segunda-feira, 31 de maio de 2010

Jovem operário é torturado pela polícia na periferia de Franca (São Paulo)

Jovem operário é torturado pela polícia na periferia de Franca (São Paulo)

Os policiais o fizeram entrar no camburão, o levaram para um ponto deserto do bairro, onde o espancaram por mais de duas horas. Agressões que não deixaram marcas físicas aparentes. Após saciarem suas frustrações, o liberaram. Por Suvarine

[Na seção Movimentos Em Luta temos reproduzido os comunicados da Rede Contra a Violência e das Mães de Maio denunciando a brutalidade policial, os espancamentos, as torturas e os assassinatos. Agora publicamos, enviado por um leitor, o relato de mais um desses casos. É urgente alertar para o que se passa e nos unirmos para colocar fim à impunidade policial. Passa Palavra]

suvarine-2Na última sexta-feira, dia 29 de maio de 2010, recebi um telefonema, por volta das 22h30. Do outro lado da linha estava uma mãe aos prantos e precisando desabafar. Seu filho havia saído de casa às 20h para buscar a namorada e acabara de chegar, após mais de duas horas de agonia da namorada e da mãe, preocupadas com o sumiço dele; não dera notícias e não atendia o celular [telemóvel]: teria sofrido um acidente? Haviam ligado para os amigos, pedido informações à vizinhança, andado pelas ruas adjacentes, mas não encontraram nenhum sinal dele.

O rapaz é um jovem operário com cerca de 21 anos, trabalhador de um dos curtumes do município paulista conhecido internacionalmente pela fabricação de calçados masculinos de couro. Os curtumes são fábricas de couros caracterizadas pelo trabalho predominante braçal, pesado e sob condições insalubre. O jovem em questão exerce a profissão de curtumeiro desde os 17 anos de idade. Cumpre uma jornada de trabalho que se estende de segunda a quinta-feira das sete horas da manhã até às oito e meia da noite. Os serões, como são conhecidos, são uma estratégia recorrente dessas fábricas para aumentar a produção.

Às sextas-feiras sai no horário normal, 17h00, isso porque costuma trabalhar durante todo o dia de sábado. Nessa sexta, chegara em casa cansado da dura lida, tomou um banho, abriu uma latinha de cerveja e bebeu para relaxar. A namorada lhe telefonou e ele foi buscá-la. No meio do caminho passou por uma blitz [operação stop] policial que o parou. Para a polícia era um típico suspeito: jovem morador da periferia, vestindo roupas típicas do movimento Hip-Hop e pilotando uma moto. Apresentou os documentos e foi revistado, tendo a polícia encontrado um baseado [cigarro de maconha, marijuana, muito comum] sob sua posse.

Os policiais o fizeram entrar no camburão [viatura para transportar presos]. Iriam autuá-lo? Mas apenas por uma baseado? Não. Possuíam outros planos. O levaram para um ponto deserto do bairro, onde o espancaram por mais de duas horas com o objetivo de obterem informações sobre o traficante que lhe vendera o baseado: tapas na cara, safanões, socos na boca do estômago e xingamentos [insultos]. Agressões que não deixaram marcas físicas aparentes. Após saciarem suas frustrações e seu sadismo, o liberaram. Não fora a primeira vez que levara uma geral, mas foi a primeira vez que foi vítima de espancamento. Chegou em casa pálido, aos prantos, com fortes dores e vômitos.

Ao ouvir seu relato pelo telefone, minha reação imediata foi dizer que deveria registrar uma queixa. Mas a resposta que recebi foi mais do que esperada: recusou-se. E sua justificativa foi objetiva: “Não vai acontecer nada com os policiais; eu vou ficar marcado e da próxima vez que me pegarem eles me matam.” O que dizer frente a uma realidade tão cruel?

Soube que na manhã seguinte o jovem operário se levantou, após a noite mal dormida e ainda com dores pelo corpo, além do grande trauma. Era sábado, mas vestiu seu uniforme, colocou a mochila nas costas e foi cumprir mais uma jornada extraordinária de trabalho. Afinal a produção não pode parar, o patrão precisa de seus funcionários para que possa continuar a aumentar sua bela coleção de carros, cuidadosamente estacionados em um galpão [armazém] de sua fábrica.

Infelizmente, casos como esse não são novidade para mais ninguém, ocorrem diariamente nas periferias de nossas cidades; mas até quando vamos permitir que continuem a ocorrer? O que podemos fazer frente à certeza da impunidade e à ameaça da represália? Nos conformar? Espero que não. Me veio à mente um trecho de uma música ouvida por esse jovem:

“Tá na hora de parar de mofar no presídio, de estar no necrotério
Com uma par de tiros, de ser o analfabeto comendo resto viciado que
O denarc manda pro inferno.”
(Discurso ou Revólver. Facção Central)

quarta-feira, 26 de maio de 2010

Florianópolis: atos descentralizados dão novo fôlego à resistência

Florianópolis: atos descentralizados dão novo fôlego à resistência

Após duas semanas intensas, a luta contra o aumento das tarifas do transporte coletivo em Florianópolis se apresenta renovada em suas táticas e disposta a resistir o quanto for preciso. Por Passa Palavra

Acompanhe a cobertura completa da luta clicando aqui.

Na sequência do último grande ato, que reuniu milhares de pessoas nas ruas de Florianópolis na quinta-feira, 20 de maio, novas manifestações têm ocorrido de forma espontânea e descentralizada pela cidade.

florianopolis-1No dia 21 de maio, sexta-feira, mesmo com a chuva que caiu no final da tarde, manifestantes se reuniram mais uma vez no centro para chamar a população para a luta. Quando a polícia já não acreditava mais na possibilidade de que um ato de rua pudesse ser organizado, o pequeno número de pessoas que se encontrava concentrado ali resolveu sair em protesto.

Depois de fechar a entrada dos ônibus no terminal por cerca de 15 minutos, até que o Grupo de Resposta Tática (GRT) da Polícia Militar aparecesse, sendo prontamente despistado com um grande “olééé!” dos manifestantes, o ato seguiu pela Felipe Schmidt, ganhando no terminal e nas ruas a participação da população. Com cerca de 250 pessoas, o que dava rapidez e mobilidade para o ato, e aproveitando a ausência da polícia, que não havia organizado seu efetivo para segurar a manifestação, o protesto seguiu passando pela Praça XV e fechando cruzamentos importantes na Rua Hercílio Luz e na Avenida Mauro Ramos.

Já na Mauro Ramos, o descontrole e despreparo da Polícia Militar transformaram a manifestação, que seguia tranquila e animada, em mais um triste capítulo de violência, brutalidade e arbitrariedade da força policial. O que vivemos foi mais uma perseguição covarde, agressões físicas e ameaças gratuitas da PM.

Choques elétricos, golpes de cassetetes, chutes e tentativas de atropelamento provocaram dor e medo nos manifestantes, que seguiam como podiam de volta para o Ticen (Terminal do Centro). As viaturas da polícia passavam a toda velocidade, tentando passar por cima das pessoas e desferindo gritos de xingamentos [insultos] e ameaças de prisão. De forma aleatória e arbitrária, dois manifestantes acabaram presos, sofrendo agressões antes e depois de estarem algemados.

florianopolis-7Nem mesmo a grande mídia, que acompanhava o ato, escapou: um jornalista também foi arbitrariamente preso, um fotógrafo teve parte de sua câmera quebrada por um policial e um outro jornalista quase foi atropelado por uma das viaturas da polícia.

As arbitrariedades continuaram na Delegacia, deixando evidente a disposição do Comando da PM de tentar acabar com a luta através do medo e da criminalização. Somente depois de 7 horas de espera os dois manifestantes puderam prestar depoimento, e só foram liberados após o pagamento de fiança no valor de R$ 400,00 cada um, sofrendo acusações de desacato, além do absurdo de “depredação do patrimônio público”, acusação forjada com fotos de pichações e de lixeiras quebradas dias antes, como se fosse deles a responsabilidade por tais danos.

A estratégia dos poderosos que estava sendo traçada, de criminalização e de inviabilizar financeiramente o movimento com a cobrança de fianças, não contou com um importante elemento: a opinião pública da cidade. O erro cometido, de agredir e prender jornalistas da grande mídia, acabou jogando um grande peso nas costas da Polícia Militar, que se viu deslegitimada e pressionada a mudar sua postura. Foi o que se viu nos atos ocorridos nesta segunda-feira, 24 de maio.

No centro da cidade, um ato de denúncia da agressão policial foi organizado, com a apresentação de um teatro de rua para a população que se dirigia para o Ticen. Após a apresentação do teatro o grupo, que contava com cerca de 150 pessoas, saiu em caminhada pelo centro, recebendo a notícia de que naquele mesmo momento manifestantes fechavam a Avenida Madre Benvenuta, nas proximidades da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc). A notícia deu novo ânimo aos militantes, que decidiram seguir para a Avenida Mauro Ramos, fechando as duas pistas por vários minutos e mais uma vez trancando a entrada dos ônibus na volta ao Ticen. Após o ato ser finalizado, boa parte dos manifestantes seguiu ao encontro da outra manifestação.

florianopolis-5O ato na Avenida Madre Benvenuta, organizado de surpresa, seguiu em direção ao Shopping Iguatemi e ali ocupou a Avenida Beira Mar Norte, até o Terminal da Trindade (Titri). No Titri os manifestantes decidiram retornar na direção do shopping, seguindo pela Rua Lauro Linhares até a rótula (rotatória) no acesso principal à Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Nesse momento o protesto começa a ganhar a adesão de vários estudantes da UFSC, mantendo a rótula fechada por um longo período de tempo, o que causou filas enormes de carros e ônibus.

Depois de trancar a rótula, a decisão foi de voltar para a Avenida Beira Mar Norte, tomando as duas pistas da avenida até o Titri, que foi ocupado pelos manifestantes já por volta das 23h. Um princípio de tumulto ocorreu quando algumas pessoas tentaram fechar uma das entradas do terminal; porém, foi rapidamente resolvido e depois de uma pequena assembléia os manifestantes retornaram para casa sem pagar as passagens, uma vez que já haviam ocupado o terminal.

