coletividade.

Bibliografia:
Henry Giroux, The Mouse that Roared – Disney and the End of Innocence.
João Bernardo, «Tempos livres, livres de quê?»
João Bernardo, «Tempo, substância do capitalismo».
Marco Fernandes, «Quando o desemprego dignifica o homem e a mulher. Lições piqueteras sobre a difícil arte de organizar movimentos populares nas metrópoles neoliberais»

(c) Copyleft: É livre a reprodução para fins não comerciais, desde que o autor e a fonte sejam citados e esta nota seja incluída.

sexta-feira, 24 de abril de 2009

Tecnocracia e as lutas dos professores

Tecnocracia e as lutas dos professores

Por trás da capa de participação e elegibilidade que a democracia apresenta, temos um completo domínio de bastidores efetuado por conselhos técnicos e lobbies. Ora, há uma ausência de pressão do professorado e da sociedade em geral sobre esses conselhos que organizam o fazer pedagógico. Por Ronan

A educação tem sido um dos temas mais postos em debate na sociedade brasileira nos últimos tempos. Quem acompanha o noticiário e as mudanças operadas pelo Estado, assim como a pressão efetuada por variados grupos, viu o cenário ocupado pela questão das cotas [reservas de lugares para tecnocracia_profsestudantes de ascendência negra], a discussão sobre aborto, a emergência do judiciário como uma espécie de Poder Moderador, poder acima dos demais, e as variadas propostas de reformulação da educação, que, em 2007, chegaram a fazer com que surgisse um movimento de ocupação na maior vitrine universitária do país, a Universidade de São Paulo, trazendo agora o foco para o professorado paulista.

Acompanhar o que se tem passado no campo da educação é uma lição muito instrutiva para compreendermos a forma de funcionamento da democracia contemporânea. Por trás de toda a capa de participação e elegibilidade que a democracia apresenta, o que temos é um completo domínio de bastidores efetuado por conselhos técnicos e grupos de pressão, os lobbies. Não só na educação, mas nas mais variadas áreas, as discussões e as decisões importantes, as que realmente afetam as nossas vidas, são tecidas cada vez mais dentre conselhos técnicos e lobbies de variado tipo.

Um número cada vez menor de decisões é operado no âmbito do legislativo e até mesmo do executivo eleito, ficando cada vez mais sob a alçada dos conselhos técnicos e dos grupos de pressão. Mesmo quando o parlamento bate o martelo a respeito de algo, conselhos de vários tipos e outros lobbies se encarregam de alterar o que foi decidido ou passar por nova análise. Leis consagradas pela Constituição, ou decididas no âmbito das assembléias legislativas estaduais, têm sido sistematicamente desconsideradas ou reinterpretadas ao gosto dos órgãos variados. Tivemos a aprovação de uma lei federal que estipulava um salário mínimo nacional para os professores e que foi sistematicamente desconsiderada pelos conselhos estaduais de educação e pelas secretarias de educação dos estados. Os sindicatos estão agora na curiosa situação de terem que fazer mobilização para que os governos estaduais obedeçam a uma lei federal, aprovada por deputados, senadores e sancionada pelo presidente.

Aliás, é pelo fato de a soberania estar se processando no âmbito de múltiplos órgãos que podemos ter um legislativo claramente preguiçoso e desqualificado e um executivo que muitas vezes se preocupa mais em viajar e, ainda assim, o sistema continuar de pé. Quem se enlaça no pseudo-moralismo televisivo, que não cansa de apontar senadores, deputados e vereadores que não trabalham e prefeitos, governadores e presidentes que mais viajam e se apresentam em inaugurações e eventos em geral, poderia parar para pensar quem está a governar então.

Não são aquelas pessoas especializadas em angariar votos que se ocupam das milhares de decisões que afetam realmente a vida das pessoas. Dentro do legislativo, um poder enorme é dado às variadas comissões que se encarregam de formular e debater os projetos sobre múltiplos temas. São comissões de educação, comissão de direitos humanos, comissão de transporte, comissão de saúde, comissão para a infância e juventude e várias outras. Muito antes de serem trazidos à tona, os variados grupos de interesse podem apresentar à exaustão e debater as suas perspectivas no quadro dessas comissões que se encarregam de apresentar o projeto final de lei que vai à votação. Dessa forma, enquanto o grosso da população assiste à novela e recebe no noticiário a menção de que o governo, por exemplo, decidiu que será proibido o fumo em locais públicos ou tornar obrigatório o air bag em todos os carros, havia, desde muito antes, grupos de saúde e empresas do setor automobilístico que atuavam nos bastidores para que tais projetos fossem aprovados. O público em geral tem somente a possibilidade de uma reação a posteriori, como no caso da ocupação de 2007 na USP, que foi eficaz em reverter as medidas tomadas pela Secretaria de Ensino Superior. Os grupos de pressão atuam desde antes, tanto defendendo que se tornem leis seus interesses próprios, como fazendo por nunca chegarem a ser sequer projetos de lei os que lhes contrariam. É dessa forma, por exemplo, que a Igreja Católica atua para que projetos sobre a legalização do aborto não venham jamais a ser votados, ou mesmo formulados.

As empresas e os grupos de pressão reúnem verdadeiros exércitos de técnicos, intelectuais, advogados e notáveis responsáveis por defender as suas bandeiras e interesses. Some-se o incalculável poder persuasivo das doações prévias para campanha, como no caso evidenciado pela Camargo Correa, que em seis anos doou mais de 30 milhões de reais para os principais partidos, e se pode ter a idéia dos laços econômicos e sociais que se estabelecem entre os candidatos eleitos e esses grupos privados. Na última eleição para a prefeitura de São Paulo, os dois maiores candidatos, Marta Suplicy e Gilberto Kassab, gastaram em torno de 30 milhões cada para suas campanhas, o que requer doação de gente graúda e bem relacionada.

