quarta-feira, 27 de maio de 2009

O anzol (8)

O anzol (8)


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Marxismo e nacionalismo (I): O antieslavismo de Engels e de Marx

Marxismo e nacionalismo (I): O antieslavismo de Engels e de Marx

Engels e Marx transpuseram a luta de classes para o plano nacional, considerando que umas nações seriam «revolucionárias» e outras «contra-revolucionárias». Por João Bernardo

À primeira vista o nacionalismo não devia constituir um problema para os marxistas, pois o nacionalismo situa-se acima das classes sociais e funde toda a população em torno de uma suposta identidade nacional, enquanto o marxismo considera que a sociedade está sempre atravessada por clivagens e que entre os capitalistas e os trabalhadores não existem interesses comuns. No entanto, é o contrário que tem sucedido. Mostrarei nesta série de quatro artigos que desde a sua própria fundação o marxismo nunca conseguiu lidar de maneira clara com a questão do nacionalismo.

Ao escrever no final de 1843 A Propósito da Questão Judaica, um ensaio publicado no ano seguinte, o jovem Marx hegeliano considerava necessária a superação de todas as especificidades culturais que impediam a inserção numa sociedade global emancipada. «Só quando o homem real e individual tiver restaurado no seu próprio ser o cidadão abstracto e quando, como homem individual, se tiver tornado um ser genérico na sua existência empírica, no seu trabalho individual, nas suas relações individuais – só quando o homem tiver reconhecido e organizado as suas forças próprias como forças sociais e, consequentemente, não separar mais de si a força social sob a forma da força política – somente então a emancipação humana estará consumada». Palavras que deixarão horripilado qualquer multiculturalista!

Marx concebeu inicialmente a alienação como separação entre o indivíduo e a sociedade global, mas a ruptura com o hegelianismo levou-o a apresentar a alienação como uma clivagem no interior da sociedade e a pensá-la em termos de classes sociais. Uma vez aberta esta perspectiva, o plano psicológico e depois sociológico em que a alienação havia sido pensada tornou-se insuficiente e Marx passou para um novo plano de análise, o da economia. Formulada nestes novos termos, a alienação converteu-se em exploração. A cisão que afastava o indivíduo da sociedade foi concebida como uma cisão interna ao processo de trabalho, afastando os trabalhadores do controlo desse processo e, portanto, privando-os do resultado dos seus esforços e opondo-os aos capitalistas, que controlavam o processo de trabalho e se apoderavam do seu produto. Ao mesmo tempo, a filosofia, cujas especulações haviam sempre decorrido no plano das elaborações intelectuais, virou-se para a acção material e passou a ter como objecto a produção e reprodução das condições de existência, convertendo-se em filosofia da praxis. Logo no começo deste percurso Marx uniu os seus esforços de pensador e de organizador aos de Engels, e os dois escreveram e assinaram em 1848 um conhecido Manifesto que apresentava a sociedade dividida em classes sociais definidas pelo processo de exploração e consagrava uma dessas classes, os trabalhadores, como motor da história. De então em diante os dois amigos − que deixaram a certa altura de ser amigos mas nunca deixaram de ser camaradas políticos e colaboradores intelectuais − escreveram uma enorme obra teórica destinada a aprofundar a análise dos mecanismos de articulação das classes sociais.

Estariam eles a tratar das classes ou das nações?
Estariam eles a tratar das classes ou das nações?

Neste contexto, tanto mais espantoso pode parecer que Marx e Engels tivessem em grande medida orientado as suas intervenções práticas não consoante a perspectiva da luta entre classes mas numa perspectiva geopolítica de confronto entre grandes blocos nacionais. O drama histórico contemporâneo, que na teoria abstracta Marx e Engels conceberam como uma luta entre proletários e capitalistas, foi frequentemente exposto na análise concreta como um choque entre, por um lado, nações consideradas revolucionárias, principalmente a Alemanha lutando pela unificação e a Polónia lutando pela independência, e, por outro lado, nações consideradas contra-revolucionárias, que incluíam a totalidade dos eslavos com excepção dos polacos. E assim a visão de uma sociedade dividida em classes foi substituída pelo seu exacto oposto, Estados supraclassistas. Esta afirmação corre o risco de fazer dar pulos de indignação a muita gente, porque se trata de um aspecto da obra de Marx e de Engels que tem sido ocultado pela quase totalidade dos discípulos mais sabedores. Ficámos até hoje sem qualquer estudo de conjunto da fundação do marxismo, e metade da obra dos fundadores é-nos apresentada como se fosse a obra inteira.

Eis uma «nação revolucionária»

Eis uma «nação revolucionária»