Todo o ato foi acompanhado mais ou menos de longe por algumas viaturas da polícia e bem de perto por diversos repórteres da grande mídia.

Grandes atos estão marcados para ocorrer durante toda semana, mas certamente serão as manifestações-surpresa que deverão dar a tônica no processo.

ATUALIZAÇÃO

Depois de um dia de trégua, em que a polícia atuou sem truculência contra os manifestantes, na tarde desta terça-feira, 25 de maio, a orientação da PM mais uma vez foi de reprimir de forma arbitrária e violenta o protesto. A manifestação, que seguia de forma pacífica e tranquila pelas ruas do centro, atingindo a Avenida Mauro Ramos, foi atacada pelo Grupo de Resposta Tática da PM, que prendeu sem qualquer justificativa 3 pessoas, uma delas abordada de forma violenta por um P2 (policial à paisana) que após imobilizá-la a entregou para um de seus colegas fardados.

Fotografias de Hans Denis Schneider.


fonte:http://passapalavra.info/?p=24322

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Universidades: burocratização, mercantilização e mediocridade (2ª Parte)

Universidades: burocratização, mercantilização e mediocridade (2ª Parte)


As crescentes burocratização e mercantilização do mundo acadêmico são facilitadas pelo fato de os objetos de conhecimento e os ambientes de trabalho predominantes de várias das ciências sociais terem sempre sido o Estado e o mercado capitalista e não os movimentos sociais e suas organizações. Por Marcelo Lopes de Souza [*]

[Pode ser lida aqui a primeira parte deste artigo.]

goya-9A burocratização e a mercantilização têm propiciado as condições ideais para que os “inovadores” se vejam, cada vez mais, acuados por “burocratas” e “(micro)empresários”. Ao mesmo tempo, a impressão que se tem é de que cresce a quantidade destes em comparação com a quantidade de “inovadores” e mesmo de bons “disseminadores”. Na realidade, o que ocorre é que se multiplicam as recompensas para “inovadores” que, candidatos a “caciques”, aceitem absorver algumas das técnicas e artimanhas de “burocratas” e “(micro)empresários”.

Em tempo, para evitar um mal-entendido: “inovador” não é sinônimo de “gênio”. Não se parte do pressuposto delirante de que, para atuar e ser reconhecido por seus pares como um “inovador”, cada professor universitário deve revolucionar sua área de conhecimento, ter livros traduzidos para uma dúzia de línguas estrangeiras ou colecionar prêmios nacionais e internacionais – da mesma forma como não se deve imaginar que, para disseminar competentemente o saber e comunicar-se bem com os pares, os estudantes e o público leigo, seja preciso que o professor possua um incomum talento retórico e uma vocação para “celebridade” midiática. A única premissa é aquela que, inclusive, está embutida nas exigências institucionais mais corriqueiras: que o professor universitário seja, também, um pesquisador, e que, do mesmo modo como se espera que ele, enquanto docente, ministre boas aulas, possa ele, na qualidade de pesquisador, gerar (criar) conhecimento novo.

Ademais, não é o caso de, hipocritamente, negar que é geralmente muito bom que um ou outro colega com talento e capacidade administrativos revele interesse em assumir cargos na administração acadêmica. O princípio da administração da universidade por ela própria, tão deformado no Brasil (porque, ao mesmo tempo em que falta uma genuína autonomia, escasseia a infraestrutura de suporte), implica que as funções de direção, nos diversos níveis, devem ser exercidas por quadros docentes, e não por funcionários que nada tenham a ver diretamente com o ensino e a pesquisa. Além disso, quando as condições materiais e institucionais propiciam o respeito e a cooperação necessários, a administração acadêmica pode, inclusive, assumir traços de atividade de formulador de políticas e estratégias acadêmico-institucionais, exigindo do ocupante do cargo qualidades como arrojo, senso de oportunidade (o que é diferente de oportunismo), vontade de inovação, etc. Nessas condições, exercer um cargo acadêmico pode ser, até mesmo do ponto de vista intelectual (para não falar no “prestígio”, nos marcos de uma sociedade heterônoma que reproduz hierarquias), algo compensador. Não é à toa que, nos institutos e departamentos daquelas que são consideradas as melhores universidades do mundo, os cargos de direção mais diretamente vinculados ao quotidiano dos institutos e departamentos geralmente não são confiados a alguém por conta de sua capacidade meramente burocrática; exige-se uma certa “representatividade”, um certo prestígio acadêmico para estar à frente, formalmente, como um “primeiro entre pares”. (Nem é preciso dizer que há, sem dúvida, “panelinhas” e interesses extra-acadêmicos em jogo mesmo nos ambientes acadêmicos de melhor nível. Apenas trata-se de reconhecer, aqui, o grande peso dos fatores propriamente vinculados à referida “representatividade”.) Não é isto, lamentavelmente, que o processo de burocratização nas condições de um país semiperiférico como o Brasil costuma engendrar como resultado. Pelo contrário: enquanto cargos de direção são geralmente evitados pela maioria por serem um fardo pouco ou nada compensador em matéria de reconhecimento público, há os que se “especializam” em fazer desses cargos o seu “nicho ecológico” básico, sem que, entretanto, necessariamente tenham a capacidade ou mesmo a vontade de inovar administrativamente ou nem sequer reformar o que quer que seja de modo consistente.

goya-7Dificilmente um “burocrata” ou um “disseminador” se transforma, de estalo, em um “inovador”. Torna-se cada vez mais provável, entretanto, que “inovadores”, exaustos ou desapontados com a escassez de estímulos materiais e imateriais, joguem cada vez mais cedo a toalha no ringue – mesmo que isso se dê sob a forma de um processo gradual, e não subitamente –, convertendo-se em “burocratas” ou “disseminadores” (ou, em alguns casos, em “(micro)empresários”). Do ponto de vista das relações de poder, particularmente grave é quando os “caciques” tornam-se “caciques” em grande parte por seu poder de influência como “burocratas” ou “(micro)empresários” (ou “disseminadores”), sendo o seu papel como “inovadores” pequeno ou inconsistente.

Os “caciques”, a propósito, são uma “espécie” politicamente crucial, ao mesmo tempo em que possui traços muito peculiares. Ao ingressar na carreira acadêmica, o jovem docente demonstrará, não raro desde o princípio, se seu perfil fundamental é o de um “inovador”, de um “disseminador” ou de um “burocrata”. O estabelecimento como um “(micro)empresário”, ao menos por enquanto, é coisa que exige mais tempo (uma vez que se leva algum tempo até poder mobilizar os recursos necessários à atuação como consultor – prestígio, contatos, formação de equipe etc.), e mais tempo ainda se requer para que se atinja a condição de “cacique”. Se, em condições “ideais”, seria de esperar que um “cacique”, por ser muitas vezes uma figura pública influente, ou mesmo uma “estrela”, deveria chegar a essa condição com base em seus méritos e em sua contribuição sobretudo (ainda que não exclusivamente) como “inovador”, o que se observa no Brasil é que isso cada vez menos parece corresponder à realidade.

O problema não é somente o de que “caciques” nem sempre são “inovadores” consistentes, sendo, isso sim, algumas vezes, “pseudoinovadores”: ou seja, alguém que, vítima em certos casos de autoengano, pensa que está verdadeiramente inovando, mas está, na realidade, reinventando a roda (tornando-se, com isso, apenas um tipo sofisticado de “disseminador”). Em um ambiente em que nem sempre se conhece e acompanha direito a literatura de sua área como seria desejável (nem mesmo aquela em português, o que dirá aquela em línguas estrangeiras), esse tipo de deformação é um importante e constante risco. O problema é ainda mais sério quando a capacidade de falar o idioma do poder acadêmico-burocrático prepondera nitidamente, como fonte de prestígio, sobre a capacidade de criar e transmitir ideias. Nessas circunstâncias, está-se diante de um “paradoxo astronômico”: o “cacique” é uma “estrela” que brilha… sem possuir luz própria.

• • • • •

As crescentes burocratização do mundo acadêmico e mercantilização da produção intelectual são grandemente facilitadas pelo fato de que os “loci de referência discursiva” (= os objetos reais com referência aos quais se definem e constroem os objetos de conhecimento) e os “loci de construção discursiva” (= os ambientes concretos nos e a partir dos quais o trabalho intelectual é elaborado) predominantes de várias das ciências sociais sempre foram o Estado e o mercado capitalista, e não os movimentos sociais e suas organizações. Quanto a isso, os casos mais “didáticos” têm sido, provavelmente, a Economia e a Ciência Política, mas a Geografia Humana também deve ser lembrada – por exemplo, por conta de seu envolvimento, que frequentemente passa ao largo de qualquer senso crítico, com o planejamento urbano e regional promovido pelo Estado.

goya-4É uma triste e preocupante realidade, além disso, que a burocratização não implica somente o aumento da população daqueles que são, acima de tudo, “burocratas”. Praticamente todos os pesquisadores têm sido submetidos a diferentes pressões “burocratizantes” (por parte de agências de fomento, das universidades, etc.), as quais têm levado a que se gaste cada vez mais tempo elaborando e avaliando projetos, havendo, por outro lado, cada vez menos tempo e tranqüilidade para gerar conhecimento novo.

Diante de todo esse quadro, quem mais se vê comprometido com o risco de incoerência são os docentes e pesquisadores que, à luz de suas biografias e autodefinições, representariam alguma modalidade de pensamento socialmente crítico. O “olhar de longe e do alto” nas ciências sociais, bastante típico da Economia e da Ciência Política, mas também da Geografia Humana, pode, eventualmente, até ser considerado como perfeitamente legítimo do ângulo do pensamento crítico, em uma circunstância: caso seja realizado com a finalidade de se ganhar visão de conjunto e apreender fenômenos somente apreensíveis nas escalas de representação dos grandes espaços, e não por distanciamento em relação aos “mundos da vida”, ao quotidiano dos atores sociais concretos. Mas, se for valorizado com exclusividade ou nítida prioridade, será uma “visão de sobrevôo” similar àquela que é própria do Estado, a qual serve à classificação e ao controle sociais. Essa “visão de sobrevôo” hipervalorizada pode ser compatível ou compatibilizável com a burocratização do mundo acadêmico e a mercantilização da produção intelectual. Entretanto, a disposição de abraçar ou manter um compromisso ético-político com a mudança sócio-espacial vai sendo minada ou dificultada no longo prazo pela burocratização e pela mercantilização, que levam a uma tendência de distanciamento crescente dos ambientes acadêmicos relativamente às circunstâncias espaço-temporais em que é possível observar as contradições e os conflitos sociais “de perto” e mesmo “de dentro” (o que pressupõe incorporar a perspectiva do insider, do “mundo da vida”).