Esse mesmo tipo de simbiose entre interesses privados e comissões legislativas ou políticos ocorre entre os mesmos interesses e os variados órgãos que realmente decidem sobre as coisas. Fortes mudanças no plano educacional têm sido tecidas, desde a perspectiva de abolição do vestibular [exame de acesso ao ensino superior] efetuado pelas universidades autonomamente, criando um modelo único e centralizado, passando pela implantação do ensino religioso, até uma completa criação de um sistema de ensino em estados como Paraná e São Paulo. Mudanças impactantes que atingem a vida de 5 milhões de alunos em São Paulo, ou de 30 milhões no âmbito de todo o país, são todas elas construídas fora do campo legislativo e do debate público.

É que as estruturas administrativas têm se sobressaído ante as estruturas eleitas. O Poder Judiciário, o Conselho Nacional de Educação, o Conselho Nacional de Segurança, o Conselho Nacional de Saúde, o Conselho Nacional de Justiça, para não encher a lista com os vários conselhos, é que têm se encarregado das conselho-estadual-de-educacao-de-sp-2007importantes decisões de suas áreas. Dessa forma, uma relação direta e forte da Igreja e/ou de outros grupos de interesse com o Conselho Nacional de Educação ou com o Conselho Estadual de Educação pode acabar determinando mudanças cruciais sobre a forma como a educação vai ser organizada no país e/ou no estado. Da mesma forma, indiferente às leis, o número de pessoas assassinadas, extorquidas, violentadas e/ou torturadas pela polícia pode depender somente de quem está no comando da Secretaria de Segurança.

Leio na Folha de São Paulo deste domingo, de 5 de abril de 2009, que há unidades do metrô onde se tem mais funcionários do que passageiros: unidades fantasma na metrópole paulista que possui sérios problemas e demandas quanto ao transporte público. Os Jogos Pan-Americanos que consumiram 4 bilhões [milhares de milhões] do orçamento público e a Copa [Campeonato do Mundo] de 2014 que se estima irá consumir outros 10 bilhões, ou os 11 bilhões destinados aos usineiros [industriais] nos últimos 5 anos são todos exemplos de decisões vultosas processadas no âmbito de conselhos técnicos. Do livro didático utilizado – que pode ou não ser criacionista -, passando pelos conteúdos ensinados, as disciplinas existentes, as modalidades de contratação, o formato de organização interna, os cursos de requalificação, as prioridades quanto ao investimento e toda a infinidade de aspectos que fazem realmente a educação têm sido decididos no âmbito desses conselhos, como o Conselho Nacional e o Conselho Estadual de Educação e tantos outros conselhos, alguns quase secretos, de dentro das Secretarias. São também conselhos técnicos que se encarregaram de decidir as novas normas de grafia da língua portuguesa, assim como são eles que determinam os horários, as modalidades de ensino e normas as mais vastas como, por exemplo, quando é que começa e termina o horário de verão, quanto de flúor se terá na água, distribuição de remédio e uma infinidade de coisas.

Numa situação como essa, em que pessoas especializadas saídas da universidade decidem na escuridão os parâmetros da vida em geral e da educação, que é enfatizada agora, salta à vista a necessidade de se reorientar o debate nesse campo. Há uma ausência de pressão do professorado e da sociedade em geral sobre esses conselhos que organizam o fazer pedagógico. Lá onde os empresários, as igrejas e os grupos de pressão vários estão há muito atuando não há um posicionamento mínimo dos trabalhadores de base da educação e dos pais. Por um lado, os sindicatos reforçam essa ilusão ao buscarem desviar para as Assembléias Legislativas os atos e o foco, e por nunca estimularem uma reflexão autônoma do professorado, recorrendo aos mesmos tecnocratas da universidade quando pretendem formular críticas. Por outro, uma participação ativa junto a tais órgãos pressupõe uma qualificação dos proletários da educação para que possam entender o que se passa, enfrentar o debate e postar suas propostas. Parece mesmo curioso que movimentos ditos de desqualificados como o MST e o Movimento Sem-Teto possuam projetos com os quais podem responder aos tecnocratas do campo e da cidade e o professorado tenha sido pego [apanhado] desprevenido ante o projeto da tecnocracia no momento atuante. Quanto a isso, desde há muito que o estudantado autônomo deixou de dar ouvidos aos candidatos a ministro dos estudantes, como os membros da UNE [União Nacional de Estudantes] e UEE [União Estadual do Estudante], e tem direcionado suas lutas para os variados conselhos técnicos dentro da universidade que são responsáveis por mudanças importantes como os critérios de expulsão, o formato dos cursos, a concessão de auxílios estudantis, a disciplina intra-universitária, o acesso à estrutura das faculdades, as modalidades de uso, permissão ou proibição de festas, etc. É um exemplo de lucidez.

fonte: http://passapalavra.info/?p=2746

(c) Copyleft: É livre a reprodução para fins não comerciais, desde que o autor e a fonte sejam citados e esta nota seja incluída

segunda-feira, 13 de abril de 2009

ESPAÇO LEITOR

Na última semana pode-se observar uma tímida, mas constante visitação ao blog, no que imagina-se serem leitores.

Portanto a criação desde tópico se destina aos eventuais leitores que queiram deixar comentários, sugestões e críticas de qualquer espécie.

O velho Antônio Abujamra diz uma sugestiva frase (que inspira o presente tópico), em seu programa semanal na TV Cultura. Quando dá a palavra livre aos seus entrevistados diz: "Enforque-se na corda da liberdade".

