sexta-feira, 30 de abril de 2010

Social-democracia e progressismo

Social-democracia e progressismo

Os processos que acontecem no Cone Sul da América Latina costumam ser considerados, por uns quantos analistas, em sintonia com as experiências das social-democracias europeias. Apesar disso, apresentam particularidades que impedem o uso de conceitos nascidos em outros tempos para compreender outras realidades, toda a vez que os assim chamados governos progressistas respondem a processos originais num momento muito particular do capitalismo global. Por Raul Zibechi. Tradução: Passa Palavra

Depois da Segunda Guerra Mundial se generalizou, em boa parte da Europa ocidental, um modelo que implicou numa clara ruptura com relação às social-democracias das primeiras décadas do século XX, inclusive aquelas que foram catalogadas como reformistas pelos revolucionários da Terceira Internacional. Assim, os novos partidos social-democratas controlavam os grandes sindicatos, através dos quais monopolizaram a representação do mundo do trabalho. Em segundo lugar, aceitaram sem reclamações a economia de mercado e estabeleceram compromissos com as burguesias que se plasmaram no Estado de bem-estar, que beneficiava as classes que, no pré-guerra, haviam lutado entre si pela hegemonia da sociedade. Por último, um vasto aparato de controle partidário assegurava o cumprimento dos pactos sociais, correspondendo à social-democracia o controle do trabalho nas fábricas através de uma vasta burocracia partidária e sindical.

phpj7sxps-300xNa América Latina, o mais próximo a este modelo foram o varguismo no Brasil e o peronismo na Argentina, que se apoiaram, além disso, na criação de grandes empresas estatais que jogaram um papel destacado no projeto desenvolvimentista. Estes processos, tal como nas social-democracias europeias, estiveram estreitamente ligados à potência da classe trabalhadora organizada nos sindicatos, onde a base tinha certa margem de manobra com a qual as burocracias estatais e sindicais deveriam contar, sob risco de verem-se suplantadas desde baixo. Os trabalhadores tinham direitos que não estavam em questão, e a maior parte dos de baixo se referenciavam nestes direitos seja para defendê-los, seja para conquistá-los quando ainda não haviam sido reconhecidos.

O progressismo sul-americano tem uma genealogia completamente diferente. É, em todos os sentidos, filho do neoliberalismo, ou seja, do selo do capital financeiro e do enorme poder das empresas multinacionais que hoje nenhum Estado tem capacidade de controlar. As diferenças entre ambos os projetos não são menores. A cúpula do poder é compartilhada por um Estado diminuído, incapaz de dirigir a sociedade, e capitais poderosos, nos quais têm um peso considerável os fundos de pensão, co-administrados por ex-dirigentes das centrais sindicais. Isto faz com que hoje os estados apoiem os processos de concentração e centralização do capital, que busca, assim, competir em melhores condições no mercado global. É o que está fazendo o governo Lula, apoiando fusões e criando as condições para que as empresas brasileiras se convertam em grandes multinacionais.

Em segundo lugar, os progressistas já não falam de direitos universais, senão de “inclusão” e “cidadania”, que pretendem construir com base em transferências monetárias que são, na realidade, novas formas de clientelismo. Como renunciaram a qualquer reforma estrutural, que creem espantar os investidores, limitam-se a mitigar a miséria das maiorias com migalhas que não incomodam nem dificultam a acumulação e a expropriação dos bens comuns que realiza diariamente o modelo extrativista. Em terceiro lugar, como não estamos diante de um modelo produtivo, mas sim especulativo, financeiro-extrativista, não pode haver nem direitos, nem Estado social, senão uma crescente marginalização dos de baixo, que se resolve com assistencialismo e militarização dos bairros periféricos pobres.

Em resumo: aprofundamento do capitalismo, desorganização crescente da sociedade, domesticação da maior parte dos movimentos e repressão para os obstinados. Isto se completa com uma nova associação entre capital e Estado, convertido num tipo de “central de inteligência” que orienta a centralização e verticalização do capital, segundo a feliz expressão do sociólogo brasileiro e fundador do Partido dos Trabalhadores, Luiz Werneck Vianna (IHU Online, 21 de março). Pelo que conheço, é no Brasil onde se está debatendo com maior intensidade o desvio do progressismo, talvez porque o novo imperialismo brasileiro comandado por Lula foi um golpe político inesperado para a geração de fundadores do PT.

Luiz Marinho (ex-presidente da CUT) qaundo era ministro do  Trabalho

Luiz Marinho (ex-presidente da CUT) qaundo era ministro do Trabalho

De mãos dadas com os governos progressistas, e à sombra da futura quinta potência global, está nascendo um novo modelo de sociedade, diferente do que conhecíamos até agora, como é diferente o modelo chinês. O sociólogo Francisco de Oliveira, também fundador do PT, define este modelo como uma base muito ampla de pobres e, acima, uma classe formada no processo de concentração e centralização do capital (IHU Online, 22 de março); que não são, a rigor, os clássicos burgueses, ou seja, que não são somente os proprietários dos meios de produção, mas também uma ampla camada de administradores, muitos deles provenientes da esquerda e dos sindicatos. Esta é uma das novidades. A segunda é que os pobres têm agora acesso ao consumo: telefones celulares, roupa de baixa qualidade, motos e às vezes até carros comprados em prestações.

Mas o poder do trabalho é cada vez menor, diferentemente do que sucedia com a social-democracia, que, bem ou mal, buscava evitar uma deterioração do poder de seus representados para manter o seu próprio. Quando o Estado foi cooptado pelo capital centralizado e os movimentos foram convertidos em meras organizações, decalque e cópia das ONGs, relançar a luta social não será tarefa simples. Entre outras razões, porque o progressismo e seus intelectuais buscam erradicar o espírito crítico, a criatividade coletiva e o desejo de confrontação que caracteriza cada ciclo de lutas.


fonte: http://passapalavra.info/?p=22776

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segunda-feira, 26 de abril de 2010

África do Sul: protestos urbanos ao rubro (1ª Parte)

África do Sul: protestos urbanos ao rubro (1ª Parte)

«Enquanto o Mundial 2010 [Copa do Mundo] de Junho e Julho atrai as atenções para a África do Sul, o povo trabalhador e pobre desse país vai continuar os seus protestos.» Neste artigo, que o Passa Palavra publicará em quatro partes, o autor fundamenta as condições económicas e políticas em que se travam esses combates sociais. Por Patrick Bond [*]

Enquanto o Mundial 2010 [Copa do Mundo] de Junho e Julho atrai as atenções para a África do Sul, o povo trabalhador e pobre desse país vai continuar os seus protestos, a um ritmo que agora ultrapassa as mais elevadas médias por pessoa de todo o mundo. De 2005 até agora, a estimativa modesta da polícia é de uma média anual de mais de 8.000 incidentes em “actos de manifestação”, levados a cabo por multidões urbanas em cólera, sem medo do recém-empossado governo de Jacob Zuma (Freedom of Expression Institute 2009). Em parte, essa cólera é um reflexo do carácter distorcido do “crescimento” testemunhado pela África do Sul 07protestsspan600perante a adopção de políticas macroeconómicas e de microdesenvolvimento neoliberais após o fim do apartheid em 1994, e da resistência compreensível à mercadorização da vida (Polanyi 1957) e às desigualdades cada vez maiores patentes nas favelas do país. O impacto da actual crise económica global-nacional aumenta a intensidade e a extensão das contradições actuais, resultantes de causas anteriores. Os movimentos sociais e trabalhistas cujos objectivos se confinaram, respectivamente, aos níveis local e corporativo podem ter de se unir com os ambientalistas para assumirem propostas bem mais radicais neste contexto, embora a influência sindical-comunista no Congresso Nacional Africano, que está no poder, dificulte a emergência de uma frente esquerdista na sociedade civil a curto ou mesmo médio prazo.

1. Um caldeirão urbano de contradições capitalistas pós-apartheid

Um dos reflexos de um desenvolvimento extremamente desigual é que as cidades da África do Sul apresentam o maior crescimento mundial de especulação imobiliária, com um crescimento indexado à inflacção de 389% entre 1997 e 2008, mais do dobro do segundo maior caso de crescimento especulativo, o da Irlanda, com 193%, segundo The Economist de 20 de Março de 2009, e com a Espanha, a França e a Grã-Bretanha situadas também acima dos 150%. (O índice estadunidense Case-Schiller foi, no mesmo período, de apenas 66%). Apesar de no período pós-apartheidter sido construído um número muito maior de casas com ajuda do Estado para as famílias de baixo rendimento, se comparado com a última década do apartheid, segundo o Banco Mundial em 1994 as casas pós-apartheid são geralmente de metade do tamanho, construídas com materiais mais precários, situadas a maior distância dos empregos e dos centros de convivência comunitários, com acesso intermitente à água e à electricidade e com piores serviços urbanos, nomeadamente recolha insuficiente do lixo, condições sanitárias inumanas, arruamentos sujos e deficiente drenagem das águas pluviais (Bond 2005).