[*] Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro.


fonte: http://passapalavra.info/?p=23469

sexta-feira, 21 de maio de 2010

Florianópolis: tensão e possibilidades de vitória


Reunindo mais uma vez milhares de pessoas, o ato dessa quinta-feira, dia 20 de maio, mostrou que a população de Florianópolis mantém-se ativa e disposta a resistir. Por Passa Palavra

Acompanhe a cobertura completa da luta clicando aqui.

florianopolis-4É difícil dizer quantas mil pessoas participaram da manifestação: 2, 3, 4 ou 5 mil? Mas o que é possível dizer é que em certos momentos da manifestação a sensação de estar no meio de uma multidão, olhar para trás e ver que a manifestação parece não ter fim dá a noção de que o ato realmente foi grandioso.

A saída em manifestação obedeceu a um ritmo muito acelerado, subindo pela Rua Jerônimo Coelho rumo à Avenida Osmar Cunha, com o intuito de chegar à Avenida Beira-Mar. Mas, mesmo com toda nossa vontade e determinação, a orientação do Comando da Polícia Militar de Santa Catarina era de impedir a qualquer custo que o ato alcançasse aquele objetivo, mobilizando um imenso efetivo policial para dar conta da tarefa.

A partir de então, o que sucedeu foi uma série de impasses e tentativas dos manifestantes de furar o bloqueio da PM. Mesmo usando de muita força, não foi possível concretizar o objetivo, o que gerou grandes momentos de espera até que se decidisse o que fazer e como prosseguir com a manifestação. O primeiro momento, mais tenso e breve, ocorreu no início da Av. Osmar Cunha, e após diversas tentativas, frustradas pela brutalidade e violência da polícia, só se resolveu com uma negociação que permitiu que o ato avançasse na avenida até o cruzamento com a Rio Branco.

florianopolis-8A intenção da polícia era que o ato seguisse pela Rio Branco para a Avenida Mauro Ramos, trajeto que não contemplava as expectativas e objetivos dos manifestantes. Muitos e muitos minutos se passaram e o efetivo policial posicionado em frente aos manifestantes, incluindo a Cavalaria e o Grupo de Resistência Tática, demonstrava que não havia força suficiente da manifestação para seguir até à Avenida Beira-Mar.

Uma assembléia bastante tensa foi organizada e diversas propostas de como dar rumo ao ato foram apresentadas. A proposta vencedora foi de voltarmos ao Ticen (Terminal do Centro), entrando na Rio Branco e dali forçando a entrada por alguma rua do centro, descartando o trajeto proposto pela polícia de seguir até à Mauro Ramos.

A estratégia deu certo, mas exigiu dos manifestantes que avançassem metro por metro, empurrando o cordão formado pela PM. A tensão que tomou conta de todo ato, apesar da empolgação dos manifestantes, teve um de seus pontos altos nessa batalha para conquistar cada metro possível de avançar.

Dois manifestantes foram presos durante o trajeto, sem que qualquer policial soubesse explicar o motivo das prisões. Felizmente, ambos foram liberados alguns minutos depois.

florianopolis-2A marcha pelo centro, de volta ao Ticen, prosseguiu e, após uma manobra efetuada pela parte de trás do ato, trocamos o trajeto pela Paulo Fontes para seguir pela Conselheiro Mafra, rua tradicional do centro e do comércio da cidade. Ali, sem tanto policiamento, manifestantes puderam “enfeitar” paredes com mensagens contra o preço da tarifa e o sistema de transporte da cidade, além de descontar um pouco da raiva da polícia em portas de ferro de grandes lojas. Na volta ao Ticen um novo tumulto provoca mais duas prisões.

Após alguns tensionamentos, uma nova assembléia é realizada e a proposta de fazer um Grande Ato nesta sexta-feira, dia 21 de maio, às 17h, foi aprovada por unanimidade.

Após duas semanas intensas de atividades e grandes manifestações, o povo de Florianópolis demonstra disposição para manter a luta até a tarifa cair. Com a conquista do apoio popular, sabemos que agora o maior inimigo é o nosso próprio cansaço. Mas se o movimento mantiver suas forças nesta sexta-feira e durante a próxima semana, as possibilidades efetivas de uma vitória estarão colocadas mais uma vez nesta cidade.

Estas fotografias e muitas outras encontram-se aqui e ali.


fonte:http://passapalavra.info/?p=24065

quarta-feira, 19 de maio de 2010

A população que passa por baixo

A população que passa por baixo


Os usuários lidam de variadas maneiras com o custo do transporte, e a algumas o poder público insiste em chamar de fraudes. Esta subversão diária feita pelo usuários tem a mesma razão que a luta do Movimento Passe Livre e da população que toma as ruas novamente em Florianópolis. Por Passa Palavra

Os usuários [utentes] do transporte público lidam de variadas maneiras com o custo do transporte, buscando sempre diminuir esta despesa, que chega ser a segunda mais alta das famílias brasileiras. Relato aqui algumas experiências que o poder público insiste em chamar de fraudes.

catraca-1A primeira alternativa que vem à minha mente quando penso em maneiras a que nós, os usuários de transporte coletivo, recorremos para baratear nosso custo com deslocamentos é a prática de passar por baixo da catraca [*] e não pagar a passagem. Esta tática esbarra em alguns empecilhos. Primeiro, a negociação com o cobrador [funcionário que vende os bilhetes e controla o torniquete], que precisa autorizar você a fazer isto, o que é mais comum em ônibus [autocarros] que circulam nas regiões periféricas da cidade, uma vez que nestas o número de fiscais é menor e por vezes a relação entre o cobrador e os passageiros é mais próxima. Segundo problema é de disponibilidade física. É necessária uma certa maleabilidade e destreza para passar por baixo da catraca. Nos tempos em que eu era menino ainda era mais simples, pois as catracas eram menores e não iam até próximo do chão como as atuais, adotadas justamente para inibir este tipo de prática. Agora para passar por baixo e não se sujar é necessário o aprimoramento de uma técnica que requer bastante flexibilidade, além da situação de humilhação de se raspar no chão para não pagar a passagem. Neste sentido de transposição da catraca existe uma outra maneira menos humilhante, que requer um pouco menos de habilidade, que é pular a catraca. Esta geralmente tem mais resistência do cobrador e só consegue ser feita em situações em que o um grupo de passageiros tem força suficiente para garantir isto coletivamente, como em idas a jogos de futebol. Mas com o fretamento de ônibus para jogos e a elitização dos estádios estes momentos estão cada vez mais raros.

Na perspectiva individual existe também a tentativa de pagar com notas muito altas, que impossibilitam o troco e permitem que o usuário desça pela frente [nos autocarros, entre a entrada da frente e a catraca existem alguns lugares destinados as passageiros que, por lei, estejam dispensados de pagar bilhete]. O problema é que para tal é necessário ter uma nota de alto valor que não se precisa gastar para comer e outras necessidades diárias, por isso esta tática é geralmente utilizada por usuários que recebem uma quantidade alta de dinheiro para carregar o cartão ou comprar passe, e utilizam esta nota algumas vezes para andar de graça antes que encontrem algum cobrador com troco.

Ainda existe nas estações de trem [comboio] a possibilidade de chegar à plataforma pela via. Podemos encontrar diversos buracos nos muros ao redor do trilho [carris], que permitem o usuário ir andando pela via até chegar à estação e daí subir na plataforma ou diretamente no trem (pela janela). Estas tentativas dependem tanto do vigor físico do usuário, para escalar um muro, subir na plataforma ou ainda entrar no trem pela janela, quanto da ausência de guardas nas estações. Em Jandira, na Grande São Paulo, a CPTM resolveu o problema do grande número de usuários que entrava na estação pelos meios não convencionais pondo um rotveiler [raça de cães de guarda] para cuidar da via. Vale lembrar que esta tática enfrenta o risco de ser atropelado por um trem.

Saindo das alternativas individuais e indo para as coletivas, nos aparecem algumas outras táticas usadas, inicialmente por amigos e familiares. Temos no metrô a tática do deixar a catraca, ou seja, compramos nós dois um bilhete e o primeiro passa com ele com o corpo meio de lado, possibilitando que a catraca retorne ao lugar sem que gire, podendo o seguinte passar pela catraca. Esta tática pode ser utilizada por diversos usuários em sequência, mas precisa ser feita rapidamente para não ter problemas com a fiscalização e o tempo do bilhete não expirar. Requer extrema perícia para movimentar o corpo de forma que a catraca volte ao seu lugar, e é de fato geralmente praticada por adolescentes.

catraca-2Outra prática protagonizada por jovens, mas repartida com toda a família, é a socialização do passe estudantil. Nas cidades em que os estudantes têm meia passagem é comum emprestarem seus cartões ou doarem seus passes para o pai, a mãe ou o irmão, contribuindo assim com a renda da casa. No Rio de Janeiro, antes da implementação do Rio Card, era comum observar várias pessoas mais velhas utilizando camisetas [T shirts] de escola pública para andar gratuitamente nos ônibus. Outro direito que por vezes é repartido com a família é o dos idosos; estes emprestam seus cartões e bilhetes para filhos e netos andarem de graça no transporte, e afinal estes o utilizam muito mais do que eles, que por outros fatores excludentes da sociedade costumam ficar mais restritos ao espaço privado. Em São Paulo, com o intuito de inviabilizar esta prática, a Prefeitura agora obriga o cobrador a verificar o bilhete do idoso e da pessoa com necessidades especiais.