E é neste espírito que viabilizamos o espaço. Portanto, enforquem-se. :)



O Capitalismo de Estado da URSS

Nildo Viana

O Capitalismo de Estado da URSS

Publicado originalmente na Revista Ruptura, num. 1, maio de 1993.

Um Lombardo Radice, por exemplo, fala de "Socialismo Despótico"; outros falam de "Socialismo de Estado"; outros, ainda, de "Capitalismo de Estado". Na verdade, tudo depende do ponto de vista. Se considerarmos o ponto de vista do operário, que vende sua força de trabalho, como mercadoria, ao Estado já que é o Estado que gerencia a economia e as empresas -para ele, operário é o mesmo que viver sob o capitalismo. Ingolf Diener

Quando Marx escreveu O Capital afirmou que partia do ponto de vista do proletariado. Este, segundo a teoria marxista, é o sujeito histórico que abole não só a sociedade burguesa mas a sociedade de classes em geral. O mais desenvolvido modo de produção classista da História - o capitalismo - explora, domina e aliena o proletariado. Este resiste, se levanta e coloca em xeque o capitalismo. Por isso, é o seu ponto de vista que pode revelar as contradições da sociedade burguesa e realizar o que Marx chamou "a crítica desapiedada do existente". Hoje, o marxismo foi apropriado por outras classes (burguesia, burocracia, etc.) para expressar um ponto de vista estranho ao do proletariado. Trata-se, então, de nos reapropriarmos do marxismo como "expressão teórica do movimento operário" (Korsch), inclusive na análise da URSS e Leste Europeu.

Existem inúmeras interpretações sobre o caráter da sociedade soviética. Além daquelas que defendem o caráter socialista da sociedade soviética (alguns utilizando adjetivos tais como "Socialismo de Estado", "Socialismo de Acumulação", "Socialismo Burocrático", etc.) existem as que consideram uma "Sociedade de Transição" que deverá caminhar para o socialismo. Aí se enquadra a tese Trotskista do "Estado operário com deformações burocráticas" e a teses ambígua de Rudolf Bahro que qualifica a URSS, de forma indecisa, como um regime "Proto-Socialista".

Há também aquelas que julgam que a URSS não é nem socialista nem capitalista. Trata-se de um modo de produção ou uma sociedade pós-capitalista mas não socialista. Os conceitos são vários: Modo de Produção Tecno-Burocrático, Modo de Produção Corporativista, Modo de Produção Estatal, Economia Estatal Totalitária, Sociedade Militar, etc.

Entretanto, a corrente que conseguiu revelar o verdadeiro caráter da sociedade soviética foi aquela que qualificou como uma nova forma de capitalismo: o Capitalismo de Estado. Já na década de 20 surgem os primeiros teóricos e os grupos que defendem esta tese: Amadeo Bordiga e a esquerda comunista italiana, os comunistas conselhistas e o grupo "Verdade Operária" na URSS.

Para Bordiga, foi a herança do "asiatismo" da Rússia que impossibilitou a formação do capitalismo em sua forma clássica e que gerou o capitalismo de Estado. Este seria uma formação social transitória e especificamente russa. O Modo de Produção Asiático colocou suas intituições à serviço do desenvolvimento capitalista gerando a estatização dos meios de produção. Esta seria uma etapa transitória e temporária que prepararia a implantação do Capitalismo Privado.

Os Comunistas Conselhistas (onde se destacam Korsch, Pannekoek, Gorter, Wagner, Ruhle e Mattick) afirmaram que o desenvolvimento insuficiente das forças produtivas gerou uma Revolução Jacobina (que também pode ser chamada de "Contra-Revolução Burocrática") e esta caracterizou todas as tarefas econômicas necessárias para a formação do Capitalismo de Estado. O bolchevismo realizou uma Revolução Jacobina (que, em última instância, é uma revolução burguesa) e implantou o capitalismo sob uma nova forma. Pannekoek diz que essa forma de capitalismo "é uma produção organizada onde o Estado é o patrão universal, o senhor do aparelho produtivo. Os trabalhadores são lá tão senhores dos meios de produção como no capitalismo universal. Recebem um salário e são explorados pelo Estado, que é o único capitalista (e de que tamanho!)" [1].

O grupo clandestino "Verdade Operária" parte da análise do desenvolvimento do capitalismo mundial para explicar a formação do Capitalismo Estatal da URSS. Segundo este grupo, a burguesia privada não é capaz de ultrapassar os interesses de cada ramo da produção e por isso se torna necessária a crescente ação do Estado sobre a economia realizada pela tecnocracia. Na URSS, houve a fusão da tecnocracia com os capitalistas comerciais do período da NEP (Nova Política Econômica) dando origem a Burguesia de Estado, sendo o partido bolchevique sua principal instituição. Essa nova burguesia criou seu próprio regime econômico: o Capitalismo de Estado.

Na década de 30, o historiador Arthur Rosemberg defenderia, com algumas diferenças, as teses dos Comunistas Conselhistas. Segundo ele, "em suas partes essenciais, o bolchevismo revelou o objetivo que se colocara. Com a ajuda do proletariado, derrubou o Tzarismo e fez a revolução burguesa. Superou a vergonhosa inferioridade russa, levando o país ao nível dos Modernos Estados Burgueses Europeus. Graças à força da classe operária, conseguiu ainda substituir a economia e a forma de sociedade capitalismo privada por uma moderna organização baseada no Capitalismo de Estado" [2].

Ainda na década de 30, A. Ciliga defenderia a teoria de que a Rússia vivia sob o Capitalismo de Estado. Para ele, Stálin e Trótski: "...queriam fazer passar o Estado pelo proletariado, a ditadura burocrática sobre o proletariado pela ditadura do proletariado, a vitória do Capitalismo de Estado sobre o Capitalismo Privado e sobre o Socialismo por uma vitória deste último... Já tivemos provas suficientes de que o atual sistema da Rússia preservou todas as características essenciais do Capitalismo: produção de mercadorias, salários, mercados para a troca, dinheiro, lucros, redistribuição parcial dos lucros entre os burocratas, sob a forma de altos salários, privilégios, etc." [3].