Na maior parte das províncias, a maioria dos incidentes em Actos de Manifestação eram “protestos relativos a serviços sociais-urbanos”, como a baixa qualidade ou o alto custo do fornecimento de água, de electricidade ou de saneamento (Freedom of Expression Institute 2009). Mesmo com a instituição dos “Serviços Básicos Gratuitos” – o fornecimento simbólico de 6.000 litros de água e 50 kWh de electricidade mensais por domicílio (com pequenos aumentos previstos para 2010) – o gráfico abrupto das tarifas de água e electricidade é um sinal de que o encarecimento do segundo bloco de consumos afectou o nível de vida, resultando em aumento de facturas por pagar, mais cortes de fornecimento (1,5 milhões por ano no caso da água, segundo dados oficiais) e menores níveis de consumo nas camadas pobres (Bond e Dugard 2008).

5124_smallÉ caso para perguntar como pôde isto acontecer numa sociedade que, na década de 1980, se podia gabar de ter um dos mais fortes movimentos sociais urbanos do mundo (Seekings 2000, Mayekiso 1996), o qual, por sua vez, deu origem a um poderoso projecto de reforma urbana no início dos anos 1990, culminando em 1994 com um programa da campanha eleitoral do Congresso Nacional Africano (ANC) – o “Programa de Reconstrução e Desenvolvimento” – que propunha várias formas de “desmercadorização” do imobiliário, em particular do financiamento à habitação [moradia]. Viu-se que essas promessas eram mais um caso de “falar à esquerda, agir à direita”, uma vez que, mesmo com um ministro da Habitação – Joe Slovo – que era presidente do Partido Comunista Sul-Africano (pouco antes da sua morte por cancro em 1995), o Livro Branco da Habitação, de Dezembro de 1994, definia como tarefa prioritária o restabelecimento do «pressuposto fundamental necessário para atrair o investimento [privado], a saber, que a habitação tem de ser disponibilizada no âmbito de um mercado normalizado». Na prática, isto implicou enormes concessões aos bancos e uma tendência para a comercialização dos serviços municipais (Bond 2000).

Os culpados, neste caso, não foram só o moribundo Slovo e o seu director-geral, Billy Cobbett (que depois dirigiria no Banco Mundial a União das Cidades), pois os dados estavam lançados com a adopção do neoliberalismo no início dos anos 1990 pelo antigo regime de apartheid. Esse período foi marcado por numerosas mudanças na política dirigista dos anos 1980, induzida pelas sanções; essas mudanças foram levadas a cabo pelos “econocratas” verligte[esclarecidos] afrikaners de Pretória quando, com as negociações de 1990-94, diminuiu a influência dos “securocratas” e aumentou o poder dos meios empresariais brancos anglófonos. Nesse período ocorreu a mais longa depressão da África do Sul (1989-93), o que levou o ANC de Nelson Mandela a ter de desmobilizar periodicamente os protestos, até que, no final de 1993, foram dados os últimos retoques na “transição da elite” para a democracia (Bond 2005).

south-africa-shack-dwellers-movement-no-land-no-house-no-vote-111405-by-christopher-david-lier3Entretanto, foram postas de lado as tradicionais promessas do ANC de nacionalizar os bancos, as minas e o capital monopolista; Mandela concordou em pagar os 25 mil milhões [25 bilhões] da dívida externa herdada do apartheid; a Constituição provisória garantiu a independência do banco central; a África do Sul juntou-se ao GATT (Acordo Geral sobre Taxas Aduaneiras e Comércio) em condições bem desvantajosas; e o Fundo Monetário Internacional concedeu um empréstimo de 850 milhões de dólares com as condições habituais do Consenso de Washington. Logo a seguir às primeiras eleições livres e democráticas, ganhas esmagadoramente pelo ANC, as privatizações começaram a todo o vapor, a liberalização financeira traduziu-se no relaxamento do controlo cambial e as taxas de juro subiram para níveis nunca atingidos (muitas vezes na ordem dos dois algarismos, descontada a inflação). Em 1996 foi adoptada oficialmente uma política macroeconómica neoliberal e a partir de 1998-2001 o governo do ANC autorizou as maiores companhias sul-africanas a deslocarem para Londres as suas sedes financeiras e as suas carteiras de títulos (Bond 2005).

A base de sustentação da posterior bolha financeira e patrimonial teve duas origens: os controlos cambiais residuais que limitam os investidores institucionais a 15% de investimentos externos e que ainda restringem as transferências de valores para o exterior pelas elites locais; e um falso sentimento de confiança na gestão macroeconómica. Afirma-se repetidamente que com o ministro das Finanças Trevor Manuel a “estabilidade macroeconómica” foi alcançada pela primeira vez desde o fim do apartheid em 1994. No entanto, nenhum outro mercado emergente teve, nesse período, tantas crises de liquidez (15% em termos nominais): a África do Sul sofreu estas crises em 1996, 1998, 2001, 2006 e 2008. No começo de 2009, The Economist de 25 de Fevereiro classificava a África do Sul como o mais “arriscado” entre 17 mercados emergentes, em boa medida porque o poder empresarial branco gerara um enorme défice da balança de pagamentos com as transferências de lucros e dividendos para as suas sedes financeiras de Londres e de Melbourne.

Além disso, o crédito ao consumo atraíra as importações do leste da Ásia a uma taxa superior à das exportações sul-africanas, mesmo durante o grande aumento dos preços no comércio internacional em 2002-2008. Sem dúvida que o principal responsável pelos 5% de crescimento anual do Produto Interno Bruto registado durante a maior parte da década de 2000 foi o crescimento do crédito ao consumo, com a percentagem de individamento dos rendimentos familiares disparando de 50% em 2005 para 80% em 2008, quando, ao mesmo tempo, o crédito geral bancário crescia de 100% para 135% do Produto Interno Bruto. Mas este endividamento começou a tornar-se um enorme problema, com as dívidas inadimplentes a aumentarem, desde 2007, 80% nos cartões de crétido e 100% nas hipotecas, e a percentagem das quebras totais de reembolsos de empréstimos [cessações de pagamentos] no rendimento bancários líquidos a subir de 30% no início de 2008 para 55% no fim desse mesmo ano (SARB 2009).

[*] Patrick Bond dirige o Center for Civil Society http://www.ukzn.ac.za/ccs/ na Universidade de KwaZulu-Natal em Durban e é activista de movimentos da comunidade, do ambiente e do trabalho.

Artigo inédito em inglês, tradução do Passa Palavra.

Referências

Bond, P. (2000) Cities of gold, townships of coal. Africa World Press, Trenton.
Bond, P. (2005) Elite transition. Pluto Press, London and University of KwaZulu-Natal Press, Pietermaritzburg.
Bond, P. e J. Dugard (2008) The case of Johannesburg water: What really happened at the pre-paid ‘Parish pump’.Law, Democracy and Development, 12, 1, 1-28.
Freedom of Expression Institute and Centre for Sociological Research (2009), National trends around protest action: Mapping protest action in South Africa, Johannesburg.
Mayekiso, M. (1996) Townships politics. Monthly Review, New York.
Polanyi, K. (1957) The great transformation. Boston: Beacon.
Seekings, J. (2000) UDF: A history of the United Democratic Front in South Africa, 1983-1991. Ravan: Johannesburg.
South African Reserve Bank (2009) Financial stability review. Pretoria.


fonte: http://passapalavra.info/?p=22660

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sexta-feira, 23 de abril de 2010

Libertação de Cesare Battisti: dilemas e problemas

Libertação de Cesare Battisti: dilemas e problemas

Será que só libertaremos Cesare Battisti a custo de renegarmos tudo aquilo por que ele lutou? Mas nós queremos a liberdade para um Cesare vitorioso, não para um Cesare derrotado. Então, onde estão os movimentos sociais? Por Passa Palavra

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«Liberdade para Cesare Battisti»

O debate Cesare Battisti, três anos de prisão política, que realizámos e transmitimos ao vivo no dia 15 de Abril (veja aqui), levantou várias questões, não só as que foram expostas pelos oradores na mesa e as que foram colocadas na sala e pelos espectadores na internet, mas ainda as que alguns de nós, do colectivo do Passa Palavra, pensámos e discutimos em seguida.