Temos ainda um exemplo de solidariedade de classe ocorrido diariamente em São Paulo. Os usuários que descem na estação Cidade Universitária da CPTM e na Vila Madalena do Metrô têm direito a pegar [tomar] a Ponte Orca (uma van [miniautocarro] que faz a integração entre as duas estações). Os usuários do transporte compartilham então seus bilhetes, aqueles que descem em uma das estações e não vão utilizar a integração pegam o bilhete e dão para os outros usuários; já os que utilizaram a van mas não vão entrar na estação dão os bilhetes para aqueles que querem pegar o trem. E assim, diariamente, algumas centenas de pessoas utilizam o transporte gratuitamente.

Podemos perceber a partir destas experiências algumas brechas no sistemas de transporte coletivo tarifado no Brasil e como estas são utilizadas pelos usuários para aliviar os custos do transporte. Existe entre os usuários a percepção de que a tarifa é excludente, e no caso da Ponte Orca esta constatação se reverte em uma ação prática que garante a outros – entre pessoas que só têm em comum a utilização do transporte coletivo (e provavelmente a classe social) – o acesso ao transporte.

Esta subversão diária feita pelos usuários tem a mesma razão e inspiração que a luta feita pelos militantes do Movimento Passe Livre e também pela população que toma as ruas novamente em Florianópolis.

catraca-4[*] Nota para os leitores portugueses. A catraca dos autocarros é um torniquete que o cobrador, sentado em frente, manobra com os joelhos, permitindo ou impedindo a passagem.


fonte: http://passapalavra.info/?p=23835


Universidades: burocratização, mercantilização e mediocridade (1ª Parte)


No Brasil e em todo o mundo, as universidades vão-se adaptando às necessidades do capitalismo que as sustenta. Burocratizaçao e mercantilização condicionam a sua vocação de crítica e de criação de novos conhecimentos. Por Marcelo Lopes de Souza [*]

goya-8A finalidade deste artigo é convidar à reflexão em torno do avanço da burocratização e da mediocridade no universo acadêmico. Burocratização e mediocridade essas que, no fundo, constituem realidades complementares e interdependentes, as quais produzem, como resultado, mais burocratização e mais mediocridade, em uma espiral ascendente em cujo contexto a dimensão qualitativa subjacente à ideia normativa da universidade como locus, entre outras coisas, de produção de conhecimento novo, é cada vez mais subjugada e engolida pela realidade da “lógica” burocrática. O resultado é, nos planos formal e informal, cada vez mais uma “caquistocracia” acadêmica, ou seja, um “governo dos piores” no interior das universidades.

Não se está a falar apenas do Brasil. O problema em questão não é exclusividade de nenhum país e de nenhum campo do conhecimento (“disciplinas” ou “campos interdisciplinares”). A burocratização do mundo universitário, atravessada e agravada por processos como a galopante mercantilização do saber acadêmico e as diversas formas e modalidades de “privatização” das universidades (que vão desde a pressão para o financiamento privado das pesquisas até a venda de serviços de consultoria e cursos para o universo empresarial como estratégia de complementação salarial), é algo observável em escala mundial. Entretanto, diferentes países e campos do conhecimento sofrem essa experiência de maneiras e com intensidades distintas.

Parece evidente que diversas características do capitalismo contemporâneo (de)formam o ambiente universitário, cada vez mais, de modo a transformar alunos e orientandos em “clientes”; docentes e pesquisadores em “prestadores de serviços intelectuais”; e o conhecimento gerado e transmitido em “produtos”, cuja medida de valor deve ser estabelecida pelo e por meio do mercado. É o mundo da mercadoria corrompendo e modelando o quotidiano dos ambientes de geração de saber que, por muito tempo, e não inteiramente sem razão, puderam ser considerados, mesmo por intelectuais críticos, como espaços criativos e de inovação, ainda que via de regra elitizados e altamente hierárquicos.

Não se deseja, com isso, parecer simplista, mas somente chamar a atenção para o fato de que juízos puramente morais não fornecem um padrão explicativo inteiramente válido do quadro que temos diante de nós. É seguro que isso não autoriza um enfoque “economicista”, o qual negligencie que um fator poderoso (e que não é simplesmente derivável de determinações econômicas) são as mudanças no plano simbólico-cultural, com o enfraquecimento de determinados valores e “freios morais” – fator esse que, no Brasil, tem sido farta e constantemente alimentado pelos “maus exemplos” dados por tantos e tantos agentes públicos, detentores de postos de mando no aparelho de Estado. Apenas sugere-se, com base na percepção de condicionantes dessa magnitude, que sermões e apelos à moralidade e aos brios constituem terapia insuficiente e, no limite, ingênua e tola (mas, do ângulo sistêmico, uma astuciosa e conveniente manobra diversionista).

Ocorre que, devido a tradições mais solidamente estabelecidas e a exigências e padrões de julgamento qualitativo do conhecimento mais bem assentados, em alguns países (geralmente os países centrais) a burocratização e a mercantilização não chegam a produzir como resultado uma mediocridade acachapante. É bem verdade que também neles, sem dúvida, o “produtivismo”, que é a concretização da máxima publish or perish (= publique ou pereça) levada ao paroxismo, cada vez mais gera uma quantidade de “produtos” (livros, artigos etc.) desproporcionalmente grande em comparação com a qualidade intelectual daí decorrente ou aí embutida. Entretanto, uma vez que o exemplo mais evidente de “produtivismo” científico no mundo de hoje, o ambiente acadêmico anglo-americano, possui a vantagem de uma incrível “economia de escala”, ali, “no atacado” [por grosso], o problema acaba tendo menor gravidade, valendo em parte o princípio de que “a quantidade gera qualidade”. Além disso, uma mescla de tradições e excelência gestorial (em sentido capitalista, precisamente) faz com que, apesar dos muitos (e crescentemente predominantes) “produtos intelectuais descartáveis” gerados nesse ambiente, parcela expressiva do que aí se faz tenha, de fato, ao menos algum mérito em matéria de inovação ou reflexão. Mesmo que essa qualidade engendrada em meio ao gigantesco aparato burocrático-capitalista de produção de “produtos de conhecimento” (publicações, congressos, periódicos, etc.) do mundo anglo-saxônico seja parcialmente ilusória ou muito discutível – e não só pela desproporção em relação à quantidade mas, também, intrinsecamente, enquanto inovação muitas vezes mais aparente que real, mais superficial que profunda –, o fato é que ela não é apenas ou inteiramente ilusória. A proliferação de cursos de MBA ditos de “altíssimo nível” (leia-se, em sentido capitalista: capazes de duplicar ou triplicar os salários dos portadores dos respectivos diplomas) ou a quantidade de ganhadores do Prêmio Nobel de que uma universidade pode gabar-se ter em seus quadros são critérios político-filosoficamente e eticamente muito contestáveis, é certo, quando a perspectiva é a de uma crítica da sociedade existente; no entanto, de um ponto de vista que é, precisamente, o do capitalismo e seus valores (da competição ao “desenvolvimento econômico”), muitas universidades norte-americanas e inglesas são espaços privilegiados de produção de “conhecimento útil”, isto é, com “valor de mercado”.

goya-6Em resumo, no contexto da rarefação político-intelectual do mundo contemporâneo (e que se reflete na usual falta de densidade das ciências sociais e da Filosofia), pode-se e deve-se, sem sombra de dúvida, questionar a originalidade e a profundidade da maior parte do que se publica mesmo nos melhores periódicos “internacionais” (que são, na verdade, em primeiríssimo lugar, periódicos em língua inglesa e editados por editoras norte-americanas ou inglesas, com tudo o que isso implica em matéria de vieses etnocêntricos). Todavia, ao mesmo tempo, há de se conceder que existe, no mínimo, uma substancial diferença de grau entre um ambiente universitário que produz predominantemente ideias conformistas ou não-arrojadas e um outro quase completamente estéril, que cada vez menos produz qualquer ideia original que seja. No Brasil, em que as universidades públicas são solapadas a partir de fora (deterioração ou estagnação em patamares baixos da remuneração de docentes e funcionários, obsolescência e degradação de equipamentos e infraestrutura, ausência de planos de carreira consistentes, falta de uma verdadeira autonomia universitária) e a partir de dentro (corporativismos, tradições “oligárquicas” incompatíveis com uma apreciação minimamente adequada de critérios de merecimento intelectual), a presença cada vez maior do conformismo e da falta de verdadeira originalidade chega quase a ser eclipsada pelo problema ainda mais grave que é a acelerada erosão da capacidade de produzir ideias consistentes, sejam elas conservadoras ou anticonservadoras. (Uma ressalva sobre o “a partir de fora” e o “a partir de dentro”: eles se acham, indiscutivelmente, entrelaçados, com aquilo que é exógeno condicionando e reforçando aquilo que é ou parece endógeno – e às vezes também vice-versa. Sem contar o fato de que, no plano individual e do grupo, comportamentos são afetados pelo meio social geral do capitalismo fin-de-siècle – estribado no consumismo desenfreado e na extremada competitividade interindividual e, por conseguinte, crescentemente indutor de alienação, despolitização e atitudes oportunistas.)

Os efeitos conjugados da burocratização e da mercantilização sobre o nível e a densidade intelectuais também variam bastante de acordo com a área do conhecimento a que estejamos nos referindo. Para as ciências naturais e as áreas tecnológicas, adaptar-se a esse quadro parece ser algo bem menos doloroso que para as ciências humanas e sociais. (A despeito dos altos graus de exploração e submissão individuais dos cientistas, em especial dos jovens pesquisadores mormente em uma época de “[hiper]precarização do mundo do trabalho”). Uma razão é o próprio padrão de financiamento: recursos são abundantemente direcionados para os campos capazes de gerar conhecimentos diretamente aplicáveis e úteis do ponto de vista da produção de novos produtos (processos produtivos, armamentos, artigos de consumo, etc.), e é óbvio que não se vai esperar que, mesmo remotamente, a mesma magnitude de suporte flanqueie a produção de conhecimentos referentes, muitas vezes, à crítica do sistema.