Depois destes, vários outros pensadores, militantes e grupos defenderam, de forma diferente, a mesma tese. M. Rubel, baseando-se nos escritos de Marx e Engels sobre a Rússia Czarista, coloca o surgimento do Capitalismo de Estado Russo como provocado pelo atraso econômico do país. As relações de produção dominantes na Rússia impulsionaram o Estado soviético a desenvolver o método capitalista da "acumulação primitiva" e consolidar o Capitalismo de Estado. Outro exemplo é C. Castoriadis, quando ainda se auto-intitulava marxista, que defendia a URSS como um capitalismo burocrático. As relações de produção predominantes na URSS seria uma relação de classe que opunha o proletariado à burocracia, classe que dispõe dos meios de produção e com isso efetua a exploração através do trabalho assalariado. Para ele, o capitalismo burocrático e o capitalismo privado viveriam em um constante conflito que resultaria na vitória de um sobre outro.

O Trotskismo também produziu teóricos e grupos que caracterização a URSS como Capitalismo de Estado: No fim da década de 30, James Burnham e Max Schachtman, da secção americana da IV Internacional; na década de 50, Toni Cliff; na década de 70, o grupo dissidente francês "União Operária". Alguns grupos e teóricos não trotskistas, como o grupo inglês Solidarity, também reconheceram o caráter capitalista da Rússia. Seria impossível aqui uma lista exaustiva daqueles teóricos e grupos que defenderam a teoria do Capitalismo de Estado, tanto por desconhecimento quanto por falta de espaço para realizar tal feito.

Mas, para concluir, devemos expor as teses de três teóricos que, na década de 70, retomaram a concepção do Capitalismo de Estado da URSS. Eles são: o autonomista português João Bernardo, o bordiguista Jean Barrot e o maoísta Charles Bettelheim.

Para Jean Barrot, foi o movimento do capital que gerou o capitalismo russo. Mas, para ele, o Capitalismo de Estado não é, como era para Bordiga, uma fase necessariamente transitória para o capitalismo privado. Segundo Barrot, "a partir de 1914 a potência do capital escapa à burguesia - visto que esta procura, antes de mais nada, controlar o seu progresso, o capital encontra novos agentes capazes de levar a bom termo o seu crescimento. O fenômeno existia já no século XIX (Mehemet Áli), mas alargou-se aqui a todo um conjunto de países subdesenvolvidos ou relativamente atrasados. O mais notável exemplo é, sem dúvida, o da revolução russa. A Rússia tem um proletariado importante pelo seu número e pela sua concentração, mas que se encontra rodeado -cercado- por uma massa camponesa enorme. A burguesia nacional é ali relativamente débil, já que o desenvolvimento econômico foi sobretudo o produto do capital estrangeiro e do Estado. A revolução expropria o primeiro e destrói o segundo. Depois do refluxo do movimento na Europa, o capital é assumido, não por uma "nova" classe -o que suporia novas relações de produção, já não capitalistas mas outras-, mas por uma burguesia cujo papel social é o mesmo, embora com modos de constituição e funcionamento diferentes dos da burguesia clássica: possui os meios de produção por intermédio do Estado -por conseguinte, digamos, a título coletivo, o que não exclui aliás uma autonomia mais ou menos larga das empresas (...). A burguesia de Estado formou-se a partir de antigos militantes operários, de quadros da indústria ou da administração" [4].

Charles Bettelheim reavalia suas análises sobre a URSS, a qual ele definia como uma sociedade socialista, e passa a defini-la como um Capitalismo de Estado. A principal diferença e os demais teóricos do caráter capitalista da Rússia está na explicação da origem do capitalismo russo. Para Bettelheim esta origem se encontra na solução dada à questão da aliança operário camponesa. As contradições no campo e as limitações da política do partido bolchevista reforçaram a tendência do campesinato, principalmente o médio, a exercer uma prática política pequeno-burguesa e este foi o principal elemento que, aliado a outros, provocou o retrocesso da revolução de outubro através da autonomização crescente do Estado que acabou reproduzindo as relações de produção capitalistas [5].

João Bernardo, por sua vez, afirma que a tecnocracia é uma classe social que pode dar um "novo fôlego" ao capitalismo. O partido bolchevique cumpriu este papel e criou o Capitalismo de Estado russo. Este se diferencia do capitalismo clássico pela forma de realização da lei do valor, lei fundamental do modo de produção capitalismo. No capitalismo privado a lei do valor se realiza nos preços do mercado e no Capitalismo de Estado no jogo dos planos. Daí decorrem diversas outras diferenças como a forma de distribuição da mais-valia e a forma de reprodução dos "Capitalistas de Estado" mas o fundamental do modo de produção capitalistas, a lei do valor, continua existindo e se realizando. J. Bernardo considera que o capitalista monopolista de Estado tende a se transformar em Capitalismo de Estado integral, do tipo soviético. A questão a ser resolvida é: ou o socialismo construído pelo proletariado através da autogestão social ou a barbárie capitalista comandada pela tecnocracia reproduzida como burguesia de Estado [6].

Depois deste breve histórico das teorias de Capitalismo de Estado, passemos para a análise da formação desta teoria. A determinação fundamental que levou ao surgimento do capitalismo de "novo tipo" foi o desenvolvimento insuficiente das forças produtivas. A Rússia era um país pré-capitalista em transição para o capitalismo.