É urgente libertar Cesare Battisti. E, na situação jurídica a que se chegou, sobretudo depois da publicação em 16 de Abril do acórdão do Supremo Tribunal Federal, quem pode libertar Battisti é o presidente Lula. Assim, todos os problemas parecem resumir-se a um só: como influir na decisão do presidente?

Colocada a questão deste modo, a resposta parece óbvia. É necessário efectuar pressões nos bastidores do governo e para isto deve obter-se o apoio de personagens influentes. Foi neste sentido que se exprimiu a mesa no debate. E, goste-se ou não se goste, esta conclusão é incontroversa para quem tenha realmente o objectivo de alcançar a libertação de Cesare Battisti.

A conclusão é incontroversa mas não se esgota por si só, porque no mercado da política, tal como no mercado de bens e serviços, nada se dá, tudo se troca, e quem obtém de um lado deve fornecer por outro. A possível libertação de Cesare, sobretudo num ano eleitoral, é contabilizada em termos de votos. «O caso de Battisti está se tornando moeda de troca eleitoral, como pôde-se ver no debate», salientou Iraldo Matias num comentário on line. «O compromisso eleitoral sempre cria essas vias corporativistas de apoio a certos candidatos, em troca de “ajuda” a esta ou aquela causa particular. Nunca se ultrapassa essas demandas imediatas e fragmentárias. A solidariedade a um militante vale quantos votos?» A questão é pertinente. Lula vai libertar Cesare e este acto pode fazer com que Dilma Rousseff perca quantos eleitores? E quantos eleitores pode ela ganhar com a libertação de Cesare?

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«Pela Libertação de Cesare Battisti»

Mas a questão não termina aqui. Cesare em liberdade não se reduz a um peão no xadrez eleitoral. O dilema é ainda mais grave porque o presidente Lula não só não é uma pessoa de esquerda como − muito pior − é uma pessoa que no passado foi de esquerda e agora deixou de o ser.

Assim, já não é só de Cesare Battisti que se trata, mas do fortalecimento de mecanismos políticos contra os quais ele lutou enquanto militante dos Proletari Armati per il Comunismo, na Itália dos anos setenta. «[…] este problema que atingiu a Europa inteira na perseguição aos partidos políticos e movimentos populares», como Douglas Anfra destacou nos comentários on line, «resultou na tensão que conduziu à luta armada contra os assassinatos de militantes». Foi contra aqueles mecanismos políticos que os mais velhos de nós lutaram também nos mesmos anos em outros lugares. É contra eles que todos nós lutamos hoje. Será que só libertaremos Cesare Battisti a custo de renegarmos tudo aquilo por que ele lutou? Mas nós queremos a liberdade para um Cesare vitorioso, não para um Cesare derrotado. Parece-nos indispensável que a campanha para libertar Cesare Battisti sirva também para prolongar − na época actual e com os meios de hoje − o combate que Cesare e os seus companheiros de há trinta ou quarenta anos atrás travaram contra a exploração capitalista.

Para que a libertação de Cesare corresponda a uma vitória de Cesare, a uma vitória do que ele representa, seria necessário que as pressões sobre o presidente Lula não se devessem apenas a personalidades bem instaladas nos bastidores do governo. Seria necessário que os movimentos sociais, que mobilizam em todo o Brasil muitas centenas de milhares de trabalhadores, tivessem dito a sua palavra acerca do assunto. Talvez seja muito pedir que tivessem feito alguma coisa. Mas pelo menos que tivessem dito alguma coisa. Num dos comentários ao debate escreveu Otto: «Me parece que a questão central é essa passividade dos movimentos sociais em relação ao caso Cesare. Será que não caiu a ficha?» «Realmente, o que me impressiona», insistiu José noutro comentário, «temos movimentos no Brasil que promovem ocupações, greves, oposições sindicais. Cadê eles? Aonde estão?» O apoio a Cesare, como observou alguém da assistência, não contou com eles.

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«Libertemos os Anos 70. Liberdade para Cesare Battisti»

Será que a campanha de criminalização dos movimentos sociais os está a tornar bem comportados, para mostrarem na prática que respeitam as regras do jogo da democracia capitalista? Mas é precisamente isto que os governantes e os patrões querem, fazerem-nos obedecer às regras que o capitalismo dita. Se for isto que está a suceder, os movimentos sociais perdem duplamente. Perdem, primeiro, porque recuam quando podiam atacar os pontos frágeis do inimigo. Perdem, depois, porque recuam para um terreno que não é aquele onde os movimentos sociais têm força, mas para o terreno das instituições capitalistas. Será que a situação está tão má que justifique o comentário feito on line por Mané? «Me parece que não é exatamente uma apatia. O segredo reside no seguinte: a maioria dos movimentos estão institucionalizados, e jogam suas fichas na via parlamentar. Daí dá para entender o seu silêncio e passividade. É a miséria da esquerda!». Será necessária «a miséria da esquerda» para conseguir a libertação de Cesare Battisti?

Iraldo Matias, no seu comentário ao debate, acertou no alvo ao escrever: «percebi que o argumento maior a favor de Battisti é sua suposta “inocência”. Se ele não for “inocente”, deixa de ser merecedor da solidariedade da esquerda?? Ou apenas a esquerda “light” é politicamente defensável, diante das atrocidades que o Estado comete, principalmente nos tempos do fascismo italiano?»

Nós faremos tudo o que for necessário fazer − o quer que seja − que possa contribuir para a libertação de Cesare Battisti. E continuaremos a fazer tudo o que for conveniente e oportuno para dar continuidade aos desejos de uma vida diferente, que levaram Cesare à prisão.

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terça-feira, 13 de abril de 2010

Manifesto Contra a Anistia aos Torturadores!

ASSOCIAÇÃO JUÍZES PARA A DEMOCRACIA
Rua Maria Paula, 36 - 11º andar - conj. 11-B - tel./ FAX (11) 3105-3611 - tel. (11) 3242-8018
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juizes@ajd.org.br

Olá

Subscritores(as) do Manifesto Contra a Anistia aos Torturadores!

Informamos que o Supremo Tribunal Federal marcou o julgamento do processo (ADPF 153) que requer que o STF declare que a Lei de Anistia não se aplica aos crimes comuns praticados pelos agentes da repressão contra os seus opositores políticos, durante o regime militar.

O Manifesto já recebeu 15.800 assinaturas

Se você conhece alguém que possa aderir, encaminhe link para possibilitar o conhecimento do apelo, os subscritores e outras informações

http://www.ajd.org.br/anistia_port.php

Os crimes praticados durante a ditadura, como tortura, assassinato, desaparecimento forçado, são crimes contra a humanidade e nesta medida não podem ser anistiados .

A decisão do STF estabelecerá um novo marco de democracia para o Brasil.

O julgamento será:

Dia: 14/04/2010

Hora: ás 14 horas

Local: Supremo Tribunal Federal, em Brasília,

O julgamento é público.

Compareça!!!

Comitê Contra a Anistia aos Torturadores.


domingo, 11 de abril de 2010

Crise e oportunismo: o internacionalismo anticapitalista em tempos de Fórum Social Mundial (7)

Crise e oportunismo: o internacionalismo anticapitalista em tempos de Fórum Social Mundial (7)

Num balanço final, o FSM revela-se um freio às lutas sociais - mas, ao mesmo tempo, um poderoso instrumento de mobilização a ser aproveitado. Por Manolo.

"St. Martins Hall, Londres. 28 de setembro de 1864. Fundação da Associação Internacional dos Trabalhadores." (Arquivo Marxista na Internet)

As avaliações dos dez anos de Fórum Social Mundial, geralmente de caráter conjuntural e ligadas a estratégias políticas de qualquer dos campos geopolíticos descritos até o momento, oscilam entre a continuidade de seu modelo, com poucas alterações, e sua transformação em algo como uma “nova Internacional” – ou seja, num espaço de articulação internacional de onde sairiam propostas de ação, programas etc.