Mesmo numa série de artigos demasiado extensa para um site, não tenho qualquer possibilidade de proceder a uma investigação detalhada e limito-me a fornecer pistas de leitura e perspectivas de análise que possam estimular os leitores a prosseguir o estudo por sua conta e risco. «De todas as nações e naçõezinhas da Áustria, só três foram portadoras de progresso e tiveram uma intervenção activa na história, mantendo a sua vitalidade: os alemães, os polacos e os magiares. Por isso são agora revolucionárias. Todas as outras tribos e todos os outros povos, grandes e pequenos, têm de imediato a missão de perecer na tempestade revolucionária mundial. Por isso são agora contra-revolucionários», escreveu Engels na Neue Rheinische Zeitung em 1849, acrescentando outras interessantes diatribes. «Naquela altura», ou seja, em 1848, «o destino da revolução na Europa oriental dependia da atitude dos checos e dos eslavos meridionais. Nunca esqueceremos que no momento decisivo eles atraiçoaram a revolução […] por causa das suas mesquinhas esperanças nacionais! […] E por esta cobarde e baixa traição à revolução exerceremos um dia uma vingança sangrenta contra os eslavos». Só os polacos, apesar de serem eslavos, escapavam a esta condenação global, devido à sua atitude contrária ao império dos czares. «[…] dado que polaco e revolucionário se tornaram sinónimos, também a simpatia de toda a Europa para com os polacos e para com a restauração da sua soberania é por isso tão certa como o ódio de toda a Europa para com os checos, croatas e russos, e como a mais sangrenta guerra revolucionária de todo o Ocidente contra eles». Engels esqueceu que enquanto as aspirações de emancipação política ou nacional dos proprietários fundiários austro-húngaros os haviam levado a apoiar a revolução burguesa e constitucionalista de 1848, os seus interesses de classe os levavam a oprimir os camponeses de origem eslava. Não espanta, assim, que o campesinato não considerasse libertadora uma revolução que os seus senhores contribuíam para promover e organizar e que não o incluía. O eslavismo destes camponeses era uma reacção contra os grandes donos da terra. Mas em vez de abordar o problema com a perspectiva analítica de classe que ele e o seu amigo haviam forjado, Engels transpô-lo para o plano das entidades nacionais. «À verborreia sentimental sobre a fraternidade, que aqui nos é oferecida em nome das nações contra-revolucionárias da Europa, nós respondemos que o ódio à Rússia foi e continua a ser a primeira paixão revolucionária dos alemães; que desde a revolução se acrescentou o ódio aos checos e aos croatas; e que, em comum com os polacos e os magiares, nós só podemos assegurar a revolução se recorrermos ao mais decidido terrorismo contra esses povos eslavos». Como se tais palavras não fossem suficientemente claras, aquele que um ano antes, num conhecido Manifesto, havia ajudado a evocar a união dos proletários de todos os países apelava agora: «Luta, “luta implacável de vida ou morte”, contra o eslavismo que atraiçoa a revolução, luta de aniquilamento e terrorismo sem contemplações, não no interesse da Alemanha, mas no interesse da revolução». O motor da revolução deixara de ser a luta de classes e passara a ser uma guerra entre blocos nacionais. «Logo que ocorra uma insurreição vitoriosa do proletariado francês […] os austro-alemães e os magiares libertar-se-ão e procederão a uma sangrenta vingança contra os bárbaros eslavos. A guerra generalizada que rapidamente se desencadeará há-de reduzir a pó essa liga particularista dos eslavos e há-de apagar até o nome de todas essas pequenas nações obstinadas. A próxima guerra mundial não só fará desaparecer do globo terrestre as classes e as dinastias reaccionárias, mas igualmente povos reaccionários inteiros. E também isto será um progresso». Foi nesta óptica que os dois fundadores do marxismo encararam a revolução de 1848 nos estados alemães e no Império Austro-Húngaro.

Encontram-se aqui as raízes da oposição de Marx e de Engels a Bakunin. Num texto que me vai indispor com os marxistas é pouco diplomático hostilizar os anarquistas também, mas não tenho outro remédio senão recordar que, no que dizia respeito às concepções económicas, Bakunin era marxista, sendo aliás ele o primeiro a traduzir parcialmente O Capital para russo. Bakunin, porém, era partidário da unidade dos povos eslavos e por isso, numa sociedade rural e pouco industrializada, ele apreciava as potencialidades revolucionárias dos camponeses, enquanto o ódio de Marx e de Engels aos eslavos os levava a considerar que os camponeses dessas nações eram capazes apenas de se vergar sob o chicote dos senhores.

O que os «enérgicos yankees» conquistaram aos «mandriões mexicanos»
O que os «enérgicos yankees» conquistaram aos «mandriões mexicanos»

A fundamentação das opções geopolíticas dos fundadores do marxismo foi expressa com grande clareza a respeito da guerra conduzida pelos Estados Unidos contra o México entre 1846 e 1848, que levou à anexação de mais de metade do território deste país, ou mais de dois terços se o Texas for incluído. Engels tomou entusiasticamente a defesa dos agressores, considerando que aquela guerra «foi sustentada única e exclusivamente no interesse da civilização». Este artigo, publicado em 1849 na Neue Rheinische Zeitung, procede a uma curiosa apologia dos interesses nacionais de certos povos escolhidos. «Será porventura alguma desgraça que tenham tomado a magnífica Califórnia a esses mandriões mexicanos, que não souberam fazer nada com ela? Que os enérgicos yankees multipliquem os meios de circulação graças à rápida exploração das minas de ouro ali existentes, concentrem em poucos anos uma população densa e um amplo comércio nas partes mais adequadas da costa do Pacífico, criem grandes cidades, inaugurem serviços de navios a vapor, construam uma via férrea de Nova Iorque até São Francisco, abrindo à civilização o Oceano Pacífico, e pela terceira vez na história dêem uma nova direcção ao comércio mundial? Talvez com isto fique prejudicada a “independência” de alguns californianos e texanos de origem espanhola e sejam violados aqui ou ali outros postulados morais, mas que peso tem isso em comparação com tais factos de transcendência histórica mundial?». Seria interessante saber o que os comunistas mexicanos pensam a este respeito. Nem importa aqui recordar que a guerra contra o México veio reforçar a posição não dos «enérgicos yankees», ou seja, os capitalistas do nordeste do país, mas dos escravocratas do sul, dando-lhes força para se lançarem mais tarde na Guerra da Secessão. Mesmo que o argumento de Engels correspondesse aos factos, ele em nada se distinguiu das justificações que os imperialistas sempre invocam para as suas aventuras bélicas. Aliás, encontra-se uma semelhança tão flagrante entre certos artigos de Engels e outros artigos de jornais norte-americanos defensores da doutrina do Manifest Destiny, que me parece impossível que ele não concordasse globalmente com aquele expansionismo geopolítico, que desde então até hoje tem orientado a política exterior dos Estados Unidos e lhe tem conferido o verniz de uma missão civilizacional justificada por Deus.