Entretanto, o desenvolvimento insuficiente das forças produtivas não gera, por si só, o Capitalismo de Estado ou, como dizem alguns, a "burocratização". O atraso da Rússia Czarista forma as condições determinadas nas quais se desenvolveram as lutas de classe. Essas condições dadas colocam as possibilidades históricas que poderão ser concretizadas e que serão definidas através das lutas de classes. A Rússia poderia ter caminhado para o Socialismo, o Capitalismo Privado, o Capitalismo de Estado, etc., pois a História é aberta. isto, contudo, não quer dizer que ela seja arbitrária: No presente se revelam as tendências de desenvolvimento futuro e a tendência que irá prevalecer depende da ação humana expressa na luta de classes.

Marx e Engels já haviam observado que a burguesia não lançaria mais as massas em uma luta revolucionária devido ao medo de que estas se voltassem contra ela. A burguesia se tornou contra-revolucionária a partir da segunda metade do século XIX. Na Rússia atrasada, a burguesia nascente não iria assumir um papel revolucionário e não romperia sua aliança com o Czarismo. Lá o mais provável seria a realização de uma "revolução burguesa sem burguesia". Com o regime czarista em crise e com a pouca possibilidade de implantação do capitalismo privado, divido a debilidade da burguesia russa, restava com tendências principais: o Capitalismo de Estado e o Socialismo.

É neste país em transição para o capitalismo, que contava com aproximadamente 70% da população formada por camponeses e com uma classe operária em formação, que surge o bolchevismo. Lênin, o principal líder e o mais influente teórico bolcheviche, escrevia, em 1902, que o proletariado jogado a si mesmo chegaria no máximo a uma consciência sindical e isto significa ficar nos limites da ideologia burguesa. A consciência de classe seria introjetada "de fora" pelos intelectuais revolucionários do partido de vanguarda [7]. Esta é, claramente, uma ideologia da tecnocracia, pois reproduz a divisão entre dirigentes e dirigidos, entre trabalho intelectual e trabalho manual. O partido sendo a "vanguarda" da classe, então, a conquista do poder estatal por ele passa a ser equivalente à ditadura do proletariado. Em 1902 já estava justificado o Golpe de Estado de outubro de 1917.

O partido substitui a classe operária como "sujeito revolucionário" e por isso deve ser coerente e eficiente nas suas ações políticas. Para isso ocorrer deve haver centralização, disciplina e unidade de ação. Isso tudo torna o "centralismo democrático" uma necessidade. Neste sentido, ideologia e organização estão unificadas e se complementam.

O proletariado russo, apesar da ideologia da "nulidade operária" criada por Lênin, cria os sovietes (conselhos operários) na revolução de 1905 e novamente na revolução de fevereiro de 1917 [8]. O próprio Lênin reconheceu a espontaneidade revolucionária do proletariado na revolução de fevereiro: "Em fevereiro de 1917 as massas organizaram os sovietes antes mesmo que algum partido tivesse tido tempo de lançar esta palavra de ordem. O grande gênio criador do povo, temperado pela amarga experiência de 1905, que o tornara consciente, eis o artifície desta forma de poder proletário" [9]. Com a revolução de fevereiro se implanta uma dualidade de poderes: de um lado, o poder contra-revolucionário expresso no Estado Czarista, de outro lado, o poder revolucionário expresso nos sovietes.

Os bolcheviques, com o Golpe de Estado de outubro, assumem o poder do Estado e a partir disto a dualidade de poderes começa a se resolver em favor do "Estado burguês mas sem burguesia" de Lênin. Os bolcheviques no poder pregam a "gestão individual das empresas", a implantação do Taylorismo (método tipicamente capitalista de gestão nas fábricas), a militarização dos sindicatos e, além disso, esvaziam os sovietes implantando a ditadura do partido [10].

O bolchevismo realiza, através do exército vermelho, a contra-revolução na Ucrânia destruindo a coletivização camponesa lá realizada [11]. Abole as frações dissidentes internas do partido como os "Comunistas de Esquerda", a "Oposição Operária" e os "Centralistas Democráticos" [12]. A insurreição de Kronstadt declarada pelos marinheiros pretendia reestabeler os sovietes, como demonstra o Izsvestia de Kronstadt de 6 de março de 1921: "Nossa causa é justa. Somos pelo poder do sovietes e não dos partidos. Somos pela eleição livre dos representantes das massas trabalhadoras. Os sovietes falsificados, monopolizados e manipulados pelo partido comunista sempre foram surdos às nossas necessidades e exigências; a única resposta que recebemos foi a bala assassina" [13]. O massacre de Kronstadt demonstrou que dessa vez não seria diferente. Com a dominação bolcheviche nascida da fusão do partido com o Estado surge uma camada burocrática que cresce cada vez mais. A burocracia dominante surge de quadros do partido, do Estado Czarista, das indústrias, da pequena burguesia e em menor grau do campesinato e até mesmo da classe operária. A burocracia (Burguesia do Estado) se fortalece e consolida enquanto classe dominante durante o período do "comunismo de guerra" e durante a NEP (Nova Política Econômica). A ascensão de Stálin demonstra essa consolidação. A classe dominante, expressa perfeitamente no stalinismo, encontra a partir de então, dois obstáculos: a burocracia dissidente liderada por Tróstski e o campesinato. A repressão à "oposição unificada" que vai até os processos de Moscou e a "estatização forçada", que proporcionou a chamada "acumulação socialista primitiva" através da superexploração dos camponeses, removem estes obstáculos [14]. O Capitalismo de Estado passa a predominar na URSS.

Mas resta saber: o que é o Capitalismo de Estado? Desde Marx sabemos que a definição de um modo de produção se encontra nas relações de produção dominantes em uma sociedade.