De um lado, a recorrente responsabilização das ONGs por problemas sobre os quais dificilmente teriam alguma influência[1] ou – em versão atualizada do velho chavão da “traição das direções” – a acusação de haver hegemonizado a coordenação do Fórum e dificultado a livre atuação dos movimentos sociais[2]; a oposição entre uma visão “particularista autonomista” destas mesmas ONGs e “outra totalizante e mais contextualizada, própria das organizações políticas”[3]; a defesa da criação imediata de novos instrumentos “para determinar prioridades em termos de demandas, objetivos”, “um calendário comum de ação, um elemento de estratégia comum”, mesmo em paralelo ao FSM[4]; e, de forma mais moderada, a análise do surgimento de um “pós-altermundismo”, no qual governos que implementam programas contrários ao neoliberalismo – tais como os de Evo Morales (Bolívia), Rafael Correa (Equador) e Hugo Chávez (Venezuela) – teriam colocado o movimento “altermundista” “contra o muro” e o levado a buscar “novos espaços e formas de articulação entre movimentos sociais, forças políticas e governos conduzindo combates comuns”[5]. De outro, uma defesa da renovação do atual modelo do Fórum com base na proliferação de edições locais, temáticas, nacionais e regionais, para capilarizá-lo; na renovação de seus alvos – do neoliberalismo para a mudança climática; e no ressurgimento do ativismo “altermundialista” visto na Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas, realizada em Copenhague em dezembro de 2009 e marcada pela retomada das “ações globais”[6].

Só quem segue a trilha pode ver o encontro dos caminhos

Bifurcação ou confluência?

Qualquer dos dois campos corresponde aos interesses de certos tipos de burocrata, em diversos níveis: desde os intelectuais do jet-set da esquerda internacional ainda presos ao “estatocentrismo” político característico da herança bolchevique até os funcionários de carreira de qualquer ONG internacional; desde o jovem que modela sua militância em função de algum dos governos “populares” mundo afora – com seus correspondentes projetos de poder, que não têm resultado em outra coisa além do aprofundamento, a partir da esquerda, das novas formas de governança difusa que “representam um ataque em profundidade aos espaços de autonomia conquistados pelos movimentos”[7] – até o jovem militante que, para sustentar determinado nível de vida sem se deixar explorar numa empresa qualquer, cria algum “projeto” em “sinergia” com algum “parceiro” que “aporta recursos” para promover a “cidadania ativa” e a “defesa e promoção dos direitos”, tendo como “desafio” a “incorporação da cidadania”[8].

Esta dicotomia, além de falsa, é pouco oportuna. O Fórum Social Mundial se encontra no meio da disputa geopolítica analisada na parte anterior deste ensaio. Se relermos a história da criação do FSM segundo este quadro analítico, as coisas mudam de figura. Diante do crescimento das lutas anticapitalistas internacionais e do esboço do surgimento de um sujeito político internacional que já não era apenas classe trabalhadora[9], capaz de inserir no quadro geopolítico global outros sujeitos além daqueles que já compartilhavam entre si o poder global, um grupo de gestores de ONGs com atuação no país com o 10º PIB global – o Brasil – convoca gestores de outra ONG com atuação disseminada por toda a Europa, mas sediada no país com o 5º PIB global – a França – para criar uma reunião global de movimentos sociais e ONGs em contraposição a uma reunião mundial gestores de Estados e de empresas (o Fórum Econômico Mundial).

Um bom sistema de arrefecimento

Um bom sistema de arrefecimento

Daí o combate ao “espírito de Seattle”, seu apego a uma versão aburguesada da não-violência[10], a construção de um campo “anti-neoliberal” em contraposição a um campo propriamente anticapitalista[11] e as inúmeras tentativas de restrição dos temas à mera formulação de “alternativas”; a intenção básica era romper a hegemonia do Fórum Econômico Mundial como espaço de formulação de políticas para o mundo, mas fazê-lo em prol de “alternativas” a serem construídas ainda neste mundo pelas ONGs e seus “parceiros”. O “outro mundo possível” é aquele onde as ONGs internacionais são legitimadas como sujeitos políticos internacionais cujas propostas políticas são adotadas como norte para a produção econômica e para a reprodução da vida social. Nada mais, nada menos. Além disso, o foco na crítica ao “neoliberalismo”, e não ao capitalismo, sem adjetivos, permite concentrar no mesmo pólo tanto os intelectuais de esquerda afeitos à canalização das lutas populares para a conquista do poder de Estado quanto os funcionários de carreira de ONGs que têm no Estado um potencial financiador; para eles, trata-se de uma modificação de rumos dentro do próprio capitalismo em direção à sua “humanização”, ou, quando muito, a defesa da reedição do capitalismo de Estado que vem sendo construída na América Latina.

Explicando o sistema de frenagem

Explicando o circuito de freio

O “núcleo histórico” de oito fundadores do FSM criou um instrumento de refreamento das lutas anticapitalistas em nível internacional. Eric Toussaint, presidente do Comitê para a Anulação da Dívida do Terceiro Mundo (CADTM) da Bélgica e integrante do Conselho Internacional do Fórum Social Mundial, comenta, assustado, após o Seminário “10 anos depois”: “organizações como o Ibase, e personalidades como Chico Whitaker [da Comissão Brasileira de Justiça e Paz] e Oded Grajew [da CIVES – Associação Brasileira de Empresários pela Cidadania] se opõem à evolução rumo a um instrumento de luta. A coisa que me preocupa é chegar em Porto Alegre e ver que o seminário ‘10 anos depois’ é patrocinado por Petrobras, Caixa, Banco do Brasil, Itaipu Binacional, e com forte presença de governos. Isso obviamente me preocupa”[12]. Aquilo que já estava apontado desde o início do Fórum agora aparece como um problema incontornável, e as tensões internas entre setores responsáveis pela criação e consolidação do Fórum Social Mundial transparecem nas avaliações destes dez anos de evento. Os mesmos que hoje reclamam da sua “intranscendência”[13] – ou seja, de sua recusa a dialogar com governos, mesmo os ditos “populares”, ponto sobre o qual convergem desde as ONGs mais integradas até os movimentos mais radicalmente anti-sistêmicos – foram alguns dos maiores entusiastas de sua criação[14], e silenciaram quando organizadores deste mesmo Fórum insistiram no refreamento das lutas em favor de um evento mais “propositivo”.

Alguém aí pode dar uma força?

Xiii... Alguém aí pode dar uma força?

Qualquer tentativa simplista de avaliação enquadrada em algum destes dois campos de opinião deixa escorrer por entre os dedos o essencial. Não é no Fórum Social Mundial ou em qualquer espaço semelhante que se fortalecem as lutas contra o capitalismo; tais espaços resultam desta luta, não são a luta. Comparecem a estes eventos tanto uma camarilha de burocratas – estatais ou de ONGs – quanto militantes de base que hajam conseguido algum meio de bancar seu deslocamento, hospedagem e demais despesas de viagem. A articulação internacional das lutas locais é necessária, como demonstra a experiência da Ação Global dos Povos; o problema não está aí, mas sim no aproveitamento destas mesmas lutas para reforçar um ou outro setor do campo hegemônico global – empresas transnacionais, ONGs internacionais, blocos econômicos regionais, máfias e organizações semelhantes, organismos multilaterais internacionais – em favor de suas lutas contra os demais.

Mas nem tudo é “negatividade” neste processo. A proliferação de edições do Fórum Social Mundial em nível local, nacional e regional, já em execução, contribui para alavancar articulações inexistentes entre as lutas e para fortalecer outras previamente existentes. A edição de 2004, em Mumbai, o demonstra. O Fórum, com sua aura “cidadanista”, é a justificativa perfeita para angariar fundos para sua realização, para o deslocamento até ele etc.; tendo isto em mente, movimentos anticapitalistas o aproveitam para realizar suas próprias plenárias e eventos. Se isto os isola dos demais movimentos que participam do evento “oficial”, trata-se de mais uma “artimanha” de recusa à cooptação, assim como a recusa ao diálogo com governos “populares”.

Em tempos de um Fórum Social Mundial que se presta a debater Crise e oportunidades, o anticapitalismo internacionalista, em momento de crise, foi capturado na armadilha oportunista de um setor que desejava reforçar sua legitimidade como global player. Sua reconstrução, entretanto, vem sendo sussurrada nas pequenas oficinas dos Fóruns, na retomada das lutas internacionalizadas após a conferência de Copenhaguen, na apropriação que os movimentos sociais de base fazem do slogan “um outro mundo é possível”. Quem andar pelas ruas, verá.

(A série termina aqui. Leia as partes anteriores: [1] - [2] - [3] - [4] - [5] - [6])

Notas

[1]: Emir Sader. “Fórum Social: o risco da intranscendência”. Agência Carta Maior, 20.01.2006, http://www.cartamaior.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=2839.

[2]: Emir Sader. “Balanço do Fórum e do outro mundo possível”. Agência Carta Maior, 04.02.2009, http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=15599.

[3]: Gilberto Maringoni. “A forma-Fórum se esgotou?”. Agência Carta Maior, 31.01.2010, http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=16377.

[4]: Igor Ojeda. “Para além do Fórum Social Mundial, a Quinta Internacional” (entrevista a Eric Toussaint). Brasil de Fato, 28.01.2010, disponível em http://www.brasildefato.com.br/v01/agencia/entrevistas/para-alem-do-forum-social-mundial-a-quinta-internacional/view.