Estas posições de Engels mantiveram-se no decurso dos anos. Em 1852 ele evocou «a tendência histórica e, ao mesmo tempo, a força física e intelectual da nação germânica para subjugar e assimilar os seus antigos vizinhos. Esta tendência para a absorção por parte dos germanos foi sempre, e continua a ser, um dos meios mais poderosos que permitiram à civilização da Europa ocidental difundir-se a leste deste continente, podendo cessar apenas quando o processo de germanização tiver alcançado os limites de uma grande nação, compacta e unitária, capaz de levar uma vida nacional independente, como os húngaros e, até certo ponto, os polacos. Portanto, o destino natural e inevitável destas nações moribundas» − Engels referia-se aqui aos povos eslavos ocidentais e meridionais − «consiste em permitir que se complete este processo de dissolução e de absorção pelos seus vizinhos mais fortes». Não era a luta de classes na nação alemã que preocupava aqui Engels, mas a constituição de «uma grande nação, compacta e unitária». A unificação nacional suplantava os interesses de classe dos trabalhadores, ou será que os interesses dos trabalhadores convergiam para a edificação da nação?

Dois «cortadores de cabeças»
Dois «cortadores de cabeças»

Nem o vigor dos termos se atenuou com a passagem do tempo. Numa carta enviada para Marx em meados de 1876, Engels classificou como ladrões os sérvios em luta pela sua autonomia nacional, sendo os bósnios tratados da mesma maneira seis anos mais tarde. Aquela autonomia que era indicada como o grande objectivo histórico da nação germânica era recusada aos povos eslavos. Não se tratava aqui somente de nacionalismo, mas de um imperialismo que liquidava espaços nacionais, e Engels afirmou-o com clareza numa carta que dirigiu a Karl Kautsky em Fevereiro de 1882: «Podia perguntar-me agora se tenho pelo menos alguma simpatia pelos pequenos povos eslavos ou ruínas de povos, reduzidos a pó pelas três cunhas introduzidas no eslavismo, a alemã, a magiar e a turca. De facto, terrivelmente pouca». E em Novembro de 1885, numa carta dirigida a August Bebel, Engels qualificou como «miseráveis fragmentos de ex-nações» «os sérvios, os búlgaros, os gregos e outros cortadores de cabeças».

Marx defendia concepções idênticas. Em 1857, talvez com a ingénua ilusão de que seria capaz de inflectir a política externa britânica, Marx dedicou-se a escrever em inglês uma estranha obra antieslava, História da Diplomacia Secreta no Século XVIII, onde as disputas entre potências europeias ficaram reduzidas a ridículas manobras de bastidores. Este livro deixou os discípulos a tal ponto perplexos que quando uma das filhas de Marx, Eleanor, o reeditou em 1899, tomou a iniciativa de cortar algumas passagens. De então em diante os marxistas esforçaram-se por não divulgar a obra e Stalin censurou-a definitivamente. Os traços característicos da História da Diplomacia Secreta no Século XVIII ficaram ainda mais salientes num ensaio escrito por Engels em 1890, A Política Externa do Czarismo Russo. Apesar de este ensaio ter beneficiado de numerosas edições, inclusivamente em russo, Stalin não esteve com meias medidas e em 1934 proibiu a sua publicação, argumentando que Engels descurara a análise das contradições entre imperialismos e da rivalidade pela obtenção de espaços coloniais e se concentrara abusivamente nas ameaças de guerra suscitadas pela política russa. Deste modo, continuou Stalin, um confronto militar entre a Alemanha burguesa e a Rússia czarista podia ser apresentado não como um conflito imperialista mas como uma guerra de libertação nacional por parte da Alemanha.

Em 1865, depois de ter lido algures que os russos seriam de origem mongol, Marx escreveu numa carta para Engels: «Eles não são eslavos, em suma, não pertencem à raça indo-germânica, são intrusos que é necessário repelir para além do Dniepre!». O mestre da análise social descambara na mitologia racial, chegando a conclusões inesperadas, por exemplo numa carta endereçada a Wilhelm Liebknecht em Fevereiro de 1878, onde não viu por detrás dos sérvios senão a sinistra mão da Rússia e enalteceu o opressor otomano afirmando que «o camponês turco, e portanto a massa do povo turco», era, «sem dúvida, o representante mais activo e mais moral do campesinato da Europa». Ao mesmo tempo que escrevia O Capital para mostrar com uma dialéctica rigorosa os mecanismos das clivagens de classe, Marx propunha uma estratégia para o proletariado inspirada em fobias e simpatias nacionais.

Marx e Engels quiseram orientar a Associação Internacional dos Trabalhadores, a Primeira Internacional, para a defesa da independência da Polónia e para o ataque ao eslavismo. Numa série de artigos publicada em 1866, Engels afirmou, com a total concordância do seu amigo, que relativamente às grandes nações europeias que não estavam ainda unificadas ou não gozavam de autonomia política, como sucedia com a Polónia, a Associação Internacional dos Trabalhadores deveria mobilizar os operários dos vários países numa guerra contra a Rússia, a principal opressora dos polacos. Ora, se esta estratégia tivesse obtido resultados práticos, os antagonismos sociais no interior de cada nação dariam lugar à unidade entre as classes contra o inimigo exterior, e uma Associação Internacional onde se proclamava que a emancipação do proletariado só poderia dever-se ao próprio proletariado estaria destinada a criar ou fortalecer Estados opostos ao império russo. Marx desenvolveu esta tese num discurso proferido em Londres em Janeiro de 1867. Qualquer actuação decisiva do proletariado, afirmou ele, defrontar-se-ia com a intervenção russa, e só a independência da Polónia permitiria erguer uma barreira militar entre a Europa e a barbárie eslava, dando oportunidades de realização à emancipação social europeia. Para Marx e para Engels o destino da revolução proletária dependia de uma guerra nacional prévia contra a Rússia, e foi nesta perspectiva geopolítica que eles encararam a guerra franco-prussiana de 1870 e 1871.