Não que o sistema não financie seus críticos, eventualmente tirando um razoável e multifacetado proveito disso; contudo, trata-se de uma prioridade concernente a outra ordem de grandeza. Para especialistas em engenharia genética, telemática ou química fina, cujos salários são excelentes, cujos laboratórios são moderníssimos, cujos alunos são comumente motivados (a começar pelas perspectivas de altos salários e “reconhecimento social”…) e para os quais, enfim, os recursos não são escassos (o que, evidentemente, varia bastante de país para país), muitas vezes pouco ou nada importa de onde vem o dinheiro para os projetos e que convênios ou acordos são necessários para obtê-lo. Não apenas por isso, mas também pelo fato de que, em meio à burocratização e à mercantilização ascendentes, são justamente os critérios e padrões de julgamento do valor acadêmico típicos das ciências naturais e das engenharias (mais facilmente amalgamáveis com o critério-base, de um ponto de vista capitalista, que é a perspectiva de um valor de troca significativo para o conhecimento gerado) que são tomados como modelares e impostos às ciências humanas e sociais para fins de avaliação de desempenho (e decidir sobre que projetos, candidatos a bolsistas, periódicos, programas de graduação e pós-graduação, etc., etc. apoiar), que os campos voltados para a geração de conhecimento reflexivo e crítico sobre a própria sociedade tendem a perder cada vez mais prestígio e relevância. E, em parte por isso, tendem, também, no longo prazo, a reproduzir de maneira ampliada a mediocridade e a irrelevância – a despeito da presença de algumas ilhas de excelência e resistência. Pesquisadores deficientemente formados serão mais cedo ou mais tarde responsáveis, enquanto docentes e orientadores de graduação e pós-graduação, pela formação de novos pesquisadores, os quais apresentarão, geralmente, deficiências ainda maiores do que eles, analogamente à perda de definição e qualidade ao comparar-se uma cópia xerox com o original, a cópia da cópia com a cópia, a cópia da cópia da cópia com a cópia da cópia, e por aí vai…

• • • • •

Diversas “espécies” constituem, em qualquer país e relativamente a qualquer campo do conhecimento, a “fauna acadêmica” que povoa as universidades. Várias dessas “espécies” são, por circunstâncias históricas, úteis, e não somente uma. Mas é justamente uma delas, e aquela que mais diretamente contribui para que as universidades sejam e se mantenham como ambientes produtores de inovação, que se acha, atualmente, muitas vezes acuada ou mesmo em processo de encolhimento, em especial nas ciências humanas e sociais (tendência que, no Brasil de hoje, tem comparecido de maneira superlativa): aquela que denominarei de os “inovadores”, que são os pesquisadores verdadeiramente criativos. Os verdadeiros intelectuais, e muito particularmente os intelectuais críticos (ou seja, que refletem criticamente sobre a sociedade e não se furtam a assumir posições publicamente), são um subconjunto dos “inovadores”.

goya-1Quanto às outras “espécies”, não tentarei nomeá-las todas. Buscarei identificar sistematicamente, a seguir, apenas aquelas “espécies” da nossa “fauna acadêmica” que, para os fins da presente exposição, são especialmente relevantes.

Os “disseminadores” são aqueles que, geralmente, não primam por gerar ideias novas, restringindo-se a, com maior ou menor competência, manejar, interpretar e repercutir o pensamento de outrem. Conquanto não sejam pesquisadores destacados, podem ser, eventualmente, excelentes professores, inspirados e inspiradores, prestando importante contribuição para a formação de novos pesquisadores e de novos profissionais em geral. Lamentavelmente, nos dias que correm, a tendência não parece ser a da ampliação do número desses “disseminadores” realmente inspirados e inspiradores, mas sim a hipertrofia do grupo daqueles que muito pobremente (e, cada vez mais, até mesmo plagiariamente) administram e reproduzem ideias alheias. São, em analogia com os corretores de imóveis, “corretores de ideias”. De qualquer forma, em meio às “mudanças ambientais” em curso, a espécie dos “disseminadores” se encontra, enquanto tal, menos ameaçada (e são provavelmente mais adaptáveis) que os “inovadores”.

Os “burocratas” são uma espécie particularmente em ascensão. Sua expertise básica não é a da geração de conhecimento novo, e muito menos de conhecimento socialmente crítico, nem tampouco a da disseminação competente do conhecimento científico disponível. Sua expertise básica refere-se ao domínio dos jogos de poder concernentes ao interior da máquina burocrático-acadêmica e às relações dessa máquina com o seu entorno (governos, agências de fomento, etc.). A linguagem dos “burocratas” é a do poder, e sua especialidade é conquistar, manter, traficar e barganhar influência. (Sem contar, obviamente, as formas semilegais ou mesmo ilegais de obter dinheiro utilizando-se da infraestrutura de instituições teoricamente públicas. “Teoricamente”, esclareça-se, porque universidades largamente elitistas e elitizadas jamais podem ser, a rigor, consideradas sem ressalvas como públicas, já que o acesso é tão restrito.) Os “burocratas” são, enfim, especialistas na reprodução (ampliada) do fisiologismo que se difunde a passos largos no capitalismo fin-de-siècle, sobretudo em sua (semi)periferia.

Os “(micro)empresários” são outra espécie em ascensão, ao menos em algumas áreas de conhecimento. Por convicção ou conveniência, para eles a universidade pública é um ambiente decrépito em meio ao qual, para sobreviver, é necessário introduzir formas e parâmetros “gerenciais” que mimetizem aqueles das empresas privadas. Entretanto, os arremedos de “parcerias público-privadas” por eles patrocinados costumam ser, analogamente às “parcerias público-privadas” do ambiente exterior à universidade, relacionamentos assimétricos, em que o “público” entra com o grosso dos custos e o “privado” absorve os maiores benefícios. Assim é que bolsas de estudo e de pesquisa (de iniciação científica, de mestrado e doutorado, etc.) e uma infraestrutura (espaço construído e utilizável, energia elétrica, equipamentos, etc.) financiadas pelos contribuintes pagadores de impostos são colocadas, mais e mais, a serviço de trabalhos privados de consultoria e projetos elaborados por encomenda de firmas privadas ou órgãos estatais – não raro em detrimento da dedicação à atividade docente e mesmo à atividade de pesquisa em sentido forte.

goya-3Os “caciques”, por fim, são aqueles que exercem um papel de liderança política. São os “medalhões”, aqueles em torno dos quais formam-se menos ou mais numerosos grupos de admiradores, seguidores e “disseminadores”. Dominam o idioma do poder, mas o utilizam de maneira não necessariamente semelhante à dos “burocratas”: enquanto que o típico “simples burocrata” pouco ou nada brilha, muitas vezes permanecendo todo ou quase todo o tempo na obscuridade, o “cacique”, que é uma figura de renome, empolga e arrebata plateias, influencia os debates e o tratamento de questões institucionais em sua área. Ou, pelo menos, costumava ser assim, já que, cada vez mais, testemunhamos a ação de “caciques” de reduzido talento oratório e pouca vocação para escrever e publicar coisas realmente importantes, mas que, em contrapartida, se mostram hábeis em agenciar o trabalho alheio (na base da superexploração de orientandos, por exemplo), assimilando alguns dos piores cacoetes de “burocratas” e “(micro)empresários”. Este assunto será retomado um pouco mais à frente.

As metáforas ecológicas acima empregadas (“fauna”, “espécies”, “mudanças ambientais”) foram escolhidas por permitirem a construção de uma imagem forte: a do risco de “extinção” ou, menos dramaticamente, de redução drástica da “população” de pesquisadores orientados e motivados para inovar e criar, para desafiar o conhecimento herdado. Utilizadas com o propósito de facilitar a comunicação (que é o propósito, aliás, de toda metáfora), essas metáforas merecem, a esta altura, um reparo crucial. Diferentemente de espécies biológicas, as “espécies” de que ora se trata constituem não tipos exclusivos, mas, isso sim, características básicas. Não necessariamente um indivíduo acadêmico concreto é apenas um “burocrata” ou um “inovador”; na esmagadora maioria dos casos de indivíduos acadêmicos concretos, diferentes características básicas se combinam – até mesmo porque cada um é obrigado ou encorajado a desenvolver, minimamente que seja, um certo conjunto variado de habilidades: saber pesquisar, saber ministrar boas aulas, saber lidar com a burocracia de seus próprios projetos de pesquisa (e, eventualmente, exercer, ainda que sem apetite para tal, cargos administrativos), e por aí vai. Por conseguinte, o que faz um indivíduo pertencer a uma determinada “espécie acadêmica” não é o fato de ele apresentar as características dessa “espécie” de modo exclusivo, mas sim de modo predominante e distintivo.

[*] Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

goya-10Ilustrações: gravuras de Goya.


fonte: http://passapalavra.info/?p=23461

segunda-feira, 17 de maio de 2010

Florianópolis: grande ato encerra semana de luta contra o aumento


Na quinta-feira (13/05), milhares de pessoas foram às ruas, para lutar contra o aumento das tarifas do transporte público e mostrar mais uma vez que a população vai lutar até que a prefeitura e os empresários reconheçam sua derrota e recuem. Por Passa Palavra

Acompanhe a cobertura completa da luta clicando aqui.

floripa_13-05_pm-no-ticenApós o acorrentamento na sede do Setuf (Sindicato das Empresas de Transporte Urbano de Florianópolis), um ato reunindo milhares de pessoas (as estimativas variam de 4 a 7 mil manifestantes) encerrou o dia e a semana de mobilizações construída pela Frente de Luta pelo Transporte Público. Além de o acorrentamento ter conseguido uma repercussão maior do que o esperado, tivemos uma vitória concreta antes do ato: a entrega das planilhas de custo das empresas. Mas o mais importante foi que mesmo muito otimistas o ato superou nossas expectativas em número de pessoas e em termos de organização.

floripa_13-05_andandoPara se ter uma idéia do tamanho da manifestação, na ausência de um som mais potente, realizamos assembléias com o uso de jograis nas paradas da manifestação. No começo tentamos fazer uma única assembléia, mas o ato era tão grande que era impossível, e aí tivemos que fazer duas assembléias simultâneas. O pessoal da comissão de segurança que circulava pela manifestação chegou a demorar 30 minutos para atravessar o ato de uma ponta à outra. Era impressionante!