[5]: Douglas Estevam. “O pós-altermundismo e os desafios das lutas globais” (entrevista a Bernard Cassen). Revista Fórum, nº 70, jan. 2009, http://www.revistaforum.com.br/sitefinal/EdicaoNoticiaIntegra.asp?id_artigo=5876.

[6]: Gabriel Brito e Valéria Nader. “Fórum é o laboratório para se construir outro paradigma de civilização (entrevista a José Correia)”. Correio da Cidadania, 06.02.2010, http://www.correiocidadania.com.br/content/view/4301/9/.

[7]: Raúl Zibechi. Territorios em resistencia: cartografia politica de las periferias latinoamericanas. 2ª ed. Buenos Aires: Lavaca, set. 2009, p. 125.

[8]: O sarcasmo é inspirado pelo excelente artigo de Paulo Eduardo Arantes (“Esquerda e direita no espelho das ONGs”. Em Zero à esquerda. São Paulo: Conrad, 2004).

[9]: É a polêmica tese de Michael Hardt e Antonio Negri em Multidão: guerra e democracia na era do Império. Rio de Janeiro: Record, 2005. Embora ambos considerem este sujeito como já dado no período entre 2001 e 2003, considero que este novo sujeito estava – como ainda está – em processo de construção a partir da ação conjugada daqueles mesmos que costumávamos chamar apenas de trabalhadores contra um sem-número de aspectos da exploração e das opressões sob o capitalismo.

[10]: Há vários significados para a “não-violência” além do pacifismo vago defendido pelos criadores do Fórum Social Mundial, como deixa transparecer o diálogo que resultou na retirada desta expressão do 4º ponto de partida da Ação Global dos Povos: “a palavra não-violência tem significados diferentes na Índia (onde ela significa respeito pela vida) e no Ocidente (onde ela significa também respeito à propriedade privada). Este simples mal-entendido provou ser completamente incorrigível na mídia e, na verdade, no próprio movimento. O movimento norte-americano percebeu que o termo poderia ser mal compreendido, o que não permitiria a diversidade de táticas e mesmo contribuiria para a criminalização do movimento. As organizações latino-americanas também colocaram objeções ao termo em sua conferência regional e argumentaram que um ‘chamado à desobediência civil’ era o bastante, ao passo que o termo não-violência parecia implicar uma rejeição de uma enorme parte da história de resistência desses povos e, como tal, foi impropriamente entendido por grande porção do movimento. Este ponto de vista foi particularmente colocado pelos movimentos do Equador e da Bolívia, os quais têm praticado desobediência civil com centenas de milhares de pessoas nos últimos anos, embora eles joguem pedras quando o exército mata com balas (o que regularmente acontece). De fato, sempre houve uma compreensão da AGP que não-violência seria entendido como um princípio/guia ou um ideal que sempre deveria ser compreendido de acordo com situações culturais e políticas específicas. Ações que são perfeitamente legítimas em um contexto podem ser desnecessariamente violentas (contribuindo para brutalizar as relações sociais) em outro e vice-versa. De modo mais claro, o exército zapatista (EZLN) foi convidado para estar na primeira geração de convocantes. A expressão finalmente encontrada pareceu respeitar esta instância fundamental, visto que ela explicitamente propõe MAXIMIZAR o respeito à vida”. (Ação Global dos Povos. Pontos de partida. Cochabamba, 2001. Disponível em http://www.nadir.org/nadir/initiativ/agp/pt/hallmpt.htm).

[11]: “Há, de fato, duas posições primárias na resposta às atuais forças dominantes da globalização: ou se trabalha para reforçar a soberania dos Estados-nação como barreira defensiva contra o controle do capital estrangeiro e global, ou se busca uma alternativa não-nacional à presente forma de globalização que é igualmente global. A primeira coloca o neoliberalismo como categoria analítica primária, vendo o inimigo como a atividade capitalista global irrestrita com poucos controles estatais; a segunda é mais claramente posicionada contra o próprio capital, quer seja ele regulado pelo Estado ou não. A primeira pode com justiça ser chamada de posição anti-globalização, até o ponto em que as soberanias nacionais, mesmo se ligadas pela solidariedade internacional, servem para limitar e regular as forças da globalização capitalista. A libertação nacional, desta maneira, permanece para esta posição como a meta final, como foi para as antigas lutas anticoloniais e anti-imperialistas. A segunda, em contraste, opõe-se a qualquer soluções nacionais e busca, ao invés, uma globalização democrática”. (Michael Hardt. “Porto Alegre: today’s Bandung?”. New Left Review, n.º 14, mar.-abr. 2000, p. 115).

[12]: Igor Ojeda. “Para além do Fórum Social Mundial, a Quinta Internacional” (entrevista a Eric Toussaint). Brasil de Fato, 28.01.2010, disponível em http://www.brasildefato.com.br/v01/agencia/entrevistas/para-alem-do-forum-social-mundial-a-quinta-internacional/view.

[13]: Emir Sader. “Fórum Social: o risco da intranscendência”. Agência Carta Maior, 20.01.2006, http://www.cartamaior.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=2839.

[14]: “O FSM foi uma vitória moral, porque ficou claro que os grandes temas da humanidade são discutidos em Porto Alegre, e não em Davos. Foi ainda uma vitória ideológica, porque ajudou a deslocar os grandes debates para a ótica social, articulando o econômico, o cultural e o político contra o economicismo. (…) O certo é que Porto Alegre representou um caminho sem volta na luta por um mundo novo. Temos grandes responsabilidades, como a elaboração de procedimentos democráticos de construção dos consensos. Procedimentos que recolham a diversidade e a multiplicidade que foram as marcas do FSM. Ficou claro que as formas de organização e de direção existentes até aqui – de partidos, de movimentos sociais ou de ONGs – se revelaram superadas pelos elementos novos e multitudinários. A organização de Porto Alegre 2002 já começou e está na mão de todos os que se identificam com os ideais defendidos pelo FSM”. Emir Sader. “Porto Alegre: o velho e o novo”. Folha de São Paulo, seção “Tendências/Debates”, 16.01.2001.

CESARE BATTISTI TRÊS ANOS DE PRISÃO POLÍTICA NO BRASIL!







CESARE BATTISTI
TRÊS ANOS DE PRISÃO POLÍTICA NO BRASIL!

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terça-feira, 6 de abril de 2010

A política além do voto

A política além do voto

Em época de eleição tornam-se frequentes mensagens e argumentos que enfatizam a culpa dos problemas do país nos cidadãos, que não sabem eleger. Gostaria de fazer algumas objeções a este tipo de retórica. Por Luiz Antonio Guerra

voto1É preciso ser franco: um voto, um único voto, não muda nada, principalmente se tivermos em mente que estamos tratando da democracia representativa tal como é a brasileira, com todas as suas falhas e contando com 130 milhões de eleitores [1]. O poder de mudança do voto a nível macro é irrisório, mesmo se um indivíduo convencer todo o seu círculo social a votar em um único candidato. É praticamente nulo o poder individual de influenciar através do voto em alguma decisão do governo, de determinar alguma política pública ou mesmo de impedir um governante corrupto de exercer seu cargo. É muito maior tal capacidade ao exercer um cargo público, participar de alguma organização social, recorrer a meios como lobby ou marketing.

O que quero deixar claro é a armadilha que se pode cair ao dar tanta ênfase ao método eleitoral, ao delegar tamanha importância a um dia apenas de outubro a cada quatro anos – e descansar os outros 1460 dias com a sensação de missão cumprida. O voto, entretanto, tem uma função fundamental: o poder simbólico de legitimar esta democracia representativa. Cada indivíduo que confirma seu voto na urna está confirmando seu credo no sistema político brasileiro, ainda que de maneira crítica e não conivente com as falhas sistêmicas e com os casos de corrupção. Mais do que eleger um candidato, cada cidadão que vota exprime sua vontade de que seja governado por tal candidato e que aceitará o vencedor de acordo com as regras do jogo, seja ele quem for.

Dar tanta importância aos votos do povo brasileiro, tratando esse como despreparado para o exercício da democracia, pode – repito – esconder uma grande armadilha. Afinal, quem é mais despreparado para o exercício democrático: o povo ou as elites políticas? Quem são os responsáveis pelas políticas ineficientes, mau gasto do dinheiro público, prostituição partidária, tráfico de influência, nepotismo, casos de corrupção sem fim? Quem é que a cada eleição investe pesado em marketing político?