Uma visão diferente da guerra franco-prussiana
Uma visão diferente da guerra franco-prussiana

Nas proclamações redigidas por Marx e emitidas pela Associação Internacional dos Trabalhadores em 23 de Julho e 9 de Setembro de 1870 foi atribuído maior relevo aos aspectos dinásticos e geopolíticos da guerra franco-prussiana do que à situação da classe trabalhadora em cada um destes países. A paz entre a Alemanha e a França não foi defendida na proclamação de 9 de Setembro em função de objectivos especificamente proletários, mas como um factor necessário para conter a ameaça russa. Numa carta de 15 de Agosto de 1870, dirigida ao seu amigo, Engels considerou com simpatia a adesão à política agressiva do governo prussiano manifestada por «toda a massa do povo alemão e por todas as classes» e opôs-se à «obstrução total» do esforço de guerra defendida por Wilhelm Liebknecht, o principal representante do marxismo na Alemanha. Engels nunca deixou de manter a este respeito a perspectiva geopolítica e de manifestar a sua discordância com a opção tomada então pelos marxistas alemães. Num texto redigido no último mês de 1887 e nos primeiros meses de 1888, e conhecido só após a sua morte, ele mostrou-se satisfeito porque, do lado alemão, «naquele ímpeto nacional assistimos ao desaparecimento de todas as diferenças de classe». Nesse manuscrito Engels não dedicou uma palavra sequer ao facto de Wilhelm Liebknecht e August Bebel, os dirigentes mais importantes do partido marxista alemão, se terem abstido no parlamento aquando da votação dos primeiros créditos de guerra e terem votado contra os novos créditos, nem fez uma simples referência às moções contra a guerra adoptadas em comícios de trabalhadores alemães, nem uma única menção ao encarceramento de numerosos socialistas que se haviam manifestado a favor da paz.

É interessante considerar que num livro publicado em pleno stalinismo, Lukács se inspirou decerto naquelas análises de Engels para criticar «o comportamento de revolucionários importantes, como Johann Jacoby e Wilhelm Liebknecht, relativamente ao aspecto nacional das guerras de Bismarck que, apesar de tudo, levaram ao estabelecimento da unidade alemã». Com este «apesar de tudo» ficaram ocultos os antagonismos de classe inerentes à maneira como foi instaurada a unificação da Alemanha, e Lukács sentiu-se em terreno politicamente seguro para atacar o «moralismo provinciano» de Liebknecht e para censurar os seus continuadores na esquerda alemã pelo facto de não terem sabido usar «as armas de uma ideologia verdadeiramente patriótica».

Um representante do «mais moral campesinato da Europa»
Um representante do «mais moral campesinato da Europa»

Engels e Marx transpuseram a luta de classes para o plano nacional, considerando que umas nações seriam «revolucionárias» e outras «contra-revolucionárias», mas fizeram-no de modo selectivo, porque enquanto se esforçavam por promover a emancipação de certas nações, recusavam a outras o direito de existência. O critério empregue foi duplo. Em primeiro lugar, para definir uma nação como «revolucionária» ou «contra-revolucionária» bastava conhecer a sua posição relativamente aos eslavos. Até o camponês turco, habitante do mais retardatário dos impérios existentes no Ocidente, foi considerado por Marx como «o representante mais activo e mais moral do campesinato da Europa», enquanto os camponeses eslavos que pretendiam libertar-se do jugo do sultão eram classificados como «cortadores de cabeças». Em segundo lugar, Marx e Engels só apoiavam a luta pela independência de nações consideradas viáveis em termos políticos e económicos. A ausência de tradição estatal constituía para eles um critério geral, por isso negavam o direito de autodeterminação a povos como os escoceses, os galeses, os bretões, os bascos, os suíços de língua alemã ou os belgas francófonos. Não era a questão da opressão nacional e cultural que preocupava aqui Marx e Engels, mas unicamente o estabelecimento de Estados fortes; e a oscilação entre o plano das classes e o das nações foi possível porque em ambos os casos se tratava de reforçar o Estado. A nação, despida das suas roupagens líricas, não era mais do que a área de poder do Estado. Do mesmo modo, o Estado era a peça fundamental na concepção autoritária e centralizadora de socialismo defendida pelos dois amigos. Se esta perspectiva estiver exacta, o estatismo contribui para explicar tanto o nacionalismo como o socialismo de Marx e de Engels.

Numa data muito tardia eles modificaram parcialmente a opinião a respeito dos eslavos. Quando a marxista russa Vera Zassulitch, em Fevereiro de 1881, enviou uma carta ao mestre perguntando se ele considerava a possibilidade de os camponeses russos usarem as instituições comunitárias tradicionais para desenvolver um movimento socialista sem passarem previamente pela fase capitalista, Marx escreveu vários longos rascunhos de uma resposta, que constituem hoje, para os estudiosos, um campo fértil de noções económicas e etnológicas inovadoras, mas que na época foram deixados na gaveta, e ele limitou-se a enviar umas curtas linhas anódinas e evasivas. Só no ano seguinte, no prefácio que redigiram para a nova edição russa do Manifesto Comunista, Marx e Engels reconheceram pela primeira vez que os eslavos podiam ser revolucionários. «A questão vital», escreveram eles, «consiste em saber se a comunidade rural russa, apesar de estar já seriamente minada enquanto forma arcaica de propriedade colectiva do solo, pode ser directamente transformada na forma superior de propriedade comunista da terra ou se terá de percorrer o mesmo processo de decomposição que mostra os seus resultados na evolução histórica do Ocidente. Para esta questão existe hoje uma única resposta. Se a revolução russa der o sinal para uma revolução proletária no Ocidente, de maneira que ambas se completem uma à outra, a forma predominante de propriedade colectiva da terra na Rússia poderá converter-se no ponto de partida de um processo de desenvolvimento comunista».