As relações de produção capitalistas são aquelas em que a produção de mercadorias e a lei do valor se generalizam ao ponto da própria força de trabalho se tornar uma mercadoria. O valor de uma mercadoria é determinado pelo tempo de trabalho socialmente necessário para sua produção. Os trabalhadores devem estar separados dos meios de produção e ter como única mercadoria sua força de trabalho. Por isso, eles são obrigados a vender sua força de trabalho ao capital. Este paga em forma de salário o mínimo necessário para sua reprodução. Entretanto, a força de trabalho produz mais do que o necessário para a sua reprodução e este excedente produzido é apropriado pelo capital. O excedente é a mais valia e esta apropriação expressa o domínio do trabalho morto sobre o trabalho vivo.

Na URSS, os trabalhadores estão separados dos meios de produção e só possuem a sua força de trabalho como mercadoria para vendê-la ao capital. Entretanto, assim como no capitalismo privado, eles só recebem, em forma de salário, o necessário para sua reprodução enquanto força de trabalho e produzem um excedente que é apropriado pelo capital, a mais valia. Como se vê, o fundamental das relações de produção capitalistas estão presentes na URSS.

Contudo, existem algumas diferenças. No capitalismo privado predomina a propriedade privada individual e no Capitalismo de Estado predomina a propriedade privada de uma classe que a gera coletivamente através do Estado. Esta diferença, por sua vez, cria outras diferenças, mas que não colocam em questão o caráter capitalista das relações de produção nas URSS.

Este é o ABC da teoria do Capitalismo de Estado. Os opositores desta teoria colocam dois obstáculos principais, a saber: em primeiro lugar, dizem que a burocracia não é uma classe dominante pois ela não é uma classe proprietária; em segundo lugar, afirmam que não há predomínio da lei do valor na URSS. Aprofundaremos a teoria do Capitalismo de Estado respondendo a estas questões.

Em primeiro lugar, devemos colocar que a burocracia (Burguesia de Estado) é uma classe proprietária. Na URSS a propriedade jurídica é coletiva, mas a propriedade real é privada. Segundo Marx "em cada época histórica, a propriedade desenvolveu-se diferentemente e numa série de relações sociais totalmente distintas. Por isto, definir a propriedade burguesa não é mais do que expor todas as relações sociais da produção burguesa", pois, "pretender dar uma definição da propriedade como uma relação independente, uma categoria à parte, uma idéia abstrata e universal -isto não pode ser mais que uma ilusão de metafísica ou jurisprudência" [15]. As relações de propriedade são uma expressão jurídica (e portanto, ideologia) das relações de produção [16]. Portanto, é no conjunto das relações de produção que se determina a existência e a forma de propriedade. O título de propriedade é apenas uma justificativa ideológica que a classe proprietária utiliza para manter o seu controle sobre os meios de produção e a força de trabalho. Não é através do título jurídico que poderemos definir se existe propriedade ou qual sua forma. A definição só pode ser realizada através do conhecimento de quem controla as forças produtivas. Propriedade real e controle da propriedade são inseparáveis. Somente na ideologia, na propriedade jurídica, pode haver a separação entre propriedade e controle.

No capitalismo privado, os proprietários individuais justificam a exploração através do título de propriedade privada. No Capitalismo de Estado, ao contrário, a burocracia justifica a exploração ao declarar que a propriedade dos meios de produção pertencem ao povo mas é dirigido pelo Estado, ou seja, pela burocracia. A expressão jurídica da propriedade burguesa no capitalismo privado se caracteriza por afirmar a sua existência e compromisso justificar o controle sobre as forças produtivas e no Capitalismo de Estado se caracteriza por afirmar sua "inexistência" e é justamente isso que justifica o controle sobre as forças produtivas realizado pelo "coletivismo burocrático". A propriedade real está presente em ambos os casos mas a propriedade jurídica está presente apenas em um. Pois, na URSS, a propriedade pertence ao povo e se pertence a todo mundo quer dizer, no final das contas, que "não pertence" a ninguém.

A existência do controle estatal sobre as forças produtivas realizado pela burocracia demonstra que essa é uma relação de classe e, conseqüentemente, uma relação de exploração. C. Castoriadis demonstrou isso muito bem, embora não tenha demonstrado como observou J. Barrot, que esta exploração é capitalista. Pois todas as relações de classe e de exploração se baseiam neste pressuposto do controle sobre as forças produtivas. Portanto, é preciso demonstrar o caráter especificamente capitalista desta exploração. O que define isso é a forma como se dá a apropriação do mais-trabalho e está se dá, no capitalismo através da extração da mais-valia. Como demonstramos anteriormente, a burocracia extrai mais-trabalho dos produtores diretos em forma de mais-valia, assim como a burguesia privada, e decide o que será feito com o excedente produzido, dentro dos limites impostos pela dinâmica do modo de produção.

Portanto, o essencial é definir se há ou não o predomínio da lei do valor na URSS. A lei do valor só pode existir havendo um alto grau de desenvolvimento da divisão social do trabalho e com isso provocar a separação entre os ramos de produção e entre produtores e consumidores -ou seja, superação da produção de auto-subsistência, o que significa que o produtor deixa de produzir para o seu próprio consumo e passa a produzir para vender o produto no mercado- e com isso criar a necessidade de troca de mercadorias. Isto significa que, para se implantar o modo de produção capitalista, estas condições precisam ser complementadas com a separação entre produtores e meios de produção. Essa separação provoca a necessidade dos produtores de venderem sua força de trabalho em troca de um salário com o qual garantirá sua reprodução. Como a força de trabalho recebe um salário que é inferior ao que foi produzido se cria um excedente, a mais-valia, que é apropriado pelo capital. Isto quer dizer que a força de trabalho é uma mercadoria sui generis, pois só ela produz mais-valor e este ao ser apropriado pelo capital cria sua reprodução ampliada. Para que essa reprodução ampliada de capital se realize é necessário não só a produção de mais-valia mas também a competição entre capitais individuais, pois esta obriga a burguesia a reinvestir cada vez mais em meios de produção. Estas condições e premissas da produção capitalista estão presentes na URSS, onde o desenvolvimento da divisão social do trabalho criou uma ampla separação entre os ramos de produção, entre produtores e consumidores e, finalmente, entre os trabalhadores e meios de produção. Isto, por sua vez, verá o trabalho assalariado, a produção da mais-valia, e conseqüentemente, a acumulação de capital. O único dos elementos acima citados que se poderia argumentar que não existe na URSS é a competição entre capitais individuais, pois lá a propriedade é monopólio do Estado. Mais isto não é correto e demonstraremos isto a seguir.