Considerando o baixo poder de influência individual através do voto e somando ainda a conivência do judiciário, alguns setores da população recorrem a meios não formais de participação política: manifestações de rua, ocupação de terras e órgãos públicos, intervenções artísticas, boicote, greves e outros meios de ação direta. Entretanto, os mesmos críticos que acusam o povo de não estar preparado para exercer a democracia condenam tais tipos de participação política. Esses casos de manifestações radicais são sistematicamente estigmatizados pela mídia dominante e tratados de forma repressora pelo Estado. Ainda assim, podemos perceber o quão essenciais foram essas formas de participação política para as conquistas de assentamentos do MST ou para a retirada de políticos envolvidos em esquemas de corrupção, como fora recentemente o caso de Arruda e Paulo Otávio no Distrito Federal.

Um dos mais reconhecidos cientistas políticos do país, José Murilo de Carvalho [2], ao se deparar com tal problemática, tendo como urnaprincipal preocupação a formação da cidadania no Brasil, questionava se culpar o povo eleitor e condenar métodos mais radicais de participação política não é consequência antes do tipo de povo ou de cidadão que se busca. Como a democracia é um sistema político importado de outros países economicamente mais desenvolvidos, idealiza-se tal forma de governo e cidadãos mais cultos e submissos às leis. Outra vez insisto que o comportamento do cidadão é um reflexo da própria democracia formal que temos. Em outras palavras, como respeitar leis com as quais não se concorda, frutos de uma política podre num país tão desigual?

Ainda que não dê tamanha importância ao mecanismo eleitoral, não é meu intuito isentar a população de culpa. Tenho a plena convicção de que não há como construir uma sociedade sólida e saudável com níveis de educação tão baixos. Entretanto, outra vez voltamos o alvo às elites políticas, ou não é competência do Estado garantir educação de qualidade para todos os brasileiros? A quem interessa um povo tão desinteressado? Mais que um analfabetismo eleitoral, o problema político está na escassa participação de toda a população (sem excluir nenhuma classe social) no período extra-eleitoral. É preciso entender os processo sociais, reconhecer que a política é a administração da vida coletiva e, portanto, da própria vida e da vida dos outros. Entender que a política vai muito mais além do voto é assumir, verdadeiramente, o título de cidadão – e não apenas o título de eleitor.

Notas:

[1] http://tse.gov.br - Estatísticas
[2] CARVALHO, J. M. Os Bestializados: O Rio de Janeiro e a República que não foi. Companhia das Letras, São Paulo, 1989


fonte: http://passapalavra.info/?p=21334

(c) Copyleft: É livre a reprodução para fins não comerciais, desde que o autor e a fonte sejam citados e esta nota seja incluída.

segunda-feira, 5 de abril de 2010

Crise e oportunismo: o internacionalismo anticapitalista em tempos de Fórum Social Mundial (6)

Crise e oportunismo: o internacionalismo anticapitalista em tempos de Fórum Social Mundial (6)


Nesta parte, analisaremos o braço esquerdo do bloco dominante na geopolítica global - as ONGs internacionais. Por Manolo.

O sistema ONU foi o primeiro a legitimar as ONGs internacionais como sujeitos geopolíticos globais

As empresas transnacionais, analisadas na parte anterior deste ensaio seriado, não são o único sujeito político cuja ação, na atual conjuntura, está livre de barreiras nacionais; há também as organizações não-governamentais internacionais. Entidades semelhantes ao que hoje chamamos de ONG existiram anteriormente sob outras formas e nomes para viabilizar diversas formas de solidariedade e filantropia[1], mas tais entidades só foram chamadas de “não-governamentais” a partir de 1945, quando os países fundadores da ONU resolveram dar-lhes status consultivo junto ao Conselho Econômico e Social da entidade[2]; das 41 organizações com tal status em 1946, chegou-se a cerca de 700 em 1992 e a 3.052 em 2009[3]. Estas ONGs levaram a ONU a criar um Serviço de Ligação Não-Governamental (Non-Governmental Liaison Service – NGLS) para “promover e desenvolver relações construtivas entre as Nações Unidas e as organizações da sociedade civil”[4].

Robert McNamara (1916-2009): qual a diferença entre combater  vietcongues e combater a pobreza?

Robert McNamara (1916-2009): ponto de contato entre o combate aos vietcongues e o combate à pobreza

Desde a gestão de Robert McNamara em sua presidência entre 1968 e 1981, o Banco Mundial mudou seu foco de atuação para o combate à “pobreza absoluta”, materializando esta política a partir de 1973; “tratava-se de uma estratégia distributiva de tipo incremental, na medida em que se limitava a distribuir parte do crescimento econômico (rendas e ativos novos) mediante projetos e programas financiados através de captação de impostos e endividamento externo”[5]. Ainda em 1973 o Banco passou a conceder status consultivo a ONGs, bastante semelhante ao da ONU; a partir de 1980, o Banco faz das ONGs não apenas consultoras, mas também executoras de projetos financiados pelo Banco.

As ONGs internacionais costumam agir de duas maneiras: presencialmente, através da execução direta de alguma das atividades já listadas; à distância, através da abertura de escritórios nos países-chave de regiões onde tenham interesse em atuar, coordenados geralmente por pessoas nascidas ou naturalizadas nos países de origem destas mesmas ONGs. Nos territórios sob responsabilidade, estes escritórios coordenam a ação de seus inúmeros “parceiros” subcontratados, segundo orientações estratégicas definidas em documentos de política – geralmente de circulação restrita – e segundo métodos de gestão tipicamente empresariais (SWOT analysis, marco lógico, work breakdown structure, gráficos de Gantt, scope statements, análise ambiental…)[6]. A ação destes “parceiros” subcontratados pode ser de dois tipos: operacional, quando eles mesmos prestam os serviços, ou advocatura[7], quando, por si mesmos ou através do apoio a movimentos sociais, tentam influenciar a opinião pública e a tomada de decisões sobre determinados temas[8].

Divisão internacional do trabalho entre as ONGs internacionais e  suas subcontratadas

Divisão internacional do trabalho entre as ONGs internacionais e suas subcontratadas

Diante da impossibilidade – ou da inconveniência – de se criar uma espécie de “pessoa jurídica internacional”, as ONGs internacionais pulverizam seu corpus nos diversos países onde atuam. No caso das maiores entre elas, seu real espectro de atuação é dificílimo de definir, dada a pulverização de suas políticas na extensa malha de “parceiros” subcontratados, que agem em nome próprio na execução de ações aprovadas e financiadas por estas mesmas ONGs[9]. Assim como tem sido impossível controlar a ação das ONGs internacionais através de quaisquer meios, há outra semelhança entre elas e as empresas transnacionais: é igualmente impossível encontrar sequer uma definição mais precisa de sua natureza, dado o fato de definirem-se pela negação de uma outra natureza e não pela afirmação da sua própria; uma federação de sindicatos (CIOSL) é “tão ONG” quanto uma fundação filantrópica de “responsabilidade social” (Fundação Ford). O Banco Mundial dá uma das menos vagas definições sobre elas: “organizações privadas que desempenham atividades para aliviar o sofrimento, promover os interesses dos pobres, proteger o ambiente, prover serviços sociais básicos ou empreender o desenvolvimento de comunidades”[10].

A ação das ONGs operacionais foi, no contexto das políticas de reestruturação econômica do Consenso de Washington, duramente criticada como “legitimação das políticas sociais compensatórias recomendadas pelos próprios patrocinadores da devastação econômica em andamento”, construída, nos melhores casos, por representantes de um “marxismo de classe dominante”[11], quando não por “novos liberais, recém convertidos ao credo, provenientes das mais diferentes confissões, os ex-tudo, ex-comunistas, ex-socialistas, ex-fascistas, ex-qualquer coisa que os ligue a um passado tido como superado”[12]. Apesar disso, no que diz respeito às ONGs de advocatura há uma primeira – e grande – dificuldade inicial. Embora a literatura recente sobre a participação dos trabalhadores na gestão da empresa convirja em denunciar as falsas promessas desta participação[13], comparativamente, a literatura sobre a participação destes mesmos trabalhadores na gestão do Estado, ainda que escrita por gente de esquerda, vai desde a crítica discreta e cautelosa à participação cidadã feita com base na vivência empírica de suas dificuldades e limites[14] até a impostura da reconstrução, a partir do “terceiro setor”, de um Estado tido como “novíssimo movimento social”[15].