Referências

Conheço três livros que permitem uma análise sistemática do nacionalismo antieslavo professado pelos fundadores do marxismo. O primeiro deve-se a Roman Rosdolsky, um marxista de simpatias trotskistas, autor de uma das melhores obras de análise de O Capital, e que com uma invulgar coragem intelectual escreveu um estudo crítico das posições adoptadas por Engels e também por Marx a respeito da questão nacional, sobretudo durante a revolução alemã de 1848. Mas como ninguém, na esquerda ou na direita, estava interessado no assunto, Rosdolsky teve tanta dificuldade em encontrar um editor que pensou mesmo em desistir e depositar o manuscrito numa biblioteca, para que pelo menos pudesse ser consultado. Felizmente não foi necessário chegar a tal extremo e a obra foi publicada poucos anos antes da morte do autor. Consultei este livro numa versão em espanhol: Friedrich Engels y el Problema de los Pueblos “Sin Historia”. La Questión de las Nacionalidades en la Revolución de 1848-1849 a la Luz de la “Neue Rheinische Zeitung”, México: Pasado y Presente, 1980. Existe igualmente uma recolha dos textos antieslavos dos fundadores do marxismo: Paul W. Blackstock e Bert F. Hoselitz (orgs.) The Russian Menace to Europe, by Karl Marx and Friedrich Engels, Glencoe: Free Press, 1952. Esta obra foi publicada no auge da Guerra Fria com o intuito óbvio de mostrar que se já Marx e Engels desconfiavam da maldade dos russos, então os partidos social-democratas tinham toda a razão em se colocar do lado de Washington, mas isto não impede que seja uma antologia bem preparada, com os textos acompanhados por notas e comentários rigorosos. Por fim, uma editora francesa, ligada através do seu fundador a certos meios do snobismo internacional protofascista, publicou, sob um título cuidadosamente anódino, uma bem recheada antologia de textos geopolíticos e antieslavos de Marx e de Engels, organizada por um estudioso de extrema-esquerda: Roger Dangeville (org.) Marx et Engels. Écrits Militaires. Violence et Constitution des États Européens Modernes, Paris: L’Herne, 1970.

O trecho de A Propósito da Questão Judaica encontra-se em Maximilien Rubel (org.) Karl Marx. Œuvres, vol. III: Philosophie, [Paris]: Gallimard (Bibliothèque de la Pléiade), 1982, pág. 373. As passagens citadas dos artigos publicados por Engels em 1849 na Neue Rheinische Zeitung, apelando ao aniquilamento dos povos eslavos, estão em Blackstock et al., págs. 59, 67, 83-84, Dangeville, págs. 229, 238-239 e Rosdolsky, págs. 31 n. 73, 79-80, 126, 151 n. 3. O artigo de Engels sobre os «mandriões mexicanos» vem em Blackstock et al., pág. 71 e Rosdolsky, pág. 161. O artigo de Engels de 1852, relativo à formação de uma grande Alemanha «compacta e unitária», encontra-se em Rosdolsky, págs. 105-106. A carta de Engels para Marx em 1876 é referida em Rosdolsky, págs. 43-44 n. 44 e a carta de 1882 vem mencionada em Blackstock et al., pág. 118. A carta de 1882 de Engels para Kautsky vem em Blackstock et al., pág. 119 e Rosdolsky, pág. 136 n. 41, e a carta de 1885 para Bebel vem em Rosdolsky, pág. 44 n. 45. A carta de Marx para Engels de 1865, onde se propõe remeter os eslavos «para além do Dniepre», está citada em Léon Poliakov, Le Mythe Aryen. Essai sur les Sources du Racisme et des Nationalismes, Paris: Calmann-Lévy, 1971, pág. 252. A passagem referida da carta de 1878 de Marx para Liebknecht vem em Dangeville, pág. 605. Os artigos publicados por Engels em Março e Abril de 1866 na revista Commonwealth e o discurso proferido por Marx em Londres em Janeiro de 1867 encontram-se em Blackstock et al., págs. 95 e segs. e 104-108. A proclamação redigida por Marx para a Associação Internacional dos Trabalhadores, de 23 de Julho de 1870, está incluída em Karl Marx, La Guerre Civile en France, 1871 (La Commune de Paris), Paris: Éditions Sociales, 1963, págs. 30-31, e a proclamação de 9 de Setembro de 1870 vem em Blackstock et al., págs. 48-49. As frases da carta enviada por Engels a Marx em 15 de Agosto de 1870 e a passagem do texto póstumo de Engels de 1887-1888 vêm em Dangeville, págs. 515 e 571. As passagens de Lukács estão no seu livro Le Roman Historique, Paris: Payot, 1965, págs. 314-315. A opinião de Marx acerca da moralidade dos camponeses turcos constam de uma carta endereçada a Liebknecht em 4 de Fevereiro de 1878, citada em Dangeville, pág. 605. O trecho do prefácio de Marx e Engels à nova edição russa do Manifesto Comunista vem em Blackstock et al., pág. 228.


publicado em: http://passapalavra.info/?p=4140


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segunda-feira, 11 de maio de 2009

O que é autogestão?


Nildo Viana

O que é autogestão?
Publicado na Revista Ruptura, ano 03, num. 04, Jan. 1996.

Dirigidos por nossos pastores, encontramo-nos apenas uma vez em companhia da liberdade: no dia do seu enterro. Karl Marx

A autogestão, para uns, é um “método de gestão de empresas” e, para outros, é uma “forma política” que assume o comunismo, ou seja, a “democracia direta”. A primeira concepção deixa entrever a possibilidade de existir autogestão no interior da sociedade capitalista e a segunda apresenta a idéia de que é possível haver comunismo sem autogestão, já que esta é reduzida a uma mera “forma política” e, sendo assim, não é a essência do comunismo e por isto este poderia utilizar outras “formas políticas”. Entretanto, tal como pretendemos demonstrar no decorrer deste trabalho, estas concepções são equivocadas, pois não conseguem expressar o verdadeiro sentido da autogestão.