A reprodução ampliada do capital é impulsionada pelo mercado mundial e pelas relações comerciais e monetárias internas da URSS. Essas relações nunca deixaram de existir: já existia no período do "comunismo de guerra" e se aprofundou com a NEP (Nova Política Econômica) e esta criou, no seu final, as condições necessárias para sua reprodução na economia estatizada [17]. A "estatização forçada" criou os Kolkhozes (que deveriam ser cooperativas) como um forma de propriedade estatal. O Estado recebe dos Kolkhozes renda da terra em forma de altos impostos. Eles são dirigidos pela burocracia Kolkhoziana que repassa os impostos para o Estado e retira privilégios e rendimentos superiores aos do campesinato. Estes "rendimentos superiores" são justificados pelo "trabalho por rendimento" que calcula as tarefas de acordo com o grupo ao qual se pertence (burocracia, agrônomo, tratorista ou camponês). A burocracias kolkhoziana se inscreve na nomenclatura, ou seja, é nomeada pela burocracia estatal, sendo, portanto, intocável.

Os camponeses possuem, entretanto, suas pequenas parcelas de terrenos individuais atrás de suas casas. Eles se alimentam através do trabalho nestes terrenos e também a maior parte da população urbana apesar de serem apenas 3% das terras cultiváveis. Estes produtos são vendidos pelos camponeses diretamente à população criando uma forma de comércio livre.

As diferenças entre as fazendas estatais (Sovkhozes) e as empresas "ditas" cooperativas (Kolkhozes) são: a) A forma de remuneração nas primeiras é realizada através do salário e nos Kolkhozes através do "trabalho efetuado", embora juridicamente em 1966 a remuneração passasse a ser igual a dos Sovkhozes; b) As parcelas individuais de terra existentes nos Kolkhozes e inexistentes no Sovkhozes; e c) Os Sovkhozes repassam para o Estado o excedente em forma de lucros e os Kolkhozes em forma de impostos.

O chamado "mercado negro" urbano e a reprodução das pequenas propriedades urbanas são outras formas de expressão das relações comerciais e monetárias na URSS. Quando há qualquer troca entre os Sovkhozes e o Estado ou entre os este e os Kolkhozes se manifesta a lei do valor. Quando as unidades de produção (as empresas estatais) trocam meios de produção entre si também atua a lei do valor. Isto é possível porque cada empresa tem "autonomia financeira". As empresas estatais possuem seus fundos próprios; compra e venda e seus meios de produção, matérias-primas, combustíveis, etc.; possuem autonomia para decidir o número de assalariados e a forma de contrata-los e dispensa-los; e se auto-financiam através de suas receitas e do sistema bancário.

Neste sentido, as empresas estatais funcionam como capitais individuais. As trocas entre as "cooperativas", as fazendas estatais, as unidades de produção aliadas com a produção mercantil da pequena propriedade camponesa e urbana juntamente com o mercado negro demonstram as várias formas de manifestação das relações comerciais e monetárias na URSS.

Essa autonomia das unidades de produção, aliada às demais formas de relações comerciais e monetárias, torna necessário a comparação entre as mercadorias para medir o tempo de trabalho socialmente necessário. A divisão social do trabalho expressa aí cria a necessidade de submissão à lei do valor. Cria-se também, uma competição embora num nível bem inferior em comparação com o capitalismo privado. A dinâmica da acumulação de capital sob o Capitalismo de Estado é impulsionada principalmente pela competição internacional que se realiza no mercado mundial.

A lei do valor e a acumulação de capital "soviéticos" estão submetidos ao mercado mundial. Tanto a produtividade do trabalho, que é necessariamente comparada ao mercado mundial, quanto a decisão na produção nos meios de produção, estão na URSS, devido ao comércio externo, condicionadas pelo mercado mundial. No seu comércio externo, as suas trocas com o COMECON representavam 54% e as trocas com os países imperialistas do Ocidente 31%, enquanto que as efetuadas com os países capitalistas 13%.

O capital internacional também interfere internamente na economia "soviética", pois existem diversas empresas estrangeiras na URSS como a General Motors, Shell, Coca-Cola, Mitsubishi, Krupp, Basf, Control Data, Brown Boveri, Exxon, Union Carbide, etc, etc. Estas empresas atuam na URSS na forma de co-produção industrial. A co-produção industrial se baseia num acordo em que a URSS assume o papel de ceder força de trabalho e instalações enquanto que os países imperialistas do Ocidente fornecem máquinas, técnicas de gestão, licenças, etc. Nestas empresas, a mais-valia é repartida entre a burocracia "soviética" e o capital internacional. Além desse tipo de acordo existem inúmeros outros isto torna necessário a presença de bancos estrangeiros na URSS.