Apesar da evidente maioria estudantil, vimos o pessoal dos morros e de associações comunitárias, além de trabalhadores comuns, que atenderam ao chamado. Durante a semana começamos os contatos com as associações comunitárias e a maioria delas se mostrou disposta e já começou a fazer o trabalho de mobilização nos bairros, o que traz a expectativa de que na semana que vem esse pessoal esteja ainda mais presente nos atos.

floripa_13-05_ato-na-camara-do-vereadoresNa próxima quinta-feira (20/05) teremos também a paralisação dos servidores municipais, que fazem um ato pelo centro durante a tarde e devem engrossar nossa manifestação em seguida.

O ato foi bastante descontraído, apesar da tensão em alguns momentos e da presença massiva de P2 (policiais à paisana). Fizemos diversas intervenções durante a manifestação e o clima era muito bom.

Foi incrível o grau de coesão da manifestação. Todos se sentiam responsáveis pelo ato, ajudando na segurança e colaborando com o pessoal da organização. Era muita gente, muita coisa pra ser definida, enfim, foi uma experiência incrível!

floripa_13-05_em-frente-a-prefeituraNo final, após retornarmos ao Terminal do Centro (Ticen) fizemos uma assembléia para definir se o ato se encerraria ali ou se prosseguíamos com ele. Após votação, a proposta de dispersar o ato e engrossar as manifestações da semana seguinte venceu, mas o pessoal que saiu derrotado na votação passou por cima da deliberação e invadiu o terminal. Um manifestante acabou preso, sendo liberado algumas horas depois.

Esta foi uma manifestação vitoriosa em todos os sentidos. Agora nos resta trabalhar para manter as mobilizações! As manifestações devem crescer e o objetivo é dobrar o número de manifestantes durante esta semana. (Acompanhe aqui o calendário de mobilização da semana).

A seguir, assista dois vídeos do ato:

Somente quando a manifestação chega à Câmara de Vereadores, os manifestantes conseguem perceber o tamanho do ato em que estão inseridos. Vídeo por Leo Silva Lima

«Quem não pula quer tarifa» é um vídeo sobre os protestos contra o aumento de 7,3% no valor da passagem de ônibus em Florianópolis. No dia 13 de maio de 2010, quatro mil pessoas, principalmente estudantes, ocuparam as ruas do centro da Capital. O vídeo, de cinco minutos, gravado com uma câmera fotográfica, foi produzido pelos jornalistas Fernando Evangelista e Juliana Kroeger.

Fotos: Sarcastico.com.br

floripa_13-05_helicoptero-voando

floripa_13-05cavalaria


fonte: http://passapalavra.info/?p=23760

quinta-feira, 13 de maio de 2010

África do Sul: protestos urbanos ao rubro (3ª Parte)

África do Sul: protestos urbanos ao rubro (3ª Parte)

Depois da morte aparente do projecto neoliberal personificado pelo ex-presidente Mbeki, Trevor Manuel, o “eterno” e poderoso ministro das Finanças desde o fim do apartheid, foi mantido pelo novo presidente Jacob Zuma com o fim de preparar uma rota de colisão com a sua principal base de apoio interna, os sindicalistas e os comunistas.Por Patrick Bond [*]

3. Das bolhas rebentadas às lutas contra a política económica

Com este tipo frágil de crescimento económico, submetido a uma enorme fuga de capitais, não é de admirar que, na segunda semana de Outubro de 2008, o mercado bolsista de Joanesburgo tenha desabado 10% (no pior dia, esvaíram-se em fumo US$35 mil milhões [35 bilhões]) e que o valor da moeda tenha caído 9%, enquanto na segunda semana caiu mais 10%. E não nos deixemos induzir em erro com a aparente morte do projecto neoliberal sul-africano em Setembro de 2008, personificada pelo ex-presidente Thabo Mbeki, cuja gestão pró-empresarial foi a causa do seu afastamento expeditivo do poder. O líder “populista” do partido do governo, Jacob Zuma, tinha o firme propósito não só de manter [Trevor] Manuel [o ministro das Finanças, actualmente ministro de Estado que preside à Comissão Nacional de Planeamento] por tanto tempo quanto fosse possível, mas também de preparar uma rota de colisão com a sua principal base de apoio interna, os sindicalistas e os comunistas. Tal como disse Zuma na Câmara de Comércio estadunidense em Novembro de 2008, “Orgulhamo-nos da nossa disciplina fiscal, da nossa sólida gestão macro-económica e, em geral, da forma como a nossa economia tem sido gerida. Isso requer continuidade” (Chilwane 2008).

Alguns dias antes, respondendo a uma pergunta do Financial Times (Lapper e Burgis 2008) acerca do impacto da crise mundial na África do Sul, Manuel aconselhara os seus eleitores a apertarem os cintos:

buma86433082

Trevor Manuel, à esquerda, com Jacob Zuma

Ao mesmo tempo, as negociações conduzidas pelo Fundo Monetário Internacional, segundo o Artigo IV, com África do Sul vieram confirmar as pressões externas. Por ironia, o director daquela instituição, Dominique Strauss-Kahn (2008), proclamou nesse mesmo mês que agora o FMI apoiava um estímulo orçamental de 2% “onde quer que isso seja possível. Onde quer que haja alguma possibilidade de sustentar a situação de endividamento. Onde quer que a inflação seja suficientemente baixa para não haver alguns riscos de recaída inflacionária, esse esforço tem de ser feito.” Pretória tinha condições para obter esse beneplácito de tipo keynesiano, mas, pelo contrário, segundo a equipa do FMI (International Monetary Fund 2008, 3-12) que preparou o relatório das negociações anuais segundo o Artigo IV, Manuel deveria:

• obter um excedente orçamentário, isto é, “um aumento da poupança pública que permita nos próximos anos reduzir a zero o endividamento estrutural do sector público”, mas tendo presente que “as reduções dos impostos sobre os lucros das empresas poderiam incentivar o crescimento”;

• optar pela privatização nas “necessidades infra-estruturais e sociais”, incluindo a electricidade e os transportes, “apoiando-nos mais amplamente em parcerias público-privadas”;

• manter os actuais limites da inflação (ou seja, entre os 3 e os 6%, apesar de a inflação em 2008 ter ultrapassado 12%) e “subir ainda mais as taxas de juro se voltarem a verificar-se crises de oferta ou se as pressões da procura interna não acalmarem”;

• “abrir a economia a uma maior concorrência internacional”, suprimindo protecções contra a volatilidade económica internacional, em particular “uma maior liberalização e simplificação do sistema comercial”; e

• suprimir direitos laborais no mercado de trabalho, incluindo a “indexação salarial retroactiva” destinada a protejer da inflação.

É certo que Manuel não seguiu este conselho. A ala esquerda da Aliança (o Partido Comunista da África do Sul e o Congresso dos Sindicatos Sul-Africanos) é suficientemente poderosa para impedi-lo, se ele tentasse aplicar qualquer uma das cinco medidas, sobretudo antes das eleições gerais de 2009. Efectivamente, tal como sucedeu em todo o Ocidente, o banco central sul-africano deparou com fortes pressões para baixar as taxas de juro – 5% desde o fim de 2008 até meados de 2009 – e a taxa primária real caíu para a ordem de 2%, quando era de 15% uma década antes.

Surpreendentemente, o acordo com o FMI em 2009, no âmbito do Artigo IV, teve um tom bem diferente ao admitir que a estratégia da África do Sul era aceitável:

20090506_fmiA postura fiscal expansionista é adequada, dadas as débeis perspectivas económicas, e estabelece um equilíbrio correcto entre o apoio à procura e a preservação da sustentabilidade a médio prazo. Se a produção for inferior à prevista pelos responsáveis, então dever-se-á permitir a acção dos estabilizadores automáticos em 2009-2010 e em 2010-2011 […] A orientação politica monetária foi a apropriada. A margem de facilitação talvez esteja esgotada se, tal como as autoridades pretendem, a inflação caia em 2010 até aos limites desejados (FMI 2009, 1).

Apesar de Manuel ter afirmado há pouco tempo (Fevereiro de 2009) que essas medidas evitariam a recessão, facto é que isso foi tristemente desmentido em Maio, quando os dados oficiais mostraram um declínio trimestral de 6,4% do Produto Interno Bruto, o pior desde os protestos anti-apartheid de 1984, quando o preço do ouro caiu e as sanções foram agravadas. Já no fim de 2008 se tornara visível que os trabalhadores iriam ter de apertar o cinto, com uma redução de 67% da média de horas de trabalho por operário fabril, o pior decréscimo desde 1970. Calcula-se que a economia tenha perdido um milhão de postos de trabalho em 2009, sobretudo na indústria e na mineração. Só em Janeiro de 2009 assistiu-se a uma queda de 36% nas vendas de carros novos e a uma redução de 50% da produção, a pior de sempre, segundo a Associação Nacional de Fabricantes de Automóveis. O esperado aumento da actividade portuária também resultou no seu inverso, com uma queda de 29%, em termos anuais, no começo de 2009.

A perda de casas [por falta de pagamento das hipotecas] aumentou 52% no início de 2009, se comparado com o mesmo momento do ano anterior. A queda do primeiro trimestre de 2009 foi, no entanto, mitigada pela indústria da construção civil, que cresceu 9,4% graças aos colossais investimentos estatais em infra-estruturas: os estádios do Campeonato [Copa] do Mundo de 2010 (que ultrapassaram largamente o orçamento e que se prevê que não conseguirão suportar os custos [de manutenção] a seguir aos jogos); um serviço de combóios [trens] rápidos entre Joanesburgo e Pretória, destinado à elite; um complexo industrial (Coega) que, apesar de ser um fracasso, tem recebido generosos subsídios; obras de expansão em portos, aeroportos, estradas e oleodutos; uma enorme central eléctrica a carvão; e mega-barragens hidroeléctricas. Mas, se exceptuarmos estas grandes obras, o número de projectos de construção registados em 2008 já caíra 40% em relação a 2007.

[*] Patrick Bond dirige o Center for Civil Society http://www.ukzn.ac.za/ccs/ na Universidade de KwaZulu-Natal em Durban e é activista de movimentos da comunidade, do ambiente e do trabalho.

Artigo inédito em inglês, tradução do Passa Palavra.