Antes de mais nada, tal como fizeram A. Guillerm e Y. Bourdet [1], é útil distinguir o conceito de autogestão de outras palavras que muitos pensam ter o mesmo significado. Autogestão não possui o mesmo significado que “participação”, “co-gestão”, “controle operário” ou “cooperativismo”. Vejamos o significado destas palavras:

A) PARTICIPAÇÃO: Participação não significa autogestão, pois ela significa participar de algo já existente, ou seja, de uma atividade que possui estrutura e finalidade próprias. Segundo Guillerm e Bourdet, o participante é como um flautista numa orquestra: participa se misturando individualmente à um grupo que lhe é preexistente.

B) CO-GESTÃO: A co-gestão é uma tentativa de integrar a criatividade e a iniciativa operária no processo produtivo capitalista (com o objetivo de aumentar a produtividade e, consequentemente, a extração de mais-valor relativo -ou mais-valia relativa) e que permite a participação dos trabalhadores apenas no processo de produção, nos meios e não nos fins. Mas mesmo essa co-gestão nos meios é limitada, pois a definição por outros sobre os fins leva à uma pré-determinação no que se refere ao meios.

C) CONTROLE OPERÁRIO: Segundo Guillerm e Bourdet, o controle operário significa um passo adiante em relação à co-gestão, mas ainda não é autogestão, pois o controle operário surge como produto de uma intervenção conflitual que arranca concessões para os trabalhadores, embora se limite a exercer-se sob pontos específicos que não questionam o salariato. Para M. Brinton, a proposta de “controle operário” apresentada por diversos grupos políticos (principalmente leninistas e trotskistas) expressa a vontade de apresentarem-se como mais democráticos e fazem isto buscando nos iludir com a afirmação de que o leninismo sempre defendeu tal proposta. Para ele, o controle operário, ao contrário da autogestão, não significa que a classe operária irá gerir a produção e sim que ela irá “supervisionar”, “inspecionar” ou verificar as decisões tomadas por “instâncias exteriores” ao processo produtivo, tal como o estado ou o partido [2].

D) A COOPERATIVA: Segundo Guillerm e Bourdet, “esquematicamente, pode-se, com efeito, convir que (...), as cooperativas têm ‘vegetado’ sempre sob formas locais, a tal ponto que esta limitação se tornou seu sinal distintivo. Por isso, para designar a generalização dos sistemas de cooperativas, far-se-á mister uma palavra nova. O termo autogestão deve assumir o papel[3]. Acontece que, no interior da sociedade capitalista, as cooperativas não determinam seus fins, pois o mercado e o estado sempre interferem nas finalidades de uma cooperativa e não só nos fins como, em menor grau, também nos meios.

Em síntese, a participação, o controle operário, a co-gestão e as cooperativas podem existir no interior do modo de produção capitalista e são assimiláveis por ele. O capitalismo envolve todas estas manifestações e as colocam sob sua direção, direta ou indiretamente. Não existem nem podem existir “ilhas de autogestão” cercadas pelo mar do capitalismo. A autogestão só pode existir em locais isolados por um curto período de tempo e em confronto com o capital e desta luta um dos dois vencerá, ocorrendo a destruição da experiência autogestionária ou a generalização da autogestão a nível nacional e posteriormente mundial.

Podemos dizer também que as definições acima deixam entrever que não existe muita diferença entre todos estes termos, pois todos eles possuem algo em comum: em todas essas formas de “participacionismo” permanece exterior aos trabalhadores a determinação dos fins e uma “co-determinação” no que se refere aos meios. Por conseguinte, o termo co-gestão engloba todos os outros termos e, sendo assim, ele é suficiente para marcar a diferença entre a autogestão e as outras formas de gestão que se dizem “democráticas”.

Mas o que é a autogestão? Como ela pode surgir e se expandir mundialmente? Em primeiro lugar, devemos reconhecer que é impossível compreender a autogestão e a possibilidade histórica de sua concretização sem compreendermos o solo onde ela pode brotar, ou seja, o modo de produção capitalista.

O capital, relação de produção

Todo modo de produção possui uma determinação fundamental que é expressa pelo conceito de relações de produção e que serve de fundamento para todas as outras relações sociais. Marx demonstrou que a relação de produção (determinação fundamental) do feudalismo é a servidão: “em vez do homem independente, encontramos aqui toda a gente dependente, servos e senhores, vassalos e suseranos, laicos e clérigos. Esta dependência caracteriza tanto as relações de produção quanto todas as outras esferas da vida social, às quais serve de fundamento[4]. A relação de produção capitalista expressa o fundamento da sociedade capitalista. O capital não é só “meios de produção” mas é, fundamentalmente, uma relação social, uma relação de produção.

As relações de produção capitalistas se baseiam na extração de mais-trabalho sob a forma de mais-valor (ou, segundo linguagem corrente, mais-valia). O proprietário dos meios de produção, o capitalista, compra a força de trabalho do produtor e paga por ela o valor necessário para sua reprodução enquanto força de trabalho. A força de trabalho, porém, produz mais do que o necessário para sua reprodução e este valor a mais acrescentado à mercadoria e apropriado pelo capitalista é o que se chama mais-valor.

No processo de produção do mais-valor há um duplo caráter: de um lado, é um processo de trabalho caracterizado pela exploração e alienação do trabalhador; de outro, é um processo de valorização dos meios de produção. Só a força de trabalho acrescenta valor às mercadorias, pois os meios de produção apenas transmitem seu valor ao produto-mercadoria fabricado.