"Quanta bondade!" (Quino)

"Quanta bondade!" (Quino)

É esclarecedor, então, comparar o título do conhecidíssimo livro de Rubem César Fernandes sobre as ONGs – Privado, porém público[16] – com uma afirmação de 1966 de Mário Pedrosa a respeito da grande corporação que hoje, como empresa transnacional, assume o papel de global player geopolítico: “Ela é pública de funções, mas privada, sacrossantamente privada na sua existência, no seu escopo. Que instituições outras no mundo pretendem ainda semelhante privilégio?”[17] A filantropia, tal como exercida por estas ONGs internacionais, põe em movimento forças econômicas insuspeitas. Mesmo quando, por exemplo, qualquer das vinte e seis ONGs internacionais e locais parceiras do Banco Mundial com assento no Comitê Conjunto Banco/ONGs se opõe às políticas da entidade em determinados temas, elas não deixam de executar, junto com as demais ONGs subcontratadas do Banco para executar suas políticas, cerca de 30% da carteira de projetos da entidade[18]. O aporte financeiro das ONGs, embora não raro seja fundamental para a continuidade das lutas dos movimentos sociais em períodos de recuo, é garantido apenas caso se mantenha uma perspectiva de apassivamento das lutas; embora, à primeira vista, isto pareça traço característico da situação brasileira, tem “perfil internacionalizado, parecendo constituir uma estratégia política no capitalismo contemporâneo” [19]. Este mesmo apoio, quando continuado ao longo do tempo, tende a minar a capacidade dos movimentos de conseguir os recursos necessários para a continuidade de suas lutas, “com as principais ONGs presas às planilhas dos doadores internacionais e os grupos comunitários igualmente dependentes da ONGs internacionais”[20].

A crescente participação das ONGs internacionais nos principais centros globais de poder explicita um aspecto subjacente à sua atuação: sua consolidação como instrumentos de poder político. Sejam elas “operacionais” ou “de advocatura”; sejam elas “progressistas” ou “conservadoras”; sejam elas “de direita” ou “de esquerda”; qualquer que seja seu caráter, enquanto as transnacionais envolvem-se com a produção econômica, as ONGs internacionais lidam com a reprodução da vida social.

Um mesmo corpo quer ir para lados diferentes

Um espécime não tão raro

Para compreender esta afirmação, é preciso, antes, evidenciar a complementaridade entre a atuação de ONGs e das empresas em nível global, que é o núcleo da afirmação. Enquanto as empresas produzem armas, as ONGs produzem os serviços de saúde para suas vítimas. Enquanto as empresas investem pesado na agricultura industrial e na transgenia, as ONGs criam um mercado fictício “de solidariedade” para produtos certificados com o selo do “comércio justo”[21] – “fictício” porque os custos de produção, neste caso, são mais altos, resultando em produtos com baixíssima competitividade no mercado[22]. Enquanto as empresas investem na cooptação e controle aprofundado dos trabalhadores através da “participação na gestão”, as ONGs investem em diversas formas de “participação popular” como o combate à corrupção (reduzindo, portanto, certos custos de implantação de empresas[23]). Mesmo as ONGs mais “à esquerda” – que defendem, sim, que os movimentos sociais vão à luta, e não raro os apoiam efetivamente sem pretender tomar seu espaço político ou falar em seu nome – evitam, ou pelo menos não favorecem, que esta luta ultrapasse os limites do “cidadanismo”. Observe-se que esta complementaridade nem sempre se dá nos mesmos territórios; o que importa, aqui, é entender que, em nível global de funcionamento do sistema capitalista, enquanto as transnacionais “beliscam”, as ONGs internacionais “assopram”.

Nesta, ninguém fica de fora

Diversão entre amigos

O que há de semelhante entre a atuação complementar das empresas transnacionais e das ONGs internacionais é o cerco que fazem aos aparelhos de Estado, tradicionais agentes da política sob o capitalismo. Enquanto as primeiras agem através da pressão econômica e do lobby, as segundas agem principalmente através da advocatura de interesses setoriais. Este cerco é facilitado pela informalidade característica do setor. Em primeiro lugar, é muito ampla e diversificada a rede de contatos e relacionamentos pessoais entre ONGs internacionais, gestores públicos e administradores de empresas transnacionais nos mais diversos níveis, o que facilita uma verdadeira “dança das cadeiras” movida por constantes cooptações de elementos de um setor por aqueles de outro, sem contar os que, nesta “dança”, acumulam cargos em diversos deles. Em segundo lugar, esta rede é reforçada por uma “multiplicidade de reuniões periódicas e conferências a portas fechadas” – ou, quando públicas, com fraquíssima divulgação e diversos obstáculos a seu acesso – que “reúne informalmente administradores de grandes empresas, chefes militares, sindicalistas, políticos profissionais, chefes de grandes administrações públicas e de serviços policiais ou de espionagem, jornalistas e acadêmicos”. Em terceiro lugar, como nestas reuniões são discutidos temas que influenciarão a ação de seus participantes nos espaços onde executam suas políticas, estas reuniões são os verdadeiros espaços transnacionais de deliberação política, e não os espaços institucionais formais onde tradicionalmente se diz estar o poder – em especial o Estado[24]. Esta informalidade, somada à indefinição quanto à sua própria natureza, faz delas e das empresas transnacionais – com quem guardam este traço em comum – sujeitos políticos cuja ação, definida fora de qualquer ambiente publicamente acessível, é praticamente incontrolável por outros sujeitos que não eles mesmos nas tensões e equilíbrios de um quadro comum de hegemonia geopolítica global.

(Conclui na parte 7 desta série. Leia as partes anteriores: [1] - [2] - [3] - [4] - [5])

Notas

[1]: Nelson de Oliveira diz que “foi na Inglaterra, no momento em que este país atingia o seu apogeu, brandindo a excelência do liberalismo como expressão da racionalidade, que a filantropia emergiu na sua versão mais moderna. E, desde então, não se pode afirmar que tenha sido esta a razão fundamental para uma possível atenuação da miséria absoluta neste ou noutro espaço onde foi adotada sistematicamente. (…) uma filantropia com caráter pura ou disfarçadamente repressiva, a exemplo do modelo inglês, cujo objetivo se limitava simplesmente ao controle com vistas à redução dos ‘delitos dos pobres’, que cresciam tanto mais quanto o sistema ampliava os seus espaços de dominação. Este tipo de filantropia serviu de referência para um conjunto de atividades de perfis amplamente diferenciados no seu formato, mas unificados quanto às suas finalidades. Foi ele, ainda que aparentemente indefinido, quem mais se espraiou pelo mundo, ganhando expressão por meio de ações cada vez menos caritativas e altruísticas, disseminando-se na mesma proporção em que o crescimento dos pobres atingia níveis preocupantes, ameaçando a tranquila continuidade da reprodução sócio-econômica”. (“Filantropia corporativa e reprodução nos limites da crise social”. Cadernos do CEAS, Salvador, n. 189, set.-out. 2000, pp. 29-50).

[2]: “O Conselho Econômico e Social poderá entrar nos entendimentos convenientes para a consulta com organizações não governamentais, encarregadas de questões que estiverem dentro da sua própria competência. Tais entendimentos poderão ser feitos com organizações internacionais e, quando for o caso, com organizações nacionais, depois de efetuadas consultas com o Membro das Nações Unidas no caso.” Organização das Nações Unidas. Carta da Organização das Nações Unidas. Nova Iorque: Nações Unidas, 1945. Disponível em http://www.onu-brasil.org.br/documentos_carta.php. Segundo a ONU, “os direitos e privilégios enumerados detalhadamente na Resolução 1996/31 do ECOSOC [Conselho Econômico e Social, segundo sua sigla inglesa] habilitam organizações qualificadas a fazer contribuições aos programas de trabalho e às metas das Nações Unidas através do serviço de consultoria técnica, aconselhamento e consultoria a governantes e ao Secretariado [da ONU]. Às vezes, como grupos de advocacy, estas organizações desposam temas das Nações Unidas, implementando planos de ação, programas e declarações adotados pelas Nações Unidas. Em termos concretos, isto vincula sua participação no ECOSOC e em seus vários corpos subsidiários à presença nestes encontros, e também a intervenções orais e declarações escritas sobre itens da agenda destes corpos. Adicionalmente, organizações em fase de qualificação para o status Consultivo Geral podem propor novos itens à consideração do ECOSOC. Organizações privilegiadas com o status são também convidadas a comparecer a conferências internacionais convocadas pela ONU, a sessões especiais da Assembleia Geral e a outros órgãos intergovernamentais. (As modalidades de participação para ONGs são regidas pelas regras procedimentais destes corpos.)” (http://www.un.org/esa/coordination/ngo/faq.htm).