Referências

Chilwane, L. (2008) Economic policies to remain, Zuma tells US business. Business Day, 27 November.
International Monetary Fund (2008) IMF Executive Board Concludes Article IV Consultation with South Africa, Public Information Notice (PIN) No. 08/137, October, Washington.
International Monetary Fund (2009) IMF Executive Board Concludes Article IV Consultation with South Africa, Public Information Notice (PIN) No. 09/273, September, Washington.
Lapper, T. e T.Burgis (2008) S Africans urged to beware left turn. Financial Times, 27 de Outubro.
Strauss-Kahn, D. (2008) Transcript of a Press Briefing by the IMF Managing Director, Washington, 17 de Novembro,http://www.imf.org.


fonte: http://passapalavra.info/?p=23574

(c) Copyleft: É livre a reprodução para fins não comerciais, desde que o autor e a fonte sejam citados e esta nota seja incluída.

terça-feira, 11 de maio de 2010

Florianópolis viverá uma nova Revolta da Catraca? [*]

Florianópolis viverá uma nova Revolta da Catraca? [*]

Mais uma vez a prefeitura e os empresários do transporte coletivo de Florianópolis subestimaram a organização popular e resolveram aumentar ainda mais a tarifa do transporte público. Mas o que parece se esboçar na cidade é uma resistência de proporções muito maiores do que se viu nos anos posteriores a 2005. Por Passa Palavra

fpolis_contratarifa_1A partir da 0h deste domingo, 09 de maio, as tarifas do transporte público de Florianópolis sofreram um novo reajuste, passando de R$ 2,80 para R$ 2,95 em dinheiro e de R$ 2,20 para R$ 2,38 no cartão. Os novos valores da tarifa social são de R$ 1,60 no cartão e R$ 1,95 em dinheiro. Mais uma vez a população é desafiada a se organizar e resistir, lutando pela revogação do aumento e por mudanças efetivas no sistema de transporte da cidade, que há anos tem sido alvo de protestos, debates e a elaboração de projetos pelos movimentos da cidade, em especial o Movimento Passe Livre.

A reação ao anúncio do aumento não poderia ter sido melhor: na quinta-feira, poucas horas depois do prefeito anunciar o reajuste, uma reunião foi convocada às pressas pelo Diretório Central dos Estudantes da UFSC e pelo Grêmio do Colégio Aplicação. O chamado foi atendido por dezenas de pessoas que reorganizaram a Frente de Luta pelo Transporte Público.

fpolis_contratarifa_3Já na sexta-feira, um ato com centenas de pessoas saiu pela manhã do campus da UFSC em caminhada até o centro, encontrando estudantes de escolas do centro e de outras regiões da cidade, reunindo cerca de 500 pessoas em frente ao Terminal do Centro (Ticen). De lá a manifestação partiu para a sede do Sindicato das Empresas de Transporte Urbano de Florianópolis (Setuf), rapidamente ocupado com a reivindicação de que a planilha de custos das empresas fosse entregue à população. Nenhum dos responsáveis pelo órgão se apresentou para atender os manifestantes, que tentaram adentrar pacificamente nas salas administrativas do prédio e foram violentamente atacados por funcionários e seguranças do Setuf, que usaram de cadeiras e pedaços de ferro, além de socos e pontapés, para agredir os manifestantes. A violência dos funcionários do órgão gerou um princípio de confusão que acabou por causar pequenos ferimentos em ambos os lados.

fpolis_contratarifa_5Depois do incidente a manifestação caminhou até o prédio de atendimento da Secretaria Municipal de Transportes, mas o encontrou com as portas fechadas para a população. Os manifestantes resolveram então voltar para frente do Ticen e bloquearam por alguns minutos a entrada dos ônibus no terminal, sofrendo com a repressão da polícia, que usou armas de choque (tasers) nos manifestantes. O protesto terminou por volta das 14h em frente a prefeitura, que também estava de portas fechadas e recebeu a manifestação com a Guarda Municipal usando spray de pimenta.

No sábado, 08 de maio, mais uma grande reunião da Frente foi realizada e um calendário com diversas mobilizações para esta semana foi aprovado (veja aqui a agenda completa das mobilizações). Além de diversos atos descentralizados em todas as regiões da cidade, duas grandes manifestações ocorrerão no centro: uma na segunda (10/05) e outra na quinta (13/05), ambas com concentração às 17h em frente ao Ticen; na quarta-feira, uma grande assembléia convocatória para o grande ato de quinta será realizada a partir das 11h30, também na frente do Ticen.

O que parece se esboçar na cidade é uma resistência de proporções muito maiores do que se viu nos anos posteriores a 2005 - ano em que a cidade viveu a segunda Revolta da Catraca. A presença massiva de novos militantes, com destaque especial para os estudantes secundaristas, a disposição e revolta evidentes e a apropriação do movimento pelas diferentes pessoas e organizações que o compõem, dando voz a todos e garantindo pluralidade e autonomia nas diferentes ações, são apenas os primeiros indícios do que pode estourar nos próximos dias em Florianópolis.

fpolis_contratarifa_4As grandes assembléias de rua, inseridas num modelo de organização baseado na ação direta e no protagonismo popular, com uma estrutura horizontal que consegue ao mesmo tempo criar diversidade e unidade na ação, indicam as possibilidades de que novas formas de resistência e de organização podem ser gestadas durante o processo, ampliando a criatividade e massificando as intervenções do movimento.

Certamente, ainda é muito cedo para saber se nos próximos dias as manifestações irão ganhar corpo e uma ampla adesão popular, que ultrapasse o meio estudantil e possa criar chances efetivas de vitória. As dificuldades de superar a dispersão e fragmentação das diferentes lutas, bem como de enfrentar a dura repressão policial e a criminalização da resistência, são enormes. Mas o quadro apresentado, se ainda não nos permite sonhar alto, exige que sejamos otimistas.

A vitória desta luta depende de toda população de Florianópolis, da união prática em torno desta bandeira e da radicalidade que o movimento em gestação puder adquirir. Passa Palavra

fpolis_contratarifa_2

Fotos: Pira.

[*] Revolta da Catraca foi uma revolta popular vitoriosa contra aumentos nas tarifas de ônibus de Florianópolis em 2004 e 2005. Em 2004, por conta de um reajuste de 15,6% concedido pela Prefeitura e pelas empresas de ônibus, através do Conselho Municipal dos Transportes, milhares de pessoas saíram às ruas entre os dias 28 de junho e 8 de julho. Já no ano de 2005, os protestos duraram de 30 de maio à 21 de junho, quando a Prefeitura revogou aumento de 8,8%.

A radicalidade das manifestações foi fruto do desgaste do modelo de transporte perante a população, que sofria com aumentos intensos (quase 200% desde 1996) e a complexidade do novo Sistema Integrado de Transportes. A agressiva reação policial contribuiu significativamente para o acirramento da rebeldia popular, acabando por fazer com que mais e mais pessoas participassem das manifestações como forma de repudiar a violência contra os e as manifestantes.

Iniciados pela então Campanha pelo Passe Livre (futuro Movimento Passe Livre), os protestos logo foram abraçados por diversos setores da sociedade. Terminais de ônibus e principais vias da cidade foram ocupados; manifestantes abriam as portas traseiras para usuários entrarem sem pagar a tarifa ou simplesmente pulavam catracas; estudantes e associações de bairro organizavam passeatas e debates. Tudo isso num clima de democracia direta, sem o tradicional protagonismo partidário de mobilizações populares. (Retirado de: http://tarifazero.org/2009/07/22/revolta-da-catraca/)

Saiba mais sobre a Revolta da catraca aqui e aqui.


fonte: http://passapalavra.info/?p=23324

(c) Copyleft: É livre a reprodução para fins não comerciais, desde que o autor e a fonte sejam citados e esta nota seja incluída.

domingo, 9 de maio de 2010

África do Sul: protestos urbanos ao rubro (2ª Parte)

África do Sul: protestos urbanos ao rubro (2ª Parte)

O desenvolvimento geográfico desigual está na base da segregação racial e de classe no que respeita às regiões muito urbanizadas. Apesar de a classe trabalhadora ter um acesso mais fácil aos empréstimos hipotecários e a outras formas de crédito ao consumo durante os anos 2000, o processo generalizado de especulação imobiliária amplificou as desigualdades. Por Patrick Bond [*]

2. Sobre-acumulação, financialização e desigualdade social

No começo de 2009, no Fórum Social Mundial, David Harvey (2009) especificou o modo como estes processos de acumulação financeira especulativa interagem com a luta de classes nas cidades:

house-on-head«Desde 1970 houve 378 crises financeiras no mundo. Entre 1945 e 1970 houve apenas 56 […] O que me sugere que metade das crises financeiras dos últimos 30 anos decorrem da propriedade urbana […] Desde 1970, cada vez mais dinheiro se deslocou para activos financeiros e, quando a classe capitalista começa a comprar activos, o valor desses activos aumenta. Assim, começam a obter lucros com a subida do valor dos seus activos. E assim os preços das propriedades sobem e não param de subir […] Assim, um número cada vez maior de pessoas de baixos rendimentos foi arrastado para o mundo das dívidas. Mas acontece que, de há cerca de dois anos para cá, os preços das propriedades começaram a baixar. Cresceu demasiado o fosso entre, por um lado, aquilo que as famílias de trabalhadores podem pagar e, por outro, o montante das suas dívidas. E, de repente, ocorreu uma vaga de execuções hipotecárias em muitas cidades estadunidenses. Porém, como geralmente acontece nestas situações, essa vaga propaga-se desigualmente conforme as regiões».

“Sobre-acumulação de capital” a uma escala global, eis o que está por detrás da recente crise, que se seguiu de perto a um período de 35 anos de estagnação do capitalismo mundial, de enorme volatilidade financeira e de concorrência mortífera, que teve impactos desastrosos (Foster e Magdoff 2009). A enorme bolha dos bens primários – petróleo, minérios, cereais, terras – não deixou ver até que ponto muitos países, como a África do Sul, estavam em risco. Com efeito, nos primeiros anos da década de 2000 alimentou-se a esperança de que as crises monetárias dos mercados emergentes ocorridas no final dos anos 1990 podiam ser ultrapassadas no contexto do próprio sistema. Além disso, mesmo antes do boom das matérias-primas, em 2001 a taxa de lucro do grande capital sul-africano recuperou do declínio sofrido nos anos 1970 a 1990, tornando-se a nona mais alta de entre as maiores economias mundiais (muito acima dos EUA e da China), segundo um estudo do governo britânico (Citron e Walton 2002).