A evolução do modo de produção capitalista transforma esta relação. Com o desenvolvimento e acumulação dos meios de produção há a desvalorização da força de trabalho e a valorização dos meios de produção. Os meios de produção foram valorizados pela força de trabalho e por isso se tornam, com o desenvolvimento do capitalismo, um dispêndio cada vez maior para o capitalista.

Com isso o capitalista investe cada vez mais nos meios de produção e cada vez menos na força de trabalho. Assim, como só a força de trabalho produz mais-valor, surge a tendência para haver a queda da taxa de lucro médio. O aumento de produtividade busca evitar esta queda, já que aumenta a extração de mais-valor relativo. Entretanto, isto cria uma nova tendência à baixa da taxa de lucro médio, pois o aumento do mais-valor relativo significa que a força de trabalho acrescentou mais valor ainda à mercadoria e isto torna mais dispendioso os meios de produção.

Esta é a tendência declinante da taxa média de lucro. O capitalismo, através de seus agentes, cria também contratendências e busca fazer isto de várias formas, tal como através do aumento da interferência do estado no processo de produção e distribuição ou da expansão do consumo, entre outras.

Autogestão, relação de produçao

O modo de produção capitalista, como vimos, se caracteriza pelo domínio do trabalho morto sobre o trabalho vivo. Esta relação de dominação do trabalho morto sobre o trabalho vivo através do produção de mais-valor é a determinação fundamental do capitalismo [5]. Torna-se necessário, então, descobrir qual é a determinação fundamental do modo de produção comunista.

A determinação fundamental do modo de produção comunista só pode ser a autogestão. Isto significa, entre outras coisas, que a autogestão não é apenas a “forma política” (democracia direta) do comunismo e nem mero “método de gestão das empresas”. A autogestão é uma relação de produção que se generaliza e se expande para todas as outras esferas da vida social. A autogestão inverte a relação entre trabalho morto e trabalho vivo instaurada pelo capitalismo e, assim, instaura o domínio do trabalho vivo sobre o trabalho morto.

A autogestão significa que os próprios “produtores associados” dirigem sua atividade e o produto dela derivado. Abole-se, assim, o estado, as classes sociais, o mercado, etc., já que com a autogestão abole-se a divisão social do trabalho. Consequentemente, abole-se a divisão entre “economia”, “política”, etc.


Autogestão e período de transição


Se a autogestão é uma relação de produção, ou seja, a determinação fundamental do modo de produção comunista, e que por isso abole a chamada “lei do valor”, então, qual é o sentido que tem o discurso sobre o “período de transição”? Questionar a necessidade de um “período de transição” entre o capitalismo e o comunismo significa, segundo o pseudomarxismo, desconhecer que a tese da “fase de transição” é uma conquista irrenunciável do “socialismo científico”, que supera todo e qualquer utopismo. Entre o capitalismo e o comunismo existe um período de transição chamado socialismo. Neste período, o estado dirige a economia através de um plano e se mantêm o dinheiro, o trabalho assalariado e até mesmo a “lei do valor”.

Deixando de lado a discussão sobre o sentido da palavra utopia, podemos dizer que, na verdade, “sonho irrealizável” é a idéia de um “período de transição” entre capitalismo e comunismo. A ideologia da transição é contrária ao que o próprio Marx colocou e, por conseguinte, não se pode dizer que tal idéia está presente em Marx e utilizar este “argumento de autoridade” para sustentar tal tese.

O que Marx “realmente disse”? As colocações de Marx sobre a passagem do capitalismo ao comunismo que o pseudomarxismo se utiliza para sustentar tal tese são duas: a) a permanência do trabalho assalariado; b) a existência de um “estado de transição” no socialismo.

Mas, antes de tudo, devemos dizer que Marx não utilizava as noções de “período de transição” e de “socialismo”. Essas noções foram criadas pela tradição bolchevique e similares e foram erigidas ao nível de verdadeiros “conceitos”, que foram reificados e passaram a ser, na ideologia da burocracia, uma etapa necessária na história. O que Marx colocou é que a sociedade comunista, tal como surge do capitalismo, atravessa duas fases, o que significa que são duas fases do comunismo e não que uma delas seja de “passagem” para ele. As colocações de Marx sobre a permanência do trabalho assalariado e a existência de um estado de transição se referem a esta primeira fase do comunismo.

Entretanto, é necessário colocar que Marx reformulou as suas teses sobre a primeira fase do comunismo. Marx havia colocado que nesta primeira fase deveria haver a “estatizacao dos meios de produção”, e é aí que se pode falar em “estado de transição”. Acontece que, após a experiência da Comuna de Paris, ele reformulou esta tese, tal como demonstra o seu artigo sobre a comuna e os “posfácios” ao Manifesto Comunista [6]. Para Marx, a classe operária não pode se apossar do estado, pois deve destruí-lo e em seu lugar implantar o “autogoverno dos produtores”, ou seja, a autogestão [7]. Tal como fizeram os proletários durante a Comuna, deve-se abolir o exército permanente e a burocracia do estado.

Outra colocação que Marx reformulou é a de que na primeira fase da sociedade comunista todos deveriam receber salários equivalentes ao dos operários, o que pressupõe a permanência do trabalho assalariado, só que funcionando sob outra forma. Posteriormente, ele afirmou que os trabalhadores receberiam bônus comprovando o trabalho executado: "Do que se trata aqui não é de uma sociedade comunista que se desenvolveu sobre sua própria base, mas de uma que acaba de sair precisamente da sociedade capitalista e que, portanto, apresenta ainda em todos os seus aspectos, no econômico, no moral e no intelectual, o selo da velha sociedade cujas entranhas procede. Congruentemente com isto, nela o produtor individual obtém da sociedade -depois de feitas as devidas deduções- precisamente aquilo que deu. O que o produtor deu à sociedade constitui sua cota individual de trabalho. Assim, por exemplo, a jornada social de trabalho compõe-se da soma das horas de trabalho individual; o tempo individual de trabalho de cada produtor em separado é a parte da jornada social do trabalho com que ele contribui, é sua participação nela. A sociedade entrega-lhe um bônus consignando que prestou tal ou qual quantidade de trabalho (depois de descontar o que trabalhou para o fundo comum), e com este bônus ele retira dos depósitos sociais de meios de consumo e parte equivalente à quantidade de trabalho que deu à sociedade sob uma forma, recebe-a desta sob uma outra forma diferente” [8].