[3]: United Nations Department of Economic and Social Affairs NGO Branch. “Introduction to NGO consultive status”. Disponível em http://www.un.org/esa/coordination/ngo/. Segundo o United Nations Economic and Social Council (“List of non-governmental organizations in consultative status with the Economic and Social Council as of 1 September 2009”. New York: United Nations, set. 2009. Disponível em http://esango.un.org/paperless/content/E2009INF4.pdf), são organizações com as mais variadas formas de atuação internacional, tais como: Fundação AVSI, CARE International, Caritas Internationalis, Associação Internacional de Lions Clubs, Christian Aid, Legião da Boa Vontade, Médicos Sem Fronteiras, Organização Internacional para Padronização (ISO), Rotary International, Internacional Socialista, Fórum Econômico Mundial, Fé e Alegria, Action Aid, Organização Episcopal de Ajuda Misereor, World Wide Fund for Nature Internacional, Fundação Freidrich Ebert, Confederação Internacional de Organizações Sindicais Livres, CIVICUS – Aliança Mundial para a Participação Cidadã, Católicas pelo Direito de Decidir, Child Care, Greenpeace Internacional… A presença junto à ONU, entretanto, não é o único critério de identificação de uma ONG internacional. Diversas ONGs de peso no cenário internacional não estão representadas junto à ONU, tal como: Catholic Organisation for Relief and Development Aid (CORDAID); Association pour la Taxation des Transactions pour l’Aide aux Citoyens (ATTAC); Fundação Ford; Brot für die Welt; Interkerkelijke Coördinatie Commissie Ontwikkelingssamenwerking (ICCO); Transparência Internacional etc.

[4]: Portal do United Nations Non-Governmental Liaison Service (UN-NGLS): http://www.un-ngls.org.

[5]: João Márcio Mendes Pereira. O Banco Mundial como ator político, intelectual e financeiro. Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense como requisito para obtenção do grau de Doutor em História. Niterói, 2009, p. 134. Disponível em http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=152514.

[6]: Muito embora seja comum dizer que o “terceiro setor” criou métodos próprios de gestão, diferentes daqueles empregues na gestão de empresas (James Sheenan. “NGO and participatory management styles: a case study of CONCERN Worldwide, Mozambique”. International Working Paper, nº 2. London: London School of Economics, 1998), um só exemplo é suficiente para demonstrar a falsidade desta afirmação. A logical framework approach (LFA) também conhecida como marco lógico ou estrutura lógica – foi criada pela consultoria administrativa Practical Concepts Inc., em especial por Leon J. Rosenberg e Lawrence D. Posner; seus conceitos “derivam pesadamente da ciência e da experiência ganha com o gerenciamento de complexos programas da era espacial, como os primeiros lançamentos de satélites e o desenvolvimento do submarino Polaris” (Practical Concepts Inc. The logical framework: a manager’s guide to a scientific approach to design & evaluation. Washington: Practical Concepts Inc., 1979, p. I-2). Foi encomendado pela Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID) em 1969, sendo incorporada aos métodos de gestão da agência em 1970. Já em 1975 a Agência Canadense de Ajuda Exterior (CIDA) adotou também o método, e, entre as décadas de 1970 e 1980, a Agência Alemã de Cooperação Técnica (GTZ), assessorada pela empresa de consultoria Team Technologies, faria tantas modificações no método que resultou em outro ligeiramente diferente, o Planejamento de Projetos Orientado a Objetivos (Ziel Orientierte Projekt Planung – ZOPP), definitivamente implantado em todos os projetos financiados pela GTZ a partir de 1987. Seja em sua versão LFA, seja em sua versão ZOPP, a metodologia foi adotada pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), pela Agência Sueca de Cooperação para o Desenvolvimento (SIDA), pelo Departamento de Desenvolvimento Internacional da Grã-Bretanha, pelo Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas (UNDP) e pela Comissão Européia. Tendo em conta o alcance dos projetos de desenvolvimento financiados por todas estas entidades, pode-se facilmente imaginar a enorme semelhança que encontram entre os meios que pensam ser necessários para apoiar atingidos pelo recente terremoto no Haiti e aqueles necessários para construir um submarino.

[7]: Assim como na informática, o assim chamado “terceiro setor” criou um jargão próprio de termos em inglês, não obstante haver correspondentes perfeitos para os estrangeirismos que o compõem. “Advocatura”, por exemplo, é uma das traduções indicadas pelo Novo Michaelis dicionário ilustrado inglês-português para advocacy, palavra mais usada no jargão do “terceiro setor”; deriva de “advogar”, que, entre outros significados indicados pelo Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa, é “1. Interceder a favor de; advogar. 2. Defender com razões e argumentos. (…) 5. Interceder, exorar.” Daí, talvez, a pudicícia: o significado das palavras é igual – basta checar qualquer bom dicionário de inglês – mas há uma conotação que as liga à advocacia, de um lado, e à denotação da palavra inglesa, livremente traduzida em português como “advocacia administrativa”.

[8]: Lisa Young and Joanna Everitt. Advocacy groups. Vancouver: University of British Columbia, 2004; David Cohen, Rosa de la Vega e Gabriella Watson. Advocacy for social justice. Bloomfield: Kumarian, 2001.

[9]: Mike Davis. Planeta favela. Trad. Beatriz Medina. São Paulo: Boitempo, 2006, p. 84.

[10]: World Bank, Working with NGOs: a practical guide to operational collaboration between the World Bank and non-governmental organisations. Washington D.C.: World Bank, 1995.

[11]: Paulo Eduardo Arantes. “Esquerda e direita no espelho das ONGs”. Em Zero à esquerda. São Paulo: Conrad, 2004, pp. 169 e 180.

[12]: Nelson de Oliveira. “Filantropia corporativa e reprodução nos limites da crise social”. Cadernos do CEAS, Salvador, n. 189, set.-out. 2000, pp. 29-50.

[13]: Tenho em mente, principalmente, obras como as de Maurício Tragtenberg (Administração, poder e ideologia. São Paulo: Moraes, 1980), Ricardo Antunes (Adeus ao trabalho? Ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho. São Paulo: Cortez, 1995), Nelson de Oliveira (Neocorporativismo e política pública: um estudo das novas configurações assumidas pelo Estado. São Paulo/Salvador: Loyola/Centro de Estudos e Ação Social, 2004) e João Bernardo (em conjunto com Luciano Pereira. Capitalismo sindical. São Paulo: Xamã, 2008). A maioria da literatura sobre o assunto, tal como estas, converge na crítica à participação dos trabalhadores na gestão das empresas como forma de sua cooptação para os objetivos determinados pelas próprias empresas.

[14]: Elenaldo Celso Teixeira. Sociedade civil e participação cidadã no poder local. Salvador: Pró-Reitoria de Extensão da UFBA, 2000.

[15]: Boaventura de Sousa Santos. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. São Paulo: Cortez, 2006.

[16]: Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994.

[17]: A opção imperialista. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966, p. 330.

[18]: Elenaldo Celso Teixeira. Sociedade civil e participação cidadã no poder local. Salvador: Pró-Reitoria de Extensão da UFBA, 2000, pp. 102-103.

[19]: Virgínia Fontes. “Sociedade civil, classes sociais e conversão mercantil-filantrópica”. Observatorio Social de America Latina, ano VII, nº 19, Buenos Aires, jan./abr. 2006, pp. 341-342.

[20]: Mike Davis. Planeta favela. Trad. Beatriz Medina. São Paulo: Boitempo, 2006, p. 85.

[21]: Faces do Brasil. “Comércio justo no Brasil”. Disponível em http://www.facesdobrasil.org.br/comercio-justo-no-brasil.html.

[22]: Christian Jacquiau. “Max Havelaar ou as ambiguidades do comércio justo”. Le Monde Diplomatique (edição portuguesa), 25.10.2007, disponível em http://pt.mondediplo.com/spip.php?article125.

[23]: André Lahóz e Marcelo Onaga. “O custo da corrupção: o pagamento de propinas e outras práticas ilegais barram os investimentos e fazem a economia do país deixar de crescer 2 pontos percentuais todos os anos”. Portal Exame, 13.07.2005, disponível em http://portalexame.abril.com.br/revista/exame/edicoes/0847/economia/m0056706.html; Instituto ETHOS, Empresas e Responsabilidade Social e PATRI – Relações Governamentais e Políticas Públicas. Empresas contra a corrupção. s/l: Instituto ETHOS/PATRI, 2006.

[24]: João Bernardo. Economia dos conflitos sociais. São Paulo: Cortez, 1991, pp. 169-182. Muito embora tal quadro haja sido descrito pelo autor com relação ao que observara entre 1987 e 1989, em posfácio de 2007 à segunda edição do livro (São Paulo: Expressão Popular, 2009) o autor incluiu nele também as ONGs internacionais.


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