A URSS não só explora os camponeses soviéticos como também avança sobre outros países realizando uma verdadeira expansão imperialista. A fase imperialista do Capitalismo de Estado russo é demonstrada tanto através do "velho imperialismo" (dominação político-militar direta), como ocorreu no Afeganistão, quanto através da exploração dos países do Leste Europeu no comércio internacional. Existe entre a URSS e o Leste Europeu uma "troca desigual" e o exemplo da Hungria deixa isso bem claro: "no caso da Hungria, enquanto esta, de 16 Rublos passou a pagar 36 par tonelada de petróleo importado da URSS, o que significou o aumento de 131% (na verdade, 125% - NSV), os preços das máquinas que ela vendeu à URSS tiveram um aumento de apenas 33%" [18]. A URSS se não bastasse isso, implantou no Leste Europeu "empresas mistas" com 50% de capital soviético e 50% de capital nacional. Isso além das empresas que foram cedidas pela Alemanha Oriental como pagamentos de indenização pelas destruições da II Guerra Mundial e se tornaram propriedades soviéticas [19].

A luta de classes na União Soviética depois da II Guerra Mundial revela, após um breve período de "reconstrução nacional" um processo de acirramento crescente. Os problemas sociais como, por exemplo, a crise da agricultura, a questão da habitação, os desperdícios produzidos pela planificação burocrática, se acumulavam e criavam enormes conflitos sociais. A própria classe dominante, principalmente após a morte de Stálin, sempre estava envolvida em lutas inter-burocráticas visando a ascensão ao cume da pirâmide do poder ou então buscando uma repartição mais favorável da mais-valia. Cabia ao partido "comunista" mediar as lutas inter-burocráticas e através do Estado manter a unidade da classe dominante. A repressão era o meio mais eficiente e utilizado para reproduzir sua dominação, tal como expressa nos campos de concentração (GULAGS) e nos hospitais psiquiátricos, pois, como escreveu um soviético dissidente, a oposição era uma "nova doença mental na URSS" (V. Bukowski). Mas esta repressão contava com o reforço da dominação ideológica realizada pelos aparelhos culturais e educacionais do Estado soviético. Nas instituições educacionais havia o ensino obrigatório do chamado "marxismo"-leninismo, a ideologia oficial do capitalismo estatal russo. Entretanto, estes aparelhos culturais e educacionais também eram garantidos pela repressão, pois não havia liberdade de imprensa e de produção científica, artística e cultura. O monopólio estatal dos meios de produção cultural produziu, conseqüentemente, o "monopólio" da produção cultural.

Toda essa repressão e controle tem como objetivo reproduzir as relações de produção capitalistas na URSS. A resistência operária e camponesa se expressavam, num primeiro momento, como luta de classes na produção. Os camponeses dos kolkhozes, por exemplo, preferiam produzir nas suas parcelas individuais de terras do que nos kolkhozes e isto provocava uma baixa produtividade do trabalho. A resposta da burocracia era a tentativa de submeter a produção individual à exploração realizada através das trocas comerciais, o que, por sua vez, gerava novos conflitos sociais. Nas fábricas, os operários se encontram submetidos aos métodos tipicamente capitalistas de controle da produção, por exemplo, o sistema Taylor, e por isso apresentam também uma baixa produtividade do trabalho. A burocracia tentou resolver a questão com os "incentivos materiais" (idéia importada da Europa Ocidental) mas, como demonstrou a História, fracassou totalmente. A repressão generalizada na sociedade russa acontecia justamente por causa do descontentamento e resistência crescente das classes exploradas. A burocracia utilizava como "arsenal ideológico" as acusações aos dissidentes de "contra-revolucionárias", "loucos", "agentes do imperialismo", etc., para justificar a repressão. As burocracias das repúblicas "soviéticas" utilizavam-se das tradições nacionalistas, acirradas pela opressão russa, para incentivar mobilizações de trabalhadores como o objetivo de pressionar Moscou para conseguir uma repartição mais favorável da mais-valia.

A resistência operária na produção atinge níveis elevados quanto a sua luta contra o aumento da produtividade e da extração de mais-valia chega ao ponto de apelar para as greves e se exige melhores salários; pois isto significaria uma diminuição na extração de mais-valia por quanto isso não fosse acompanhado pelo aumento da produtividade ou da jornada de trabalho, o que efetivamente não ocorria. A resistência operária fora do local de produção se expressa na formação de sindicatos independentes e de organizações clandestinas de esquerda. A burocracia reage, obviamente, com a repressão crescente e generalizada na sociedade russa.

Assim, a luta de classes na União Soviética apresentava uma onda de "mais-repressão" crescente tanto no campo quanto na cidade. A burocracia estatal buscava centralizar ainda mais os Kolkhozes com medo das tendências auto gestionárias dos camponeses e reprimir todas as formas de organizações não-estatais e manifestações políticas nas cidades com medo da auto-organização da classe operária. No entanto, o descontentamento e a luta dos trabalhadores para transformar suas condições de existência e, conseqüentemente, abolir o capitalismo estatal russo e construir a autogestão social, revelam as contradições da sociedade soviética que mais cedo ou mais tarde provocarão o rompimento com esse "mundo concentracionário".

Antes da crise da URSS e do Leste Europeu criticar o chamado "socialismo real" era sinal de "trotskismo" ou "direitismo". Mas, na realidade, como disse F. Claudin, para a direita e o imperialismo "o que lhes interessa conservar é o equívoco colossal de que aquilo é socialismo. Que argumento melhor para comprometer o ideal socialista diante das classes trabalhadoras e dos intelectuais do Ocidente? Na verdade, quem faz o jogo da direita são aqueles que coincidem com ela em conceber o diploma de socialismo às ditaduras totalitárias do leste" [20].

fonte: http://www.geocities.com/comunistasdeconselhos/Nildo.htm#4