O desenvolvimento geográfico desigual está na base da segregação racial e de classe no ambiente muitíssimo urbanizado da África do Sul. Apesar de durante os anos 2000 a classe trabalhadora ter tido um acesso mais fácil aos empréstimos hipotecários e a outras formas de crédito ao consumo, o processo demasiado intenso de especulação imobiliária amplificou as desigualdades. Nos Estados Unidos, dois conceituados economistas das correntes ideologicamente dominantes, George Akerlof e Ribert Shiller (2009) disseram precisamente isso, embora vendo a origem da crise nas deformações psicológicas dos investidores individuais (e não, como faz Harvey, na sobre-acumulação de capital):

housing-slum«Os casos [de especulação financeira] – em particular a recente crise das hipotecas imobiliárias – são provocados pelo que John Maynard Keynes chamava o instinto animal [animal spirits], um optimismo ingénuo que é um misto de confiança excessiva, corrupção, boataria e ilusão monetária (outro conceito keynesiano, aplicado às noções distorcidas pelo valor nominal do dinheiro em vez do seu poder de compra). Nos fim dos anos 1990 e começo dos anos 2000, por uma ou outra razão, a ideia de que as casas e os apartamentos eram investimentos espectaculares passou a dominar a imaginação pública nos Estados Unidos e em muitos outros países também […] Já anteriormente sucedera que os preços das casas tivessem caído. Por exemplo, entre 1991 e 2006 os preços dos terrenos caíram 68% em termos reais nas principais cidades japonesas. Mas os investidores não queriam prestar atenção a estes casos […] Para constatar o efeito dos empréstimos hipotecários subprime [de elevado risco, não garantidos] no grande crescimento dos negócios imobiliários dos anos 2000, basta verificar que o valor das casas baratas subiu mais depressa do que o das casas caras. E quando, em 2006, os preços caíram, os preços das casas baratas foram os que caíram mais depressa».

A versão sul-africana deste processo ainda não terminou, porque, após o o pico que constituiu, no fim de 2004, a subida anual de 30% no índice de referência dos preços do imobiliário (Amalgamated Banks of South Africa 2009), cinco anos depois, ao longo de 2009, continuavam a observar-se descidas do preço médio anual das casas superiores a 10% por mês (os dados disponíveis são insuficientes para avaliar a diversificação social das consequências de uma crise do imobiliário que não pára de se agravar).

Para além disto, embora o declínio da arrecadação de impostos sobre empresas tivesse levado a um défice orçamental quase-recorde de 7,6% do Produto Interno Bruto previsto para 2009 e mais de 7% para 2010, a África do Sul não seguiu uma estratégia keynesiana clássica. O Estado limitou-se a dar seguimento a grandes projectos de construção já firmados anteriormente. O aumento previsto da despesa pública, baseado em promessas do partido no poder – em particular no que toca à criação de empregos (500.000 novos empregos foram prometidos, mas de facto, assistiu-se em 2009 à perda de um milhão de empregos) e à implementação de um Seguro Nacional de Saúde –, foi diferido pelo novo ministro das Finanças, Pravin Gordhan (2009), no seu discurso inaugural de Outubro de 2009 e na sua continuação de Fevereiro de 2010.

A realidade, afinal, era que os elevados lucros das empresas não eram anunciadores de um desenvolvimento económico sustentado da África do Sul, em resultado de contradições persistentes e profundamente enraizadas (Bond 2009, Republic of South Africa Department of Trade and Industry 2009, Legassick 2009, Loewald 2009):

• quanto à estabilidade, o valor do rand de facto caíu (referenciado a um cabaz de divisas comerciais) mais de 15% em termos reais em 1996, 1998, 2001, 2006 e 2008, o pior resultado em todas as economias importantes, o que, por seu lado, mostra o quanto a África do Sul se tornou vulnerável aos mercados financeiros internacionais por ter persistido, a partir de 1995, na liberalização do controlo cambial (houve 26 liberalizações de controlo cambial distintas);

• o Produto Interno Bruto da África do Sul cresceu durante os anos 2000, mas isto não leva em conta o esgotamento de recursos naturais não renováveis – se este factor, acrescido pela poluição, fosse considerado, a África do Sul teria uma taxa líquida de crescimento de riqueza por pessoa inferior a zero (pelo menos US$2 por ano), segundo o próprio Banco Mundial (World Bank 2006, 66);

• a economia da África do Sul tornou-se muito mais orientada para a obtenção de lucros nos mercados financeiros do que para a produção de produtos materiais, em parte devido às altíssimas taxas de juro reais;

• entre os sectores importantes, os que tiveram mais êxito no período 1994-2004 foram as comunicações (12,2% de crescimento anual) e o sector financeiro (7,6%), enquanto sectores de mão-de-obra intensiva como o têxtil, o calçado e as minas de ouro decresceram entre 1% e 5% por ano e, no conjunto, a parte da indústria manufactureira no Produto Interno Bruto também diminuiu;

south-africa-camp-2• o coeficiente Gini, que mede as desigualdades, subiu durante o período pós-apartheid; o Institute for Democracy in South Africa (2009, citando a Statistics South Africa) calculou uma subida de 0,56 em 1995 para 0,73 em 2006, enquanto Bhorat, van der Westhuizen e Jacobs (2009, 80) calcularam uma subida de 0,64 para 0,69, e a SA Presidency (2008, 96) indicou uma subida de 0,67 para 0,70 mais ou menos no mesmo intervalo de tempo;

• as famílias negras perderam 1,8% do seu rendimento entre 1995 e 2005, enquanto as famílias brancas ganharam 40,5% (Bhorat et al. 2009 8);

• o desemprego duplicou, atingindo no seu pico uma taxa próxima dos 40% (se se considerarem os que já desistiram de procurar emprego, de contrário seriam 25%) – mas os números oficiais subestimam o problema, porque a definição oficial de emprego inclui ocupações como “pedinte”, “caçador de animais selvagens para sustento próprio” e “cultivador de alimentos para sustento próprio”;

• acima de tudo, continua a “greve de capitais” – as empresas de grande porte furtam-se a investir –, pois a criação bruta de capital fixo oscilou entre os 15 e os 17% entre 1994 e 2004, o que mal chega para compensar o desgaste dos equipamentos;

• é certo que as empresas investiram os lucros obtidos na África do Sul, mas fizeram-no na maior parte fora do país: a partir da liberalização política e económica, a maior parte das empresas cotadas na Bolsa de Joanesburgo – Anglo American, DeBeers, Old Mutual, Investec, SA Breweries, Liberty Life, Gencor (que agora constitui o núcleo da BHP Billiton), Didata, Mondi e outras – reorientaram os seus fluxos de investimento e mesmo as suas carteiras de títulos primários para mercados bolsistas no estrangeiro, sobretudo em 2000-2001;

• a drenagem de lucros e dividendos provocada por estas empresas é uma das duas razões principais para o actual défice orçamental da África do Sul ter disparado, sendo um dos mais elevados do mundo (em meados de 2008 só era ultrapassado pelo da Nova Zelândia), e por isso representa um grande perigo em caso de instabilidade cambial, como aconteceu na Tailândia (cerca de 5%) em meados de 1997;

• a outra causa do actual défice orçamental sul-africano é uma balança de pagamentos negativa durante a maior parte desse mesmo período, o que pode se assacado ao enorme fluxo de importações que se seguiu à liberalização do comércio, que o crescimento das exportações ficou longe de compensar;

• outra razão da greve de capitais é o problema da persistente sobreprodução da indústria sdul-africana, altamente monopolizada, uma vez que a utilização da capacidade manufactureira caíu substancialmente entre os anos 1970 e o início dos anos 2000; e

• os lucros das empresas evitaram o reinvestimento em instalações, equipamentos e oficinas, preferindo ir à procura de benefícios no mercado imobiliário especulativo e na Bolsa de Joanesburgo: o preço das acções subiu 50% na primeira metade dos anos 2000 e ocorreu um boom imobiliário sem precedentes.

[*] Patrick Bond dirige o Center for Civil Society http://www.ukzn.ac.za/ccs/ na Universidade de KwaZulu-Natal em Durban e é activista de movimentos da comunidade, do ambiente e do trabalho.

Artigo inédito em inglês, tradução do Passa Palavra.

Referências

Akerlof, G. e R. Shiller (2009) How did this happen? How ‘animal spirits’ wrecked the housing market. The Chronicle, 17 Abril, http://chronicle.com/weekly/v55/i32/32b00601.htm
Amalgamated Banks of South Africa (2009) Housing price index. Johannesburg.
Bhorat, C. van der Westhuizen e T. Jacobs (2009), Income and non-income inequality in post-apartheid South Africa.’ Development Policy Research Unit Working Paper 09/138, Agosto.
Bond, P. (2009), In ‘power’ in Pretoria. New Left Review, 58, 77-88.
Citron, L. e R.Walton (2002) International comparisons of company profitability. Bank of England, London, http://www.statistics.gov.uk/articles/economic_trends/ET587_Walton.pdf
Foster, J.B. e F. Magdoff (2009) The great crash. New York: Monthly Review Press.
Harvey, D. (2009) Opening speech at the Urban Reform Tent. World Social Forum, Belem, 29 January.
Institute for Democracy in South Africa (2009) Poverty and inequality in South Africa. Powerpoint presentation, Cape Town.
Legassick, M. (2009) Notes on the South African economic crisis. Cape Town. http://www.amandla.org.za/
Loewald, C. (2009) A view of the South African economy in the global crisis, Pretoria, National Treasury.
Republic of South Africa (2008) Towards a 15-year review. Office of the Presidency, Pretoria.
Republic of South Africa Department of Trade and Industry (2009) 2009-2012 Medium term strategic framework, Pretoria.
World Bank (2006) Where is the wealth of nations? Washington, DC.

A imagem de destaque é de JRMora e foi tirada do seu site.


http://passapalavra.info/?p=22992

(c) Copyleft: É livre a reprodução para fins não comerciais, desde que o autor e a fonte sejam citados e esta nota seja incluída.