Entretanto, o sistema de bônus não é a mesma coisa que o salariato. O salário é pago em papel-moeda (dinheiro), que é um “meio de troca universal” e pode ser, por isso, acumulado e utilizado para comprar meios de consumo e produção e/ou força de trabalho. O bônus proposto por Marx era trocável apenas por meios de consumo e por isso não tem nada a ver com o dinheiro, o trabalho assalariado e a “lei do valor”. Por conseguinte, a primeira fase do comunismo já seria marcada pela abolição do estado, do trabalho assalariado, do dinheiro, etc., e pela instauração da autogestão social ou, segundo a linguagem de Marx, da livre associação dos produtores.

Marx colocou que o trabalho se generalizaria durante a primeira fase do comunismo, mas sem ligação com o salariato e sim com o sistema de bônus. Nesta fase predomina o princípio “de cada um segundo sua capacidade à cada um segundo seu trabalho”. Na segunda fase predomina o principio “de cada um segundo sua capacidade à cada um segundo suas necessidades”.

Acontece que estas propostas estão superadas historicamente, pois elas foram produzidas tendo por base o capitalismo da época de Marx, ou seja, do século 19. Com o posterior desenvolvimento das forças produtivas não há mais motivos para a existência do princípio “à cada segundo o seu trabalho” e do sistema de bônus. O desenvolvimento das forças produtivas, na Europa ocidental e nos demais países capitalistas superdesenvolvidos, já atingiu um nível tão elevado que a revolução autogestionária terá que transformá-las para possibilitar a autogestão e sua utilização de acordo com as necessidades humanas. Isto se torna, na atualidade, válido até para os países capitalistas subordinados( “terceiro mundo”). Por conseguinte, não há mais a necessidade de existir “duas fases” no comunismo e a chamada “transição” do capitalismo ao comunismo se realiza no período revolucionário que ao terminar, com a vitória do proletariado, instaura a autogestão social.

O problema da alienação

A história da humanidade é marcada pelo predomínio da alienação. A alienação é uma relação social que se caracteriza pelo fato do trabalhador não ter controle de seu trabalho e, por conseguinte, ser controlado pelo não-trabalhador que, assim, toma posse do produto do seu trabalho. Desta forma, o trabalhador perde o controle do produto do seu trabalho e do produto deste e cria aquele que irá controlar o seu trabalho e se apropriar de produto dele. Isto ocorreu em todos os modos de produção classistas da história -modo de produção escravista antigo, modo de produção feudal, modo de produção tributário, etc.- e atinge o seu ponto culminante no modo de produção capitalista. O domínio dos não-produtores sobre os produtores na época capitalista coloca a autogestão como tendência histórica de superação da alienação.

A partir da definição de alienação acima exposta vê-se que ela é sinônimo de heterogestão e antônimo de autogestão. Assim se observa que a “ideologia da vanguarda” (Lênin, Kautski) é um elogio da alienação, pois, se o proletariado não dirige o seu processo de libertação e é dirigido por sua “vanguarda”, ele também irá perder o produto de sua atividade revolucionária, ou seja, a sua libertação, e este produto será apropriado pela sua “vanguarda”. A ideologia da vanguarda diz que é através da alienação que se conquista a desalienação. Isto, entretanto, não é verdade, pois o caminho da alienação só pode ocorrer via desalienação, ou seja, somente controlando o seu processo de libertação, através da autogestão de suas lutas, é que o proletariado poderá conquistar sua libertação.

A autogestão das lutas operárias

O capitalismo surge no interior do feudalismo através do movimento do capital comercial que leva ao predomínio do capital industrial e assim se torna o modo de produção dominante. Se o capitalismo surge “economicamente” no feudalismo, o mesmo não ocorre com o comunismo. O capital, relação de produção capitalista, significa o domínio do trabalho morto sobre o trabalho vivo, das forças produtivas acumuladas sobre a força produtiva ativa, enfim, da classe capitalista sobre a classe operária. O comunismo, ao contrário, se caracteriza pelo domínio do trabalho vivo sobre o trabalho morto e surge não de um “desenvolvimento econômico” e sim da ação revolucionária do proletariado. A sociedade comunista existe potencialmente no interior da sociedade capitalista através da luta operária. A autogestão das lutas operárias é o “embrião” do comunismo. Se o conteúdo do socialismo (ou comunismo) é a autogestão, então é na sua primeira forma de manifestação, na luta operária, que ela se revela como possibilidade histórica. A autogestão das lutas operárias produz, no seu confronto com o capital, os coletivos de autogestão como os conselhos de fábrica, conselhos de bairros, etc., e cria-se, assim, uma “dualidade de poderes”: o poder político burguês, ou seja, o estado capitalista, de um lado, e os coletivos autogeridos, os conselhos revolucionários, de outro. A vitória do proletariado leva à generalização da autogestão e a instauração do modo de produção comunista e a sua derrota significa a reprodução do modo de produção capitalista.

A autogestão, portanto, é uma relação social que nasce com a autogestão das lutas operárias e se universaliza e invade o conjunto das relações sociais e, assim, decreta a morte do capitalismo e inaugura o modo de produção comunista.

Fonte: http://www.geocities.com/comunistasdeconselhos/Nildo.htm#5